Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | SEARA PAIXÃO | ||
Descritores: | CONTRATO DE TRABALHO DIREITOS DO TRABALHADOR | ||
Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 05/18/2005 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | CONFIRMADA | ||
Sumário: | No âmbito da empresa o trabalhador mantém todos os seus direitos de cidadão, devendo qualquer limitação imposta aos seus direitos fundamentais revestir natureza excepcional, não podendo justificar-se senão em obediência aos princípios da proporcionalidade e da adequação, só devendo ser permitido o estritamente necessário para se assegurar o justo equilíbrio entre a necessidade de assegurar a livre gestão dos meios produtivos e os interesses individuais dos trabalhadores. No que concerne à videovigilância a lei é clara em não permitir a utilização desses meios com a finalidade de controlar o desempenho profissional do trabalhar (art. 20º nº 1 do Código do Trabalho). Há porém situações excepcionais em que é permitida a utilização desse equipamento, o que sucede sempre que tenha por finalidade a protecção e segurança de pessoas e bens ou quando particulares exigências inerentes à natureza da actividade profissional o justifique – nº 2 do art. 20º do CT. | ||
Decisão Texto Integral: | Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa: Relatório O SINDICATO DOS TRABALHADORES DA QUÍMICA, FARMACÊUTICA E GÁS DO CENTRO SUL E ILHAS", com sede em Lisboa, na Rua dos Douradores, n.º 160, intentou acção declarativa com processo comum, contra: "UFP – UNIÃO DOS FARMACÊUTICOS DE PORTUGAL, CRL", com sede no Cacém, no Alto do Colaride, pedindo a condenação da R. a retirar as máquinas de filmar dos locais de trabalho onde os trabalhadores exercem funções. Alegou, para tanto, que a R. colocou, sem autorização dos trabalhadores, câmaras de filmar/vídeo no armazém onde estes exercem a sua actividade em ângulo de forma a abranger todo o espaço e incidindo sobre os mesmos. As tarefas que os trabalhadores exercem estão a ser permanentemente filmadas e gravadas, violando deste modo, os seus direitos de imagem. A Ré, regularmente citada, contestou alegando, em resumo, as excepções da incompetência do Tribunal do Trabalho em razão da matéria, a falta do interesse processual e a ilegitimidade por parte do Autor e, por impugnação, alegou que antes da implementação do sistema de videovigilância, via-se confrontada com furtos de medicamentos e demais produtos que comercializa. Notificou, em 2000.06.05, a CNPD para efeitos de obter a legalização do tratamento e recolha de imagens com vista à segurança de instalações, equipamentos, medicamentos e outros produtos que comercializa, tendo sido indicados como locais abrangidos pelas câmaras as seguintes áreas: o armazém de produtos farmacêuticos, corredores e recepção, áreas administrativas, ante-sala dos Servers, sala de tesouraria, sala UPS´s e corredor externo entre área administrativa e refeitório. No interior do armazém, existe um letreiro visível e perceptível, afixado na parede com o seguinte texto: "Para sua protecção este local encontra-se sob vigilância de um circuito fechado de televisão". A gravação das imagens é conservada pelo período de 30 dias, sem que haja qualquer tratamento posterior de tais dados e só a empresa de segurança e os directores da Ré têm acesso às imagens. Foi elaborado despacho saneador onde se julgaram improcedentes as excepções dilatórias da incompetência material do Tribunal de Trabalho, da ilegitimidade e da falta de interesse em agir do A., decisões essas que transitaram em julgado após diversos recursos interpostos pela Ré e pelo A. Realizou-se audiência de discussão e julgamento com observância das formalidades legais, tendo o tribunal em despacho fundamentado respondido à matéria de facto. De seguida foi elaborada a sentença na qual se proferiu a seguinte decisão: " Pelo exposto, e tendo em atenção as disposições legais citadas, julgo improcedente por não provada a presente acção e, consequentemente, absolvo a R. do pedido contra si formulado pelo A.." O Autor, inconformado, interpôs dessa decisão o presente recurso terminando as suas alegações com as seguintes conclusões: 1ª. a Apelada instalou no armazém um conjunto de câmaras de filmar, sendo que 69 estão direccionadas para os postos de trabalho incidindo sobre os trabalhadores. 