Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
245/13.3GATVD.L1-9
Relator: CALHEIROS DA GAMA
Descritores: BURLA
COMPRAS ONLINE - INTERNET
MOMENTO DO CONHECIMENTO DO FACTO CRIMINOSO
DIREITO DE QUEIXA
TEMPESTIVIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 12/17/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: I - Para efeitos do disposto no artigo 115.º, n.° 1, do CP, quando é referido que o direito de queixa se extingue no prazo de 6 meses a contar da data em que o ofendido teve conhecimento do facto, esse facto tem de aparecer aos olhos do próprio ofendido como um facto que constitui a prática de um crime, pelo que só a partir do momento em que o ofendido tem a noção de que poderá estar a ser vítima de um crime é que poderá contabilizar-se o prazo para o exercício do direito de queixa.

II - O conhecimento do facto criminoso por parte do lesado em burla por meio de vendas online, por encomenda telefónica ou outras à distância só ocorre quando decorrido algum tempo sobre a compra - o razoável para a chegada da encomenda ou aquele que o vendedor do bem/ mercadoria ou o fornecedor do serviço alvo do negócio indica como o previsível e o interessado aceita - o comprador percebe que caiu num engodo/ armadilha ardilosamente montada com aparência de coisa/ site/ empresa séria e que nunca nada irá receber em troca do que desembolsou, seja o bem que encomendou e antecipadamente pagou (total ou parcialmente como lhe era exigido nas conversações/ mensagens) seja o dinheiro que na aquisição daquele já despendeu, mormente por transferência bancária. Enquanto a vítima não se convenceu, consciencializa  ou no mínimo apercebeu de que foi alvo de uma fraude, perante fundada suspeita de que afinal nada se concretizará, contrariamente ao que lhe fora prometido e assegurado no âmbito das negociações, as quais se devem pautar pela boa fé, sem reserva mental, entre as partes que celebram negócio comercial, não está obrigada a apresentar queixa. A assim não se entender os "burlões" que conseguissem enganar as vítimas durante seis meses com falsas promessas de entrega dos bens ou de devolução do dinheiro ficariam impunes. Por outro lado, precipitando-se, poderia facilmente o comprador incorrer em denúncia caluniosa, transformando-se de potencial vítima em previsível arguido.

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 9a Secção (Criminal) do Tribunal da Relação de Lisboa:

I – Relatório

1. No âmbito do processo comum n.º 245/13.3GATVD, da Comarca de Lisboa Norte – Torres Vedras - Inst. Local – Secção Criminal – J2, foi submetida a julgamento, com intervenção de Tribunal Singular, a arguida AA , (…), acusada da prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de burla simples, previsto e punido pelo art. 217.°, n.º 1, do Código Penal.

Realizado o julgamento veio a arguida (que não contestou, não arrolou testemunhas nem esteve presente na audiência) a ser condenada, por sentença proferida e depositada em 20 de março de 2015, pela prática do crime pelo qual estava acusada na pena de 50 (cinquenta) dias de multa, à taxa diária de € 5,50 (cinco euros e cinquenta cêntimos), no total de € 275,00 (duzentos e setenta e cinco euros), convertível em caso de incumprimento voluntário ou coercivo, como previsto no art. 49.°, n.º 1 do Código Penal, em até 33 (trinta e três) dias de prisão subsidiária.

Mais foi a arguida, enquanto demandada cível, condenada a
pagar à demandante, a ofendida BB, a título de danos patrimoniais a quantia de € 67,00 (sessenta e sete euros).

2. A arguida, inconformada com a mencionada decisão, interpôs recurso extraindo da sua motivação as seguintes conclusões:

"1ª – Por factos ocorridos em 3, 4 e 5 de Março de 2013, a queixosa BB apresentou queixa contra a arguida AA no dia 30 de Setembro de 2013.

2ª – Desde os dias 4 e 5 de Março de 2013 que a queixosa tinha conhecimento da identificação da arguida, nomeadamente, do seu nome, do seu número de telemóvel, do seu número de identificação bancária e do seu endereço da rede social facebook.

3ª – A prova produzida em Audiência, quer a documental (auto de notícia/ queixa/elementos comprovativos do negócio/pagamentos) quer a testemunhal (depoimento da queixosa) comprovam o pedido, a data em que foi feito, a data de pagamento, a identificação do vendedor, o seu N.I.Bancário, contacto telefónico e contacto da rede social.

4ª – Não existiu qualquer causa impeditiva para o exercício do direito de queixa antes de 30 de Setembro de 2013.

5ª – Atento o disposto no nº 1 do artigo 115º do Código Penal, o exercício do “direito de queixa extingue-se no prazo de 6 meses a contar da data em que o titular tiver tido conhecimento do facto e dos seus autores  “. Aliás, “O requisito do conhecimento do agente estará dado logo que seja possível ao ofendido individualizar a pessoa presumivelmente culpada, sem que se torne necessária uma indicação completa dos dados identificadores” Ac. fixação de jurisprudência STJ publicado em DR, I SÉRIE, Nº 98, 21 DE MAIO DE 2012, P. 2624

6ª -   O direito de queixa tinha que ser exercido até ao dia 6 de Setembro de 2013, pelo que a queixa apresentada somente em 30 de Setembro de 2013 é extemporânea.

7ª – A arguida foi julgada e condenada por factos, relativamente aos quais o direito de queixa tinha caducado.

8ª – A douta sentença cometeu erro notório na apreciação da prova e simultaneamente na aplicação do Direito: impunha-se a declaração de extinção do direito de queixa, por caducidade e não a condenação da arguida.

9ª – Foi violado o disposto no nº 1 do artigo 115º do Código Penal.

Pelo que e salvo o devido respeito, deverá ser revogada a douta sentença condenatória, substituindo-se por outra que declare extinto, por caducidade, o direito de queixa, assim se fazendo Justiça !" (fim de transcrição).

3. Foi proferido despacho judicial admitindo o recurso, como se alcança de fls. 167.

4. Respondeu o Ministério Público extraindo da sua motivação as seguintes conclusões:

"1.º A arguida veio recorrer da sentença proferida nos presentes autos e que a condenou pela prática de um crime de burla simples por entender que o tribunal "a quo" incorreu em erro notório na apreciação da prova e aplicação do Direito por não ter considerado intempestivo o exercício do direito de queixa da ofendida.

2.º O marco inicial para a contagem do prazo para o exercício do direito de queixa é a data do conhecimento do facto criminoso pelo ofendido e não a data da consumação do crime.

3.º Só a partir do momento em que a ofendida tem a noção de que poderá estar a ser vítima de um crime é que poderá contabilizar-se o prazo para o exercício do direito de queixa, pois só aí ele se revela como um facto criminoso.

4.º Se a ofendida foi informada que após o pagamento as encomendas demorariam até 30 dias a serem entregues, só após o decurso desse período (e sem que a entrega seja feita) é que a ofendida poderia ter noção de que estaria a ser vítima de um crime de burla.

5.º Se o último pagamento ocorreu a 5 de Março de 2013, o prazo de 30 dias para a entrega terminou a 5 de Abril de 2013 e só a partir desta data é que a alguém poderia ter noção de que estava a ser vítima de um crime.

6.º Quando a queixa foi apresentada (em 30 de Setembro de 2013) ainda não estavam decorridos seis meses desde 05 de Abril de 2013 (data em que deveriam ter sido entregues as encomendas).

7.º Assim, o direito de queixa da ofendida foi exercido tempestivamente e a
sentença do Tribunal "a quo" não incorreu em erro notório na apreciação da prova e
aplicação do Direito, nem violou o art. 115.°, n." 1 do Código Penal.

8.º Pelo exposto, deverá confirmar-se, na íntegra, a sentença condenatória e, consequentemente, negar-se, por completo, o provimento ao recurso interposto pela arguida.

Assim decidindo, farão V.ªs Ex.ªs. a costumada Justiça!" (fim de transcrição).

5. Subidos os autos, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta nesta Relação apôs o seu visto e emitiu parecer, pronunciando-se no sentido da improcedência do recurso interposto pela arguida, aderindo à posição assumida pelo Ministério Público na primeira instância (cfr. fls. 183).

6. Foi cumprido o preceituado no art. 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal (doravante CPP), não tendo havido resposta.

7. Efetuado o exame preliminar foi considerado não haver razões para a rejeição do recurso.

8. Colhidos os vistos legais, cumpre agora apreciar e decidir.

II – Fundamentação

1. Conforme entendimento pacífico dos Tribunais Superiores, são as conclusões extraídas pelo recorrente, a partir da respetiva motivação, que operam a fixação e delimitação do objeto dos recursos que àqueles são submetidos, sem prejuízo da tomada de posição sobre todas e quaisquer questões que, face à lei, sejam de conhecimento oficioso e de que ainda seja possível conhecer (cfr., entre outros, os Acs. do STJ de 16.11.95, de 31.01.96 e de 24.03.99, respetivamente, nos BMJ 451° - 279 e 453° - 338, e na Col (Acs. do STJ), Ano VII, Tomo 1, pág. 247, e cfr. ainda, arts. 403° e 412°, n° 1, do CPP).

As questões suscitadas pelo recorrente, que deverão ser apreciadas por este Tribunal Superior, são, em síntese, as seguintes:

- a sentença do tribunal a quo incorreu em erro notório na apreciação da prova e aplicação do Direito por não ter considerado intempestivo o exercício do direito de queixa da ofendida e, consequentemente, declarado extinto o procedimento criminal por falta de queixa, absolvendo a arguida.

2. Passemos, pois, ao conhecimento das questões alegadas. Para tanto, vejamos, antes de mais, o conteúdo da decisão recorrida, no que concerne a matéria de facto:

   

a) O Tribunal a quo declarou provados os seguintes factos (transcrição):

1. No dia 04 de Março de 2013, pelas 00h 11 m, a ofendida BB, após pesquisa na internet (facebook), através do link "LL", existente na página do facebook da arguida acedeu, através do site: http://www.facebook.com/Loja----, à loja online, na qual é publicitada, pela arguida, a venda online de roupas, calçado, e outros artigos e acessórios.

2. Acreditando no seu conteúdo, e pretendendo adquirir algumas peças de vestuário a aqui ofendida iniciou conversações com a arguida, através do facebook e através do número 96------, acabando por lhe adquirir, nos dias 04 e 05 de Março de 2013, uma peça, no valor total de 67,00 Euros.

3. Em resposta, a arguida comprometeu-se a enviar a encomenda pelo correio, após realizado pagamento através de transferência bancária do referido valor para o NIB 0033.0000.------------, do banco ZZ, aguardando a confirmação do pagamento para proceder ao envio das peças pedidas pela ofendida.

4. Por ter confiado que a arguida pretendia, verdadeiramente, vender as peças de vestuário, pela sua postura e conversas mantidas através do facebook e através de telemóvel, a ofendida BB  realizou, no dia 04 de Março de 2014 uma transferência no valor de 31,65 Euros, e no dia 05 de Março de 2014, uma segunda transferência no valor de 35,35 Euros, para a conta por aquela indicada, e titulada pela arguida.

5. Efectuadas as transferências da conta bancária titulada por BB, sediada em Torres Vedras, a ofendida por conversa mantidas através de mensagens no facebook confirmou a realização das mesmas, respondendo-lhe a arguida que iria proceder ao envio da encomenda pelos CTT.

6. Sucede que, após a concretização das transferências bancárias para a conta bancária da arguida, não mais esta diligenciou no sentido de a encomenda chegar à ofendida, argumentando que existiam problemas com a transportadora, com o fornecedor e que tinha sido operada, nem lhe devolveu os 67,00 Euros, que foram depositados em conta bancária por si titulada e que fez seus.

7. Através do ardil acima descrito, a arguida procurou e conseguiu convencer a ofendida a realizar a transferência bancária da quantia total de 67,00 Euros, locupletando-se assim com esta.

8. Actuou a arguida determinada a obter para si um enriquecimento que bem sabia ser indevido, à custa do património alheio, não existindo razões para que a ofendida duvidasse de si, atendendo ao teor das conversas que foram sendo mantidas, no período compreendido entre o dia 04.03.2013 e o dia 30.09.2013, através de mensagens pelo facebook e por telemóvel.

9. Com a sua actuação planeada e astuciosa, decidiu criar a BB a convicção de que pretendia vender as referidas peças de vestuário, o que sabia não ser verdade.

10. A arguida agiu de forma deliberada, livre, e consciente, bem sabendo ser o seu comportamento proibido e punido por lei.

Mais se provou,

11. Do certificado do registo criminal da arguida nada consta." (fim de transcrição).

b) Factos declarados não provados:
"Não deixaram de se provar quaisquer outros factos relevantes para a decisão da causa." (fim de transcrição).

c) Em sede de motivação da decisão de facto, escreveu-se na sentença recorrida:

"O Tribunal gizou a sua convicção atendendo ao conjunto das diligências realizadas em audiência, analisando-as global e criticamente, segundo as regras da experiência comum e segundo a livre convicção do julgador, nos termos do Art 127.° do Código de Processo Penal.

Em particular e na ausência da arguida ou de outras testemunhas, o tribunal ponderou as declarações da ofendida e demandante, BB, a qual confirmou o circunstancialismo de tempo, modo e lugar em que os factos ocorreram, esclarecendo ter contactado com uma pessoa telefonicamente e pela internet que se apresentava com o nome da arguida, correspondendo ainda ao nome da conta bancária para onde fez a transferência monetária, sendo que adiantou o dinheiro e fez a transferência para a conta da arguida, conforme indicação dada pela mesma, mas no entanto, esta nunca lhe enviou a encomenda da mercadoria por correio ou de outra forma e nem lhe foi restituída tal quantia, apesar dos vários contactos e das diversas desculpas que lhe foram dadas. Mais confirmou a queixa apresentada e o número de telefone com quem contactava.

O tribunal valorou ainda os documentos juntos aos autos cujo teor não foi posto em crise e mormente a fls. 2 e ss., 7 a 44, 54, 60 a 62, 63 a 66, 67 a 72 e 75, correspondentes à denúncia, ao comprovativo da transferência bancária e do beneficiário da mesma, do autor da transferência e dos contactos mantidos entre arguida a ofendida por mensagens.

Assim, da conjugação dos documentos juntos aos autos, e do depoimento da testemunha de acusação, cujo depoimento foi claro, esclarecedor e credível, apurou-se que o pagamento efectuado pela ofendida foi para a conta da arguida, e que a mesma apenas por aquela era movimentada, pessoa com quem sempre contactou por mensagem e telefonicamente, sendo que esta não lhe devolveu tal quantia até à data e nem entregou os respectivos objectos, apesar de várias insistências.

Assim, apesar da ofendida não ter visto pessoalmente a arguida, o nome dado, o número da conta e a confirmação do respectivo depósito (na ausência de prova contrária) não trazem dúvidas ao tribunal de que foi a arguida a beneficiária de tal quantia e que terá actuado com intenção de ludibriar e prejudicar a ofendida, até pelas regras da experiência. Na verdade, nada tendo a ver com o sucedido, o normal seria questionar o porquê de um estranho fazer tal depósito, e de tal actuação
inexiste qualquer prova e nem a arguida negou os factos, ainda que em contestação.

Pelo que foi dada como provada a integralidade da factualidade acusatória, incluindo no que respeita à intencionalidade da arguida, tendo em consideração as regras da experiência e a prova documental e testemunhal aqui produzida.

A inexistência de antecedentes criminais está certificada.

Inexistem factos não provados." (fim de transcrição).

3. Vejamos se assiste razão à recorrente, apreciando se perante as circunstâncias do caso concreto, o direito de queixa da ofendida foi exercido tempestivamente?

Defende a recorrente que:

"1 - Os autos tiveram origem numa queixa apresentada em 30 de Setembro de 2013 por BB, na qual imputa à arguida a prática de factos suscetíveis de integrar o crime de burla;

2 – Os factos teriam sido praticados (e assim ficou a  constar nos “factos provados da douta sentença”) nos dias 03, 04 e 05 de Março de 2013.

3 – Na primeira daquelas datas a queixosa fez uma encomenda de peça de vestuário pela internet (na rede social facebook) e nos dois dias seguintes efectuou a transferência bancária da quantia de 67,00€ para a conta da arguida, como forma de pagamento.

4 – Àquela data a queixosa BB detinha os contactos da arguida, tendo conhecimento, nomeadamente, do seu nome, do seu número de telemóvel e do seu número de identificação bancária (para além do endereço da referida rede social).

5 – Pelos factos ocorridos nas datas referidas em 2, a BB apresentou queixa contra a arguida AA no dia 30 de Setembro de 2013.

6 – Ou seja, apresentou a queixa passados seis meses e vinte cinco dias após a prática dos mesmos e do conhecimento do seu autor.

7 – Estabelece o nº 1 do artigo 115º do Código Penal que “ O direito de queixa extingue-se no prazo de 6 meses a contar da data em que o titular tiver tido conhecimento do facto e dos seus autores   (…)

8 – O Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 4/2012, publicado no D.R. n.º 98, Série I de 2012-05-21, estabelece a forma como se procede à contagem do prazo para exercício do direito  de queixa: “O prazo de seis meses para o exercício do direito de queixa, nos termos do artigo 115.º, n.º 1, do Código Penal, termina às 24 horas do dia que corresponda, no 6.º mês seguinte, ao dia em que o titular desse direito tiver tido conhecimento do facto e dos seus autores; mas, se nesse último mês não existir dia correspondente, o prazo finda às 24 horas do último dia desse mês.

9 – Em face do que, o direito de queixa extinguiu-se no dia 6 de Setembro de 2013.

10 – A queixa apresentada apenas em 30 de Setembro de 2013, foi-o de forma extemporânea, o que, aliás, a arguida invocou em julgamento.

11 – Não se verificam os pressupostos da aplicação da pena aplicada, inexistindo a possibilidade de condenação da arguida.

