Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
6905/2006-7
Relator: SOARES CURADO
Descritores: ARBITRAMENTO DE REPARAÇÃO PROVISÓRIA
CADUCIDADE
FRAUDE À LEI
CASO JULGADO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/30/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: I- A caducidade da providência de arbitramento de reparação provisória, a obter nos termos do artigo 389.º/1, alínea c) do Código de Processo Civil, pressupõe que a acção da qual a providência depende seja julgada improcedente por decisão transitada em julgado, o que não acontece evidentemente se da decisão foi interposto recurso.
II- A requerida no arbitramento não pode, porém, obter o mesmo efeito que obteria com a declaração de caducidade, recorrendo ao artifício processual da instauração de um procedimento cautelar comum contra o requerente do arbitramento em que pretende decisão que ordene a cessação  do pagamento de rendas com fundamento no justo receio de que o crédito a reaver ( constituído pelas quantias pagas na sequência do arbitramento decretado) não venha a ser ressarcido.
III- O deferimento desta providência constituiria fraude à lei na medida em que, por ela, se obtinha o efeito (caducidade da providência decretada) que a lei não consente e se desrespeitava o caso julgado formado pela aludida decisão de arbitramento de reparação provisória.
IV- Esse caso julgado deve ser aferido à luz da decisão que está em jogo que é a decisão da acção principal, avultando aqui mais um corolário do princípio da instrumentalidade; com efeito, é o trânsito em julgado da acção principal que determina a caducidade da providência de arbitramento, é a ausência desse trânsito que obsta ao deferimento quer da segunda providência, quer do pedido de caducidade da primeira providência, assim se evidenciando efectiva identidade de causas (artigo 498.º do Código de Processo Civil)

(SC)
Decisão Texto Integral: Acordam em conferência neste Tribunal:

I RELATÓRIO

01 A.[…] (o A., requerido na providência e agravado no recurso) promoveu e obteve, mediante providência cautelar preliminar à acção que viria a instaurar contra o FUNDO DE GARANTIA AUTOMÓVEL (R. na acção, requerente na providência e agravante no recurso), o arbitramento de reparação provisória na modalidade de renda mensal de € 399,04. Invocando ter sido absolvido do pedido na acção instaurada, julgada improcedente por sentença todavia ainda não transitada, o FUNDO requereu a caducidade da providência argumentando com a insolvibilidade do A., condenado já a restituir à agravante o que esta lhe prestou de rendas e lhe continuará a pagar até trânsito se a providência não caducar, situação que configura como de ocorrência do justo receio de que o seu crédito nunca venha a ser pago.
02 O tribunal, considerou que nem a decisão transitou, nem o recurso de apelação, a que fixado efeito meramente devolutivo, afectou a subsistência da providência, e entendeu inexistir fundamento legal para a pedida declaração de caducidade. Entendeu, adicionalmente, que a pretensão devia ter sido deduzida no âmbito da providência e não através de providência autónoma, sob pena de violação do caso julgado.
03 Não se conformou o FUNDO. No agravo que traz deste despacho, pedindo que a providência “seja admitida e decretada”, condensou a sua argumentação nas seguintes conclusões:
(a) (...) decretada a providência de arbitramento de reparação provisória que correu termos sob o nº […] (...) em que ficou o recorrente adstrito à obrigação de proceder, mensalmente, ao pagamento, ao requerido, da quantia de 399,04 euros, que tem cumprido até esta data.
(b) (...) foi proferida sentença que absolve o FGA, condenando o Autor a restituir todas as quantias já prestadas; contudo, interposto recurso dessa sentença, não pode, ainda o FGA cessar o pagamento das referidas quantias.
(c) O Recorrente já despendeu, pelo menos, 19.153,92 euros.
(d) Na douta decisão do procedimento cautelar de arbitramento a fls. pode ler-se, como fundamento para o seu decretamento “O requerente não tem quaisquer bens que lhe permitam custear as suas despesas”.
(e) (...) face à condição económica do recorrido, e à ausência de bens e de rendimentos lhe permitam custear as suas despesas, será de prever que o requerido não tenha de condições de restituir ao FGA todas as quantias já pagas, e que continua a pagar, aumentando, assim, o valor que deverá restituir.
(f) A sentença proferida foi objecto de recurso de Apelação, existindo ainda a hipótese de recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça, sendo de prever que o desfecho definitivo da acção demorará.
(g) A quantia que o FGA ainda se encontra obrigado a pagar vai aumentar o montante final que o requerido terá que devolver, caso a sentença se mantenha.
(h) E perante a situação económica do recorrido, e a ausência de bens que garantam a satisfação de tal crédito do FGA, existe o justo receio de que tal crédito nunca venha a ser pago.
(i) Encontra-se, assim, demonstrado, o fundado receio previsto no art. 381º do CPC, pois, efectivamente, estamos perante uma lesão séria e dificilmente reparável do direito de o FGA reaver as quantias já pagas.
(j) O recorrente é titular do direito a reaver as rendas já pagas, e face à ausência de garantias, por ausência de bens do recorrido, e ao receio de que este venha a lesar o seu direito, por agravar a quantia a devolver ao FGA, deve este cessar o pagamento das rendas que ainda continua a dever prestar, em virtude do não trânsito em julgado da sentença, que absolve o FGA do pedido e condena o aqui requerido a devolver as quantias já pagas.
(k) A Providência Cautelar que correu termos no 2.° Juízo Cível deste mesmo Tribunal e tramitou sob o nº de processo […], foi decretada com fundamento em que (...): “Enfim, o acidente em análise afectou o requerente na sua capacidade de subsistência, comprometendo seriamente a satisfação das suas necessidades básicas (ou, pelo menos, essa satisfação só é possível á custa de terceiros)”.
(l) Pelo menos desde 20 de Maio de 2004, data da realização do exame pericial na pessoa do aqui recorrido, se vê o requisito supra enunciado deixou de existir, pelo que o Recorrido pode trabalhar e angariar subsistência, (...).
(m) Assim, se por um lado pode angariar subsistência, por outro não se vê como terá possibilidade de reembolsar o FGA dos montantes pagos, já que pode continuar, como até agora, trabalhando clandestinamente, isto é, sem descontos para a Segurança Social, e sem possibilidade de penhora de parte do salário.
(n) (...) não pode aceitar-se o fundamento apresentado pelo (...) tribunal a quo para indeferir liminarmente a pretensão do Recorrente: “Uma vez que apenas está em causa um interesse patrimonial, o pedido formulado não pode proceder".
(o) Nenhum dos requisitos exigidos pelo art. 381º do CPC diz respeito à qualidade do direito que o requerente da Providência cautelar pretende acautelar. Até porque um direito patrimonial não deixa de ser um direito com dignidade suficiente para ser acautelado.
(p) Haverá, no âmbito do 381.°, direitos maiores e direitos menores, sendo que um direito patrimonial é menor relativo a outros? E, se compararmos com outras providências cautelares, quantas mais existem que visam, também e só acautelar interesses?
(q) Da análise do artigo se alcança que se trata da ameaça de lesão no direito, o que, como será fácil de ver, se verifica, pois: o Recorrido não tem meios que lhe permitam sequer, custear, a sua subsistência; o Recorrido, apesar de poder trabalhar, e trabalhar, não se encontra a efectuar descontos para a Segurança Social, pelo que não há qualquer registo do seu vencimento; o Recorrido não tem bens; o FGA tem junto do recorrido um direito de crédito; a quantia que o FGA já despendeu é bastante elevada, pelo que, já neste momento, será difícil ao FGA recuperá-la; o FGA continua a pagar a renda mensal, aumentando a quantia a restituir, tendo certeza quanto à não existência de garantia para o pagamento da quantia de que é credor.
04 O recorrido não contra-alegou.
05 O despacho recorrido não foi alterado. Corridos os vistos, cumpre conhecer.
06 Ter-se-á entretanto presente que o âmbito dos poderes de cognição desta instância é definido pelas conclusões de quem recorre –  arts. 684º e 690º, Código de Processo Civil (CPC) – e delimitado pelo quadro factual que não deva alterar-se por apelo aos mecanismos previstos no art. 712º, id.. Resume-se ele, todavia, às incidências processuais que se relataram.

II FUNDAMENTAÇÃO

07 Enunciadas as conclusões, cumpre agora enunciar a questão a decidir, que é a de saber se, contrariamente ao decidido pelo despacho recorrido, ocorre qualquer dos fundamentos invocados de caducidade da providência cautelar decretada
08 De harmonia com o art. 389º, 1, c), CPC, a providência decretada caduca quando a acção de que é dependência seja julgada improcedente, por decisão transitada em julgado.  Sendo manifesto que tal pressuposto não se verifica, óbvio também se torna que não é da caducidade contemplada na referida norma que o agravante pretende socorrer-se para fazer cessar os efeitos da providência que o vinculou à prestação da renda de reparação provisória. A estruturação de providência cautelar que usou para deduzir a sua pretensão é, pois, consequente com a sua ideia de que o que está em jogo é o risco de lesão patrimonial irreparável tornado aparente pela probabilidade da decisão que negou o direito cuja viabilidade motivara o arbitramento provisório. Resta saber se esta nova situação é susceptível de ser tratada como providência cautelar, isto é, se pode autonomizar-se enquanto tal para operar o efeito pretendido, equivalente em termos práticos à dita caducidade.
09 Adiante-se já que não pode. Não entretanto, como se anotou, pelas razões aduzidas pelo despacho agravado, excepção feita à referência nele contida ao risco de violação de caso julgado. O legislador processual não abriu no domínio dos procedimentos cautelares excepção alguma aos princípios estruturantes da individualização das acções, para assim poder obviar à inconveniente contradição de decisões. Ora, como melhor se verá adiante, admitir a pretensão cautelar do agravante equivaleria a contemporizar com essa contradição.
10 Os elementos a que deve atender-se para a identificação das causas são os definidos pelo art. 498º, CPC, que enumera aí os requisitos da litispendência e do caso julgado. É claramente nessa disposição que o agravante procura esteio para a providência cautelar que o tribunal a quo rejeitou liminarmente: diferenciadas por diversos (ou melhor, de sinal contrário) pedidos, elas não se confundiriam, razão pela qual nenhum óbice de ordem processual haveria para o tribunal a admitisse e mandasse seguir. Esta construção, sendo hábil, enferma do vício lógico da petição de princípio: postula como válida a proposição básica de que arranca, o que não acontece. Com efeito, no caso de providências cautelares, a identidade de causas não se afere somente pelos referidos requisitos, como se esses procedimentos fossem causas autónomas entre si; não pode perder-se de vista, de toda a evidência, a influência que a causa principal exerce nessa questão, através da relação de dependência pela qual ela subordina a si as incidências cautelares.
11 Isso mesmo se torna visível no caso em apreço: enquanto na única causa em curso se discute entre as partes o mesmo e único tema de responsabilidade civil extracontratual, e através da providência vigente se procurou acautelar o interesse do virtual lesado através do arbitramento de uma indemnização provisória, já pela nova providência – também dependência da dita causa – o obrigado a tal reparação provisória procuraria prevenir o seu prejuízo irreparável. A mencionada relação de necessidade lógica transparece no efeito prático resultante do deferimento de ambas as providências, o que a sua pretensa autonomia formal não excluiria: com a nova outra coisa não se alcançaria senão a caducidade da medida cautelar decretada. Ou seja, repetindo substancialmente a providência, o agravante propunha-se obter  o efeito que a lei processual (art. 389º, 1, c), CPC) reserva, compreensivelmente, para um juízo definitivo de improcedência da pretensão indemnizatória.
12 Mesmo que se compreenda o risco de insolvência do beneficiário da indemnização provisória, é manifesto que ele não pode ter escapado ao legislador que soube optar por excluir a aplicabilidade da norma do art. 390º, 2, id., (caução) fora das hipóteses de arresto e embargo de obra nova (art. 392º, 2, id.). Não pode, por conseguinte, senão recusar-se um procedimento que outra coisa não visa senão contornar o regime legal. Mais não se torna necessário expender para demonstrar a inanidade do agravo.


III DECISÃO

13 Acordam, pelo exposto, em negar provimento ao agravo.
14 As custas serão suportadas pelo agravante.

Lisboa, 30 de Janeiro de 2007


(J.L. Soares Curado – Relator)
(J.M. Roque Nogueira)
(J.D. Pimentel Marcos)