2°. A autorização concedida pela CNPD foi para as câmaras serem colocadas no armazém, nos corredores da recepção, áreas administrativas, ante-sala dos Servers, sala da tesouraria, sala VPS e corredor externo entre área administrativa e refeitório. 3°. A autorização da CNPD, contudo, não abrangia a vigilância sobre os postos de trabalho e trabalhadores, nos termos em que veio a ser efectuada. 4°. A apelada violou a autorização concedida, colocando as câmaras de filmar nos locais onde os trabalhadores exercem funções incidindo sobre os mesmos, ultrapassando a mera defesa dos seus bens. 5°. A apelada faz o registo permanente em gravação dos locais de trabalho arquivando as mesmas, sem garantias da sua destruição ou divulgação. 6°. A incidência do "olho" das câmaras sobre os trabalhadores com carácter permanente, viola os direitos de fundamentais da imagem e essencialmente o da personalidade, ínsitos nos artigos 16º, 18º e 26º da Constituição da República Portuguesa e artigos 79º e 80º do C.C. 7°. Configura-se, o abuso de direito, devido à desproporção entre os meios usados e os fins pretendidos, dado excederem os limites impostos pela autorização e pelos ditames da boa-fé, como dispõe o artigo 334º do Código Civil. 8°. Os meios utilizados pela apelada não são necessários, visto que dispõe de outros serviços de controlo. 9°. Igualmente não são adequados porque criam constrangimento, coacção e humilhação sobre os trabalhadores. 10°. Acresce ainda que também não são proporcionais aos fins em vista, dado que é manifestamente exagerada a quantidade de câmaras para o número de trabalhadores do armazém. 11°. A douta Sentença "a quo" não pode subsistir, por violadora dos preceitos legais enunciados, devendo ser revogada e proferido o acórdão condenatório da apelada. Termos em que a douta sentença tem de ser revogada tirado acórdão condenatório e deste modo reposta a legalidade. A Apelada contra-alegou pugnando pela improcedência do recurso. Admitido o recurso, foram os autos remetidos a este Tribunal da Relação, onde o Sr. Procurador-Geral-Adjunto emitiu douto parecer (fls. 366/367), chamando a atenção para o facto das câmaras de vídeo que estão direccionadas para os postos de trabalho onde os trabalhadores laboram, incidindo sobre os mesmos "permitirem, mais prevalentemente, aos directores da Ré, pelo carácter permanente da captação, um efectivo controlo do labor profissional, do que a captura de pretensos furtos de produtos". Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir. Fundamentação de facto Estão provados os seguintes factos: 1.) A A. é uma associação sindical. 2.) A R. dedica-se à actividade de armazenista de produtos farmacêuticos. 3.) A R. tem ao seu serviço 177 trabalhadores. 4.) A R. colocou câmaras de filmar/vídeo em todo o armazém, as quais são colocadas em ângulo de forma a abranger todo o espaço onde os trabalhadores exercem as suas funções, incidindo sobre os mesmos. 5.) As tarefas que os trabalhadores exercem estão a ser permanentemente filmadas e gravadas. 6.) Existem monitores que visualizam todos os locais de trabalho e os trabalhadores estão permanentemente sob vigia e observação do operador das câmaras. 7.) A instalação das câmaras pela R. efectuou-se sem o consentimento dos trabalhadores. 8.) Antes da implementação do sistema de videovigilância, a R. via-se confrontada com furtos de medicamentos e demais produtos que comercializa. 9.) Sendo que muitas dessas situações eram perpetradas por pessoas que se encontravam devidamente autorizadas pela R. para estarem no interior das suas instalações. 10.) O desaparecimento de produtos trazia inevitáveis reflexos negativos para a situação económico-financeira da R.. 11.) Os medicamentos são produtos que não são de uso generalizado e indiscriminado por todos e de comercialização livre. 