Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1757/14.7T8LSB.L1-6
Relator: ANTÓNIO SANTOS
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
TRIBUNAL DE COMÉRCIO
DIREITOS SOCIAIS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/18/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Texto Parcial: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: –  A competência material do Tribunal determina-se pelo pedido formulado pelo Autor e pelos fundamentos que invoca (causa de pedir).
–  O Tribunal de Comércio é, de entre vários outros (cfr. artº 78º da LOFTJ), um Tribunal de competência especializada e ao qual incumbe, designadamente, preparar e julgar as acções relativas ao exercício de direitos sociais (cfr. artº 128º, nº1, alínea c), da Lei da Organização do Sistema Judiciário) .
–  Os direitos sociais, como é entendimento pacífico da doutrina e jurisprudência, são todos aqueles que os sócios de uma determinada sociedade têm, pelo facto de o serem, enquanto titulares dessa mesma qualidade jurídica, dirigidos à protecção dos seus interesses sociais, ou seja, são direitos que nascem na esfera jurídica do sócio, enquanto tal, por força do contrato de sociedade, baseados nessa particular titularidade.
– Atendendo a que a causa petendi da presente acção relaciona-se com invocados suprimentos do autor a uma sociedade comercial, na qualidade de sócio, é de considerar que o tribunal materialmente competente para preparar e julgar a presente acção é o Tribunal de Comércio, nos termos do artº 128º, nº1, alínea c), da Lei da Organização do Sistema Judiciário - Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto - pois quando um sócio acciona a sociedade invocando um contrato de suprimento está no exercício de um direito social.

(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Parcial:Acordam os Juízes na 6ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa.

                                                          
1.Relatório:


A, propôs no TRIBUNAL DE COMÉRCIO de Lisboa, acção declarativa de condenação, contra BCD e E, pedindo a condenação dos RR a pagarem-lhe a quantia de € 239.420,85, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos, e invocando como fundamento os suprimentos que efectuou à sociedade F  ( …. Equipamentos Técnicos,…,Ldª ).

1.1. Para tanto, invocou o autor, em síntese, que:
– Na qualidade de antigo ( entre 1979 e 1996 )  sócio da sociedade F, procedeu o autor a suprimentos no valor total 29.190.594$75 , sendo que, em 11/12/1996, interpelou a referida sociedade para que lhe fosse efectuado o pagamento do montante de 18.808.977$00 que à data permanecia ainda em dívida ;
– Ocorre que, apesar de a sociedade F, ter reconhecido ser devedora perante o autor do referido montante, certo é que, até à data, não foi ainda do mesmo reembolsado;
– Porque a sociedade F, foi já dissolvida, mostrando-se já registados o encerramento da liquidação e o cancelamento da respectiva matrícula (registados a 12.10.09), obrigado está assim o autor em demandar os réus, na qualidade de antigos sócios, enquanto liquidatários, nos termos dos artigos 162.° e 163.°, do Código das Sociedades Comerciais.
1.2.– Contestando a acção, fizeram-no os 3 primeiros RR por excepção [ invocando a ineptidão da petição inicial , por existir manifesta contradição entre o pedido e a causa de pedir ] e impugnação motivada , pugnando pela respectiva absolvição da instância e, a assim não se entender, pela total improcedência da acção.
1.3.–  Respondendo o autor à contestação referida em 1.2., foram de seguida as partes convidadas a pronunciarem-se sobre a efectiva competência do tribunal para apreciar a acção , vindo então os RR a pugnar pela verificação da excepção da  incompetência absoluta do Tribunal para conhecer da acção, aduzindo para tanto que o Tribunal competente para o efeito não é o Tribunal de Comércio de Lisboa , antes o Tribunal Comum.

