Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
4405/09.3TCLRS.L1-6
Relator: CRISTINA NEVES
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL POR FACTO ILÍCITO
DOLO EVENTUAL
SUBSÍDIO POR MORTE
SUB-ROGAÇÃO LEGAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/17/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I-Actua com dolo eventual, o autor de disparo com arma de fogo, efectuado quando refugiado numa arrecadação, na decorrência de assalto a estabelecimento, o qual veio a atingir um terceiro que nela se pretendia igualmente refugiar, uma vez que não tendo visto a concreta pessoa que vinha a entrar, previu como possível que o projéctil a atingisse e num órgão vital, causando-lhe a morte, possibilidade com que se conformou.

2-A sub-rogação legal do Instituto de Segurança Social, pelas prestações pagas à viúva do falecido, abrange quer as prestações de sobrevivência, quer o subsídio por morte (cfr. artº 70 da Lei 4/2007).

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes na 6ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:


RELATÓRIO.


M... e MA... intentaram acção de condenação contra a Herança de S..., na pessoa da sua viúva e cabeça-de-casal MR..., peticionando o pagamento da quantia de € 580.000,00.

Para fundamentarem o seu pedido, alegam que o falecido S..., no dia 22 de Fevereiro de 2008, no decurso de um assalto a um estabelecimento de café, onde se encontrava como cliente, efectuou um disparo com uma arma de fogo que tinha consigo, sem licença para tal, vindo a atingir o marido e pai dos AA., seu amigo que consigo se encontrava neste café, causando-lhe a morte.
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A R. citada veio impugnar todos os factos alegados.
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Citada a Segurança Social, veio esta aos autos apresentar pedido de reembolso das prestações pagas a MC… a titulo de Subsídio por Morte e Pensões de Sobrevivência, no período de 2008/03 a 2012/07, no montante global de €: 16.535,59, acrescido do valor que continuar a pagar à viúva do beneficiário, a título de pensão de sobrevivência, enquanto esta se encontrar nas condições legais, com inclusão de um 13° mês de pensão em Dezembro e de um 14° mês em Julho de cada ano, pensão essa cujo valor mensal actual é de € 181,94.
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Notificada deste pedido, a R. não deduziu oposição.
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Por despacho proferido nos autos em 06/11/2015, foi admitida a intervenção dos herdeiros de S…, esposa do falecido e cabeça-de-casal, C... e L…, descendentes daquele.
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Citadas vieram deduzir contestação, em todo semelhante à já apresentada nos autos pela cabeça-de-casal.
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Dispensada a audiência prévia, foi fixado o objecto do litígio e os temas de prova.
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Por requerimento apresentado nos autos em 10/12/19, veio o Instituto de Segurança Social, peticionar “o pagamento dos montantes da pensão de sobrevivência que se venceram e forem pagas na pendência da ação, vem requerer a V. Ex.ª a atualização do pedido inicial contra os reús para a quantia de € 36.456,47”
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Realizou-se audiência de discussão e julgamento, no decurso da qual, AA. e R. puseram termo à acção por transacção homologada por sentença.
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Prosseguindo os autos para apreciação do pedido efectuado pelo Instituto da Segurança Social IP, veio a ser proferida sentença de cuja parte decisória resulta “Termos em que se julga a acção parcialmente procedente e em consequência se:
a)-Condena a R. a pagar ao interveniente ISS, IP a quantia de €36 456, 47 (trinta e seis mil quatrocentos e cinquenta e seis euros e quarenta e sete cêntimos), acrescida de juros de mora à taxa legal em cada momento vigente, desde a citação até integral pagamento;
b)-Absolve a R. do mais peticionado; 
c)- Condena a R. no pagamento das custas.”
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Não conformado com esta decisão, impetrou a R. recurso da mesma, formulando, no final das suas alegações, as seguintes conclusões, que se reproduzem:

A)-Da prova produzida o douto tribunal a quo não podia dar por verificados os requisitos do art. 483.º, n.º 1 e art. 487.º, n.º 1 do CC, concluindo que a actuação do falecido S… “para além de ilícita tem igualmente de ser considerada censurável.”.
B)-E, tão pouco face à matéria de facto assente, devidamente enquadrada nas circunstâncias que rodearam o alegado disparo da arma pelo falecido , poderia ser estabelecido pelo Tribunal a quo, que o falecido agiu de forma voluntária e com consciência do disparo letal.
C)-O Tribunal a quo desconsiderou os seguintes factos com relevância para a apreciação da causa e decisão : que o assalto referido nos pontos 7 e 8 dos factos provados foi perpretado por vários individuos, encapuçados e munidos de duas caçadeiras de canos serrados, uma faca e uma pistola, que usaram de violência para constranger as vitimas; que o falecido AP… tinha sido agredido com uma coronhada de caçadeira por ter oferecido resistência a entregar o seu telemóvel e o falecido S... ameaçado; que os falecidos eram amigos; que para se proteger o falecido S…rastejou e refugiou-se numa pequena arrecadação sem luz para se proteger.
D)-Não se averiguou sequer de qual a importância que uma «coronhada», com violência, de uma espingarda caçadeira teria nas suas capacidades cognitivas, percepção ou apreensão da realidade de AP....
E)-Ou sequer, o douto tribunal ponderou e apreciou as causas do alegado disparo da arma por S....
F)-Impunha-se ao douto tribunal a quo apreciar este circunstancionalismo na fundamentação da decisão, para poder concluir ou não pela verificação da responsabilidade civil, o que não fez.
G)-A responsabilidade civil por facto ilícito depende, da verificação simultânea de vários pressupostos: acção/facto voluntário do agente, ilicitude do facto, nexo de imputação do facto ao agente, existência de dano e nexo de causalidade entre o facto e o dano - n.º 1 do artigo 483.º do CC, pelo que, necessário é, que exista um facto voluntário ilícito imputável ao lesante.
H)-De nenhum facto provado resulta que o alegado disparo da arma foi deliberado ou intencional.
I)-Ou sequer que com tal alegado disparo da arma o falecido S… pretendeu atingir, ou percepcionou sequer atingir, o falecido AP... e, ainda assim disparou.
J)-Ou ainda se o falecido S... previu que poderia atingir o falecido AP... ou sequer sabia que este se encontrava na arrecadação.
K)-Donde não poderia o douto tribunal dar como provada que a conduta do falecido S... para além de ilícita é igualmente censurável.
L)-Incumbe aos lesados e ao interveniente sub-rogado o ónus da prova da culpa, que manifestamente não fizeram, não estando provada a culpa e nada resultando da matéria factual dada como provada relativamente à culpa, não poderia o tribunal a quo concluir dos factos dados como provados que se verificavam os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual.
M)-O douto tribunal deveria ter decidido em face das circunstâncias do caso concreto, da prova produzida nos autos e da inexistência de prova quanto à culpa do falecido S..., pela exclusão da culpa.
N)-Face à prova documental e testemunhal produzida e pelas regras da experiência impunha-se, considerar o medo invencível que devem ter sentido as vitimas do assalto, o inevitável erro de facto e as circunstâncias exteriores à vontade de S… que não as podia prever, o que o douto tribunal não fez.
O)-A decisão de que ora se recorre é consequência do recurso ao estabelecimento de presunções pelo douto tribunal a quo face à inexistência de provas sobre as concretas circunstâncias e motivações que envolveram a morte do AP..., não sendo admissível extraí-las de factos não provados, nem de factos não alegados, ou seja, de uma realidade processualmente não adquirida.
P)-O estabelecimento de presunções pelo Tribunal não podem servir para contornar o ónus da prova dos AA. e do Interveniente ISS, IP, para contrariar ou modificar a matéria de facto e muito menos para suprir factos não provados e alegados.
Q)-Verificando-se assim erro de julgamento da sentença recorrida, ao considerar verificados os requisitos de ilicitude, culpa, dano e nexo de causalidade, necessários ao acionamento da responsabilidade civil por facto ilícito.
R)-No que concerne à condenação da Recorrente nos pedidos de reembolso ao ISS, IP, dos subsídios por morte e pensão de sobrevivência pagos aos herdeiros de AP..., entende a Recorrente que a sub-rogação legalmente prevista no art. 70.º da Lei n.º 04/2007, de 16/01 (que aprovou as bases gerais do sistema de segurança social e nos termos do Dec. Lei n.º 59/89, de 22/02, não se aplica, nomeadamente ao subsídio por morte.
S)-Decorre do art. 70.º da Lei n.º 04/2007, de 16/01, que no caso de concorrência, pelo mesmo facto, do direito a prestações pecuniárias dos regimes de segurança social com o de indemnização a suportar por terceiros, as instituições de segurança social ficam sub-rogadas nos direitos do lesado até ao limite do valor das prestações que lhes cabe conceder, por outro lado, a indemnização a suportar por terceiros é a que resulta do funcionamento dos princípios gerais da responsabilidade civil aquiliana estatuídos nos arts. 483.º e seguintes do CC.
T)-Os critérios gerais de determinação do montante indemnizatório são fixados nos arts. 564.º e 566.º do CC, e tal determinação não contempla, a fixação de qualquer subsídio por morte nos termos em que este é definido pelo art. 4º, n.º 2 do Dec. Lei n.º 322/90 de 18/10, isto é, com o objectivo de "compensar o acréscimo de encargos decorrentes da morte do beneficiário, tendo em vista facilitar a reorganização da vida familiar".
U)-Sendo este um típico benefício com vista à protecção social dos familiares da vítima de responsabilidade exclusiva do ISS/CNP, que assim, não tem nada a ver com a "indemnização a suportar por terceiros", nos termos definidos no citado art. 70º e, por isso, não se verifica aqui o pressuposto de que ali se parte, o da existência de concorrência, pelo mesmo facto, do direito a prestações da "segurança social" com o da referida indemnização e, que, pela sua definição legal, sai fora do conceito de indemnização (cfr. art. 562º do CC).
V)-Até porque o "facto" de que fala a lei não é o mesmo: o fundamento concreto da obrigação de indemnizar é a violação de um direito alheio (art. 483º do CC), enquanto a "morte", tout court, é fundamento da atribuição do respectivo subsídio (art. 4º, n.º 2 do citado Dec. Lei n.º 322/90).
X)-O subsídio por morte destina-se pois a compensar o acréscimo de encargos decorrentes da morte do beneficiário da instituição de segurança social, tendo em vista facilitar a reorganização da vida familiar, e não a indemnizar os danos resultantes de um necessário acto ilícito que deu causa à morte, não podendo a Recorrente ser condenada no pagamento do mesmo, e sem prejuízo da não verificação da responsabilidade civil.Nestes termos e nos melhores de Direito cujo suprimento de V. Exas. Venerandos Juízes Desembargadores, se invoca, Deve o presente recurso ter provimento e em consequência, ser revogada a douta sentença recorrida, absolvendo-se a Recorrente.Assim se fazendo JUSTIÇA !”
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QUESTÕES A DECIDIR

Nos termos do disposto nos Artigos 635º, nº4 e 639º, nº1, do Código de Processo Civil, as conclusões delimitam a esfera de atuação do tribunal ad quem, exercendo uma função semelhante à do pedido na petição inicial. Esta limitação objetiva da atuação do Tribunal da Relação não ocorre em sede da qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cf. Artigo 5º, nº3, do Código de Processo Civil). Também não pode este Tribunal conhecer de questões novas que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas.
Nestes termos, as questões a decidir que delimitam o objecto deste recurso, consistem em apurar:
a)- Se os factos provados não permitem considerar ter ocorrido um facto voluntário e ilícito imputável ao falecido S…, do qual resultou a morte do falecido AP...;
b)- Se, em todo o caso, a sub-rogação legalmente prevista no art. 70.º da Lei n.º 04/2007, de 16/01, não se aplica ao subsídio por morte.
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Corridos que se mostram os vistos aos Srs. Juízes adjuntos, cumpre decidir.
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FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

O tribunal recorrido considerou a seguinte matéria de facto:
“AA)- Factos Provados:
1)- S...faleceu a 14.9.2008, no estado civil de casado com MR....

2)- AP…faleceu a 22.8.2008, no estado civil de casado com MD....

3)-Por óbito de AP... sucederam-lhe como únicos e universais herdeiros MD... e MA...

4)-O ISS pagou a MD... e MA…, a título de subsídio por morte por óbito de AP…, € 2 444,46.

5)-O ISS, no período de Março de 2008 a Novembro de 2019, pagou a MD... e MA..., a título de pensão de sobrevivência, € 34 012,01.

6)-O ISS continuará a pagar a MD..., enquanto ela se encontrar nas condições legais, com inclusão de 13º mês de pensão em Dezembro e de um 14º mês em Julho de cada ano, pensão de sobrevivência, no valor actual de € 212,66.

7)-No dia 22.2.2008, AP... e S... encontravam-se no café sito na R. …, em Camarate, quando este foi objecto de um assalto.

8)-No decurso do assalto S… refugiou-se no interior da arrecadação do café, que não estava iluminada.

9)-Na altura S... tinha consigo uma pistola semi-automática, de recreio, marca Walther, modelo PP, com o número de série 31015, de calibre 22mm.

10)-Momentos após AP... tentou refugiar-se na mesma arrecadação.

11)-Nisto, S… disparou a arma que trazia consigo, cujo projéctil atingiu AP... na cabeça, a 0,5cm da sobrancelha direita, provocando-lhe lesões crânio-encefálicas que foram causa directa e necessária da morte deste.
           
AB)Factos Não Provados:
Nenhum.”      
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FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

Funda a recorrente, nas suas conclusões, a sua discordância relativamente à decisão objecto de recurso, por considerar que:
- não foram apreciados factos pelo tribunal a quo importantes para a compreensão das circunstâncias em que ocorreu a morte do AP…; não resultou de nenhum facto que existiu um acto intencional do falecido S…, que o disparo da arma foi deliberado e intencional e que este quis, ou previu, que iria atingir o falecido AP..., pelo que se não verificam os pressupostos da responsabilidade civil;
-de todo o modo, o direito de sub-rogação do Instituto de Segurança Social não abrange as prestações por morte, tendo em conta que estas se destinam a compensar o acréscimo de encargos decorrentes da morte do beneficiário, tendo em vista facilitar a reorganização da vida familiar, não se confundindo com a indemnização a suportar por terceiros (cfr. art. 562º do CC);

Decidindo

a)- Se os factos provados não permitem considerar ter ocorrido um facto voluntário e ilícito imputável ao falecido S..., do qual resultou a morte do falecido AP...;

Considerou a sentença proferida pelo tribunal a quo, que se verificavam os pressupostos da responsabilidade civil por facto ilícito por decorrer dos factos que deu como provados que “por meio do disparo de uma arma de fogo de que era portador, S... matou AP..., violando assim o seu direito à vida. 
Ademais percebe-se dos factos conhecidos que a execução do referido disparo traduz a execução de um comportamento voluntário que S… levou a cabo, numa arrecadação não iluminada, quando nela entrou o falecido.   
Por outro lado, não é concebível pensar que S... não conhecesse a potencialidade letal do disparo que efectuou, nem, no quadro apurado, que com ele podia atingir fatalmente quem entrou na arrecadação em que se refugiara.
Daí que se tenha por claro que a sua actuação para além de ilícita tem igualmente de ser considerada censurável.”

Discorda a apelante deste entendimento por, da leitura dos factos por si feita, não resultarem os pressupostos da responsabilidade civil, nomeadamente que o disparo feito pelo falecido S… foi intencional e deliberado e que este visasse atingir o AP…, ou sequer soubesse que este se encontrava naquele local (arrecadação). Considera ainda, que o Tribunal incorreu em erro de julgamento por não ter apreciado devidamente a prova e por ter desconsiderado factos com relevância para a apreciação da causa e decisão : que o assalto referido nos pontos 7 e 8 dos factos provados foi perpretado por vários individuos, encapuçados e munidos de duas caçadeiras de canos serrados, uma faca e uma pistola, que usaram de violência para constranger as vitimas; que o falecido AP... tinha sido agredido com uma coronhada de caçadeira por ter oferecido resistência a entregar o seu telemóvel e o falecido S... ameaçado ; que os falecidos eram amigos; que para se proteger o falecido S… rastejou e refugiou-se numa pequena arrecadação sem luz para se proteger.”, não tendo averiguado igualmente “qual a importância que uma «coronhada», com violência, de uma espingarda caçadeira teria nas suas capacidades cognitivas, percepção ou apreensão da realidade de AP....”

A recorrente não deduziu impugnação quanto à matéria de facto apurada pelo tribunal recorrido, nem apontou expressamente a omissão de factos relevantes para a decisão da causa, requerendo a sua adição aos factos provados, como o impõe o artº 640 do C.P.C.

Ainda assim, impõe-se a este tribunal que, mesmo oficiosamente, anule a decisão sobre a matéria de facto se concluir que esta enferma de deficiência, obscuridade ou contradição com outros pontos da matéria de facto, ou quando considere indispensável a sua ampliação, se do processo não constarem todos os elementos que permitam a sua alteração (artº 662 nº2 c) do C.P.C.)

Ora, a deficiência na matéria de facto pode resultar da falta de pronúncia sobre factos essenciais ou complementares, caso em que cabe à Relação, mesmo oficiosamente, supri-la a partir dos elementos probatórios que resultem dos autos.[1]

Assim sendo, se este Tribunal considerar indispensável rectificar deficiências da matéria de facto, tendo em conta que o tribunal recorrido, considerou que não existiam factos não provados, ou se entender que é necessário proceder à sua ampliação, porque não incluídos factos essenciais nos temas de prova ou porque seria necessário proceder ao aperfeiçoamento dos articulados, tendo em conta o pedido formulado e os requisitos necessários para operar o direito de sub-rogação do Instituto de Segurança Social, determinará, mesmo na ausência de impugnação da matéria de facto pelo recorrente, a sua correcção ou a baixa do processo à primeira instância para este fim.

Posto isto, a questão colocada pelo recorrente reporta-se ao preenchimento dos requisitos da responsabilidade civil, ou seja se estão verificados os pressupostos cumulativos da responsabilidade civil por actos ilícitos, enquanto fonte geradora da obrigação de indemnizar: o facto; a ilicitude desse mesmo facto (ilicitude que pode revestir duas modalidades, traduzindo-se na violação do direito de outrem ou na violação de uma disposição legal destinada a proteger interesses alheios); o nexo de imputação do facto ao lesante; o dano e finalmente, o nexo de causalidade entre o facto e o dano.

O facto ilícito revela-se enquanto ocorrência resultante da acção humana voluntária lesiva de um bem jurídico, tendo aí em atenção bens jurídicos pessoais e patrimoniais, enquanto o nexo de imputação subjectiva prende-se com a ligação psicológica do agente com a produção do evento e ao respectivo grau de censurabilidade que a conduta merece.
Por seu turno, o dano traduz o desvalor infligido por acção do facto ilícito nos bens jurídicos alheios atingidos manifestando-se o nexo de causalidade no juízo de imputação objectiva do dano ao facto de que emerge.
A ilicitude decorre do carácter antijurídico do resultado deste acto, traduzido na lesão de bens jurídicos, in casu, na violação da integridade física do falecido.
Nos termos do art. 487º, n.º 1 do Cód. Civil é ao lesado que incumbe provar a culpa do autor da lesão e, nos termos do n.º 2 do mencionado preceito, ela é apreciada, na falta de outro critério legal, pela diligência de um bom pai de família em face das circunstâncias de cada caso.
Expostos estes considerandos legais, no que se reporta ao primeiro requisito, produção de acto voluntário e ilícito, considerou a sentença recorrida que o disparo efectuado pelo S… a que veio a atingir o AP…, era um acto voluntário, ilícito e censurável pois que aquele haveria de ter previsto que poderia atingir fatalmente a pessoa que vinha a entrar na arrecadação.
Ora, os (embora reconhecidamente parcos) factos que o tribunal considerou assentes e que não correspondem na totalidade ao alegado pelos AA., conduzem por si só à conclusão retirada pelo tribunal, sendo certo que os herdeiros do falecido, não alegaram qualquer facto, muito menos invocaram qualquer causa de exclusão da ilicitude. A única questão por estes colocada e repetida em sede de recurso relaciona-se com a alegada coronhada desferida no AP…, questão respondida pelo teor do relatório pericial, ao contrário do invocado em sede de recurso. A morte do AP… resultou do disparo que o atingiu na cabeça, foi directa consequência das lesões crâneo-encefálicas causadas por este disparo, não da coronhada, não se percebendo a insistência nos efeitos desta coronhada (que, a ter ocorrido, não terá causado a perda de consciência do AP..., nem a sua morte.)
A questão da coronhada seria sem dúvida relevante, para apreciação dos efeitos nas suas capacidades cognitivas, percepção ou apreensão da realidade, se tivesse sido desferida no S…, que não foi. Em momento algum, invocaram os RR. que o S… se encontrasse em estado de incapacidade acidental. E o natural medo decorrente de um assalto à mão armada, não preenche este requisito.  
Relativamente à questão de os assaltantes estarem armados, de terem ameaçado o S… e os demais clientes do café, de este se ter refugiado na arrecadação por medo dos assaltantes, de ter disparado sem ver quem pretendia entrar na arrecadação, ou de não ter intenção de atingir o AP… porque se não apercebeu que era este que vinha a entrar, factos alegados aliás pelos AA. e impugnados na sua totalidade pela R., a sua relevância dependeria de se terem verificados os pressupostos da legítima defesa, ainda que putativa, ou em erro relevante.
Ocorre que a apelante não alega a existência de legítima defesa, ou sequer de erro sobre os pressupostos desta legítima defesa.

Vejamos.

A legítima defesa, é uma figura quer do direito criminal, quer do direito civil, que cfr. refere o Ac. do STJ de 08/06/95[2]caracteriza os actos praticados por um agente como meio necessário para repelir uma agressão actual e ilícita de quaisquer interesses juridicamente protegidos do dito agente ou de terceiro (art. 32 do Código Penal).
Aquela ilicitude da agressão que a lei exige para que se possa verificar a legítima defesa engloba dois aspectos, conforme uma longa elaboração doutrinária e legal tem feito ressaltar: - a prática por alguém de um acto violador de interesses juridicamente protegidos de outrem, e a não contribuição do defendente para o aparecimento daquele acto.
(…) o meio empregue ser o necessário para repelir a agressão corresponde à aplicação do conceito de proporcionalidade que a doutrina sempre tem referido fazer parte do instituto da legítima defesa. É que, expressa na linguagem vulgar, poderá dizer-se que a legítima defesa é a subtracção, do mundo do ilícito, da conduta de um agente que, dentro dos limites do razoável, vai ofender direitos de outrem, para evitar uma lesão maior ou, pelo menos, igual, que se encontra a ser feita por este último, seja quanto a interesses protegidos do agente, seja quanto a interesses protegidos de terceiro, lesão essa para a qual o agente de modo algum tenha contribuído.”


Assim sendo, quer no âmbito da responsabilidade criminal (artº 32 do C.P.), quer no âmbito da responsabilidade civil (artº 337 do C.C.), a legítima defesa traduz-se sempre numa reacção a uma lesão actual (em execução, ou iminente) e ilícita dos interesses juridicamente protegidos quer do agente, quer de terceiro.
Verificando-se estes pressupostos, ou seja, actuando o agente em legítima defesa, está excluída a ilicitude do acto (cfr. artºs 31 e 32 do C.P. e 337 do CC).

Efectivamente a “exclusão da ilicitude da conduta por legítima defesa [art. 32º do CPenal] exige a presença de cinco requisitos objetivos e um elemento subjetivo, a saber, (i) a agressão de interesses juridicamente protegidos do agente ou de terceiro, (ii) a atualidade da agressão, (iii) a ilicitude da agressão, (iv) a necessidade da defesa, (v) a necessidade do meio e (vi) o conhecimento da situação de legítima defesa – os três primeiros requisitos objetivos referem-se à situação em que o agente atua e os dois últimos à ação de defesa.”[3]

Posto isto, ainda que o tribunal recorrido tivesse considerado assente toda a versão do sucedido, alegada pelos AA. (denote-se que nenhuma outra foi contraposta pelos herdeiros do falecido S…), seria possível enquadrar o disparo efectuado do interior de arrecadação, sem luz, na direcção da porta desta arrecadação, contra quem quer que fosse que nela pretendia entrar, como um acto de legítima defesa? Manifestamente que não, nem a apelante o invoca.

A reacção do S… não consistiu numa reacção a uma lesão actual, mas antes a actuação de alguém que, refugiando-se numa arrecadação no decorrer de um assalto a um estabelecimento onde se encontrava, pretendeu atingir a pessoa que viesse a nela entrar e que, dado que não tinha luz, por si não poderia ser visionada, concluindo-se que a concreta identidade dessa pessoa lhe era indiferente e que se conformou com o resultado que veio a ocorrer- a morte do atingido pelo disparo. Esta actuação é compatível com o dolo eventual.

Há que não esquecer ainda que, conforme refere ainda o Ac. do TRC de 18/05/2011[4] “Na situação teórica do erro sobre os pressupostos de uma causa de justificação o que está em causa é, conforme refere Figueiredo Dias, o facto de: «objectivamente, não se dão no caso os elementos justificadores exigidos mas (subjectivamente) o agente supõe falsamente que eles se verificam» (Textos de Direito Penal, Lições ao 3.º ano da F.D.U.C., policopiado, 2001, p. 152). Nestas situações, o tipo incriminador é dolosamente realizado pelo agente, mas este, porque aceita erroneamente elementos que a existir excluiriam a ilicitude, actua sem culpa dolosa, não podendo por isso ser punido a título de dolo, mas eventualmente, apenas a título de negligência, se o respectivo tipo de ilícito possibilitar a previsão da punição por negligência.”

Não sendo esse o caso e sendo a conduta do agente enquadrado no dolo eventual, cfr. refere o Ac. desta Relação de 30/06/20[5]Quer a doutrina, quer a jurisprudência, admitem que a actuação com dolo eventual é compatível com a existência de erro sobre os elementos do tipo ou quanto aos pressupostos da causa de justificação.
(…) para que se possa concluir pela existência do aludido erro sobre os pressupostos da legítima defesa, terão de ficar demonstrados, na factualidade provada, os respectivos pressupostos, nomeadamente, que o arguido agiu da forma acima descrita apenas porque estava convencido que a sua mulher e mãe estavam a ser agredidas, ou que estavam na iminência de o serem, no momento em que fez os disparos para a zona do portão de acesso ao pátio, querendo com isso impedir ou fazer cessar tais agressões, assim como, na sua perspectiva, aquele era o único meio adequado e eficaz para conseguir tal objectivo, numa avaliação razoável da situação existente, relativamente à qual o cidadão médio seria levado a pensar e a proceder do mesmo modo
.”

Não é manifestamente o caso.

Não resulta de qualquer facto que o S… actuou porque estava convencido de que a sua integridade física estava na iminência de ser lesada pela pessoa que pretendia entrar na arrecadação ou sequer que, na sua perspectiva, aquele era o único meio de fazer cessar ou impedir a suposta agressão.
Ainda que assim não fosse sempre a alegada reacção seria excessiva, sendo certo que o excesso de legítima defesa não exclui a responsabilidade civil do seu agente, excepto se, conforme resulta do disposto no artº 337 nº2 do C.P.C., este excesso decorrer de perturbação ou medo não culposo do seu agente.
Volvendo ao Ac. do STJ acima referido, “a lei prevê ainda como realidades distintas, várias outras situações, directamente derivadas do antigo conceito de legítima defesa, e que se enquadram na realidade que antigamente era tratada unitariamente como pertencente à figura da legítima defesa (o direito de necessidade e o estado de necessidade desculpante, embora este último tenha como efeito, não a exclusão total da ilicitude, mas apenas a da culpa do agente), bem como uma outra que corresponderá a outra realidade mais ampla (o excesso da legítima defesa não punível, do art. 33, n. 2), derivada não só da anterior figura da legítima defesa como também da regulamentação da perturbação acidental do exercício das faculdades mentais do agente. A diferença dos diversos institutos referidos, no campo da responsabilidade, traduz-se, no fundo, no seguinte: enquanto na legítima defesa e no direito de necessidade, o agente não é responsável, nem penal nem civilmente, ele tem responsabilidade civil mas não criminal nas situações de excesso de legítima defesa e de estado de necessidade, e tem responsabilidade criminal atenuada e responsabilidade civil quando actua em situação de excesso de legítima defesa.”

Irrelevante assim o ora alegado pela apelante, uma vez que dos factos não resulta a actuação em situação de legítima defesa, mas antes um acto ilícito praticado com dolo eventual, uma vez que o agente, ao desferir o aludido disparo na direcção da pessoa que vinha a entrar na arrecadação e ao nível da cabeça, previu como possível que o projéctil o atingisse e que atingisse um órgão vital, causando-lhe a morte, possibilidade com que se conformou.
Refira-se de todo o modo que para o caso é irrelevante se o S… actuou com dolo eventual ou negligência grosseira.
Em causa, extinto o procedimento criminal, está a responsabilidade civil por actos ilícitos, imputáveis ao agente e do qual decorra o evento danoso, no caso a morte do lesado, o que decorre dos factos 8 a 11, considerados pela decisão recorrida.
Não foi alegada qualquer causa de exclusão da culpa do lesante (nomeadamente a legítima defesa, prevista no artº 337 do C.C. ainda que com excesso devido a perturbação ou medo não culposo do agente), nem esta se verifica. O agente S…, encontrava-se escondido na arrecadação, não estando em curso qualquer agressão contra si ou o seu património, nem este acto se destinou a afastar ou impedir qualquer eventual agressão que estivesse a ser praticada contra si ou contra o seu património, nem era adequada ao efeito.
O nexo de causalidade entre o acto e o dano resulta de o AP… ter falecido na sequência deste disparo, cfr. resulta do ponto 11, sendo perfeitamente irrelevante a questão suscitada pelo apelante relativa aos efeitos da coronhada, questão resolvida pelo relatório de autópsia. As graves lesões crânio encefálicas causadas pelo disparo foram a causa da morte do AP....
Improcede assim a primeira questão suscitada em sede de recurso, considerando-se verificados os pressupostos da responsabilidade civil por factos ilícitos praticados pelo falecido S….

Passemos assim à última questão colocada e que se prende com a ressarcibilidade do subsídio por morte pago à viúva.

Decidindo

b)- Se, em todo o caso, a sub-rogação legalmente prevista no art. 70.º da Lei n.º 4/2007, de 16/01, não se aplica ao subsídio por morte.

Entende a recorrente que a sub-rogação legalmente prevista no art. 70.º da Lei n.º 4/2007, de 16/01, não se aplica, nomeadamente ao subsídio por morte, uma vez que a indemnização a suportar por terceiros é a que resulta do funcionamento dos princípios gerais da responsabilidade civil aquiliana, sendo os critérios gerais de determinação do montante indemnizatório os fixados nos arts. 564.º e 566.º do CC, e tal determinação não contempla, a fixação de qualquer subsídio por morte.

Considera ainda que é este um típico benefício com vista à protecção social dos familiares da vítima de responsabilidade exclusiva do ISS/CNP, e, por isso, não se verifica aqui o pressuposto de que ali se parte, o da existência de concorrência, pelo mesmo facto, do direito a prestações da "segurança social" com o da referida indemnização e, que, pela sua definição legal, sai fora do conceito de indemnização (cfr. art. 562º do CC).

A alegação da recorrente faz eco das divergências doutrinárias, que nas sucessivas versões desta Lei sobre as bases gerais do sistema de solidariedade e de segurança social, se colocaram quanto ao direito da Segurança Social de fazer repercutir sobre os responsáveis civis pela morte do seu beneficiário, a pensão de sobrevivência e o subsídio por morte pago aos familiares deste.

Três entendimentos diversos se perfilaram quanto a esta questão:
-para o primeiro, actualmente sem expressão, não assistiria ao CNP/Instituto de Segurança Social, direito ao reembolso desta quantias pagas quer a título de pensões de sobrevivência, quer a título de subsídio de morte, por se tratarem de prestações pagas em cumprimento de uma obrigação própria, decorrente dos descontos efectuados pelo beneficiário;[6]
-para a segunda corrente jurisprudencial, o direito ao reembolso dessas quantias, havendo terceiros responsáveis pela prática do acto gerador de responsabilidade civil, constitui um caso típico de sub-rogação legal, sendo as quantias pagas por aquela Instituição entregues a título de adiantamento e ficando a mesma, em conformidade, sub-rogada nos direitos dos lesados até ao limite do valor das prestações concedidas;[7]
-por último, para uma terceira corrente jurisprudencial, francamente minoritária e aqui seguida pela recorrente, o subsídio por morte é alheio ao conceito de indemnização e decorre da morte do beneficiário, sendo uma contrapartida social pelos descontos realizados.[8]

À data do acto ilícito do qual resultou a morte do beneficiário, estava em vigor a Lei 4/2007, que aprovou as bases gerais do sistema de segurança social e que, no essencial, prevê três subsistemas, norteados pelos objectivos de garantir a concretização do direito à segurança social, promover a melhoria sustentada das condições e dos níveis de protecção social, o reforço da respectiva equidade, a eficácia do sistema e a eficiência da sua gestão (artº 5): o subsistema da solidariedade, da protecção familiar e o previdencial.

No caso em apreço, estas prestações integram-se no sistema previdencial, que é portanto, o que nos incumbe analisar. O subsistema previdencial, visa conforme refere o artº 50 deste diploma, garantir, assente no princípio de solidariedade de base profissional, prestações pecuniárias substitutivas de rendimentos de trabalho perdido em consequência da verificação das eventualidades legalmente definidas. Nos termos do disposto no artº 52, alínea g) deste diploma, a protecção social regulada no presente capítulo inclui a morte do beneficiário, e tem por base a obrigação legal de contribuir (princípio da contributividade, definido no artº 54).

Por sua vez, estabelece o artº 70 da Lei 4/2007 que “No caso de concorrência pelo mesmo facto do direito a prestações pecuniárias dos regimes de segurança social com o de indemnização a suportar por terceiros, as instituições de segurança social ficam sub-rogadas nos direitos do lesado até ao limite do valor das prestações que lhes cabe conceder”.

Por essa razão, dispõe o D.L. 59/89 de 22/02 a intervenção das instituições de Segurança Social para reclamarem, quer no âmbito das acções penais (artº2), quer das acções civis (artº1), as prestações que tenham pago aos lesados ou seus descendentes por acto ilícito de terceiros, sendo citadas para o efeito, nas acções em que se discuta a prática destes ilícitos.

Aliás, no preâmbulo deste diploma fez-se expressamente consignar que: “Uma das funções da Segurança Social dentro dos objectivos que prossegue é a de substituir-se à entidade pagadora de rendimentos do trabalho recebidos pelos seus beneficiários quando os mesmos se vejam deles privados por ocorrência de alguma das eventualidades que integram o respectivo esquema de prestações do regime geral. No entanto, existem eventos que provocam a mesma consequência, traduzida na perda de remunerações, pelas quais há terceiros responsáveis, embora tal situação não signifique que a Segurança Social a ela seja alheia, pois, ao invés, assegura provisoriamente a protecção do beneficiário, cabendo-lhe, em conformidade, exigir o valor dos subsídios ou pensões pagos.”

Que subsídios ou pensões? Os que tenham sido pagos pela ocorrência de qualquer das situações indicadas no artº 51 da Lei 4/2007 e pela qual haja terceiros responsáveis.

Existe concorrência, pelo mesmo facto, do direito a prestações pecuniárias dos regimes da segurança social com o de indemnização a suportar por terceiros?
A resposta é afirmativa. Em causa está o subsídio de morte pago à viúva do falecido AP..., causada por acto ilícito do agente S…, subsídios regulados pelo D.L. 322/90 de 18/10. Conforme resulta do disposto no artº 4 nº2 deste diploma legal, destina-se o aludido subsídio a compensar o acréscimo de despesas decorrentes da morte do beneficiário, tendo em vista facilitar a organização da vida familiar.

Ora, é a ocorrência “morte” que faz surgir os encargos e despesas e que provoca uma diminuição de rendimentos até então percebidos pelo lesado e é precisamente esta situação danosa, que o subsídio visa ressarcir.
A mesma ocorrência “morte”, enquanto resultado de uma acto ilícito e culposo, origina o direito à reparação dos prejuízos dela decorrentes a serem ressarcidos, no âmbito da responsabilidade quer penal, quer civil, pelo lesante.

Assim sendo, cfr. refere o Ac. do STJ de 17/05/2007 “O facto de a lei ter optado, no caso de subsídio por morte, por uma prestação concentrada a permitir uma disponibilização "imediata" dum certo quantitativo, não significa que ela seja um "bónus" da segurança social, à margem daquele princípio.
Assim, correspondendo o subsídio por morte a despesas e perdas de rendimentos que, no âmbito da responsabilidade civil, correspondem a danos emergentes e lucros cessantes, torna-se evidente que, por aqui, nenhum obstáculo haverá à sub-rogação. Quanto ao outro argumento - que o subsídio por morte é pago em cumprimento de uma obrigação própria da segurança social e como correspectivo de descontos efectuados pelos beneficiários inscritos - o mesmo também não colhe. Em primeiro lugar porque a situação não é exclusiva do subsídio por morte. Depois, porque a existência daquele artigo significa justamente que, concorrendo o direito a prestações sociais com o direito de indemnização a suportar por terceiro, a lei não só afasta a possibilidade de o respectivo titular cumular os dois "benefícios", como coloca em planos diferentes aqueles direitos. Assim, da apontada disposição resulta claramente que a intervenção das instituições da segurança social assume natureza supletiva. Pagam (adiantam o pagamento) ao beneficiário/lesado, mas, através do fenómeno sub-rogatório, vão recuperar de terceiro o que pagaram (na

medida da sua responsabilidade).

Assim é na vigência da Lei 4/2007 e mantém-se mesmo após as alterações constantes da Lei n.º 83-A/2013, de 30/12. O legislador, mediante o disposto no artº 71, expressamente quis consignar que à segurança social cabia o direito a ver-se reembolsada das prestações pagas por via de acto ilícito de terceiro.

O pagamento das prestações de sobrevivência e o subsídio de morte aqui em causa, foram-no na sequência da morte não resultante de doença ou acto do próprio beneficiário, mas antes de facto danoso de terceiro e assim sendo, assiste à Segurança Social, o direito de reclamar o seu reembolso.

Com efeito, o disposto neste preceito constitui um normativo especial de sub-rogação legal, no confronto do que prescreve o artigo 592º, nº. 1, do Código Civil, segundo o qual, o terceiro que cumpre a obrigação fica sub-rogado nos direitos do credor se tiver garantido o cumprimento ou haja outra causa do seu interesse directo na satisfação do direito de crédito.” O direito de sub-rogação das instituições de segurança social e, consequentemente, a não definitividade do encargo com o pagamento, por exemplo, das pensões de sobrevivência e do subsídio por morte, só existe no caso de concorrência, pelo mesmo facto, do direito a prestações pecuniárias dos regimes de segurança social com o de indemnização a suportar por terceiro.”[9]
Verificando-se, no caso em apreço, a concorrência pelo mesmo facto, do direito ás referidas prestações com o de indemnização a suportar por terceiro, o Instituto de Segurança Social, tem direito a reaver de terceiro, ou seja, a apelante, o que pagou aos descendentes do beneficiário.
Improcedem assim todas as questões invocadas pela apelante.
*

DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes desta relação em julgar improcedente o recurso e, nessa medida, confirmam na íntegra a decisão recorrida.
Custas pela apelante (artº 527 nº1 do C.P.C.).


Lisboa 17/06/21


Cristina Neves
Manuel Rodrigues
Ana Paula A. A. Carvalho



[1]Neste sentido vide ABRANTES GERALDES, António, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 4ª edição, Almedina, 2017, págs. 293 a 295.
[2] No qual foi relator Sá Nogueira, no proc. nº 045679, disponível in www.dgsi.pt
[3]Ac. do TRP de 11/12/13, relatora Eduarda Lobo, proc. 154/05.0GARSD.P1, disponível in www.dgsi.pt
[4]Proferido no proc. nº 81/08.9GBMGR.C1, disponível in www.dgsi.pt.
[5]De que foi relator José Adriano, proferido no Proc. nº 951/18.6PZLSB.L1-5, disponível in www.dgsi.pt
[6]Ac. RE de 17/5/94, CJ 1994, 3º, pág. 289.
[7]Vide a título de mero exemplo, os Acs. do STJ de Ac. do STJ de 23/10/2003, relator Salvador da Costa, proc. nº 03B3071, de 17/05/2007, relatora Maria Laura Leonardo, proc. nº 07S051, de 05/11/02, relator Oliveira Barros, proc. nº 03B1611 e de 11/07/2006, proc. nº 06B1835, igualmente relatado por Oliveira Barros; ainda Acs. da Relação de Lisboa de 24/04/07, relator Martinho Cardoso, proc. nº 10241/2006-5, de 14/02/07, relator Carlos de Sousa, proc. nº 9804/2006-3, todos disponíveis in www.dgsi.pt
[8]Neste sentido vide Ac. do TRP de 11/05/04, 0421315, relator Mário Cruz e Ac. do TRP de 08/05/02, relator Mário Manso, proc nº0011156, com voto de vencido de Manuel Joaquim Braz, no seguinte sentido: “vencido, pois, entendo que o CNP tem direito a ser reembolsado da verba que pagou a título de subsídio por morte, pelas razões que se indicam em acórdão desta Relação proferido em 24/4/02 no processo nº 237/02 da 1ª secção, do qual fui relator.”
[9]Já citado Ac. do STJ de 23/10/2003, proc. nº 03B3071.