Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
932/13.6TJLSB.L1-8
Relator: ILÍDIO SACARRÃO MARTINS
Descritores: SOCIEDADES COMERCIAIS
RESPONSABILIDADE DOS GERENTES
PROTECÇÃO DOS CREDORES
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/05/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Texto Parcial: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: - O artigo 78º do Código das Sociedades Comerciais consagra um tipo de responsabilidade por violação de normas de protecção prevista no artigo 483º nº 1 do Código Civil.
- É ao credor social que compete alegar e provar, nos termos do artigo 342º nº 1 do Código Civil, factos de onde se possa concluir pela inobservância culposa do gerente, “de normas legais ou contratuais que visam a protecção dos credores da sociedade”.
- Do artigo 78º nº 1 do C.S.C. resulta que os gerentes não respondem para com os credores sociais quando o património social se torne insuficiente para a satisfação dos respectivos créditos, mas já respondem se esta insuficiência for consequência da inobservância culposa de disposições legais ou contratuais destinadas à protecção dos credores.
- A insuficiência patrimonial deve ser o resultado da violação das normas de protecção de credores.
(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Parcial: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:



I - RELATÓRIO:



B..., Lda intentou acção sumária contra P... e J..., alegando e pedindo que estes sejam condenados a pagar à autora a quantia de € 16.725,22, a título de indemnização pelo encerramento ilícito da sociedade “R..., Lda, a importância de € 1.125,02 a título de juros vencidos à data da propositura da execução e ainda juros vencidos e vincendos.

Em síntese alegou que os réus possuem aquela dívida perante a autora enquanto sócios gerentes da sociedade R..., por terem actuado culposamente, lesando o património da sociedade, que se tornou insuficiente para a satisfação do crédito da autora, devido ao seu encerramento, sem previamente terem pago as facturas emitidas pela autora. Os réus deveriam ter requerido em tempo a declaração de insolvência.
 
Em representação dos réus que foram citados editalmente, o Ministério Público contestou, invocando a ineptidão da petição inicial, e pedindo a improcedência da acção.

A autora foi convidada a completar a petição inicial, designadamente quanto aos artigos 15º, 16º e 23º o que fez, referindo que as instalações da sociedade R... foram encerradas, desaparecendo os equipamentos, maquinaria, mobiliário e matérias-primas. Ao não solicitarem a insolvência, enquanto sócios gerentes, lesaram a autora que a impossibilitou de reclamar os seus créditos

O Ministério Público respondeu, dizendo que a nova petição inicial não contempla a exigência contida no despacho de aperfeiçoamento e pugna pela procedência da excepção dilatória de ineptidão da petição inicial.

No despacho saneador foi julgada improcedente a alegada excepção.

Foi proferida SENTENÇA que julgou a acção improcedente e não provada e absolveu os réus do pedido.

Não se conformando com a sentença, dela recorreu a autora, tendo formulado as seguintes CONCLUSÕES:

1ª- A questão a apreciar e a decidir nos presentes autos é a de saber se se encontram verificados os pressupostos da responsabilidade civil por facto ilícito para que os réus sejam responsabilizados pelo ressarcimento de eventuais danos patrimoniais sofridos pela autora.

2ª- Pretende-se com o presente recurso, além do mais, ver reapreciada a prova, impugnando-se, assim, a decisão proferida sobre a matéria de facto, no tocante aos factos considerados não provados sob os números 1, 2 e 3, bem como a fundamentação de facto relativamente a estes artigos.

3ª- Não tendo sido considerado provados os factos:

1. No exercício da sua actividade, e a pedido da “S..., Lda”, a autora, no período compreendido entre Outubro de 2008 e Março de 2011, forneceu vários produtos e serviços, discriminados nas facturas, emitidas na data da prestação;
2. Foi para pagamento das facturas que a “R..., Lda”;
3. Os réus não solicitaram a insolvência da “R..., Lda”.

4ª- Não se conforma a apelante com a fundamentação de facto subjacente à decisão de não considerar provados os factos referidos (1, 2 e 3) porquanto, a Mmª Juiz de Direito do Tribunal “a quo” não considerou provados os factos 1 e 2 por falta de junção aos autos de facturas. Porém, as duas testemunhas arroladas pela autora, ora apelante, J... e A... afirmaram que a “B...” no exercício da sua actividade forneceu vários produtos e serviços à “S...Lda” entre Outubro de 2008 e Março de 2011, tendo-lhe sido entregues, pessoalmente, os cheques constantes dos autos e considerados no ponto 2 dos factos provados.