12 – Na douta sentença o Tribunal preferiu omitir a data da apresentação da queixa e o facto de a queixosa deter desde o inicio todos os elementos informativos para a apresentação atempada da mesma, como se tal fosse  irrelevante para a correcta aplicação do  Direito.

13 -  E violou o disposto no artigo 115º nº 1 do Código Penal, pois devia ter aplicado essa norma jurídico - penal imperativa."

Mais alega a recorrente que relativamente à matéria de facto:

"14 - O Tribunal errou na apreciação dos elementos de prova documental que foram analisados em Audiência, a saber: o auto de notícia crime e a data da queixa apresentada, a data das transferências bancárias para o NIB 0033.0000.-----------.                                                               

15 - A linha de orientação da Acusação (querer dar ao Tribunal a indicação que a queixosa só apresentou queixa em 30 de Setembro de 2013 por só nessa data ter consciência dos factos sucedidos), não tem qualquer razão de ser.                                                                                                                                            

16 – Aliás, da prova gravada resulta também que a queixosa tinha bem presente a data da prática dos factos e a identidade do seu autor (data da encomenda e a quem, por que forma,  data e meio de pagamento).

Da prova gravada:

- 01.15 Procurador Adjunto: Podia descrever-nos então em que circunstâncias é que se deu esse negócio, em que datas é que foram feitos os pagamentos ?

- 01.28 – 03.01 BB: Eu estava no facebook (…) e fiz uma encomenda no dia 3 de Março de 2013 (…) e no dia 4 fiz a primeira transferência bancária para a conta dessa senhora D. AA (…) e no dia 5 de Março de 2013(…) fiz uma nova transferência. Os dois valores somavam 67 euros, que era o valor da compra.

- 07.00 – Procurador Adjunto: Foi em Setembro de 2013 que se apercebeu que tinha sido enganada ?

- 07.10 – 07.30 BB: Quer dizer …. as desculpas foram tantas (porque de Março até Setembro foram meses) que eu comecei a desconfiar antes.

17 – A prova produzida em Audiência, quer a documental quer a testemunhal, demonstram claramente que a queixosa fez uma compra à arguida pela internet a 3 de Março de 2013, que efectuou metade do pagamento a 4 de Março e o restante a 5 de Março de 2013, para o número de identificação bancária da arguida.

18 – A queixosa conhecia a identidade da arguida, falou com ela diversas vezes pelo facebook e pelo telemóvel.

19 – Não existiu qualquer causa que impedisse a queixosa de exercer o direito de queixa antes de 30 de Setembro de 2013.

20 -  A douta sentença cometeu erro notório na apreciação da prova: todos os elementos obtidos  comprovavam a tardia e intempestiva queixa apresentada, implicando a declaração de extinção do direito de queixa por caducidade e não a condenação da arguida."

Analisemos.

Como se expendeu no acórdão desta mesma 9ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa de 3/9/2013, proferido no processo n.º 430/07 e consultável na JusNet:

"O crime de burla é tido como um crime de forma vinculada, em virtude de o legislador descrever de forma minuciosa o modo executivo de consumação; de dano, por pressupor um prejuízo patrimonial de quem é sujeito passivo; de resultado, porque se consuma com a saída de bens da disponibilidade fáctica do sujeito passivo, e um crime de resultado parcial, caracterizando-se por uma descontinuidade ou falta de congruência entre os correspondentes tipo subjectivo e objectivo, porque embora se exija no âmbito do primeiro que o agente actue com a intenção de obter enriquecimento ilegítimo, a consumação não depende de tal enriquecimento, bastando o empobrecimento do ofendido - Comentário ao Código Conimbricense, II, 275-277 e J. António Barreiros, in "Crimes Contra o Património".

Efectivamente o resultado típico do crime de burla é o empobrecimento do sujeito passivo, através do comportamento astucioso do arguido, sendo que com ele o crime se consuma.

O momento da consumação do crime é, portanto, aquele em que o lesado abra mão da coisa ou do valor sem que a partir daí se possa controlar o seu destino, então já sem disponibilidade sobre esse património, como é entendimento jurisprudencial - ac do STJ de 21-06-2006 (relator Cons. Soreto de Barros) e de 04-06-2003 (relator Cons. Henriques Gaspar).

A consideração deste elemento subjectivo permite, como se salientou, qualificar a burla como um crime de resultado cortado ou parcial, não havendo «coincidência na extensão dos elementos objectivos e subjectivos do tipo: no plano objectivo basta o prejuízo patrimonial da vítima (ou de terceiro); ao nível subjectivo requer-se uma intenção de enriquecimento que não carece de concretização objectiva» (cfr., MARIA FERNANDA PALMA e RUI CARLOS PEREIRA, op. cit, pág. 323).

A consumação do crime exige, pois, o resultado consistente na saída dos bens ou valores da disponibilidade fáctica do legítimo titular, com a verificação de um efectivo prejuízo patrimonial do burlado ou de terceiro» (cfr. A. M. ALMEIDA COSTA, op. cit., págs. 276-277).

Assim, o crime de burla ficou consumado com a imediata transferência da quantia para outra conta de qualquer agência, em qualquer localidade, e bastando que, ao nível do tipo objectivo, se observe o empobrecimento (= dano) da vítima." (fim de transcrição).

Em suma: "É ponto assente, quer doutrinal, quer jurisprudencialmente, que o crime de burla se consuma no momento em que a coisa dela objecto sai da esfera de disponibilidade do burlado e entra na do sujeito activo (burlão), pelo menos nas situações em que ambas se dão simultaneamente." (in acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23/10/2002, proferido no processo n.º 2131/02 e também consultável na JusNet.

Porém, a questão agora levantada é outra bem diversa reportando-se à extemporaneidade ou tempestividade do exercício do direito de queixa por parte da ofendida de um crime de burla, a qual, aliás, já havia sido apreciada em audiência de julgamento tendo sido doutamente defendido pelo Ministério Público que «para efeitos do disposto no artigo 115.º n.° 1 quando é referido que o direito de queixa se extingue no prazo de 6 meses a contar da data em que o ofendido teve conhecimento do facto, esse facto tem de aparecer aos olhos do próprio ofendido como um facto que constitui a prática de um crime, pelo que só a partir do momento em que o ofendido tem a noção de que poderá estar a ser vítima de um crime é que poderá contabilizar-se o prazo para o exercício do direito de queixa. Pelo exposto, e porque resulta da prova junta aos autos que após a realização da transferência bancária e durante alguns meses a ofendida acreditou que os factos praticados pela arguida não consubstanciavam a prática de um crime mas tão-somente uma questão de não entrega dos bens que havia adquirido, aguardando assim pela devolução do dinheiro, entendemos que o exercício do direito de queixa foi tempestivo porque só nos seis meses que antecederam a apresentação da queixa é que a ofendida suspeitou que foi enganada e que o dinheiro não lhe seria devolvido.» (cfr. ata da sessão de 16 de março de 2015 a fls. 136).

A esse respeito foi decidido na ocasião pela Mmª Juíza a quo que:

«Nos presentes autos vem a arguida acusada da prática de um crime de burla simples, ilícito esse que impõe a necessidade de queixa pelos ofendidos, para que seja iniciado o respectivo procedimento criminal - veja-se o disposto no artigo 217º n° 1 e 3 CP.

Nos presentes autos e conforme resulta da acusação, o negócio em causa terá acontecido entre os dias 4 e 5 de Março de 2013, e conforme resulta da mesma acusação após essas datas arguida e ofendida mantiveram contactos.

Resulta igualmente dos autos que a queixa pela ofendida foi apresentada no dia 30-09-2013, sendo que resulta indiciariamente dos autos e da prova arrolada na acusação que os contactos entre arguida e ofendida através de mensagens perduraram pelo menos até Julho/Agosto de 2013.

Consagra o artigo 115° n° 1 CPP que "O direito de queixa extingue-se no prazo de seis meses a contar da data em que o titular tiver conhecimento do facto ou dos seus autores...".

Consideramos que no ilícito em apreço e conforme resulta da acusação, não obstante a transferência bancária da quantia monetária aqui em causa possa ter ocorrido no inicio do mês de Março de 2013, o modo de como os factos foram executados e o engano de que a ofendida terá sido vítima, não se concretizou apenas nessa data.

Não obstante a jurisprudência maioritária considerar que o ilícito em causa se consuma na data em que é feita a transferência monetária, a verdade é que a ofendida conhecendo a autora dos factos não tomou imediata consciência de que poderia estar a ser vítima de algum tipo de crime.

Efectivamente, e apenas no decurso das mensagens trocadas entre arguida e ofendida e pela demora na entrega da mercadoria é
que a ofendida se foi apercebendo do que poderia estar a acontecer.

Assim sendo e concordando com a antecedente promoção, consideramos que a ofendida não tomou conhecimento do facto ilícito no dia em que concretizou a transferência bancária, mas posteriormente, o que importa que se considere que o direito de queixa aqui em causa foi exercido tempestivamente.

Pelo exposto e tendo em consideração o plasmado no artigo 115º n° 1 C.P. e de acordo com a informação indiciária constante dos autos, consideramos que o direito de queixa foi exercido tempestivamente indeferindo-se o requerido pela defesa.» (cfr. ata da sessão de 16 de março de 2015 a fls. 137/138).

Ora, como bem assinala o Ministério Público na sua resposta ao recurso, ao contrário do que defende a recorrente, o depoimento da ofendida demonstra claramente que esta, quando fez as transferências (o que ocorreu nos dias 4 e 5 de Março de 2013), não teve logo noção de que estaria a ser vítima de um crime e só se apercebeu disso bem mais tarde, tendo cancelado a encomenda em Junho ou Julho de 2013 e solicitado então a devolução do dinheiro.

Para além disso, logo no início do seu depoimento, a ofendida BB   referiu ainda que fora informada pela arguida que após o pagamento as encomendas ainda demorariam entre 17 a 30 dias a serem entregues.

Sendo assim, como podia a ofendida sentir-se vítima de um crime logo no dia em que efetuou os pagamentos se lhe garantiram que a encomenda poderia demorar até 30 dias para chegar.

Perante isto, é evidente que o facto praticado pela arguida AA  só poderia revelar-se como criminoso aos olhos da ofendida (no mínimo) após o decurso desse prazo e sem que a entrega tivesse sido feita.

Assim, porque o último pagamento foi efetuado em 5 de Março de 2013 a ofendida BB   nunca poderia ter conhecimento do facto "criminoso" antes de decorridos os trinta dias acordados para a chegada da encomenda, o que só aconteceu a 5 de Abril de 2013.

É por isso manifesto que a queixa apresentada em 30 de Setembro de 2013 é mais do que tempestiva, pois não se mostravam decorridos seis meses desde 5 de Abril de 2013.

Como igualmente bem assinalou o Ministério Público na sua resposta ao recurso, o entendimento seguido pela arguida, segundo o qual o prazo para exercer o direito de queixa deverá contar-se a partir da data da entrega/transferência do dinheiro, implicaria que os vulgos "burlões" que conseguem enganar as vítimas durante seis meses com falsas promessas de entrega dos bens ou de devolução do dinheiro fiquem impunes!

Por alguma razão o legislador introduziu como marco inicial para a contagem do prazo de direito de queixa a data do conhecimento do facto criminoso e não a data da sua consumação!

E é também esse o sentido da jurisprudência, nomeadamente da consignada naquele aresto do Supremo Tribunal de Justiça que a própria recorrente indica nas suas motivações, pois quando ali se alude "a conhecimento do facto" pelo "titular desse direito" (o direito de queixa) está obviamente a referir-se ao conhecimento do facto criminoso por parte do lesado o que na burla por meio de vendas online, por encomenda telefónica ou outras à distância só ocorre quando decorrido algum tempo sobre a compra - o razoável para a chegada da encomenda ou aquele que o vendedor do bem/mercadoria ou o fornecedor do serviço alvo do negócio indica como o previsível e o interessado aceita - o comprador percebe que caiu num engodo/armadilha ardilosamente montada com aparência de coisa/site/empresa séria e que nunca nada irá receber em troca do que desembolsou, seja o bem que encomendou e antecipadamente pagou (total ou parcialmente como lhe era exigido nas conversações/mensagens) seja o dinheiro que na aquisição daquele já despendeu. Enquanto a vítima não se convenceu, consciencializa  ou no mínimo apercebeu de que foi alvo de uma fraude, perante fundada suspeita de que afinal nada se concretizará, contrariamente ao que lhe fora prometido e assegurado no âmbito das negociações, as quais se devem pautar pela boa fé, sem reserva mental, entre as partes que celebram negócio comercial, não está obrigada a apresentar queixa. A não ser assim, precipitando-se, poderia facilmente o comprador incorrer em denúncia caluniosa, transformando-se de potencial vítima em previsível arguido.

Quanto ao invocado, pela recorrente, erro notório na apreciação da prova dir-se-á ainda o seguinte:

Vício a que alude a alínea c) do n.º 2 do art. 410.º do CPP, o erro notório na apreciação da prova tem de dimanar da própria decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, sem recurso, portanto, a quaisquer elementos externos à decisão, designadamente declarações ou depoimentos exarados no processo durante o inquérito ou a instrução, ou até mesmo o julgamento, sendo que, por regras da experiência comum deverá entender-se as máximas da experiência que todo o homem de formação média conhece.

O erro notório na apreciação da prova “é o erro ostensivo, de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores, ou seja, quando o homem de formação média facilmente dele se dá conta» [Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal ”, vol. III, p. 341].

Por isso, «só existe erro notório na apreciação da prova quando do texto da decisão recorrida, por si ou conjugada com as regras da experiência comum, resulta com toda a evidência a conclusão contrária à que chegou o tribunal» [Ac. do STJ de 15/4/1998 (in BMJ n.º 476, p. 82)], isto é, «quando se dão como provados factos que, face às regras da experiência comum e à lógica corrente, não se teriam podido verificar ou são contraditados por documentos que fazem prova plena e que não tenham sido arguidos de falsos» [Ac. do STJ de 10/3/1999 proferido no Proc. n.º 162/99 (apud MAIA GONÇALVES in “Código de Processo Penal Anotado e Comentado”, 11ª ed., 1999, pp. 744-745)], ou seja, «quando se dá como provado um facto com base em juízos ilógicos, arbitrários ou contraditórios, claramente violadores das regras da experiência comum» [Ac. do STJ de 11/10/1995 (in BMJ nº 450, p. 110)].

Como igualmente refere o Ac. do STJ de 4/10/2001, in CJ, T.III, pág. 182, há erro notório “quando se retira de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável, quando se dá como provado algo que notoriamente está errado, que não podia ter acontecido, ou quando, usando um processo racional e lógico, se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, arbitrária e contraditória, ou notoriamente violadora das regras da experiência comum, ou ainda quando determinado facto provado é incompatível ou irremediavelmente contraditório com outro dado facto (positivo ou negativo) contido no texto da decisão recorrida”.

O erro notório na apreciação da prova não reside na desconformidade entre a decisão de facto do julgador e aquela que teria sido a do recorrente.

A decisão do tribunal a quo, quanto à matéria de facto que deu como assente, está fundamentada, lógica e racionalmente, e a convicção alcançada não ultrapassou os limites impostos pelo art. 127.º do CPP, pois a decisão, no tocante a tal aspecto, não se mostra arbitrária, antes perfeitamente aceitável à luz das regras gerais da experiência.

A livre apreciação da prova não é livre arbítrio ou valoração puramente subjetiva, realizando-se de acordo com critérios lógicos e objetivos que determinam uma convicção racional, objetivável e motivável. Não significando porém, que seja totalmente objetiva pois, não pode nunca dissociar-se da pessoa do Juiz que a aprecia e na qual "...desempenha um papel de relevo não só a atividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis (v.g. a credibilidade que se concede a um certo meio de prova) e mesmo puramente emocionais (...)" Prof. Figueiredo Dias in "Direito Processual Penal", pág. 205.

O Juízo sobre a valoração da prova faz-se em diversos níveis. Num primeiro dependente da imediação nele intervindo elementos não racionalmente explicáveis (v. g., a credibilidade que se concede a um certo meio de prova). Num segundo intervindo as deduções e induções que realiza o julgador, a partir de factos probatórios, que hão-de basear-se na convicção do raciocínio que há-de basear-se nas regras da lógica, princípios de experiência e conhecimentos científicos, tudo se podendo englobar na expressão "regras da experiência" (Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal - II vol.- Verbo - págs. 126 e 127).

Da leitura da decisão recorrida verifica-se ter sido seguido um processo lógico e racional na apreciação da prova, não surgindo a decisão como uma conclusão ilógica, arbitrária, ou violadora das regras da experiência comum na apreciação das provas.

Não padece, destarte, a decisão recorrida do vício de erro notório na apreciação da prova que lhe é apontado pela recorrente.

Assim sendo, uma vez que o direito de queixa da ofendida BB   foi exercido tempestivamente, a sentença do Tribunal a quo não incorreu em erro notório na apreciação da prova nem violou o art. 115.°, n.° 1 do Código Penal, aplicando corretamente o Direito.

Pelo que, afigura-se-nos ser de confirmar, na íntegra, a sentença condenatória e, consequentemente, negar-se, por completo, a procedência ao recurso interposto pela arguida.

III – Decisão

Pelo exposto, acordam os Juízes na 9ª Secção Criminal da Relação de Lisboa, em negar provimento ao recurso interposto pela arguida AA , confirmando-se integralmente a decisão recorrida.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 (três) UC’s.

Notifique nos termos legais.

(o presente acórdão, integrado por dezasseis páginas, foi processado em computador pelo relator, seu primeiro signatário, e integralmente revisto por si e pelo Exmº Juiz Desembargador Adjunto – art. 94.º, n.º 2 do Cód. Proc. Penal)

Lisboa, 17 de dezembro de 2015

Calheiros da Gama

Antero Luís