Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
81/08.9ECLSB.L1-9
Relator: CALHEIROS DA GAMA
Descritores: CONSTITUCIONALIDADE ORGÂNICA
ORGÃO DE POLÍCIA CRIMINAL
JOGO DE FORTUNA E AZAR
PROCESSO SUMÁRIO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/18/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário: I - Na tensão dialéctica entre a liberdade e a segurança o conceito constitucional de forças de segurança não pode deixar de ser perspectivado numa visão ampla que abranja todos os corpos organizados que tenham por missão, principal ou secundária, garantir a segurança interna, o que inclui obrigatoriamente a prevenção de crimes que ponham em causa o direito à segurança dos cidadãos (artº 27.º, n.º 1, da C.R.P.)
A Autoridade de Segurança Alimentar e Económica (ASAE) foi criada pelo DL n.º DL 237/2005, de 30 de Dezembro. Subsequentemente, o DL nº 274/2007, de 30 de Julho aprovou a orgânica da ASAE, mantendo as atribuições gerais inicialmente previstas para esta autoridade.
As novidades constantes do DL nº 274/2007 contemplam a atribuição de poderes de órgão e autoridade de polícia criminal, decorrente do artº 15º e a concessão do direito de uso e porte de arma ao pessoal de inspecção da ASAE contemplado no artº 16.º, do DL n.º 274/2007.
II - A actuação da ASAE, no âmbito das referidas atribuições, enquadra-se no conceito constitucional de “forças de segurança” a que se refere a al. u) do artº 164º da CRP e, nessa medida, os arts. 3º, al. aa) e 15º, do Dec. Lei nº 274/2007, de 30/7 enfermam de inconstitucionalidade orgânica, por violação de reserva de lei da Assembleia da República.
III - O artº 381.º, nº 1 do CPP prevê as situações em que há lugar a julgamento em processo sumário. Considerando a inconstitucionalidade orgânica acima afirmada, nenhuma das previsões ali em referência cobre a situação dos autos. E sendo assim, manifesto é que o julgamento em processo sumário realizado importou a nulidade insanável estabelecida no artº 119.º, al. f) do CPP.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 9a Secção (Criminal) do Tribunal da Relação de Lisboa:

I – Relatório

1. No processo Sumário nº 81/08.9 ECLSB, do 2º Juízo do Tribunal de Pequena Instância Criminal de Loures, a arguida A…, foi submetida a julgamento vindo a ser condenada, por sentença proferida em 10 de Março de 2008, pela prática de um crime de exploração de jogo ilegal previsto e punido nos termos do artigo 108° n° 1, do Decreto-lei n° 422/89 de 2 de Dezembro, com referência ao artigos 1° e 4° n° 1 ai. g) do mesmo diploma, na redacção dada pelo Decreto-lei n° 10/95 de 19 de Janeiro, na pena de 180 dias de prisão substituídos por igual número de dias de multa, à taxa diária de € 15,00, e em 50 dias de multa à mesma taxa, o que perfaz a multa global de € 3450,00 (três mil, quatrocentos e cinquenta euros) a que correspondem 213 dias de prisão.