5ª- 1. No exercício da sua actividade, e a pedido da “S.., Lda”, a autora, no período compreendido entre Outubro de 2008 e Março de 2011, forneceu vários produtos e serviços, discriminados nas facturas, emitidas na data da prestação;
2. Foi para pagamento das facturas que a “R..., Lda”;
Neste sentido, confrontar os depoimentos das testemunhas J... e A...:
As duas testemunhas lograram provar os factos 1 e 2 considerados como não provados pelo Mmº Juiz de Direito do tribunal “a quo”.
Aos minutos 2:40 e seguintes do depoimento constante da gravação digital, a testemunha J... referiu que: “a empresa que o Sr. P... tinha era cliente da “B..., Lda”, e referindo-se mais à frente, à “S...”, aos minutos 5:43 e seguintes, esclareceu que: “tinha um equipamento novo que nós (a B...) faturávamos as impressões que tinham um custo e facturávamos ao fim do mês”.
Aos minutos 6:20 e seguintes, a instâncias da mandatária da autora, quando lhe perguntou se a “B...” fornecia/vendia à “S...”, a testemunha respondeu: “certo” … “sim”.

Esclareceu ainda que:

-Aos minutos 6:48 e seguintes: “Na altura eles entregaram facturas que nós (B...) fizéramos e eles entregavam cheques da outra empresa que era a “R...”;
-Aos minutos 7:30 e seguintes: “Os cheques da “R...” vieram devolvidos”;
-Aos minutos 7:42 e seguintes: “… eram à volta dos € 16.000,00”, referindo-se ao montante do débito;
-Aos minutos 8:00 e seguintes: “A B... não chegou a receber esse dinheiro? Não chegou a receber esse dinheiro”.

A instâncias da digníssima Procuradora do Ministério Público, a testemunha J... respondeu referindo-se ao valor que ficou em dívida:

-Aos minutos 16:55 e seguintes: “No valor que ficou em aberto à volta de € 16.000,00”;
-E aos minutos 17:17 e seguintes: “Esse valor refere-se a facturas que fizemos à “S...”.

6ª- A testemunha A... corroborou o depoimento da testemunha J..., referindo: - Aos minutos 4:05 e seguintes: “vendi-lhes máquinas e consumíveis… basicamente era o negócio”;
-Aos minutos 4:28 e seguintes, referindo-se aos réus alegou que os mesmos lhe disseram: “vamos começar agora a pagar as facturas com cheques da “R...” (…) esta empresa também é nossa, vamos começar a pagar por esta empresa”;
-Aos minutos 5: 06 e seguintes, referindo-se à S..., declarou que: “eles tinham um volume de 10, 12, 14 mil euros mensais… por acordo pagam ao final de cada mês… como era vendedor e cobrador… chegava lá e passava os cheques…excecionalmente agora começaram a pagar com cheques da “R...”, referindo-se ao fornecimento de bens da “B...” à “S...” - Cfr. ata da audiência de julgamento.

7ª- Resulta, assim, evidente que os cheques referidos em 2 dos factos provados e entregues à “B...” (facto também provado) se destinaram a pagar bens e serviços pela “B...”, ora apelante, à “S...”. Aliás, tais cheques foram devolvidos por falta de provisão (facto provado 3) e não por extravio, cancelamento ou outro motivo que indiciasse ou colocasse em dúvida que tais cheques não eram devidos.

8ª- A autora juntou aos autos certidão permanente comercial relativa à sociedade “R...” (cfr. fls. 24 a 30). Este documento não foi impugnado, e foi considerado relevante e válido para prova o facto provado 4 pela Mmª Juiz de Direito.
Da referida certidão não consta que a “R...” se encontrasse em liquidação, dissolução ou Insolvência, factos sujeitos obrigatoriamente a registo comercial, pelo que, ficou provado que os réus P... e J... são sócios gerentes da sociedade “R...” (facto provado com o nº 4) e não pediram a insolvência, devendo considerar-se também tal facto provado (cfr. fls. 24 a 30).

9ª- Assim, salvo melhor opinião, parece resultar claro ter havido manifesto erro na apreciação da prova, pois se impunha dar como provado que:

1. No exercício da sua actividade, e a pedido da “S..., Lda”, a Autora, no período compreendido entre Outubro de 2008 e Março de 2011, forneceu vários produtos e serviços, discriminados nas facturas, emitidas na data da prestação;
2. Foi para pagamento das facturas que a “R..., Lda”;
3. Os réus não solicitaram a insolvência da “R..., Lda”.