12.) Os medicamentos carecem, muitos deles, de prescrição e acompanhamento médico para poderem ser administrados. 13.) Os medicamentos são produtos perigosos e cuja comercialização se encontra sujeita a normas para defesa da saúde pública. 14.) A R. notificou, em 2000.06.05, a CNPD para efeitos de obter a legalização do tratamento e recolha de imagens com vista à segurança de instalações, equipamentos, medicamentos e outros produtos de venda em farmácia. 15.) Tendo sido indicados como locais abrangidos pelas câmaras as seguintes áreas: o armazém de produtos farmacêuticos, corredores e recepção, áreas administrativas, ante-sala dos Servers, sala de tesouraria, sala UPS´s e corredor externo entre área administrativa e refeitório. 16.) No interior do armazém, existe um letreiro visível e perceptível, afixado na parede com o seguinte texto: "Para sua segurança local sob vigilância vídeo". 17.) As imagens são processadas pela "SEGURAPRESS", a qual se dedica ao exercício da actividade de segurança privada. 18.) A gravação das imagens é conservada pelo período de 5 dias, sem que haja qualquer tratamento posterior de tais dados. 19.) Só a empresa de segurança e os directores da R. têm acesso às imagens. 20.) Não há transmissão de dados e os mesmos só podem ser utilizados nos termos da lei penal. 21.) Mediante requisição fundamentada por escrito ao responsável pelo tratamento dos dados, os titulares dos dados podem exercer o direito de acesso e rectificação aos dados que lhe respeitem. Fundamentação de Direito A questão que se suscita no presente recurso é a de saber se as câmaras de filmar/vídeo colocadas no armazém onde os trabalhadores laboram violam os direitos de personalidade destes, nomeadamente o direito à imagem, por estarem a ser permanentemente filmados e as suas imagens gravadas. Como é sabido, o reconhecimento dos direitos de personalidade do trabalhador no âmbito da relação de trabalho foi pela primeira vez introduzido na legislação laboral com o novo Código do Trabalho que entrou em vigor em 1 de Dezembro de 2003, mas a verdade é que já anteriormente se entendia que os direitos fundamentais consagrados na Constituição (Cap. I Título II), e previstos no Código Civil (art. 70 e seguintes) tinham aplicação plena e directa aos trabalhadores no âmbito da execução do contrato de trabalho. Efectivamente é hoje indiscutível que a celebração do contrato de trabalho não implica a privação dos direitos que a Constituição reconhece a qualquer cidadão, pois que o trabalhador não deixa de ser um cidadão como qualquer outro. Os direitos fundamentais do cidadão, enquanto inerentes à pessoa humana, não podem sofrer limitações a não ser na justa medida em que o seu exercício possa contender e pôr em causa outros direitos da mesma natureza e igualmente relevantes. E conforme refere José João Abrantes ([1]), a generalidade das ordens jurídicas reconhece a plena eficácia dos direitos fundamentais da pessoa humana no âmbito da relação de trabalho, apenas lhe sendo assinalados como limites "interesses legítimos" do empregador ou de terceiros naquilo que aponta para um critério de concordância prática. A eficácia dos direitos fundamentais no âmbito do contrato de trabalho é, com efeito, um problema de delimitação de direitos: é a questão das limitações recíprocas entre duas realidades - liberdade de empresa e direitos fundamentai dos trabalhadores - frequentemente em órbita de colisão. Por isso, no âmbito da empresa o trabalhador mantém todos os seus direitos de cidadão, devendo qualquer limitação imposta aos seus direitos fundamentais revestir natureza excepcional, não podendo justificar-se senão em obediência aos princípios da proporcionalidade e da adequação, só devendo ser permitido o estritamente necessário para se assegurar o justo equilíbrio entre a necessidade de assegurar a livre gestão dos meios produtivos e os interesses individuais. No que concerne aos meios de vigilância à distância a lei é hoje clara ao não