2. A arguida, inconformada com a mencionada decisão, interpôs recurso extraindo da sua motivação as seguintes conclusões:
1 – A sentença não apresenta exame crítico das provas, limitando-se a um resumo das declarações das testemunhas de acusação, à remissão para certos documentos existentes nos autos, bem como para conceitos genéricos de “regras da vida em sociedade”, o que é causa de nulidade, nos termos das disposições conjugadas dos art.º 374º, n.º 2 e 379º, n.º 1, alínea a), do CPP;
2 – Os pontos 3, 5, 6 e 7 da matéria assente foram incorrectamente julgados, pois, para prova dos mesmos, o julgador recorreu a meios de prova inadmissíveis, constituídos por meras convicções pessoais dos agentes apreensores, baseadas em casos análogos e não nas circunstâncias concretas dos factos em julgamento;
3 – Veja-se que, a título de fundamentação, a decisão recorrida acolhe, como boa, a tese que a máquina apreendida é igual a “tantas outras que (os inspectores da ASAE) já apreenderam”, pelo que “já conhecem” todos os factos relevantes. Ou seja, a qualificação jurídica da forma de funcionamento da máquina electrónica apreendida, no sentido de classificar o jogo desenvolvido como sendo “de fortuna ou azar”, é feita com base em casos análogos, que nem sequer são identificados, ou explicados, porque só os agentes apreensores parecem conhecer, e não, como é habitual, em processos deste género, com recurso a um exame pericial efectuado pelos peritos da Inspecção-Geral de Jogos;
4 – Esta forma de decidir, para além de atentatória dos direitos e garantias de defesa dos arguidos, constitui uma ameaça à segurança probatória que deve pautar o processo penal. Não consta que, quer o decisor, quer os agentes da ASAE sejam peritos habilitados a analisar a forma de funcionamento da máquina apreendida, tanto mais, que, a descrição e classificação da mesma são feitas por remissão para “outras tantas que já apreenderam”!;
5 – O vertido no ponto 6 da matéria assente não encontra qualquer sustentáculo probatório. A arguida não prestou declarações. As testemunhas, tal como reproduzido na sentença, não depuseram sobre tal facto. De todo o modo, a expressão “deveria pagar” encerra, em si mesma, uma dúvida, a qual é incompatível com a certeza exigida pelo processo penal, pelo que se impõe a retirada do conteúdo, deste ponto, dos factos assentes;
6 – A total ausência de provas válidas e atendíveis, quanto aos factos vertidos nestes pontos, impõem decisão diversa, no sentido da sua não prova;
7 – Não há provas que devam ser renovadas, pois os órgãos de polícia criminal já lavraram o expediente e já prestaram o seu depoimento;
8 – Subsidiariamente, entende-se que existe uma contradição entre os factos assentes e a decisão sobre a medida da pena. No ponto 8 dos factos assentes a arguida habita um bairro “onde são modestas as condições de vida dos seus habitantes”. Contudo, no momento de determinar a medida da pena considerou-se, sem mais, que a Recorrente “aparenta ser de boa condição económica e social” sem qualquer outra base factual inteligível.
9 – Ainda neste capítulo, a sentença viola a norma contida no n.º 1 do art.º 343º do CP, pois o julgador entendeu agravar o castigo aplicado à Recorrente por esta ter optado por exercer o direito ao silêncio e não ter confessado os factos;
10 – Desta forma, numa criteriosa aplicação dos princípios contidos no art.º 71º do CP, a medida da pena pode ser substancialmente reduzida, tanto mais que resulta dos autos, e da matéria assente, que a Recorrente não tem antecedentes criminais relevantes, que é pessoa que habita num bairro de modesta condição social, não existindo qualquer indício, nem prova, de que tenha obtido quaisquer proventos com os factos que lhe são imputados, pelo que a multa de 3.450 € é, manifestamente, desproporcionada.” (fim de transcrição)

3. Respondeu o Ministério Público formulando as seguintes conclusões:
“No que concerne à primeira questão suscitada no presente recurso – nulidade da sentença por não efectuar um exame crítico da prova produzida –, afigura-se-nos que não assiste razão ao recorrente.
Vejamos, então.
O artigo 374º, n.º 2, do Código de Processo Penal, dispõe que «ao relatório, segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal».
Por seu lado, o artigo 379º, n.º 1, alínea a), do mesmo Código, estabelece que «é nula a sentença que não contiver as menções referidas no n.º 2 e na alínea b) do nº 3 do artigo 374º; (…)».
Da análise da matéria de facto dada como provada, bem como da respectiva motivação/fundamentação, afigura-se-nos que, ao contrário do alegado pela arguida/recorrente, o Tribunal a quo fez um exame crítico da prova produzida em audiência de julgamento, a qual, face ao silêncio da arguida, se cingiu às declarações dos Inspectores da ASAE e aos documentos juntos aos autos, mormente ao auto de notícia, onde se descreve de forma clara e precisa o modo de funcionamento da máquina apreendida nos autos e do jogo desenvolvida pela mesma.
Assim, e atendendo a que a arguida, ao remeter-se ao silêncio e ao não apresentar defesa, não colocou em causa a prova produzida, o Tribunal a quo deu como provados os factos descritos no auto de notícia, corroborados pelas declarações prestadas pelos Inspectores da ASAE em sede de audiência de julgamento, uma vez que, ao abrigo do princípio da livre apreciação da prova, estabelecido no artigo 127º do Código de Processo Penal, tais depoimentos se lhe afiguraram claros, precisos, serenos e credíveis.
Efectivamente, e ao contrário do referido pela arguida, o conhecimento dos factos e do modo de funcionamento da máquina apreendida à arguida não resulta de convicções pessoais dos Inspectores da ASAE, mas sim do conhecimento directo e da análise directa de tal máquina, sendo apenas referida a sua experiência anterior com vista a fundamentar a razão da ciência de tal conhecimento.
Entendemos, assim, que a sentença recorrida não padece de qualquer nulidade, devendo, consequentemente, manter-se com assente os factos vertidos nos pontos 3, 5, 6 e 7 dos factos provados da sentença recorrida.
Acresce que as perícias são meios de prova tipificados cuja "...realização é obrigatória quando a percepção ou apreciação de determinados factos exija especiais conhecimentos técnicos, científicos ou artísticos, ou seja, conhecimentos que não façam parte da experiência comum e cultural geral, técnica e científica, do julgador.
Nos casos em que a perícia não é obrigatória (como é o caso dos autos), ao tribunal não está vedada a utilização de prova testemunhal oralmente inquirida sobre documento por si produzido e designado de pericial, desde que respeitado o princípio do contraditório e com respeito pelo princípio da livre apreciação da prova apenas subtraído ao julgador no caso da prova pericial stricto sensu.
Relativamente à determinação da medida da pena, afigura-se-nos também que não existe qualquer contradição entre os factos assentes e a decisão sobre a medida da pena, pois, ao contrário do alegado pela recorrente, o Tribunal a quo não se limitou a dar como provado que a arguida habita um bairro “onde são modestas as condições de vida dos seus habitantes”.
Na verdade, do ponto 8 da matéria de facto dada como assente resulta que “para além da exploração do estabelecimento de café, com os inerentes proventos financeiros, e da ausência de antecedentes criminais, desconhecem-se outras condições de vida da arguida a qual habita um bairro onde são modestas as condições de vida dos habitantes e frequentadores do café”.
De tal facto não resulta que a arguida seja uma pessoa de modesta condição de vida, mas sim que reside num bairro onde são modestas as condições de vida dos habitantes e frequentadores do café que explora e que a mesma vive dos proventos inerentes à exploração do referido estabelecimento.
Não resulta também da sentença que a medida da pena aplicada à arguida tenha sido agravada em virtude do seu silêncio, sendo certo que, como conforme resulta do artigo 71º, n.º 2, alínea e), do Código Penal, na determinação concreta da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, nomeadamente a conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime.
Por último, entendemos que a escolha e determinação da medida das penas foi efectuada de modo que se afigura revelador da ponderação das circunstâncias atinentes ao caso concreto, à culpa da arguida, em concordância com os critérios que legalmente se impõem em tal sede, não deixando a sentença de concretizar e fundamentar as razões que presidiram às penas impostas.
As penas afiguram-se-nos criteriosamente escolhidas e doseadas, de forma a responderem às necessidades de reprovação e prevenção da prática de novas infracções.
Face ao exposto, e porquanto a sentença recorrida não nos merece qualquer censura, pois bem ajuizou da prova produzida em audiência, fazendo correcta qualificação dos factos e aplicando correctamente as penas, entendemos que deve ser negado provimento ao recurso, mantendo-se, consequentemente, a sentença recorrida.
V. Exas, porém, decidindo farão como sempre justiça.” (fim de transcrição)


4. O Exmo. Procurador-Geral Adjunto nesta Relação apôs apenas o seu “visto”, pelo que não careceu de ser dado cumprimento ao disposto no art. 417°, n° 2, do Código de Processo Penal.

5. Efectuado o exame preliminar foi considerado não haver razões para a rejeição do recurso.

6. Colhidos os vistos legais, cumpre agora apreciar e decidir.


II – Fundamentação

1. Conforme entendimento pacífico dos Tribunais Superiores, são as conclusões extraídas pelo recorrente, a partir da respectiva motivação, que operam a fixação e delimitação do objecto dos recursos que àqueles são submetidos, sem prejuízo da tomada de posição sobre todas e quaisquer questões que, face à lei, sejam de conhecimento oficioso e de que ainda seja possível conhecer (cfr., entre outros, os Acs. do STJ de 16.11.95, de 31.01.96 e de 24.03.99, respectivamente, nos BMJ 451° - 279 e 453° - 338, e na Col (Acs. do STJ), Ano VII, Tomo 1, pág. 247, e cfr. ainda, arts. 403° e 412°, n° 1, do CPP).

2. Vejamos, antes de mais, o conteúdo da decisão recorrida. No que concerne a matéria de facto:

a) O Tribunal a quo declarou provados os seguintes factos (transcrição):
“1. Pelas 12.45 horas do dia 10 de Março de 2008, no estabelecimento de café instalado na…, sita na Rua da …, em Santa Iria da Azóia, área desta comarca de Loures, a arguida A…, possuía sobre o balcão daquele estabelecimento comercial, do qual detém a exploração, uma máquina electrónica, tipo roleta, de exploração exclusiva dos casinos, ligada à corrente eléctrica e pronta a jogar.
2. Tal máquina aceita moedas de 50 cêntimos, de 1 ou 2 euros e após a respectiva inserção em ranhura a esse efeito destinada desenvolve um jogo que consiste em disparar um ponto luminoso que percorre vários orifícios existentes no respectivo mostrador que ilumina à sua passagem, até que se fixa aleatoriamente num deles.
3. Aqui, se o orifício onde a luz se fixou corresponde a um dos números do mostrador, designadamente 1, 2, 10, 50, 100, 200, o jogador terá direito a igual número de euros por cada ponto corresponder a um euro.
4. Se o orifício onde a luz se fixou é algum dos demais – sem referência a pontos – o jogador nada ganha;
5. Por esta forma, a máquina desenvolve um jogo de fortuna ou azar uma vez que, por resultado totalmente dependente da sorte, não carecendo de qualquer perícia ou destreza do jogador, paga prémios em dinheiro, num jogo que desenvolve o tema próprio do jogo da roleta.
6. A arguida conhecia o funcionamento do jogo desenvolvido pela máquina que detinha, e que do funcionamento desta a própria deveria pagar prémios em dinheiro, por conversão dos pontos obtidos pelo jogador, e que não tinha autorização para a sua exploração.
7. Agiu livre, voluntária e conscientemente, sabendo que tal conduta lhe era vedada por lei.
8. Para além da exploração do estabelecimento de café, com os inerentes proventos financeiros, e da ausência de antecedentes criminais, desconhecem-se outras condições de vida da arguida a qual habita um bairro onde são modestas as condições de vida dos habitantes e frequentadores do café.”

b) Factos declarados não provados:
“Não há factos não provados.”

c) Em sede de motivação da decisão de facto, escreveu-se na sentença recorrida:
O Tribunal formou a sua convicção sobre a factualidade apurada com base no auto de notícia, no CRC e nos depoimentos de J… e de V…, inspectores da ASAE que após denúncia anónima sobre a existência de uma máquina de jogo no café explorado pela arguida aí se deslocaram, confirmaram a denúncia encontrando a máquina apreendida, a qual, como tantas outras que já apreenderam e postas em exploração à disposição do público, apenas aceita moedas de uso correntes iguais ou superiores a 50 cêntimos, resultando da sua utilização o pagamento de um prémio exclusivamente em dinheiro, não existindo qualquer contrapartida, factos que já conhecem.
A clareza, certeza e serenidade dos depoimentos prestados não permitem ajuizar de forma a que não seja a de se confirmar a matéria da acusação, designadamente estar-se perante pessoa dotada de inteligência e sabedora das regras da vida em sociedade e das consequências para quem não as cumpre.”

d) Finalmente, quanto ao enquadramento jurídico-penal dos factos e à escolha e medida da pena, expendeu-se na decisão revidenda:
“A arguida vem acusada da prática, em autoria material de um crime de exploração ilícita de jogo, previsto e punido nos termos do art.° 108° n° 1, do Decreto-lei n° 422/89 de 2 de Dezembro, com referência aos artigos 1° e 4° n° 1 ai. g) do mesmo diploma, na redacção dada pelo Decreto-lei n° 10/95 de 19 de Janeiro.
Dispõe o art° 108 n° 1 que "Quem, por qualquer forma, fizer a exploração de jogos de fortuna ou azar fora dos locais legalmente autorizados será punido com prisão até dois e multa até 200 dias.
Dispõe por sua vez o n° 2 que "será punido com a pena prevista no número anterior quem for encarregado da direcção do jogo, mesmo que não a exerça habitualmente, bem como os administradores, directores, gerentes, empregados e agentes da entidade explorador.
De acordo com o artigo 1° "Jogos de fortuna ou azar são aqueles cujo resultado é contingente por assentar exclusiva ou fundamentalmente na sorte.
A exploração e a prática dos jogos de fortuna ou azar são permitidas nos casinos existentes em zonas de jogo permanente ou temporário criadas por decreto-lei ou, fora daqueles, nos casos excepcionados nos artigos 6° a 8°, é o que dispõe o art° 3°, dedicando-se o Artigo 4.° a elencar, exemplificadamente, os "Tipos de jogos de fortuna ou azar"
1 - Nos casinos é autorizada a exploração, nomeadamente, dos seguintes tipos de jogos de fortuna ou azar:
a) Jogos bancados em bancas simples ou duplas: bacará ponto e banca, banca francesa, boule, cussec, écarté bancado, roleta francesa e roleta americana com um zero;
b) Jogos bancados em bancas simples: black-jack/21, chukluck e trinta e quarenta;
c) Jogos bancados em bancas duplas: bacará de banca limitada e craps;
d) Jogo bancado: keno;
e) Jogos não bancados: bacará chemin de fer, bacará de banca aberta, écarté e bingo;
f) Jogos em máquinas pagando directamente prémios em fichas ou moedas;
g) Jogos em máquinas que, não pagando directamente prémios em fichas ou moedas, desenvolvam temas próprios dos jogos de fortuna ou azar ou apresentem como resultado pontuações dependentes exclusiva ou fundamentalmente da sorte.
2 - É permitido às concessionárias adoptar indiferentemente bancas simples ou duplas para a prática de qualquer dos jogos bancados referidos na alínea a) do n.° 1 deste artigo.
3 - Compete ao membro do Governo da tutela autorizar a exploração de novos tipos de jogos de fortuna ou azar, a requerimento das concessionárias e após parecer da Inspecção-Geral de Jogos.
Dos "tipos de jogos de fortuna ou azar" previstos no artigo 4°, cuja exploração é autorizada nos casinos constam na alínea g) o tipo de "Jogos em máquinas que, não pagando directamente prémios em fichas ou moedas, desenvolvam temas próprios dos jogos de fortuna ou azar ou apresentem como resultado pontuações dependentes exclusiva ou fundamentalmente da sorte.
A esta luz impõe-se concluir que os factos provados consubstanciam o cometimento pela arguida dos pressupostos objectivos - exploração sem autorização de jogos dependentes exclusiva ou fundamentalmente da sorte - e subjectivos (conhecimento, liberdade e vontade) do imputado crime de jogo ilegal, por a conduta estar abrangida na norma incriminatória - art° 108 n° 1 -.
Constatado o cometimento dos factos crime e a susceptibilidade da punição impõe-se proceder à escolha e determinação da medida pena
Da escolha da pena.
Relativamente à escolha da pena aplicável, muito embora as normas acima citadas prevejam, cumulativamente a pena de prisão e a pena de multa, não se justifica no caso concreto a imposição da pena de prisão, até porque a arguida aparenta estar socialmente inserida, não tem antecedentes criminais, e o delito em si não representa do ponto de vista do meio em que a arguida se insere um foco de alarme, instabilidade ou insegurança social, sendo a pena de multa suficiente para realizar de forma adequada as finalidades da punição, podendo à mesma associar-se com vantagem a sempre almejada prevenção geral.
A pena a impor será a de multa parte resultante da conversão e parte da previsão.
***
Da medida da pena
Resta-nos, pois, determinar a medida concreta da pena, dentro da respectiva moldura penal abstracta - prisão até 2 anos e multa até 200 dias.
Nos termos do artigo 71° do Código Penal, a determinação da medida da pena é feita em função da culpa do agente e das exigências da prevenção (geral e especial), devendo atender-se a todas as circunstâncias que deponham a favor ou contra o agente.
Quanto ao grau de ilicitude do facto, tem-se por elevado dentro do respectivo tipo.
O dolo é o directo.
As necessidades de prevenção geral são elevadas, atendendo ao conjunto de interesses sociais, administrativos, penais e tributários salvaguardados pela lei do jogo.
A arguida não confessou os factos cuja censura merece.
Aparenta ser de boa condição económica e social.
Assim, atendendo-se à moldura da pena prevista para o crime em causa, e aos factores acima descritos, entende-se adequada a pena de 180 dias de prisão substituídos por igual número de dias de multa e a de 50 dias de multa.
Quanto â fixação da quantia correspondente a cada dia de multa, a mesma deverá ser fixada entre € 5 e € 500, atendendo à situação económica e financeira da arguida e dos seus encargos pessoais - artigo 47°, n°2 do Código Penal.
No caso concreto, face à aparência da situação económica concreta da arguida, à motivação do enriquecimento fácil e cómodo associado ao jogo, deve a multa afastar-se do limite mínimo por fora a ser fortemente dissuasora quer para a arguida quer para eventuais interessados em defraudarem as legítimas expectativas associadas ao jogo legal, entendendo-se adequado fixá-la no triplo do mínimo, sendo assim fixada em € 15,00 a taxa diária.” (fim de transcrição)


3. Apreciemos.

Diga-se desde já que consideramos existir a nulidade insanável prevista na al. f) do artº 119º do C.P.Penal decorrente da inconstitucionalidade orgânica dos artºs 3º al. aa) e 15º, ambos do Dec. Lei 274/2007 de 30/7, por violação da al. u) do artº 164º da CRP, que entendemos dever apreciar prévia e oficiosamente.
Com efeito, as normas constantes dos artºs 3º al. aa) e 15º do Dec. Lei 274/2007 de 30/7, diploma que cria a Autoridade de Segurança Alimentar e Económica, abreviadamente designada por ASAE, são organicamente inconstitucionais, pois violam a al. u) do artº 164º da CRP, na medida em que criam um órgão de polícia criminal com competências próprias para inclusivamente deter cidadãos e lavrar autos de notícia, como foi o caso dos autos, sendo tal matéria da competência absoluta da Assembleia da República.
Na realidade, o inspector da ASAE, V…, que lavrou o auto de notícia que deu origem aos autos, não o poderia ter feito, por não ter poderes como órgão de polícia criminal, atenta a inconstitucionalidade das normas supra referidas.
Destarte, não poderia tal inspector ter procedido à elaboração do auto de notícia, nem poderia ter sujeito a recorrente à prestação de TIR, nem tê-la detido, nem sequer o Tribunal a quo poderia ter optado pela forma de processo sumário, tendo ocorrido, dessa forma, desde o início dos autos, a nulidade insanável prevista na al. f) do artº 119º do C.P.Penal.
Expliquemo-nos.
Com o Dec. Lei 274/2007 de 30/7, a Autoridade de Segurança Alimentar e Económica (a qual foi criada pelo Dec. Lei 237/2005 de 30/12), viu as suas atribuições alargadas, competindo-lhe, nos termos do disposto no nº 2 do artº 3º daquele diploma legal, entre outras, as seguintes:
aa) Desenvolver acções de natureza preventiva e repressiva em matéria de jogo ilícito, promovidas em articulação com o Serviço de Inspecção de Jogos do Turismo de Portugal, I.P.;
ab) Colaborar com as autoridades judiciárias nos termos do disposto no Código de Processo Penal, procedendo à investigação dos crimes cuja competência lhe esteja especificamente atribuída por lei.
Por sua vez, o artº 15º do mesmo diploma legal, sob a epígrafe “Órgão de polícia criminal” veio estabelecer o seguinte:
1- A ASAE detém poderes de autoridade e é órgão de polícia criminal.
2- São autoridades de polícia criminal, nos termos e para os efeitos no Código de Processo Penal:
a) O inspector-geral
b) Os subinspectores-gerais;
c) Os directores regionais, designados por inspectores-directores;
d) O director de serviço de planeamento e controlo operacional e os inspectores-chefes;
e) Os chefes de equipas multidisciplinares.
E no artº 16º do mesmo Dec. Lei atribui-se o direito ao pessoal de inspecção e dirigentes dos serviços de inspecção da ASAE de possuírem e usarem arma de todas as classes previstas na Lei nº 5/2006 de 23/2, com excepção da classe A, distribuídas pelo Estado, com dispensa da respectiva licença de uso e porte de arma, valendo como tal o respectivo cartão de identificação profissional.
Ora, de acordo com o disposto na al. u) do artº 164º da CRP é da exclusiva competência da Assembleia da República legislar sobre o “Regime das forças de segurança”.
Por seu turno, o artº 272º da CRP sob a epígrafe “Polícia” preceitua:
1. A polícia tem por funções defender a legalidade democrática e garantir a segurança interna e os direitos dos cidadãos.
2. As medidas de polícia são as previstas na lei, não devendo ser utilizadas para além do estritamente necessário.
3. A prevenção dos crimes, incluindo a dos crimes contra a segurança do Estado, só pode fazer-se com observância das regras gerais sobre polícia e com respeito pelos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos.
4. A lei fixa o regime das forças de segurança, sendo a organização de cada uma delas única para todo o território nacional.
A propósito da apreciação de um pedido de fiscalização de constitucionalidade relativo ao Decreto nº 204/X, da Assembleia da República, o qual aprova uma nova orgânica da Polícia Judiciária, refere o Tribunal Constitucional no Ac. nº 304/2008 de 30/5/2008 que “o regime das forças de segurança mereceu uma especial atenção do legislador constitucional devido, por um lado, ao papel fundamental que elas desempenham na garantia de funcionamento da vida em sociedade num Estado de direito e, por outro lado, à possibilidade de afectação dos direitos e liberdades dos cidadãos que pode resultar da sua actividade. Se aquele interesse reclama operacionalidade e eficácia das forças de segurança, o segundo exige que a lei conforme a sua actividade de modo a que não se possam verificar restrições desproporcionadas àqueles direitos e liberdades. Foi a procura da garantia da obtenção de um ponto de equilíbrio entre estes dois interesses, mesmo que cintilante e precário, por força da pressão de temores sociais com sentidos opostos, que motivou o legislador constitucional a consagrar especiais exigências neste domínio, sobretudo ao nível da definição dos órgãos competentes e da forma dos actos normativos necessários à regulamentação de tal matéria.
O legislador constitucional não ignorou que na tensão dialéctica entre os direitos à liberdade e segurança, consagrados no artº 27º, nº1, da C.R.P., a actividade das forças de segurança interna do Estado desempenha um papel fundamental que justifica especiais preocupações relativamente a outros sectores da Administração Pública.
Sendo esta actividade de elevada importância e risco que está na mira das referidas directrizes constitucionais, o conceito constitucional de “forças de segurança” não pode deixar de ser perspectivado numa visão ampla que abranja todos os corpos organizados que tenham por missão, principal ou secundária, garantir a segurança interna, o que inclui obrigatoriamente a prevenção de crimes que ponham em causa o direito à segurança dos cidadãos (artigo 27º, nº 1, da C.R.P.).”
E, um pouco mais à frente, refere-se, ainda, no mesmo Acórdão do Tribunal Constitucional que “O”regime das forças de segurança” referido na al. u) do artº 164º, da C.R.P., deve, pois, ser entendido apenas na acepção de regime geral das forças de segurança, o qual contemplará os fins e os princípios que devem nortear as forças de segurança, a previsão dos corpos que as devem compor, o modo de inter-relacionação entre eles, as grandes linhas de regulação destes corpos e os princípios básicos relativos à interferência das forças de segurança com os direitos fundamentais dos cidadãos.”
Aqui chegados, a questão que se coloca é a de saber se a actuação da ASAE, no âmbito das atribuições e poderes de autoridade de polícia criminal, que lhe foram conferidos nos artºs 3º alíneas aa) e ab) e 15º do Dec. Lei 274/2007 de 30/7, e no de órgão de polícia criminal aí consignado, se há-de integrar, ou não, no conceito de “forças de segurança” a que alude a al. u) do artº 164º da CRP, sendo, pois, da exclusiva competência da Assembleia da República legislar sobre o seu regime.
Parece-nos, salvo o devido respeito por opinião contrária, e à semelhança do que a resposta não pode deixar de ser afirmativa.
Entre os actos de polícia que traduzem restrições de direitos fundamentais assume, desde logo, relevância, a detenção de cidadãos.
Assim, a actuação da ASAE, no âmbito das supra referidas atribuições, enquadra-se no conceito constitucional de “forças de segurança” a que se refere a al. u) do artº 164º da CRP e, nessa medida, os artº 3º als. aa) e ab) e 15º do Dec. Lei 274/2007 de 30/7 enfermam de inconstitucionalidade orgânica, por violação de reserva de lei da Assembleia da República.
E, padecendo tais normas de inconstitucionalidade orgânica, há que extrair as devidas consequências ao nível do direito processual penal.
Reportando-nos à situação do presente recurso.
Na qualidade de órgão de polícia criminal, o Srº Inspector da ASAE que lavrou o auto de notícia de fls. 3 dos autos, procedeu à detenção da arguida/recorrente, em flagrante delito, nos termos do disposto nos artºs 255º nº 1 al. a) e 256º nº 1 do C.P.Penal, constituiu-a arguida, sujeitou-a a termo de identidade e residência.
Não fora essa detenção em flagrante delito, os autos não teriam seguido a forma de processo sumário, como seguiram, por não estar preenchido um dos requisitos a que alude o artº 381º do C.P.Penal.
A lei processual penal só permite que a detenção em flagrante delito seja efectuada por qualquer pessoa se não estiver presente qualquer autoridade judiciária ou entidade policial, nem puder ser chamada em tempo útil – alínea b) do nº 1 do artº 255º do C.P.Penal – mas, ainda assim, a pessoa que proceder à detenção terá de entregar de imediato o detido a uma destas entidades, a quem caberá redigir auto sumário de entrega e proceder de acordo com o disposto no artº 259º do C.P.Penal, situação que não ocorreu no caso dos autos.
E não se diga, que pelo facto de a actuação da ASAE no âmbito do processo penal se inserir numa actividade de órgão de polícia criminal, esta surgir sempre subordinada à direcção de uma autoridade judiciária. Uma tal afirmação ignoraria todo o campo de actuação cautelar deixado aos órgãos de polícia criminal também no âmbito do inquérito criminal com incidência nos direitos fundamentais dos visados. E é neste ponto que reside, indubitavelmente, a justificação para a imposição de acto legislativo: a essencialidade da matéria a regular traduzida no impacto da actividade policial na esfera da liberdade dos cidadãos.
Estando ferida de inconstitucionalidade orgânica a norma que atribui poderes de autoridade de polícia criminal à ASAE, sem os quais não poderia esta entidade proceder à detenção da arguido/recorrente da forma como o fez, há que concluir, que a realização do julgamento dos autos, em processo sumário, sem estarem reunidos os respectivos requisitos essenciais, deu lugar à nulidade insanável prevista na al. f) do artº 119º do C.P.Penal.
No mesmo sentido, que o incumprimento dos requisitos essenciais do processo sumário gera a nulidade insanável prevista na alínea f) do artº 119º do C.P.Penal, veja-se Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 2ª edição actualizada, 2008, em anotação ao artº 381º.
Julgando-se existir a nulidade insanável prevista na al. f) do artº 119º do C.P.Penal, decorrente da inconstitucionalidade orgânica dos artºs 3º al. aa) e 15º, ambos do Dec. Lei 274/2007 de 30/7, por violação da al. u) do artº 164º da CRP, prejudicado fica o conhecimento das questões suscitadas no recurso pela recorrente A….
Um nota final para referir que igualmente assim decidimos no acórdão proferido em 25 de Junho de 2009, no âmbito do processo sumário nº 358/08.3ECLSB, do 2.º Juízo Criminal de Almada, em que foi relatora a ora 2ª signatária, e no acórdão proferido em 17 de Dezembro de 2009, no âmbito do recurso interposto no processo sumário nº 31/08.2ECLSB, também do 2º Juízo do Tribunal de Pequena Instância Criminal de Loures, este subscrito pelo ora relator e relatado pela Exmª Desembargadora Guilhermina Freitas, sendo que ambas as decisões foram aqui seguidas de muito perto e estão disponíveis em www.dgsi.pt.


III – Decisão

Pelo exposto, acordam os Juízes na 9ª Secção Criminal da Relação de Lisboa, em julgar organicamente inconstitucionais os artºs 3º al. aa) e 15º, ambos do Dec. Lei 274/2007 de 30/7, por violação da al. u) do artº 164º da CRP, e nessa conformidade, declaram nulo o julgamento realizado em processo sumário, revogando-se a sentença recorrida, devendo os autos baixar à 1ª instância onde caberá decidir do destino a dar à notícia da infracção e aos bens apreendidos.
Sem tributação.
Notifique nos termos legais.
(o presente acórdão, integrado por quinze páginas com os versos em branco, foi processado em computador e integralmente revisto pelo relator, seu primeiro signatário – artº 94º, nº 2 do Cód. Proc. Penal)

Lisboa, 18 de Fevereiro de 2010

J. S. Calheiros da Gama
Maria de Fátima Mata-Mouros