10ª - Considerou a Mmª Juiz de Direito do Tribunal “a quo” que não se pode concluir que os apelados agiram com culpa no encerramento da “R...”, desconhecendo-se a sua participação nesse encerramento, não se encontrando preenchidos os pressupostos de responsabilidade civil prevista nos Artigos 483º e 487º, nº 1 do C. Civil, Artigos 64º, 72º e ss, e 78º do CSC e Artigo 18º do CIRE.

Não se conforma a apelante com tal entendimento porquanto, entende encontrarem-se verificados todos os pressupostos da responsabilidade civil.

Podemos concluir com segurança, no modesto entendimento da apelante, que os recorridos não pagaram em nome das suas representadas a dívida à apelante, tendo dissipado o seu património.

11ª- A inobservância culposa de disposições legais consubstancia um encerramento ilícito da sociedade “R...”, encerramento esse provado nos pontos nºs 6 a 9 dos factos assentes.

Atentos os requisitos legais da responsabilidade da recorrida:

a) O encerramento ilícito da empresa praticado pela gerente constitui uma inobservância culposa das disposições legais;
b) O património social da empresa tornou-se insuficiente para a satisfação dos créditos (cheques emitidos pelos réus, entregues à “B...” e não pagos por terem sido devolvidos por falta de provisão);
c) O ato do gerente considera-se causa adequada do dano, pois com tal encerramento a credora, aqui apelante, não logrou obter pagamento do seu crédito, nem sequer pode ver o mesmo graduado em sede de processo de insolvência.

12ª- Resultando provado que, a actuação dos recorridos, enquanto sócios gerentes, fizeram com que o património social desaparecesse.

13ª- A decisão de encerramento da referida empresa foi manifestamente ilícita, sem razões para o efeito conforme, aliás, ficou provado (cfr. factos provados 6 a 9).

14ª- Os legais representantes da sociedade devedora, aqui recorridos, encerraram a empresa sem dar conhecimento à credora, ora apelante, e sem dar informação de uma possível nova localização, sendo assim certo que tais instalações foram encerradas (cfr. factos provados 6 a 9).

15ª- Com o encerramento ilícito da empresa os réus, aqui recorridos, lograram dispor dos bens corpóreos da empresa como bem entenderam, lesando os credores sociais, omitindo o destino dado ao equipamento industrial e informático, bem como o mobiliário e matéria-prima da empresa.

16ª- Consideramos que a relação subjacente foi provada, com o fundamento nos argumentos e declarações das testemunhas supra aduzidas.

17ª- O facto de os sócios gerentes da “R...” não serem sócios gerentes da “S...” não releva nos presentes autos.

18ª- Estes emitiram e entregaram em nome da “R...” os cheques referidos em 2. sendo responsáveis pelo respectivo pagamento.

19ª- Ficou provado que a “R...” emitiu e entregou os cheques à “B...”, para pagamento de fornecimentos à “S...” que não os pagou (factos provados 3 e 4), pelo que assumiu perante a “B...”, ora Apelante, a responsabilidade pelo respectivo pagamento.

20ª- Não releva o facto de os sócios gerentes da “R...”, serem ou não serem sócios gerentes da “S...” porquanto os mesmos são réus nos presentes autos não por terem emitido os cheques, mas sim por terem encerrado ilicitamente as instalações e dissipado o património (factos provados 6 a 9) não tendo pago a dívida dos cheques à “B...” (factos provados 2, 3, 4, 5 e facto não provado 4). Visa-se na presente acção apreciar e decidir se se encontram verificados os pressupostos da responsabilidade civil por facto ilícito para que os réus sejam responsabilizados pelo ressarcimento de eventuais danos patrimoniais sofridos pela autora, aqui apelante.

21ª- Provou-se o não pagamento do crédito/valor titulado pelos cheques emitidos e entregues à “B...” para pagamento do fornecimento de vários produtos e serviços pela autora à “S...”, que foram devolvidos quando apresentados a pagamento “por falta de provisão” [ou seja, foram devolvidos por falta de dinheiro disponível na instituição bancária para o seu pagamento e não pela “R...” não reconhecer o crédito da “B...” (cfr. factos provados 2 e 3)].