permitir a utilização desses meios com a finalidade de controlar o desempenho profissional do trabalhador art. 20º nº 1 do Código do Trabalho. É que este tipo de vigilância afecta a personalidade do trabalhador, podendo constituir uma violação da dignidade humana e dos direitos básicos, introduzindo nos trabalhadores a sensação de que não são confiáveis, fomentando uma mentalidade destrutiva da relação laboral ([2]). Há, porém, situações em que a lei permite excepcionalmente a utilização do equipamento de videovigilância, o que sucede sempre que tenha por finalidade a protecção e segurança de pessoas e bens ou quando particulares exigências inerentes à natureza da actividade profissional o justifiquem - art. 20º nº 2 do CT. No caso vertente, verifica-se que Apelada obteve autorização do CNPD, nos termos do disposto na Lei 67/98 de 26.10, para a colocação dos câmaras de videovigilância para segurança das instalações, equipamentos, medicamentos e outros produtos de venda em farmácia - doc. de fls. 38. Com efeito, está provado que antes da implementação do sistema de videovigilância a Apelada via-se confrontada com furtos de medicamentos, sendo que muitas dessas situações eram perpetradas por pessoas devidamente autorizadas a permanecer no interior das instalações. A licitude da videovigilância afere-se pela sua conformidade ao fim que a autorizou. E o armazém de produtos farmacêuticos foi um dos locais para que foi autorizada a videovigilância, sendo que o fim visado evitar o furto de medicamentos e outros produtos é, em si mesmo legítimo e também constitucionalmente garantido. Alega o Apelante que o sistema instalado pela Apelada é excessivo ou desproporcionado aos fins que visa prosseguir, face ao número de câmaras que incidem directamente sobre os postos de trabalho. De facto está provado que a Apelada tem 69 câmaras direccionadas para os postos de trabalho onde laboram os trabalhadores, que estão permanentemente sob observação das câmaras. Embora possa questionar-se o número e a intensidade da videovigilância exercida sobre os trabalhadores, afigura-se-nos que face ao pedido formulado na presente acção apenas se pode fazer um juízo de licitude ou ilicitude da videovigilância. E não se destinando as câmaras de filmar/vídeo existentes no armazém a controlar o desempenho profissional dos trabalhadores, mas a segurança de instalações, equipamentos, medicamentos e outros produtos de venda em farmácia, e estando os trabalhadores informados da sua existência, a sua utilização é licita, já que é um meio adequado, necessário e proporcionado ao fim visado. Por outro lado, não se vê que a utilização de câmaras de filmar no local de trabalho seja ofensiva dos direitos de imagem dos trabalhadores que aí laboram pois, como bem diz a decisão recorrida, "os seus retratos não são expostos ao público por via de tais filmagens". E, além disso, só a empresa de segurança e os directores da Ré têm acesso às imagens, as quais só são conservadas durante cinco dias, não havendo lugar a transmissão de dados. Também a intimidade da vida privada dos trabalhadores não é afectada com a gravação de imagens no local de trabalho, pois, cada um deles pode continuar a poder orientar a sua vida privada como entender, sendo certo que as gravações não podem ser utilizadas para qualquer outro fim que não seja o da segurança dos bens da empresa. Conclui-se, assim, pela licitude da utilização da videogravação, a qual também não configura, a nosso ver, qualquer abuso de direito, nos termos do art. 334º do Cód. Civil. Decisão: Nos termos expostos, acorda-se em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida. Custas pelo Apelante. Lisboa, 18/05/05 Seara Paixão Ferreira Marques Maria João Romba _________________________________________________________________ [1] O Novo Código do Trabalho e os Direitos de Personalidade do Trabalhador, em A Reforma do Código do Trabalho, pag. 146/147. [2] Menezes Leitão, A Protecção de Dados Pessoais no Contrato de Trabalho, em em A Reforma do Código do Trabalho, pag. 133. |