1.4.– , De seguida, e em 20/3/2017 , foi pelo tribunal a quo proferida decisão cujo excerto decisório final integra o seguinte conteúdo :
“(…)
A incompetência em razão da matéria é uma excepção dilatória de conhecimento oficioso, que implica a absolvição da instância ou o indeferimento liminar da petição inicial, quando o processo depender de despacho liminar, podendo ser conhecida até ser proferido despacho saneador, ou, não havendo lugar a este, até ao início da audiência final [artigos 96.°, alínea a), 97.°, n.° 2, 98.°, 99.°, 577.°, al. a), e 578.°, todos do Código de Processo Civil, e artigo 89.°, n.° 1, alínea c), da LOFTJ].
Verificada a aludida excepção, fica prejudicada a apreciação das demais questões suscitadas, nomeadamente a nulidade decorrente da ineptidão da petição inicial.
Assim, considerando a fundamentação que antecede, por ser esta 1ª Secção de Comércio da Instância Central de Lisboa, materialmente incompetente para conhecer do pedido de condenação formulado pelo autor A, decido absolver da presente instância os réus  BCD  e  E.
Custas pelo autor - artigo 527.°, n.°s. 1 e 2, do Código de Processo Civil.
Valor da acção: € 239.420,85.
Registe e notifique.
Lisboa, d.s.”

1.5.– Não concordando com a decisão referida em 1.4., considerando-a incorrecta, e inconformado, da mesma apelou então o Autor A , o que fez tempestivamente, alegando e formulando na respectiva peça recursória as seguintes conclusões:
A)–  O A. ora recorrente, entende que a "sua" acção judicial é relativa ao exercício de direitos sociais, pelo que é competente em razão da matéria, o Tribunal do Comércio.
B)–  O A., ora recorrente, já não é sócio da referida sociedade desde 05/02/1996, tendo-se dissolvido e liquidado a sociedade F, em 12.10.2009.
C)–  A competência do Tribunal afere-se pelo pedido do A..
D)–  O A. propõe acção declarativa de condenação contra quatro R.R., ex-sócios da Soc. F.
O próprio A. foi sócio desta Sociedade, de 1979 a 05/02/1996, data em que cedeu a sua quota ao quarto Réu, E.
E)– Aquando da cessão da sua quota, o A. era credor da Sociedade F, por € 239.420,85, a título de suprimentos.
F)– Este crédito (suprimentos) está reconhecido pela Sociedade "Setmar, Lda.
G)– Em 12/10/2009, estando em curso uma acção judicial no Tribunal do Comércio de Lisboa, a Soc. F, foi liquidada e encerrada a sua matrícula, administrativamente.
H)– Por esta razão, na presente acção quem é demandado são os liquidatários da F , enquanto ex-sócios da mesma. Tudo com o fim de o A., ora recorrente, poder ser pago pelo valor dos suprimentos feitos à Sociedade.
I)– Extinta a Sociedade, toma-se imediatamente exigível aos liquidatários, o pagamento de qualquer dívida que a mesma pudesse ter.
" Em Acórdão proferido em 26.06.2008, pronunciou-se o Supremo Tribunal de Justiça no sentido de que, com a extinção, deixa de existir a pessoa colectiva, que perde a sua personalidade jurídica e judiciária, mas as relações jurídicas de que a Sociedade era titular não se extinguem, como flui do disposto, nos art°s 162°, 163° e 164º ". Entendimento este partilhado pelo Tribunal da Relação de Coimbra, em 02.05.2013.
J)– Mesmo em caso de dissolução administrativa, como salienta António Pereira de Almeida, em "Sociedades Comerciais e Valores Mobiliários", 5ª Ed., Coimbra Editora, 2008, págs. 796-797: "A liquidação pode processar-se internamente ou por via administrativa. A regra é a liquidação interna. Porém, em qualquer dos casos, após o encerramento da liquidação e extinção da sociedade, os antigos sócios respondem pelo passivo social não satisfeito ou acautelado, até ao montante que receberam na partilha “ ( art° 163, n° l, do Cód. das Soc. Comerciais).
K)– Os liquidatários representam os sócios, substituindo-os automaticamente e imediatamente.
L)– Os liquidatários que, com culpa sua, indicarem falsamente que os direitos de todos os credores estão satisfeitos ou acautelados, nos termos da Lei, são pessoalmente responsáveis, se a partilha se efectivar, para com os credores cujos direitos não tenham sido satisfeitos ou acautelados ( art° 158°, n° 1 e 2, do C.S.C.).
M)– No caso dos autos há passivo insatisfeito, como documentalmente foi reconhecido pela Sociedade, relativamente ao crédito do A., ora recorrente, pelo que a acção de responsabilização pelo pagamento desse crédito do A., sobre a extinta Sociedade " F ,tem de continuar, contra os liquidatários.
N)– Extinta a Sociedade, toma-se imediatamente exigível aos liquidatários, R.R. na acção, o pagamento de qualquer dívida que a mesma pudesse ter, sendo necessária a continuação da presente acção de condenação dos liquidatários ( R.R.), no pagamento dos valores de suprimentos de que o A. é credor sobre a extinta Sociedade.
O)– Este é, em nosso entender, um direito social,
P)– Prescrevendo a Lei competir aos Tribunais de Comércio preparar e julgar, além do mais, as acções relativas ao exercício de direitos sociais (art° 89, n° 1, al. c) da LOFTJ, aplicável).
Q)– Conforme resulta da Lei, a determinação do seu sentido e alcance não se cinge à sua letra, porque também envolve a chamada mens legis, isto é, alem do mais, a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada (art° 9, n° 1, do Cód. Civil).
Mesmo não definindo a Lei o que são direitos sociais, claro se toma que esses direitos fazem parte da esfera jurídica dos sócios das Sociedades, ou na esfera jurídica dos liquidatários das mesmas, que o são por via contratual e que se traduzem em posição jurídica envolvente da protecção dos seus interesses societários.
R)– Também o A., ora recorrente, foi sócio da Sociedade, não deixando de ser credor de suprimentos, pelo facto de ter deixado de o ser.
O reembolso de suprimentos que o A. pretende dos liquidatários é um direito social.
S)– Inexiste assim fundamento legal, para se fazer uma interpretação restritiva dos princípios constantes do Cód. Comercial e da Lei da Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais,
Pelo que, a competência jurisdicional para conhecer a acção em causa, inscreve-se nos Tribunais do Comércio, pois que a sua apreciação consubstancia o exercício do direito social do A., ora recorrente.
T)–  É assim, materialmente competente para conhecer do pedido de condenação formulado pelo A., A, a 1ª Secção de Comércio da Instância Central de Lisboa,
Devendo V.Exas., Venerandos Desembargadores, revogar a Sentença recorrida, de forma a que se faça, a costumada JUSTIÇA!

1.6.– Não foram apresentadas contra-alegações.

1.7.– Remetidos os autos pelo tribunal a quo a este Tribunal da Relação, e conclusos os mesmos ao Exmº Desembargador Relator em 19/06/2017 [ após Distribuição, realizada nos termos do nº1, do artº 216º, do CPC ], por determinação [ tal como consta de cota de fls. 169 ] do Exmº Juiz Presidente do Tribunal da Relação de LISBOA, foi realizada uma REDISTRIBUIÇÃO do processo a 12/12/2017, sendo em consequência desta última conclusos - em 14/12/2017 - então ao ora/actual Relator ,  e sem que dos autos conste a ocorrência de qualquer  processado relevante - nos autos - após 19/06/2017-  a não ser a prolação de despacho a convidar o recorrente a apresentar novas conclusões ( o que foi aceite) .

1.8.–  São do seguinte teor as “ Novas conclusões “ :
A)– O Tribunal de Primeira Instância decidiu que o Tribunal do Comércio é incompetente para julgar a acção judicial de cuja sentença se recorre.
O A. ora recorrente entende que o é .
B)– Pois que, a acção judicial trata do exercício de direitos sociais, do âmbito do Tribunal do Comércio, muito embora o A., ora recorrente, já não seja sócio da Soe. "Setmar, Lda", desde 05/02/1996, estando ainda a Sociedade dissolvida e liquidada, desde 12.10.2009.
C)– Mas, o A. recorrente, à data de 05/02/1996 era credor da Sociedade "Setmar, Lda", por € 239.420,85 a título de suprimentos.
D)– A 12/10/2009, com o desconhecimento do A., ora recorrente, a indicada sociedade foi liquidada e encerrada, administrativamente, estando em curso, no Tribunal do Comércio acção judicial destinada a fixar prazo para o reembolso do valor dos suprimentos.
E)– Sendo por isso, na acção de cuja decisão se recorre, demandados os seus liquidatários, em representação dos ex-sócios, para efectuarem o pagamento do valor dos suprimentos.
F)– A extinção da Sociedade não extingue as relações jurídicas de que a sociedade era titular, respondendo os antigos sócios pelo passivo social não satisfeito ou acautelado, até ao montante que receberam na partilha, como o prescreve o artº 163°, n01, do C.S.C.
G)– Entende por isso o A., ora recorrente que, por haver passivo insatisfeito relativamente a si, por parte da Soc. F , e estando esta extinta, a acção de responsabilização pelo seu pagamento tem de continuar contra os liquidatários, RR na acção.
H)– Ora, este procedimento é, no entender do aqui recorrente, um direito social, pelo que se colocou a acção no Tribunal do Comércio, pois que é a este que compete preparar e julgar as acções relativas ao exercício de direitos sociais, como prescreve o artº 89, nº l, al. c), da L.O.F.T., aplicável.
I)– Entendemos que, mesmo não definindo a Lei o que são direitos sociais, o direito do A. recorrente e dos liquidatários, ex-sócios da Soe. têm uma posição jurídica envolvente da protecção dos seus interesses societários e,
J)– O reembolso dos suprimentos é um direito social.
K)– Mal andou, no entender do recorrente, o Meritíssimo Juiz de 1 a Instância, ao fazer uma interpretação restritiva dos princípios do Cód. Comercial e da L.O.F.T., pois que a competência jurisdicional para conhecer da acção em causa é dos Tribunais do Comércio, por consubstanciar o exercício de direito social do A., recorrente.
L)– É, materialmente competente para conhecer do pedido do A., A, a lª Secção de Comércio da Instância Central de Lisboa,
Pelo que, a decisão do Tribunal de 1 a Instância não pode deixar de ser revogada e a acção julgada no Tribunal do Comércio, onde seguirá os seus termos.
Decidindo nesta conformidade, fazem V.Exas., Venerandos  Desembargadores, a costumada JUSTIÇA!
                                              
Thema decidendum
1.9– Colhidos os vistos, cumpre decidir, sendo que, estando o objecto do recurso delimitado pelas conclusões [ daí que as questões de mérito julgadas que não sejam levadas às conclusões da alegação da instância recursória, delas não constando, têm de se considerar decididas e arrumadas, não podendo delas conhecer o tribunal de recurso ] das alegações dos recorrentes ( cfr. artºs. 635º, nº 3 e 639º, nº 1, ambos do Código de Processo Civil, aprovado pela Lei nº 41/2013, de 26 de Junho ), e sem prejuízo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer  oficiosamente,  a questão a apreciar e a decidir  é a seguinte  :
- Aferir se andou mal - como o considera o apelante - o Tribunal a quo em julgar verificada a excepção dilatória de incompetência absoluta - em razão da matéria -  absolvendo todos os RR. da instância ;
                                                 
2.– Motivação de facto.
Para efeitos  de decisão do mérito da instância recursória, importa atender tão só à factualidade que resulta do relatório do presente acórdão.
                                              
3.– Motivação de Direito.
3.1.– Se o tribunal a quo é , ou não, o competente em razão da matéria para conhecer da presente acção, e que pelo apelante foi intentada.
Como vimos supra, considerou o tribunal a quo que, em face do respectivo pedido e respectiva causa petendi, impunha-se considerar que para conhecer da acção não era o tribunal de Comércio o competente , em razão da matéria, entendimento este que o Autor e ora apelante não subscreve, antes sustenta que, em face do disposto no artº 89º, nº1, alínea c), da LOFTJ ( Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro ), forçoso é concluir que é o Tribunal de Comércio o competente para conhecer e julgar da acção que intentou .(1)
Já para o tribunal a quo, e em sede de fundamentos invocados a ancorar a decisão proferida, razoável e pertinente não é integrar na alínea c), do artigo 89.°, da LOFTJ, a presente acção, pois que, o direito que o autor pretende exercer não pode reconduzir-se a “direitos dos sócios” e, ainda que em causa estejam alegados "suprimentos", não serão os mesmos um direito emergente do próprio contrato de sociedade, antes serão meros créditos que terão resultado de um ou mais contratos de suprimento ou, ainda que assim não se considere, de cessões de créditos e de contratos de mútuo.

Acresce que, diz-se ainda na decisão apelada, não é sequer alegado que os pagamentos ou entradas de dinheiro levadas a cabo pelo autor foram efectuadas na sequência de uma obrigação estipulada no contrato de sociedade, caso em que lhe seriam aplicáveis as regras das obrigações de prestações acessórias dos sócios ( artigo 209.°, ex vi artigo 244.°, n.° 1, do CSC) .

Por último, diz-se outrossim na decisão apelada, certo é que as características do contrato de suprimento, sejam quanto à sua constituição, sejam quanto às limitações ao direito de reembolso dos créditos de suprimentos, não são o suficiente para se poder concluir que o credor ao pretender fazer cobrar o seu crédito, resultante de tal contrato, está a exercer um direito social.

Ora bem.
Como é consabido, a competência dos tribunais, na ordem jurídica interna, reparte-se pelos tribunais judiciais segundo a matéria, o valor, a hierarquia e o território,  e fixa-se no momento em que a acção se propõe, sendo irrelevantes as modificações de facto que ocorram posteriormente, a não ser nos casos especialmente previstos na lei ( cfr. artºs 37º e 38º, ambos da Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto - LEI DA ORGANIZAÇÃO DO SISTEMA JUDICIÁRIO – e artº 60º, do Cód. de Processo Civil).

Por outro lado, como é entendimento uniforme da “melhor” doutrina (2) e jurisprudência, é em face do pedido formulado pelo autor e pelos fundamentos ( causa petendi ) em que o mesmo se apoia, e tal como a relação jurídica é pelo autor delineada na petição inicial ( quid disputatum ou quid dedidendum ), que cabe determinar/aferir da competência do tribunal para de determinada acção poder/dever conhecer , sendo para tanto irrelevante o juízo de prognose que, hipoteticamente, se pretendesse fazer relativamente á viabilidade da acção, por se tratar de questão atinente com o mérito da pretensão. (3)

Depois, nos termos do artigo 40º, nº1, da Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto, mister é outrossim não olvidar que a competência dos tribunais da ordem judicial é residual ( os tribunais judiciais são competentes para as causas não legalmente atribuídas aos tribunais de outra ordem jurisdicional ), sendo que, a mesma - competência -  fixa-se , como vimos já, no momento em que a acção se propõe. (4)

Ou seja, e em sede de síntese conclusiva (5) , sendo em atenção à matéria da lide, ao acto jurídico ou facto jurídico de que a acção emerge, que importará aferir se deve a acção correr termos pelo tribunal comum ou judicial (6) , ou , ao invés, por  um tribunal especial , e sendo o primeiro o tribunal regra [ porque goza de competência não discriminada, incumbindo-lhe apreciar e decidir todas as causas que não forem atribuídas pela lei a alguma jurisdição especial , ou outra ordem jurisdicional ], então a competência dos tribunais judiciais determina-se por um critério residual ou por exclusão de partes [ isto é, não existindo disposição de lei que submeta a acção à competência de algum tribunal especial, cai ela inevitavelmente sob a alçada de um tribunal judicial ] .

É que, como refere expressis verbis o artº 40º, nºs 1 e 2,  da LEI N.º 62/2013, DE 26 DE AGOSTO, com a redacção em vigor à data da propositura da presente acção [ antes portanto das alterações introduzidas pela Lei n.º 40-A/2016, de 22/12 ] ), “ Os tribunais judiciais têm competência para as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional ”, e , “A presente lei determina a competência, em razão da matéria, entre os tribunais judiciais de primeira instância, estabelecendo as causas que competem às secções de competência especializada dos tribunais de comarca ou aos tribunais de competência territorial alargada “.

Isto dito, e como vimos já supra,  a Secção de Comércio é precisamente uma secção de competência especializada dos tribunais de comarca, conforme o disposto nos artºs 40º, nº 2 e 128º, ambos da LEI DA ORGANIZAÇÃO DO SISTEMA JUDICIÁRIO  (  Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto, com a redacção anterior às introduzidas pela Lei n.º 40-A/2016, de 22 de Dezembro ]  , dispondo a alínea c), do nº1, do normativo aludido em segundo lugar - e no qual se baseia o apelante para considerar como errada a decisão recorrida - que Compete às secções de comércio preparar e julgar as acções as relativas ao exercício de direitos sociais .

Não definindo a lei o que são direitos sociais, e como se nota no Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 7 de Junho de 2011 (7) [ socorrendo-se para tanto do voto de vencido aposto na decisão que é objecto da REVISTA ], vem a doutrina considerando que são direitos sociais “ todos aqueles que os sócios de uma determinada sociedade têm, pelo facto de o serem, enquanto titulares dessa mesma qualidade jurídica, dirigidos à protecção dos seus interesses sociais ”.

Ou seja, e dito de uma outra forma (8), “ são direitos que nascem na esfera jurídica do sócio, enquanto tal, por força do contrato de sociedade, baseados nessa particular titularidade “, já não revestindo porém tais características  os  direitos de que os sócios são igualmente titulares, mas agora independentemente da sua qualidade de sócios, a qual já não releva para o exercício do direito, representando antes direitos extra-sociais que os sócios podem exercer como qualquer outra pessoa, e numa posição semelhante à de terceiros.
“Alinhando” pelo mesmo entendimento, também em sede de Acórdão de 15/9/2011 (9), veio o STJ a decidir/considerar que, com base nos ensinamentos da doutrina mais conceituada e ,portanto , a mais seguida (10), pertinente é reconhecer/admitir que os “direitos sociais são todas aquelas prerrogativas dirigidas à protecção de cada sócio de uma particularizada sociedade, mercê, exclusivamente, da qualidade de sócio que lhes está conferida ; são direitos que advêm ao sócio por força do pacto de sociedade conscientemente aceite e neste ambiente contratual exercidos “.
Chegados aqui, é tempo de, considerando o pedido e a causa de pedir do apelante, averiguar se, efectivamente e através da presente acção , pretende o mesmo exercer um direito social, integrando-se ela , forçosamente, na alínea c) do nº 1 do artigo 128º da LEI DA ORGANIZAÇÃO DO SISTEMA JUDICIÁRIO .
Ora, como vimos supra (em sede de relatório), na acção sub judice impetra o ora apelante a condenação dos RR no pagamento de determinado montante pecuniário, aduzindo para tanto que , na qualidade de antigo ( entre 1979 e 1996 ) sócio da sociedade Setmar - Sociedade de Equipamentos Técnicos, Marítimos e Indústria, Lda., certo é que procedeu o autor a suprimentos à referida sociedade no valor total 29.190.594$75 , sendo que, em 11/12/1996, interpelou a referida sociedade para que lhe fosse efectuado o pagamento do montante de 18.808.977$00 que à data permanecia ainda em dívida .

O contrato de suprimento , diz-nos o art. 243, n.º 1 do CSC, é aquele “ pelo qual o sócio empresta à sociedade dinheiro ou outra coisa fungível, ficando aquela obrigada a restituir outro tanto do mesmo género e qualidade, ou pelo qual o sócio convenciona com a sociedade o diferimento do vencimento de créditos seus sobre ela, desde que, em qualquer dos casos, o crédito fique tendo carácter de permanência”.

No entender de Miguel Pupo Correia (11), o aludido tipo de contrato - de suprimento - reveste-se  das características básicas da definição do contrato de mútuo (art. 1142 do CC), sendo, portanto, um contrato real quoad constitutionem, mas , ainda assim, integra também algumas características próprias, a saber: a)- A formação do contrato pode ocorrer de três modos distintos; b)- Existe uma entrega ( empréstimo com intenção de receber a restituição) do sócio à sociedade;  c) verifica-se um diferimento do vencimento de créditos do sócio sobre a sociedade ; d) ocorre a aquisição pelo sócio de um crédito de terceiro sobre a sociedade, com vencimento diferido, por negócio entre vivos , e , é a relação contratual estabelecida entre o sócio e a sociedade.
Dir-se-á que, como chama à atenção o STJ no seu Ac. de 13/10/2011 (12) “ tratando-se de um contrato nominado e típico, que, embora com larga tradição na praxis societária, teve, como tal, a sua primeira consagração legal no Código das Sociedades Comerciais, não se confundindo, mesmo na modalidade de empréstimo, com o mútuo”.

Também para João Aveiro Pereira (13), manifesta é a especificidade/singularidade do contrato de suprimento previsto no artigo 245 em relação ao mero/normal mútuo, no mesmo importando atentar às limitações ao direito de reembolso dos créditos de suprimentos, em primeiro lugar, para salvaguardar os interesses dos restantes credores sociais e, em segundo lugar, para assegurar uma certa estabilidade no gozo desses dinheiros ou coisas fungíveis por parte da sociedade.
É que, importa nunca esquecer que, “ tendo o suprimento uma função social de substituição de capital, não deve o mesmo ser reembolsado de forma mais ou menos súbita, interessando essencialmente à sociedade a sua manutenção”.

Isto dito, e precisamente com o fundamento nas características e regime próprio do contrato de suprimento, veio já o Tribunal da Relação do Porto (14) a concluir que, forçoso e pertinente é considerar que o direito de exigir o reembolso dos suprimentos, em prazo a ser fixado pelo tribunal, nos termos das disposições conjugadas dos arts. 245, n.º 1 do CSC e 777, n.º 2 do CC, constitui um direito “sui generis”, resultante da posição que o sócio ocupa na sociedade, enquanto sócio, ou seja, deve ser considerado umdireito social.

Outrossim “alinhando“ pelo referido entendimento, também o STJ no  Ac. por nós já acima referido e de 07-06-2011 , e partindo do pressuposto de ser o contrato de suprimento um tipo próprio, autónomo, em que concorrem elementos comuns ao contrato de mútuo, mas onde também há um elemento social a considerar, pois que, na prestação do sócio que contrata por ser sócio, está presente o fim social, julgou já que “ Fundando-se a acção em alegados suprimentos de um sócio à sociedade, cuja constituição está vedada a não sócios e cujo reembolso tem de respeitar as limitações impostas pelo citado art. 245º do C.S.C., é de considerar que o tribunal materialmente competente para preparar e julgar a presente acção é o Tribunal de Comércio, nos termos do art. 89, nº1, al. c) da Lei nº 3/99, de 13 de Janeiro, pois quando um sócio acciona a sociedade invocando um contrato de suprimento está no exercício de um direito social.

E, importa fazer notar - assim o decidiu o STJ apesar de, também no caso decidendo, não reunir já o demandante a qualidade de sócio - , que o que releva para o referido efeito é o momento em que o pretenso direito invocado se constituiu, sendo que, pacifico é que ao contrato de suprimento é essencial a qualidade de “sócio” por parte de quem entrega o dinheiro e a qualidade de “sociedade” por banda de quem o recebe, não relevando o facto do autor, entretanto, ter deixado de ser sócio da ré.

Ou seja e em última análise, quando um sócio ou ex-sócio acciona a sociedade invocando um contrato de suprimento , está em rigor no exercício de um direito social, logo, inevitável é integrar no artº 128º, nº1, alínea c), da LEI DA ORGANIZAÇÃO DO SISTEMA JUDICIÁRIO  (  Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto, com a redacção anterior às alterações introduzidas pela Lei n.º 40-A/2016, de 22 de Dezembro ] a acção em causa nos presentes autos.

Em conclusão, perante o pedido do Autor e a respectiva causa petendi, e não obstante não ter o recorrente a posição jurídica de sócio da sociedade F, o que importa [ para efeitos do artº 128º, nº1, alínea c), da LEI DA ORGANIZAÇÃO DO SISTEMA JUDICIÁRIO ] é que ao demandar uma sociedade com base em contrato de suprimento , está em rigor o demandante e ex-sócio a exercer um direito social.
Mal andou, portanto, o tribunal a quo em julgar como julgou, devendo em consequência a decisão apelada ser revogada, e prosseguir a competente tramitação dos autos.
Procedem, portanto, as conclusões recursórias.
                                                          
5.Decisão.
Pelo exposto, acordam os Juízes na 6ª Secção CÍVEL do Tribunal da Relação de Lisboa, e na sequência dos fundamentos supra explanados, em conceder provimento à apelação e, consequentemente :
5.1.– Revogam a decisão recorrida.
5.2.– Determinam o prosseguimento dos autos, pois que é o Tribunal a quo [ Juízo de Comércio ] o competente, materialmente ,para preparar e julgar a presente acção .
Custas da apelação, pela parte vencida, a final.
                                                          