22ª- Dado o exposto, podemos concluir que a conduta dos recorridos violou norma legal destinada a proteger o direito de crédito da autora, e ainda que agiram culposamente no exercício das suas funções de sócios gerentes da sociedade devedora, violando o artigo 64º do C. Civil, estando preenchidos os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual previstos nos artigos 483º do Código Civil e 78º do Código das Sociedades Comerciais.

Termina, pedindo que seja revogada a decisão recorrida, sendo a mesma substituída por outra em que condene os réus, aqui apelados, integralmente no pedido formulado pela autora, ora apelante.

Não houve contra-alegações.

Colhidos os vistos, cumpre decidir

II - FUNDAMENTAÇÃO:

A) Fundamentação de facto:

Mostra-se assente a seguinte matéria de facto:

1º- A autora B..., Lda dedica-se à comercialização de produtos e equipamentos para as artes gráficas, bem como à prestação de serviços de assistência técnica a máquinas e de mais equipamentos de impressão gráficas, bem como à prestação de serviços de assistência técnica a máquinas e demais equipamentos de impressão gráfica.
2º- A R..., Lda, com sede na ... entregou à autora os seguintes cheques:
-cheque nº 9185592511, sacado s/ o M..., no montante de 324,68 euros,
-cheque nº 9185591347, sacado s/ o M..., no montante de 833,93 euros,
-cheque nº 9185590086, sacado s/ o M..., no montante de 2.000,00 euros;
-cheque nº 9185590571, sacado s/o M..., no montante de 2.000,00 euros;
-cheque nº 9185590668 sacado s/o M..., no montante de 2.000,00 euros;
-cheque nº 9185574257, sacado s/o M..., no montante de 8.617,70 euros e
-cheque nº 9185574257, sacado s/o M..., no montante de 948,91 euros, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
3º- Apresentados a pagamento os referidos cheques foram devolvidos à autora por falta de provisão.
4º- Os réus P... e J..., são sócios gerentes da sociedade “R..., Lda”.
5º- A autora intentou acção executiva contra R..., Lda, que correu termos pela 2ª secção do 3º Juízo de Execução de Lisboa, sob o nº 9163/11.9yylsb, no âmbito da qual constatou não haver bens susceptíveis de penhora.
6º- Bem como constatou que as instalações da sede onde a R..., Lda se encontrava a laborar estavam encerradas.
7º- Inexiste nova localização da referida empresa.
8º- Os equipamentos, maquinaria, mobiliário e matérias-primas da “R..., Lda” desapareceram.
9º- O património da R..., Lda desapareceu nomeadamente uma Roland 200E a 4 cores, um CTP II automático e uma prova de Cor Dupont 24, os computadores e as matérias-primas.

B) Fundamentação de direito:

As questões colocadas e que este tribunal deve decidir, nos termos dos artigos 663º nº 2, 608º nº 2, 635º nº 4 e 639º nºs 1 e 2 do novo Código de Processo Civil, aprovado pela Lei nº 41/2013, de 26 de Junho, aplicável por força do seu artigo 5º nº 1, em vigor desde 1 de Setembro de 2013, são as seguintes:

-Impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto;
-A questão de direito.

IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO PROFERIDA SOBRE A MATÉRIA DE FACTO:

A sentença considerou não provados os seguintes factos:

1. No exercício da sua actividade, e a pedido da S..., Lda, a A., no período compreendido entre Outubro de 2008 e Março de 2011, forneceu vários produtos e serviços, discriminados nas facturas, emitidas na data da prestação;
2. Foi para pagamento das facturas que a R..., Lda;
3. Os RR não solicitaram a insolvência da R..., Lda.

Esses factos correspondem, respectivamente, aos artigos 2º, 3º, primeira parte e 25º da petição inicial.

Alega a apelante que os mesmos merecem resposta positiva e ainda que a respectiva fundamentação deve também ser modificada.

Na respectiva fundamentação escreveu-se o seguinte:

“O facto não provado 1. não se provou por falta da junção aos autos das facturas.

O facto não provado 2. fica prejudicado e, como tal, não provado em face da não prova do facto não provado 1. Nele voltam-se a falar das facturas que não se encontram juntas ao presente processo.

Sobre o facto não provado 3. a autora não produziu qualquer meio de prova, o que podia ter feito através de uma certidão do tribunal competente certificativa da inexistência de processo de insolvência R..., Lda ou outro documento obtido junto da conservatória do registo comercial ou do registo nacional das pessoas colectivas”.

Argumenta a apelante que os depoimentos das testemunhas J... e A... apontam no sentido das respostas positivas a tais factos.

Cumpre decidir.

Vejamos aqueles depoimentos.

FACTOS NÂO PROVADOS NºS 1 E 2:

J..., responsável de cobranças da autora, com domicílio profissional em Pontevedra, Espanha.

No essencial, este depoimento resume-se ao seguinte:

A empresa que o Sr. P... tinha era cliente da “B..., Lda”, e a S... tinha um equipamento novo que a B... facturava as impressões que tinham um custo e facturava ao fim do mês. A B... fornecia/vendia à S.... Na altura eles entregaram facturas que a B... fizera e eles entregavam cheques da outra empresa que era a R.... Os cheques da R... vieram devolvidos e eram à volta dos € 16.000,00.A B... não chegou a receber esse dinheiro.
O valor que ficou em dívida foi à volta de € 16.000,00 e esse valor refere-se a facturas que a autora fez à S....
 
A..., trabalha na autora há 14 anos, onde exerce as funções de comercial/técnico de vendas. Conhece os réus como sócios gerentes das empresas que foram clientes da autora, R... e S....
O seu depoimento pode sintetizar-se da seguinte forma:

Vendi-lhes máquinas e consumíveis… basicamente era o negócio. Os réus disseram-lhes que iam começar agora a pagar as facturas com cheques da R.... Esta empresa também é nossa, vamos começar a pagar por esta empresa.

Referindo-se à S..., declarou que eles tinham um volume de 10, 12, 14 mil euros mensais… por acordo pagam ao final de cada mês… como era vendedor e cobrador… chegava lá e passava os cheques. Excepcionalmente agora começaram a pagar com cheques da R..., referindo-se ao fornecimento de bens da B... à S....

Apesar dos depoimentos acima referidos, mantemos as respostas aos factos não provados sob os nºs 1 e 2 pois, o que as mesmas afirmaram não é suficiente para dar como provados os tais factos, que deveriam ser complementados pelas facturas referidas pela autora na petição inicial, designadamente no artigo 2º. Efectivamente, não foram juntas aos autos as facturas descritivas do fornecimento dos bens pela autora à S..., Lda.

FACTO NÃO PROVADO Nº 3:

Este facto foi retirado do artigo 25º da petição inicial que tem a seguinte redacção:

“ Os réus, face à insuficiência da sociedade, deveriam ter requerido em tempo a declaração de insolvência de acordo com o artigo 18º do CIRE”.

Na respectivamente fundamentação, como já se disse, ficou consignado que a autora não produziu qualquer meio de prova, o que podia ter feito através de uma certidão do tribunal competente certificativa da inexistência de processo de insolvência R..., Lda ou outro documento obtido junto da conservatória do registo comercial ou do registo nacional das pessoas colectivas.

Mais importante que a falta de produção de prova foi a falta de alegação de factos por parte da autora que evidenciem que a sociedade R... se encontrava numa situação de insolvência, que não foi apresentada à insolvência e que a violação de tal dever se deveu a uma actuação culposa dos seus gerentes e que foi essa não apresentação atempada da sociedade à insolvência que levou ao não pagamento das dívidas contraídas pela mesma, para com a autora.

Ou seja, nada foi alegado que a sociedade se encontrava impossibilitada de cumprir as suas obrigações vencidas.

Nesta conformidade, mantém-se a resposta negativa ao facto nº 3 e alegado no artigo 25º da petição inicial.

A QUESTÃO DE DIREITO:

Na contestação, o Ministério Público invocou a ineptidão da petição inicial e voltou a fazê-lo depois de a autora ter apresentado uma nova petição inicial, em resposta ao convite contido no despacho de aperfeiçoamento.

A questão de direito deve ser analisada em conformidade com o disposto no artigo 78º do Código das Sociedades Comerciais, pois a acção foi colocada no âmbito da responsabilidade dos gerentes para com os credores sociais.

Efectivamente, dispõe o nº 1 desse artigo que “ os gerentes, administradores ou directores respondem para com os credores da sociedade quando, pela inobservância culposa das disposições legais ou contratuais destinadas à protecção destes, o património social se torne insuficiente para a satisfação dos respectivos créditos”.

O nº 1 consagra uma acção pessoal e directa para o exercício de um direito próprio do credor (não um caso de sub-rogação do nº 2 desse artigo) uma responsabilidade independente da existente para com a sociedade.

É de natureza delitual ou extracontratual, que não obrigacional ou contratual, pois não existe, anteriormente ao acto ilícito, qualquer direito de crédito do credor social perante o administrador. Existe apenas um interesse juridicamente protegido a que corresponde um dever de carácter geral.

Não de trata de saber se o administrador tem ou não o dever de cumprir a obrigação da sociedade para com o credor social, mas antes de saber se o administrador tem ou não, perante certo credor social, o dever de não afectar o património social em violação das leis destinadas a proteger os credores sociais[1].

Para que os credores sociais possam exercer este direito de indemnização, exige-se cumulativamente os seguintes requisitos:

a) Que o facto praticado pelo administrador, gerente ou director constitua uma inobservância culposa das disposições legais ou contratuais destinadas à protecção dos credores da sociedade;
b) Que o património social se tenha tornado insuficiente para a satisfação dos respectivos créditos.
c) Que o acto do gerente possa considerar-se causa adequada do dano.

M. Nogueira, a respeito da responsabilidade dos administradores e dos directores para com os credores sociais escreveu que:

“ Os administradores ou directores são também responsáveis para com o credores da sociedade quando, pela inobservância culposa das disposições legais ou contratuais destinadas à protecção destes, o património social se torne insuficiente para a satisfação dos respectivos créditos – artº 78º nº 1. Do que se trata nesta norma é de uma modalidade de responsabilidade (que tem a natureza delitual e não obrigacional) para com os credores sociais, que corresponde a uma acção directa, e não a um caso de sub-rogação. Esta responsabilidade é independente para com a sociedade. Um acto do administrador pode constituí-lo em responsabilidade só para com a sociedade, exigível pelos credores, ou para com estes e aquela; proferidas a propósito do artº 23º nº 1 do DL nº 49381, de 15.11.1969, estas considerações de Raul Ventura e Brito Correia continuam válidas à luz do direito actual” [2].

O referido artigo 78º do Código das Sociedades Comerciais consagra um tipo de responsabilidade por violação de normas de protecção prevista no artigo 483º nº 1 do Código Civil. É ao credor social que compete alegar e provar, nos termos do artigo 342º nº 1 do Código Civil, factos de onde se possa concluir pela inobservância culposa do gerente, “ de normas legais ou contratuais que visam a protecção dos credores da sociedade”.

Do artigo 78º nº 1 do Código das Sociedades Comerciais resulta que os gerentes não respondem para com os credores sociais quando o património social se torne insuficiente para a satisfação dos respectivos créditos, mas que se esta insuficiência for consequência da inobservância culposa de disposições legais ou contratuais destinadas à protecção dos credores, já respondem. A insuficiência patrimonial deve ser o resultado da violação das normas de protecção de credores.

No caso concreto e perante os factos provados, os mesmos são insuficientes para caracterizar a responsabilidade dos gerentes para com os credores sociais nos termos do disposto no artigo 78º do Código das Sociedades Comerciais e com os requisitos que acabámos de especificar, pelo que improcedem as conclusões das alegações do recurso.

EM CONCLUSÃO:

-O artigo 78º do Código das Sociedades Comerciais consagra um tipo de responsabilidade por violação de normas de protecção prevista no artigo 483º nº 1 do Código Civil.

-É ao credor social que compete alegar e provar, nos termos do artigo 342º nº 1 do Código Civil, factos de onde se possa concluir pela inobservância culposa do gerente, “ de normas legais ou contratuais que visam a protecção dos credores da sociedade”.

-Do artigo 78º nº 1 do C.S.C. resulta que os gerentes não respondem para com os credores sociais quando o património social se torne insuficiente para a satisfação dos respectivos créditos, mas que se esta insuficiência for consequência da inobservância culposa de disposições legais ou contratuais destinadas à protecção dos credores, já respondem.

-A insuficiência patrimonial deve ser o resultado da violação das normas de protecção de credores

III - DECISÃO:

Atento o exposto, julga-se improcedente a apelação, confirmando-se a sentença recorrida.
Custas pela apelante.


Lisboa, 5/11/2015


Ilídio Sacarrão Martins
Teresa Prazeres Pais
Octávia Viegas


[1]Raul Ventura e Brito Correia, “ Responsabilidade Civil dos Administradores de Sociedades Anónimas e dos Gerentes das Sociedades por Quotas”, in BMJ nº 195º, pág. 66.
[2]Separata da Revista de Direito e Economia (1989), pág. 90, “ Nota sobre a Sociedade Anónima”, citado no Acórdão da Relação de Coimbra de 6.1.94, in CJ 1/94, pág. 9.
Decisão Texto Integral: