Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
7353/2003-6
Relator: MARIA MANUELA GOMES
Descritores: CONTRATO DE LOCAÇÃO FINANCEIRA
PROVIDÊNCIA CAUTELAR
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/06/2003
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Sumário: A providência cautelar prevista no art. 21º do DL nº 145/95, de 24-6, é aplicável a todos os contratos de locação financeira, mesmo àqueles que incidam sobre imóveis.
Relativamente a tal providência o locador não carece de alegar, nem de provar o justificado receio de lesão do seu direito, sendo este presumido pela lei.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa.

1. BCP Leasing, S. A., (anteriormente denominada Leasing Atlântico, SA, que em virtude de fusão de sociedades incorporou a totalidade do património da Comercial Leasing, SA ) intentou, na 17ª Vara Cível de Lisboa, procedimento cautelar de entrega judicial e cancelamento de registo, contra C.– Comércio, Indústria e Importação, Ldª, pedindo que, sem audição da parte contrária, fosse ordenada a entrega judicial à requerente das oito fracções autónomas que identificou, todas do prédio em regime de propriedade horizontal sito na Av. General Norton Matos, em Lisboa, descrito na 5ª Conservatória do Registo Predial de Lisboa, sob o nº 403, da freguesia de Benfica.
Alegou para tal que a Comercial Leasing, SA, celebrara com a requerida, em Outubro de 2000 um contrato de locação financeira imobiliária, tendo como objecto as ditas oito fracções autónomas, com uma duração de 120 meses, com início em Dezembro de 1997 e termo em Dezembro de 2007, mediante o pagamento pela locatária das rendas acordadas; desde Dezembro de 2000 que a locatária deixou de pagar a renda nos termos acordados, razão pela qual, por carta registada com a.r., expedida em 24.07.2002, comunicou à requerida a sua intenção de resolver unilateralmente; a resolução do contrato constituiu a requerida na obrigação de pagar requerente o montante total de 159 267,40 €, bem como de proceder à entrega das fracções locadas, o que até agora não aconteceu; a conduta da requerida indicia que ela não tem intenção de devolver as fracções, o que implica para a requerente perda de oportunidade de venda daquelas e prejuízos crescentes para o seu giro comercial, tanto mais que, sabendo que, mais cedo o mais tarde, as fracções serão entregues à locadora, deixa de ter interesse em suportar as despesas necessárias à sua manutenção pelo que a requerente receia que o estado das fracções se deteriore de forma desastrosa.
Ouvida, veio o requerida deduzir oposição. Invocou, em síntese, que estava a procurar regularizar a situação junto da requerente, decorrendo para o efeito negociações no sentido da manutenção do contrato, sendo por isso que continuava a ocupar os andares, com permissão da requerente.
Acrescentou ainda que continuava a fazer uma utilização cuidadosa das fracções e que atenta a natureza dos bens em causa, a requerente não estava dispensada de alegar factos justificativos do receio de lesão do seu património, pelo que não tinha fundamento nem era justificado o pedido formulado pela requerente.
Produzida a prova testemunhal oferecida, cujos depoimentos não foram registados, o Tribunal fundando-se na análise dos documentos apresentados, na confissão, parcial da requerida e no depoimento das testemunhas, enunciou os factos tidos como provados (sem reclamação das partes) e, de seguida, proferiu decisão a ordenar a entrega das fracções à requerente e a ordenar o cancelamento dos registos da locação financeira respeitantes às mesmas, feitos na Conservatória do Registo Predial.

Inconformada com essa decisão, agravou a requerida.
Alegou e formulou, em síntese, as seguintes conclusões:
- Face ao depoimento da testemunha João Carlos Oliveira Pedro os factos constantes dos artigos 4º a 7º da oposição devem ser dados como provados;
- O nº 4 do art. 21º do DL 149/95, de 24.06 não prevê relativamente ao periculum in mora uma presunção juris et de jure;
- Tal presunção não faz sentido relativamente a bens imóveis;
- A requerente estava, por isso, obrigada a alegar os factos constitutivos do receio de lesão do seu direito, o que não fez, pelo que não estão reunidos os requisitos de que dependia o decretamento da providência pedida;
- O despacho recorrido violou o disposto nos artigos 655º e 384º nº1 do CPC, no artigo 350º do C. Civil e no artigo 21º do DL 149/95.

Não houve contra alegações.
O despacho recorrido foi sustentado.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

2. A decisão recorrida deu como provado o seguinte:
1. Entre a requerida C. – Comércio, Indústria e Importação, Lda, como locatária, e a Comercial Leasing, S.A., como locadora, foi celebrado, em 31.12.97, o contrato de locação financeira imobiliária ao qual foi atribuído o nº 50097218, conforme documento junto de fls.16 a 41.
2. Em Outubro de 2000, todo o património da Comercial Leasing, S.A. foi incorporado por fusão, na sociedade BCP Leasing, S.A.;
3. O mencionado contrato de locação financeira teve por objecto as seguintes fracções autónomas:
- fracção autónoma designada pela letras "AA", correspondente ao quinto andar, torre A, escritório D;
- fracção autónoma designada pela letras "AZZ", correspondente à terceira cave, ou piso menos três, garagem número 3286;
- fracção autónoma designada pela letras "BAA", correspondente à terceira cave, ou piso menos três, garagem número 3287;
- fracção autónoma designada pela letras "BCL", correspondente à terceira cave, ou piso menos três, garagem número 3350;
- fracção autónoma designada pela letras "BCM", correspondente à terceira cave, ou piso menos três, garagem número 3351;
- fracção autónoma designada pela letras "BCN", correspondente à terceira cave, ou piso menos três, garagem número 3352;
- fracção autónoma designada pela letras "BCO", correspondente à terceira cave, ou piso menos três, garagem número 3353;
- fracção autónoma designada pela letras "BCE", correspondente à terceira cave, ou piso menos três, garagem número 3343,
todas do prédio urbano em regime de propriedade horizontal, situado em Benfica, Lisboa, na Avenida General Norton de Matos, descrito na 5" Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob o n.° 403, da freguesia de Benfica.
4. A aquisição e a locação das identificadas fracções autónomas encontra-se registada a favor da referida "Comercial Leasing, S.A.", na referida Conservatória, conforme fotocópia das respectivas descrições emitida pela 5ª Conservatória do Registo Predial de Lisboa ( Doc. de fls. 42 a 49);
5. Tendo a ora Requerente assumido a posição de locadora no contrato de locação financeira referido em 1), é, assim, a única e exclusiva proprietária das fracções autónomas acima identificadas;
6. Nos termos do contrato em apreço, ficou convencionado que a locação teria a duração de 120 (cento e vinte) meses, com início em 22/12/97 e termo em 25/12/07 (Doc. de fls. 16 a 41);
7. Ficou, igualmente, acordado que a Requerida se obrigava a pagar à locadora uma 1a renda de € 75.747,76 (Esc.: 15.186.063$00), seguida de 39 rendas iguais, trimestrais e sucessivas de € 16.889,61 (Esc.: 3.386.063$00), cada uma, acrescidas de IVA à taxa legal em vigor, sendo o valor residual de € 11.153,12 (Esc.: 2.236.000$00), também sujeito a IVA, conforme n.° 4 e 5 das condições particulares do contrato de locação financeira ( Doc. de fls. 16 a 41);
8. A Requerida não pagou as rendas vencidas a partir de Dezembro de 2000, inclusive, pelo que, em 24/07/02, através de carta registada com aviso de recepção, a Requerente comunicou à Requerida a sua vontade de resolver unilateralmente o contrato de locação, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 24° das respectivas condições gerais, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido (Doc. de fls. 16 a 41 e de fls. 50 a 54);
9. A Requerida não pagou à Requerente a quantia de € 159.267,40 por esta reclamada na carta de resolução (Doc. de fls. 53) nem desocupou nem restituiu as mencionadas fracções autónomas à Requerente apesar desta também o ter exigido nessa carta;
10. A Requerente tentou, por várias vezes, obter da Requerida o pagamento das quantias em dívida e a restituição das fracções autónomas locadas;
11. A Requerida mantém em seu poder as ditas fracções contra a vontade da Requerente;
12. A Requerida atravessa actualmente dificuldades económicas e financeiras que não lhe permitem honrar pontualmente todos os seus compromissos;
13. A Requerida fez uma utilização cuidadosa das fracções pelo menos até meados de Julho de 2002.

3. Face ao teor das conclusões da alegação da recorrente que, como é sabido, delimitam o objecto do recurso, são as seguintes as questões a apreciar : (i) saber se é de alterar a matéria de facto provada com os factos da oposição ditos provados; (ii) saber se, o nº 4 do art. 21º do DL 149/95, de 24.06 prevê, ou não, relativamente ao periculum in mora uma presunção juris et de jure e, em caso afirmativo, se essa presunção tem aplicação, mesmo nas situações em que o contrato de locação financeira tem por objecto bens imóveis.

3.1. A decisão do tribunal de 1ª instância sobre matéria de facto só pode ser alterada pela Relação quando: - constarem no processo todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto em causa ou se, tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada, nos termos do art. 690º-A, a decisão com base neles proferida; - se os elementos constantes do processo impuserem de decisão diversa insusceptível de ser destruída por quaisquer outras provas; ou quando o recorrente apresente documento novo superveniente que, só por si, seja suficiente para destruir a prova em que a decisão assentou (art. 712º, nº1, do CPC).
No caso em apreço, não se verificando qualquer das situações enunciadas, não podem ser tidos como provados os factos oriundos da oposição e que a recorrente diz deverem ser provados, uma vez que, mesmo no seu dizer, essa prova resultaria do depoimento de uma testemunha, não gravado e, portanto, insindicável por este tribunal..
Improcedem, pelo exposto e sem necessidade de maior fundamentação, as três primeiras conclusões da alegação da recorrente.

3.2. A questão fulcral do presente recurso pende-se com o disposto no art. 21º do DL 149/95, bem como com a aplicação ou não do mesmo aos bens imóveis.
Defende a recorrente que o nº 4 do art. 21º do DL 149/95, de 24.06, não prevê relativamente ao periculum in mora uma presunção juris et de jure e que tal presunção não faz sentido relativamente a bens imóveis.
Visando tutelar antecipadamente o cumprimento da obrigação do locatário de proceder à entrega do bem locado, derivada da extinção do contrato de locação financeira por virtude da caducidade ou da resolução do mesmo, o legislador do DL 149/95, instituiu, nos termos do seu art. 21º, a denominada providência cautelar de entrega judicial e cancelamento do registo, inicialmente restrita aos bens móveis, mas que passou, posteriormente, com a entrada em vigor das alterações introduzidas pelo DL nº 265/97, de 2 de Outubro, a abranger também os bens imóveis.
Efectivamente, estatuía a citada norma, na sua versão original, sob a epígrafe, “Providência cautelar de entrega judicial e cancelamento de registo” que:
“1 - Se, findo o contrato por resolução ou pelo decurso do prazo sem ter sido exercido o direito de compra, o locatário não proceder à restituição do bem ao locador, pode este requerer ao tribunal providência cautelar consistente na sua entrega imediata ao requerente e no cancelamento do respectivo registo de locação financeira, caso se trate de bem sujeito a registo.
2 - Com o requerimento, o locador oferecerá prova sumária dos requisitos previstos no número anterior.
3 - O tribunal ouvirá o requerido sempre que a audiência não puser em risco sério o fim ou a eficácia da providência.
4 - O tribunal ordenará a providência requerida se a prova produzida revelar a probabilidade séria da verificação dos requisitos referidos no n.° 2, podendo, no entanto, exigir que o locador preste caução adequada.
5 - A caução pode consistir em depósito bancário à ordem do tribunal ou em qualquer outro meio legalmente admissível.
6 - Decretada a providência e independentemente da interposição de recurso pelo locatário, o locador pode dispor do bem, nos termos previstos no artigo 7°.
7 - No caso previsto no número anterior, o locatário tem direito a ser indemnizado dos prejuízos que sofrer se, por decisão transitada em julgado, a providência vier a ser julgada injustificada pelo tribunal ou caducar.
8 - São subsidiariamente aplicáveis a esta providência as disposições gerais sobre providências cautelares, previstas no Código de Processo Civil, em tudo o que não estiver especialmente regulado no presente diploma.
9 - O disposto nos números anteriores não é aplicável aos contratos de locação financeira que tenham por objecto bens imóveis.”

Posteriormente, através das alterações introduzidas pelo DL 265/97, de 2 de Outubro, o legislador aboliu o disposto nos nºs 7 e 9 do preceito, substituindo o primeiro pelo constante no primitivo nº 8, e estatuiu nº 8 que “ O disposto nos números anteriores é aplicável a todos os contratos de locação financeira, qualquer que seja o seu objecto”.
Daqui deriva, sem margem para dúvidas (e independentemente do maior ou menor acerto das motivações que possam ter estado subjacentes a tal), que o legislador quis aplicar todo o regime da providência cautelar de entrega judicial instituído a todos os contratos de locação financeira, inclusive os que tivessem por objecto bens imóveis.
A alteração legislativa operada não pode ter, em caso algum, a interpretação restritiva que a recorrente pretende fazer, no sentido de não ser inteiramente aplicável aos contratos que tenham por objecto bens imóveis o disposto no citado artigo 21º e, particularmente o disposto no seu número 4.

Posto isto, vejamos.
Operada a resolução do contrato, - e porque a sociedade locadora mantém o direito de propriedade sobre o bem locado durante o prazo do mesmo – deve o locatário restituir esse bem ao locador.
Se o não fizer, pode aquele requerer ao tribunal a dita a providência cautelar especificada para a entrega imediata do bem e para cancelamento do respectivo registo, caso se trate de bem a ele sujeito. E o Tribunal ordenará a providência requerida se a prova produzida revelar probabilidade séria da verificação dos requisitos enunciados no preceito citado, a saber: a) que o contrato de locação financeira se tenha extinguido por resolução ou pelo decurso do prazo sem ter sido exercido, pelo locatário, o direito de compra; b) que o locatário não tenha procedido à restituição do bem ao locador.
Concluindo-se indiciariamente pela séria probabilidade de verificação daqueles dois requisitos, nada mais é necessário para que o tribunal decrete a providência.
O periculum in mora, o justificado receio de que a demora na resolução do litígio cause lesão grave e dificilmente reparável do direito do locador, a lei presume-o jure et de jure do facto de ter sido operada a resolução do contrato e de não ter havido, a exigível, restituição do bem (nº 4 do citado art. 21º). Não há dúvida que o legislador, após as alterações introduzidas ao regime pelo DL 265/97, no caso dos contratos de locação financeira, e independentemente do seu objecto, quis conferir ao locador um meio expedito de reclamar a entrega imediata do bem para o recolocar no mercado, evitando-se dessa forma não só a degradação e desvalorização inerentes ao uso e decurso do tempo, como até situações de imobilidade comercial.
Daí que, contrariamente ao defendido pela recorrente, o locador não careça de alegar, nem de provar, o justificado receio de lesão do seu direito. Esse receio é presumido pela lei, pois a continuação do uso do bem locado, móvel ou imóvel, determina necessariamente, pelo menos o seu desgaste, com o inerente prejuízo para o locador seu proprietário (neste sentido, v., António Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, IV volume, p. 309 e acórdão esta Relação de 28.01.99, CJ, 1999, tomo 1, p. 97).
Improcedem, pelo exposto, as restantes conclusões da alegação da recorrente, impondo-se confirmar a decisão recorrida e negar provimento ao recurso.

4. Termos em que acordam em negar provimento ao presente agravo e confirmar a decisão recorrida.
Custas pela recorrente.

Lisboa, 6 de Novembro de 2003

Maria Manuela Gomes
Olindo Geraldes
Fátima Galante