LISBOA, 18/1/2018



António Manuel Fernandes dos Santos (O Relator)
Eduardo Petersen Silva (1º Adjunto)
Cristina Isabel Ferreira Neves (2ª Adjunta)



(1)Diz o nº1, do artº 128º, da Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto [ LEI DA ORGANIZAÇÃO DO SISTEMA JUDICIÁRIO ], e antes das alterações nele introduzidas pela Lei n.º 40-A/2016, de 22 de Dezembro, que “  Compete às Secções de Comércio preparar e julgar:
a)-Os processos de insolvência e os processos especiais de revitalização;
b)-As acções de declaração de inexistência, nulidade e anulação do contrato de sociedade;
c)-As acções relativas ao exercício de direitos sociais;
d)-As acções de suspensão e de anulação de deliberações sociais;
e)-As acções de liquidação judicial de sociedades;
f)-As acções de dissolução de sociedade anónima europeia;
g)-As acções de dissolução de sociedades gestoras de participações sociais;
h)-As acções a que se refere o Código do Registo Comercial;
i)-As acções de liquidação de instituição de crédito e sociedades financeiras.
2 Compete ainda aos juízos de comércio julgar as impugnações dos despachos dos conservadores do registo comercial, bem como as impugnações das decisões proferidas pelos conservadores no âmbito dos procedimentos administrativos de dissolução e de liquidação de sociedades comerciais.
3 A competência a que se refere o n.º 1 abrange os respectivos incidentes e apensos, bem como a execução das decisões ”.
(2)Cfr. Manuel A. Domingues de Andrade, in Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, pág. 91, e Artur Anselmo de Castro, in Lições de Processo Civil, II, 1970, 379.
(3)Cfr., de entre muitos outros, o Ac. do STJ de 9/7/2014, Proc. Nº 934/05.6TBMFR.L1.S1, in www.dgsi.pt.
(4)Cfr. José Alberto dos Reis, in “Comentário ao Código de Processo Civil,  Vol. I , Coimbra 1960 , págs. 146 e segs..
(5)Cfr. José Alberto dos Reis, in “Comentário ao Código de Processo Civil,  Vol. I , Coimbra 1960 , págs. 146 e segs..
(6)Reza o artº 211º,nº1, da CRPortuguesa, que “ Os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais “.
(7)In processo nº 612/08.4TVPRT.P1.S1 ( sendo Relator o Exmº Juiz Consº Azevedo Ramos), e disponível
in http://www.dgsi.pt/jstj.
(8)Cfr. ainda o referido Ac. do STJ de 7/6/2011.
(9)In processo nº 5578/09.0TVLSB.L1.S1 ( sendo Relator o Exmº Juiz Consº Silva Gonçalves ), e disponível  in http://www.dgsi.pt/jstj.
(10)Vg. Ferrer Correia, in Sociedades Comerciais (policopiado), pág. 348 e segs.; Brito Correia, in Direito Comercial, Sociedades Comerciais, vol. II, 4.ª, pág. 305 e segs.; Miguel J.A. Pupo Correia, in Direito Comercial, 7.ª ed., pág. 517; Coutinho de Abreu, in Curso de Direito Comercial, vol. II, Das Sociedades, págs. 205 e segs.; Paulo Olavo e Cunha , in “ Breve Nota sobre os Direitos dos Sócios ( das sociedades responsabilidade limitada ) no âmbito do Código das Sociedades Comerciais”, in Novas Perspectivas do Direito Comercial, citados no Ac. do STJ de 11 de Janeiro de 2011,  in www.dgsi.pt/stj.
(11)In ob citada, pág.514.
(12)In processo nº 5356/07.1TVLSB.L1.S1 ( sendo Relator o Exmº Juiz Consº SERRA BAPTISTA ), e disponível  in http://www.dgsi.pt/jstj
(13)In O Contrato de Suprimento, Coimbra Editora, 2001, pág. 135.
(14)Ac. de 20 de Maio de 2002, in Procº nº 0250621, in www.dgsi.pt/stj
                                                                      
Decisão Texto Integral: