Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
144/17.0PCPTS-A.L1-9
Relator: CALHEIROS DA GAMA
Descritores: PENA ACESSÓRIA
INIBIÇÃO DA FACULDADE DE CONDUZIR
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/21/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: A pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor de qualquer categoria (artigo 69.°, n.° 1, alínea a), do Código Penal), não tendo o arguido na sua passe a carta de condução, que lhe estava apreendida pela DRET e assim se manteve, pode, no caso concreto, ser considerada cumprida tendo este procedido à entrega da respetiva guia de subsituição (sumário elaborado pelo relator). 
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 9a Secção (Criminal) do Tribunal da Relação de Lisboa:

I – Relatório

1. No âmbito do processo sumário n.º 144/17.0PCPTS, do Juízo de Competência Genérica de Ponta do Sol do Tribunal Judicial da Comarca da Madeira, foi submetido a julgamento o arguido MM, melhor id. nos autos e titular da Carta de Condução n.° M…., emitida pela Direcção Regional de Economia e Transportes (DRET) Funchal, sendo condenado por sentença transitada em julgado em 02-10-2017, pela prática, em autoria material, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punível pelo artigo 292.°, do Código Penal, na pena de 70 (setenta) dias de multa à taxa diária € 6,00 (seis euros), no montante global de € 420,00 (quatrocentos e vinte euros), bem como na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor de qualquer categoria pelo período de 4 (quatro) meses, nos termos do previsto no artigo 69.°, n.° 1, alínea a), do Código Penal.
O arguido foi advertido do dever de proceder à entrega do título de condução no prazo de 10 dias, após o trânsito em julgado da sentença na secretaria do Tribunal ou em qualquer posto policial, sob pena de lhe ser apreendido o título nos termos do art. 69.°, n.° 3 do Código Penal e 500.°, n.°s 2 e 3 do Código de Processo Penal, e incorrer na prática do crime de desobediência previsto e punido pelo artigo 348.°, n.° 1, alínea a) do Código Penal.
Quanto à pena principal o arguido, a seu requerimento e com a concordância do MºPº, obteve, por decisão judicial de 14 de fevereiro de 2018, a sua substituição pela de prestação de 70 (setenta) horas de trabalho a favor da comunidade, a ser cumprida, em articulação entre a DGRSP e à FF…. (cfr. fls. dos presentes autos de recurso em separado, que corresponde a fls. 37 e 48 dos autos principais).
Quanto à pena acessória o arguido em 02-10-2017 procedeu à entrega, na Secretaria do Tribunal a quo, do original da “Guia de Substituição de Documento”, in casu “do Título de condução n.° M-..., provisoriamente apreendido a título garantia de cumprimento de pagamento” de coima derivada de “Auto de contraordenação n.° 802470890 (artigo 173.° do Código da Estrada)”, emitida em 10-07-2017 e válida até 09-01-2018, tudo com se alcança de fls. 2 e 6 dos presentes autos de recurso em separado, que corresponde a fls. 37 e 48 dos autos principais.
Promoveu o MºPº que fosse notificado o arguido “para proceder à substituição da guia de substituição pela Carta de Condução n.° M-...”. O que foi deferido. Tudo com resulta da certidão de fls. 7 a 10 dos presentes autos de recurso em separado.
Não tendo o arguido procedido a tal substituição, seguidamente, promoveu o MºPº, em 08-02-2018, que fosse solicitado à DRET, e junto aos autos, o original da Carta de Condução, por entender que a supra aludida Guia era “inapropriada para cumprimento integral da pena de proibição de conduzir em que o arguido foi condenado.” O que foi deferido e cumprido pela DRET, dando entrada em juízo, em 13 de março de 2018, o original da Carta de Condução n.° M-..., tendo-se, a 19 de março de 2018, por “termo” procedido à entrega da guia de substituição ao arguido, aí se consignando “por ter terminado o período de proibição de condução que lhe foi imposto como pena acessória, nos presentes autos”. Tudo com resulta da certidão de fls. 11 a 17 dos presentes autos de recurso em separado, que corresponde a fls. 57 a 59 e 66, 68 e 69 dos autos principais.
Perante tal expediente, teve o MºPº “Vista” nos autos, tomando, em 19 de março de 2018, a seguinte posição (cfr. fls. 18):
Remessa de carta de conducão de fls. 68.
TERMO DE ENTREGA de fls. 69.
Salvo todo o devido respeito, que é muito, a carta de condução deverá ficar no processo a partir do momento da sua entrada na Secretaria Judicial, conforme o disposto no artigo 69.°, n.° 3, do Código Penal, para cumprimento da pena acessória de proibição de condução, o que se promove. Na nossa modestíssima opinião, a guia de substituição foi passada ao arguido, no acto de apreensão da carta de condução, com a finalidade de proceder ao pagamento da coima, como "medida de constrangimento". Permitir que o arguido, tenha a possibilidade, quando condenado por sentença condenatória judicial, de cumprir uma pena, com uma guia de substituição com estas características, será beneficiar, duplamente o infractor. Nestas situações, o arguido poderá requerer a remessa da guia ao Tribunal, e resolver a situação da contraordenação posteriormente caso não esteja em situação de solvabilidade económica. Não poderá, supomos, aproveitar estar na posse da guia, na situação referida, para pretender cumprir a pena, ainda que a carta se encontre ainda apreendida pela DRET.
Pelo que, repete-se, salvo todo o devido respeito, não nos parece curial, que a entidade administrativa no âmbito do regime geral das contra ordenações, pelo seu pendor, comtemplando infracções de muito menor gravidade, possa manter a carta de condução na sua posse, e que o Tribunal, em sede de condenação penal, se contente com uma Guia, emitida para fins de garantia de pagamento de uma coima, permitindo que o arguido possa assim, cumprir uma pena criminal.

Após o que, o Mmº Juiz, em 10 de abril de 2018, proferiu o seguinte despacho:
“O cumprimento da pena acessória iniciou-se em 2 de Outubro de 2017 (fls 38).
Pelo que terminou em 2 de Fevereiro de 2018.
Razão pela qual já deveria ter sido julgada extinta.
Diz o Ministério Público, contudo, que o facto de a guia ter caducado interrompe o cumprimento da pena (fls 70).
Tal posição não tem qualquer correspondência na lei – imagine-se uma carta de condução que tenha caducado durante o período da pena acessória – e criaria uma situação de impossibilidade de cumprimento da pena por parte do arguido, cuja carta está retida na autoridade administrativa.
A qual, por o arguido não poder apresentar, nessa autoridade, a guia retida em tribunal, não lhe pode passar nova guia.
Criando-se uma situação verdadeiramente kafkiana.
Pelo exposto:
a) Julgo extinta, pelo cumprimento, a pena acessória de proibição de conduzir em que o arguido MM.. foi condenado nestes autos.
b) Determino a remessa da carta de condução que foi — indevidamente, lapso de que me penitencio — junta a estes autos, à DRET, a quem deverá ser esclarecido que o arguido já cumpriu a pena acessória nestes autos e de que não existe obstáculo à passagem de nova guia, caso a coima continue por pagar.
D. N.
Notifique.” (fim de transcrição).

2. O Ministério Público, inconformado com a mencionada decisão, interpôs recurso extraindo da sua motivação as seguintes conclusões:
“1- O arguido MM… foi condenado pela prática, em autoria material, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punível pelo artigo 292.°, do Código Penal, na pena de 70 (setenta) dias de multa à taxa diária € 6,00(seis euros), no montante global de € 420, 0 (quatro centos e vinte euros).
2 - O arguido foi ainda condenado na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor de qualquer categoria pelo período 4 meses (quatro), nos termos do previsto no artigo 69.°, n.° 1, alínea a), do Código Penal.
3 - O arguido foi advertido do dever de proceder à entrega do título de condução no prazo de 10 dias, após o trânsito em julgado da sentença na secretaria do Tribunal ou em qualquer posto policial, sob pena de lhe ser apreendido o título nos termos do art.º 69.°, n.° 3 do Código Penal e 500.°, n.°s 2 e 3 do Código de Processo Penal, e incorrer na prática do crime de desobediência previsto e punido pelo artigo 348.°, n.° 1, alínea a) do Código Penal.
4 - Por decisão judicial de fls. 73, o Mmo. Sr. Dr. Juiz de Direito declarou extinta, pelo cumprimento, a pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados.
5 — Contudo, na nossa modesta opinião, a pena não deveria ter sido considerada cumprida e extinta, porquanto o arguido nunca procedeu à entrega de carta de condução nos autos, malgrado a cominação de prática de crime de desobediência
6 - O arguido em 02-10-2017 procedeu à entrega na Secretaria do Tribunal, de Guia de Substituição de Documento emitida por motivo de "apreensão provisória a título de garantia de cumprimento (artigo 173.° do Código da Estrada)", emitida em 10-07-2017, válida até 06-08-2015.
7 — Verifica -se, assim, que não cumpriu o termo inicial da pena acessória de proibição de conduzir veículos a motor de qualquer categoria, em que o arguido foi condenado, pelo que, a mesma, não deveria ter sido declarada extinta.
8 - Resulta inequivocamente das disposições conjugadas dos artigos 69.°, n.°s 2 e 3, do Código Penal, e 500.°, n.° s 2, 3 e 4, do Código de Processo Penal, que o arguido entrega a carta de condução na secretaria do Tribunal ou na área policial da sua residência, que a remete àquela, onde se mantém até ao fim de cumprimento.
9 - Ao decidir que a pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados em que o arguido foi condenado, estava extinta pelo cumprimento, nos termos do artigo 475.° do Código de Processo Penal, violou, o Mmo. Sr. Dr. Juiz de Direito, o estatuído nos referidos preceitos legais.
10.° - Salvo o devido respeito, que é muito, o douto despacho deve ser revogado e substituído por outro, que não declare a extinção da pena acessória de proibição de conduzir em que o arguido foi condenado nos presentes autos.
MAS V. EXCELÊNCIAS VENERANDOS JUIZES DESEMBARGADORES FARÃO A COSTUMADA JUS LIÇA(fim de transcrição).

3. Foi proferido despacho judicial admitindo o recurso, como se alcança de fls. 86 dos autos principais (fls. 32do presente recurso em separado).

4. Notificado o arguido, não respondeu ao recurso.

5. Subidos os autos, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta nesta Relação apôs o seu “Visto” e emitiu parecer, pronunciando-se no sentido da procedência do recurso, aderindo, sem nada mais se lhe oferecer acrescentar à posição assumida pelo Ministério Público na primeira instância (cfr. fls. 41).

6. Foi cumprido, oficiosamente, o preceituado no art. 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal (doravante CPP), não tendo havido resposta.

7. Efetuado o exame preliminar foi considerado não haver razões para a rejeição do recurso.

8. Colhidos os vistos legais, cumpre agora apreciar e decidir.

II – Fundamentação

1. Conforme entendimento pacífico dos Tribunais Superiores, são as conclusões extraídas pelo recorrente, a partir da respetiva motivação, que operam a fixação e delimitação do objeto dos recursos que àqueles são submetidos, sem prejuízo da tomada de posição sobre todas e quaisquer questões que, face à lei, sejam de conhecimento oficioso e de que ainda seja possível conhecer (cfr., entre outros, os Acs. do STJ de 16.11.95, de 31.01.96 e de 24.03.99, respetivamente, nos BMJ 451.° - pág. 279 e 453.° - pág. 338, e na Col (Acs. do STJ), Ano VII, Tomo 1, pág. 247, e cfr. ainda, arts. 403.° e 412.°, n.° 1, do CPP).
“O presente recurso é circunscrito à questão do termo inicial e final do  cumprimento da pena acessória de proibição de conduzir  em que o arguido foi condenado nos presentes autos.” (in início motivação do recorrente), sendo que a questão suscitada pelo recorrente, que deverá ser apreciada por este Tribunal Superior, é, em síntese, a de in casu para cumprimento da pena acessória de proibição de condução, e entrega em juízo de uma guia de substituição da carta de condução é documento inapropriado para o cumprimento daquela pena, só sendo o apropriado para o efeito o original da própria carta de condução.

3. Vejamos se assiste razão ao recorrente.

Antes de mais importa referir que, o MºPº afirma na sua 6ª conclusão, acima transcrita, que a Guia de Substituição da Carta de Condução n.° M… foi emitida em 10-07-2017 e era válida até 06-08-2015, sendo que, anteriormente, em sede de motivações havia dito que tal documento foi emitido em 05-07-2017 e era válido até 08-08-2015.
Porém, nenhuma daquelas três últimas indicadas datas pelo MºPº está correta, pois, como cabalmente resulta comprovado nos autos e o consignamos ab initio no relatório, aquela guia foi emitida em 10-07-2017 e era válida até 09-01-2018.
Dito isto, avancemos.
Como demos conta no relatório, cuja elaboração é da responsabilidade deste tribunal ad quem, em face do que consta no processo, o arguido MM…, por sentença transitada em julgado em 02-10-2017, foi condenado, pela prática, em autoria material, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punível pelo artigo 292.°, do Código Penal, para além da pena principal na acessória de proibição de conduzir veículos com motor de qualquer categoria pelo período de 4 (quatro) meses, nos termos do previsto no artigo 69.°, n.° 1, alínea a), do Código Penal, sendo advertido do dever de proceder à entrega do título de condução no prazo de 10 dias, após o trânsito em julgado da sentença na secretaria do Tribunal ou em qualquer posto policial.
No dia 02-10-2017 (primeiro do prazo para o efeito) o arguido entregou na Secretaria do Tribunal a quo o original da Guia de Substituição do seu Título de condução n.° M…., título que estava provisoriamente apreendido pela DRET.
Ou seja, o arguido não entregou a sua carta de condução por não deter na sua posse o respectivo título, entregando o competente documento que o substituia e que nesse momento o habilitava ao exercício da condução automóvel. Guia de Substituição que era válida até 09-01-2018.

Logo, a partir do dia 02-10-2017, desapossado que estava quer do original da sua carta de condução quer da guia de substituição da mesma, ficou fatalmente inibido de conduzir, devendo ter-se por iniciado o cumprimento da sanção acessória de proibição de conduzir veículos com motor de qualquer categoria pelo período de 4 (quatro) meses.
E essa situação, como resulta dos autos, manteve-se inalterada até ao dia 02-02-2018, tendo de, consequentemente, nessa data considerar-se extinta pelo cumprimento a mencionada pena acessória.
Com efeito, a referida Guia de Substituição (já então não válida) só lhe é devolvida, em mão e pelo tribunal, em 19-03-2018, como consta do respetivo “termo de entrega” (vd. fls. 17), e só em 13-03-2018 é que a DRET veio aos autos facultar, a título devolutivo, o original da carta de condução, que continuava apreendida, como resulta do ofício de fls. 16.
Não foi feita qualquer prova, nem o recorrente MºPº sequer o alega, quer de que o arguido tenha solicitado à DRET uma 2ª via da guia emitida em 10-07-2017, quer de que a partir de 09-01-2018 o arguido tenha recebido da DRET uma nova guia de susbstituição que lhe estendesse o prazo já precludido pela primeira.
Neste contexto, é irrepreensível a posição do Mmº Juiz a quo não nos merecendo qualquer censura o despacho ora recorrido.
O entendimento do MºPº estará certo apenas e tão-só nos casos em que o condenado tenha na sua posse a carta de condução. Como vimos, não era o caso. O arguido acatou e cumpriu com o que podia cumprir e mais não lhe era exigível.
Preceitua o art. 69.º do Cód. Penal no seu n.º 3 que: “No prazo de 10 dias a contar do trânsito em julgado da sentença, o condenado entrega na secretaria do tribunal, ou em qualquer posto policial, que remete àquela, o título de condução, se o mesmo não se encontrar já apreendido no processo.
Ora, se por um lado, a norma não previu expressamente a situação dos autos, por outro, quando refere “se o mesmo não se encontrar já apreendido no processo” está a pensar no próprio processo (de natureza crime), mas, salvo melhor opinião, não se exclui a hipótese em que estando o título de condução já apreendido em processo contraordenacional e havendo guia a substituí-lo o arguido possa entregar no processo da condenação esse documento de susbtituição, que para todos os efeitos é título, ou melhor é o título, que naquele momento o habilitava à condução.
Em suma: terá de haver sempre naturalmente o necessário bom senso na hermenêutica jurídica.
A atender-se à literalidade da norma e a seguir a posição do MºPº estar-se-ia no caso concreto dos autos a incorrer, por descabida  exegése, em manifesto abuso de direito ou pelo menos em abuso de jus puniendi, cometendo-se flagrante injustiça ao obrigar-se o condenado ao cumprimento de pena já anteriormente satisfeita.
O importante era que o arguido ficasse impedido de conduzir veículos com motor de qualquer categoria pelo período de 4 (quatro) meses e tal desiderato estava plenamente alcançado com a tempestiva entrega da guia, encontrando-se a carta já anteriormente apreendida, e mantendo-se uma e outra afastadas do arguido durante aquele estipulado prazo de inibição.
Destarte, e sem necessidade de nos alongarmos em outras desnecessárias considerações, pois os factos falam por si, resta-nos concluir que o recurso não pode lograr procedência.

III – Decisão

Pelo exposto, acordam os Juízes na 9ª Secção Criminal da Relação de Lisboa, em negar provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público, confirmando-se integralmente a decisão recorrida.
Sem custas por delas estar isento o Ministério Público (art. 522.º do CPP).
Notifique nos termos legais.
(o presente acórdão, integrado por oito páginas, foi processado em computador pelo relator, seu primeiro signatário, e integralmente revisto por si e pelo Exmº Juiz Desembargador Adjunto – art. 94.º, n.º 2, do CPP)

Lisboa, 21 de Fevereiro de 2019

Calheiros da Gama
Antero Luís