Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
101/20.9T9SRQ.L1-9
Relator: MARIA JOSÉ CORTES
Descritores: FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO
NULIDADE
CONHECIMENTO OFICIOSO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/23/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I – A fundamentação da sentença consiste na exposição dos motivos de facto (motivação sobre as provas e sobre a decisão em matéria de facto) e de direito (enunciação das normas legais que foram consideradas e aplicadas) que, conjugadamente, determinaram o sentido da decisão (isto é, que a fundamentaram).
II – O tribunal a quo deu como não provados os factos constantes dos pontos A. e B. da factualidade não provada e na motivação não fez verter a mínima fundamentação porque os deu como não provados.
III – Por outro lado, o tribunal a quo não se pronunciou relativamente a todos os factos constantes da acusação particular, designadamente o que consta do seu ponto 8., onde se lê que “o arguido agiu de forma livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei”.
IV – A sentença recorrida, ao nível da fundamentação da decisão fáctica, não deixa transparecer, por forma clara e suficiente, os motivos da decisão que o tribunal de primeira instância tomou relativamente aos factos que julgou não provados e, por conseguinte, a sentença recorrida enferma de nulidade, por insuficiência de fundamentação.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, os Juízes que integram a 9.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:

I – RELATÓRIO
1.1. No Tribunal Judicial da Comarca dos Açores, Juízo de Competência Genérica de S. Roque do Pico, realizada a audiência de julgamento, o tribunal singular, por sentença de 23 de junho de 2022, absolveu o arguido A da prática de um crime de injúria, p. e p. pelo artigo 181.º, n.º 1, do Código Penal, e da prática de um crime de ofensa a pessoa coletiva, p. e p. pelo artigo 187.º, n.º 1, do Código Penal.
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1.2. Inconformado com esta decisão, da mesma interpôs o assistente B o presente recurso, formulando no termo da motivação as seguintes conclusões:
“1. Meritíssimo Juiz do Tribunal “a quo” proferiu Sentença, onde decidiu pela absolvição do arguido da prática daquele crime.
O aqui Recorrente não se conforma com tal decisão,  porquanto, no seu entender, houve uma errada apreciação dos factos praticados pelo arguido, nos termos do artigo 410.º, n.º2, alínea c) do C.P.P.
3.As expressões proferidas pelo arguido, qualquer que seja o conceito de honra e consideração que se perfilhe, têm um significado inequivocamente ofensivo da honra e consideração à luz dos padrões médios de valoração social, situando-se muito para além da mera violação das regras de cortesia e de boa educação e a atingindo já o âmago daquele mínimo de respeito indispensável ao relacionamento em Sociedade.
4.As expressões dirigidas ao Recorrente são suscetíveis de integrar a prática do ilícito típico de injúria, p.  e p. pelo artigo 181.º, n.º1 do C.P., uma vez que não  são entendidas como “terminologia de uso corrente”,  como pretende fazer valer o Tribunal Recorrido, nem  desculpáveis com a ideia de serem apenas grosseiras.
5.O crime de injúria não se pode confundir com  indelicadeza, má educação ou até mesmo com falta de  polidez.
6.No entender do Recorrente, o Tribunal “a quo” deu, erradamente, como não provados os factos A. e B., que  deveriam ter sido dados como provados, por resultar de  prova bastante, nomeadamente do teor do e-mail dirigido  ao Recorrente e das declarações do assistente B.
7.Face ao exposto, deve a Sentença recorrida ser revogada e,  consequentemente, ser substituída por outra que condene o arguido pela prática de um crime de injúria, p. e p. pelo artigo 181.º, n.º1 do C.P., p por assim ser de Direito e Justiça e julgue procedente o Pedido de Indemnização Civil deduzido pelo Recorrente.”
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1.3. Notificados da interposição do recurso, nem o Ministério Público, nem o arguido apresentaram qualquer resposta.
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1.4. Nesta Relação, o Exo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da manutenção da sentença recorrida, subscrevendo a argumentação da Exa. Magistrada do Ministério Público junto da primeira instância, pugnando pela improcedência do recurso.
1.5. Foi cumprido o estabelecido no art.º 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, não tendo sido apresentada resposta pelo recorrente.
1.6. Colhidos os vistos legais e realizada a conferência a que alude o art.º 419.º, do Código de Processo Penal, cumpre apreciar e decidir.
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II – FUNDAMENTAÇÃO
2.1. Âmbito do recurso e questões a decidir
Dispõe o art.º 412.º, n.º 1, do Código de Processo Penal que, a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido.
Conforme entendimento pacífico são as conclusões extraídas pelo recorrente, a partir da respetiva motivação, que operam a fixação e delimitação do objeto do recurso submetido à apreciação do tribunal de recurso, sem prejuízo da tomada de posição sobre todas e quaisquer questões que, face à lei, sejam de conhecimento oficioso e de que seja ainda possível conhecer.
Assim, atentas as conclusões formuladas pelo recorrente, as questões a decidir, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, são:
1.ª Determinar se houve uma errada apreciação dos factos praticados pelo arguido, nos termos do artigo 410.º, n.º 2, alínea c), do Código de Processo Penal;
2.ª Determinar se ocorreu erro de julgamento da matéria de facto por erradamente  o Tribunal a quo ter dado como não provados os factos A. e B., que deveriam ter sido dados como provados, por resultar de prova bastante produzida em audiência de julgamento.
Oficiosamente, apreciar se a sentença do tribunal da primeira instância padece de nulidade por falta de fundamentação – art.ºs 374.º, n.º 2, e 379.º, n.º 1, alínea a), ambos do Código do Processo Penal.
Conheceremos os fundamentos de recurso pela sua ordem lógica e preclusiva.
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2.2. A sentença recorrida
Naquilo em que a mesma releva para o conhecimento do objeto do recurso, foi a seguinte a decisão impugnada:
“(…)
FACTOS PROVADOS
Da prova produzida em audiência de julgamento, resultaram provados os seguintes factos, com pertinência para a boa decisão da causa:
1. A Assistente «C» dedica-se à atividade de construção civil e obras públicas;
2. O Assistente B é sócio-gerente da referida sociedade;
3. O Arguido contratou com a Assistente sociedade a construção de uma habitação;
4. No dia 12 de novembro de 2019, B enviou ao Arguido uma mensagem de correio eletrónico solicitado o pagamento de faturas, vencidas e não pagas, referentes a trabalhos de construção civil executados a favor do Arguido;
5. Em mensagem de resposta ao referido email, o Arguido escreveu:
«O senhor é louco! Sim tenho extras para lhe pagar!
A diferença do vidro! Foi o único extra que lhe pedi! Pago as minhas dívidas, não as dos outros!
E como sempre vou cumprir a minha palavra, assim que a colocação das caixilharias tenha terminado, faço a transferência. Esses extras deve ser para pagar a máquina que o senhor contratou. Pois já passou 1 ano e o senhor ainda lhes deve o dinheiro. Não sou como o senhor! Se tivesse pago todo o dinheiro que já me pediu, já tinha pago a casa 2 vezes! O pessoal está a sair por falta de pagamento, isso só mostra o gatuno que o senhor é!
Falta—me pagar 1 prestação e veia o que lhe falta construir! Uma coisa que está esquecido também E que tem da piscina paga. Tudo isso sem possibilidades! Não tenho mais resposta nenhuma para si! Vou usar uma expressão sua: "O SENHOR METE-ME NOJO!»
Mais se provou que:
6. O Arguido e o Assistente B trocaram sequencialmente mensagens de correio eletrónico, pelo menos, desde 7 de agosto de 2019, a respeito da execução da empreitada e respetivos pagamentos;
7. Nos referidos emails, o Assistente B apelidou ou caracterizou o Arguido, entre outros, de: arrogante; materialista; doente; rei dos arrogantes; gatuno; avarento; provocador; mal-educado; ditador; assobarcado; mesquinha aparvalhado; anedota; hipócrita; inútil;
8. O Arguido é mestre em veterinária, exercendo essas funções na associação de agricultores da ilha do Pico;
9. Aufere uma média de € 1.600,00 mensais;
10. Tem uma exploração agrícola, da qual obtém um rendimento de cerca de € 8.000,00 por ano;
 11. É casado e tem dois filhos, de 10 meses e 4 anos;
12. O agregado familiar habita em casa do sogro enquanto espera pela finalização da construção da casa;
13. Suporta uma médica de € 350,00 de despesas mensais;
14. Não se encontra averbada qualquer condenação no certificado de registo criminal do Arguido;
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FACTOS NÃO PROVADOS
A. Em face das expressões enunciadas na mensagem de resposta enviada pelo Arguido, os Assistentes sentiram-se e sentem-se envergonhados, vexados, humilhados, ofendidos no seu bom nome, honra, consideração, dignidade, credibilidade, prestígio e confiança;
B. Ao escrever o referido texto o Arguido fê-lo com o propósito de atingir o bom nome, reputação, consideração, dignidade, credibilidade, prestígio e confiança dos Assistentes, bem como prejudicar a sua imagem pessoal e profissional;
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 MOTIVAÇÃO DA DECISÃO QUANTO À MATÉRIA DE FACTO
A convicção do tribunal ao dar as respostas que antecedem, enquanto resultado de um procedimento complexo de análise, apreciação e valoração do acervo probatório constante dos autos, fundou-se na análise crítica e conjugada das declarações do Arguido, articuladas com os documentos juntos aos autos, bem como das declarações do Assistente quanto ao pedido de indemnização civil, análise essa feita à luz das regras da experiência comum e norteada pelo princípio da livre apreciação da prova.
 Desde logo, importa referir que a essencialidade do juízo probatório se encontra alicerçado na confissão integral e sem reservas do Arguido em sede de audiência de julgamento, o qual, livre de qualquer reserva e coação, reconheceu a prática dos factos que ora se lhe imputam, nas circunstâncias de tempo, modo e lugar descritas na Acusação Particular.
Com efeito, apresentou-se de forma particularmente contrita, evidenciando até algum nervosismo que o Tribunal identificou como resultante de um confronto raro e inesperado com o sistema de justiça, tendo prestado todos os esclarecimentos solicitados e descrito os factos em causa de forma absolutamente espontânea.
Assim, revelou-se envergonhado com o que – assumidamente – escreveu no email, afirmando que não é seu timbre exprimir-se naqueles termos, menos ainda perante alguém que tem idade para ser seu avô.
No entanto, a obra que havia encomendado à sociedade, na pessoa do Assistente B arrastou-se de tal forma que o perturbou a esse ponto.
Reitera que a sua relação com os funcionários é ótima e nada tem contra a empresa, a quem nunca sequer se pretendeu dirigir, apenas se dando mal com B, explicando que houve uma altura em que este enviou outra pessoa para o representar, apenas indo à obra quando o Arguido lá não estava, a fim de evitar a interação.
No entanto, o Arguido escondeu-se e confrontou-o, tendo-o o Assistente apelidado de ganancioso, acusando-o de querer ter uma casa acima das possibilidades e que o pai e sogro eram iguais, dizendo-lhe que lhe metia nojo.
Nessa sequência, deixou de haver relação pessoal entre ambos e passaram a ser trocados emails desde agosto de 2019.
Viria a concretizar vários exemplos daquilo que considera ser uma total falta de profissionalismo dos Assistentes (enunciando questões relacionadas com a piscina, caixilharias, a garagem, etc.), estando mesmo a respetiva ação cível a correr termos atualmente. Explica mesmo que nem sequer foram os Assistentes a terminar a obra.
Com relevância, juntou ainda um conjunto de mensagens de correio eletrónico trocadas entre si e B, com vista a demonstrar o contexto de manifesta animosidade no qual foram proferidas expressões acintosas, destacando o Arguido, em sua defesa todas as expressões que tem por manifestamente injuriosas que lhe foram dirigidas.
Em face da confissão do Arguido, foram apenas tomadas declarações ao Assistente/Demandante no segmento respeitante ao pedido de indemnização civil.
Neste conspecto, as suas declarações assumem natureza totalmente conclusiva, sem conteúdo fático relevante, somando-se ainda a forma que o Tribunal percecionou como manifestamente tendenciosa como as mesmas foram prestadas.
Assim, refere que se sentiu bastante ofendido e que estava uma empresa em questão, sendo que atitude do Arguido «prejudicou bastante a empresa»; quando aquilo é feito «tem efeitos na empresa, e de que maneira» e que as consequências (para a empresa) «estão à vista» (empresa): são meios pequenos e reflete-se na opinião pública.
Imediatamente confrontado com o facto do email ter sido enviado apenas com o seu conhecimento responde que «essas coisas sabem-se», tendo mesmo vindo a confessar que foi ele próprio a mostrar o seu conteúdo aos trabalhadores.
Em síntese, não existe um único facto, ainda que indiciariamente, enunciado que permita perceber qualquer dano, incómodo ou consequência relevante, a qualquer título negativa, que haja afetado qualquer um dos demandantes.
As condições pessoais e socioeconómicas do Arguido decorrem também das suas próprias declarações, tidas por credíveis e, nessa medida, igualmente valoradas.
A constatação da inexistência de antecedentes criminais decorre da análise do respetivo certificado de registo criminal junto aos autos.
(…)”.
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2.3. Apreciação do recurso
1.ª Questão
Apreciar se a sentença do tribunal da primeira instância padece de nulidade por falta de fundamentação – art.ºs 374.º, n.º 2, e 379.º, n.º 1, alínea a), ambos do Código do Processo Penal
Dispõe o art.º 374.º, n.º 2, do Código do Processo Penal, sobre os “requisitos da sentença”:
Ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal”.
A fundamentação da sentença consiste na exposição dos motivos de facto (motivação sobre as provas e sobre a decisão em matéria de facto) e de direito (enunciação das normas legais que foram consideradas e aplicadas) que, conjugadamente, determinaram o sentido da decisão (isto é, que a “fundamentaram”).
A fundamentação adequada e suficiente da decisão constitui uma exigência do moderno processo penal e realiza uma dupla finalidade: em projeção exterior (extraprocessual), como condição de legitimação externa da decisão, pela possibilidade que permite de verificação dos pressupostos, critérios, juízos de racionalidade e de valor, e motivos que determinaram a decisão; em outra perspetiva (intraprocessual), a exigência de fundamentação está ordenada à realização da finalidade de reapreciação das decisões dentro do sistema de recursos - para reapreciar uma decisão, o tribunal superior tem de conhecer o modo e o processo de formulação do juízo lógico nela contido e que determinou o sentido da decisão (os fundamentos) para, sobre tais fundamentos, formular o seu próprio juízo -.
Por sua vez, o “exame crítico” das provas consiste na enunciação das razões de ciência reveladas ou extraídas das provas produzidas, a razão de determinada opção relevante por um ou outro dos meios de prova, os motivos da credibilidade dos depoimentos, o valor de documentos e exames, que o tribunal privilegiou na formação da convicção, em ordem a que os destinatários (e um homem médio suposto pelo ordem jurídica, exterior ao processo, com a experiência razoável da vida e das coisas) fiquem cientes da lógica do raciocínio seguido pelo tribunal e das razões da sua convicção.
O rigor e a suficiência do exame crítico têm de ser aferidos por critérios de razoabilidade, sendo fundamental que, em tal exame crítico, estejam exteriorizadas as razões da decisão e o processo lógico, racional e intelectual que lhe serviu de suporte.
O que não se exige, na fundamentação da decisão fáctica (quer na enunciação das provas produzidas, quer no exame crítico das mesmas), é uma qualquer operação épica, em que o juiz tenha de expor, um a um, passo por passo, com inteiro detalhe, todo o seu percurso lógico dedutivo.
Não se exige, pois, que o juiz explane todas as possibilidades teóricas de conceptualizar a forma como se desenvolveu a dinâmica dos factos em determinada situação, e, muito menos, que o juiz equacione todas as possibilidades (muitas delas até desrazoáveis, e, mesmo, absurdas) suscitadas, ao sabor das suas conveniências, pelos diferentes sujeitos processuais.
Também não se exige ao juiz que, de forma exaustiva e meramente descritiva, referencie e analise todas as declarações e todos os depoimentos, e, depois disso, vá ainda, facto a facto, pormenor a pormenor, circunstância a circunstância, explicar onde foi retirar a prova de cada um deles.
Exige-se, isso sim (mas é coisa diferente), a enunciação, especificada, dos meios de prova que serviram para formar a convicção do tribunal, a referência à credibilidade que os mesmos mereceram ao tribunal, e o exame do seu valor e relevância probatórios, permitindo-se, assim, no contexto ambiental, de espaço e de tempo dos factos delitivos em apreço, compreender os motivos e a construção do percurso lógico da decisão segundo as aproximações permitidas razoavelmente pelas regras da experiência comum.
Ora, e retomando o caso concreto posto nestes autos, não foi isto que aconteceu na fundamentação da decisão fáctica constante da sentença revidenda, posto que o tribunal a quo deu como não provados os factos constantes dos pontos A. e B. e na motivação não fez verter a mínima fundamentação porque os deu como não provados.
Veja-se que o senhor Juiz a quo escreve na motivação que o arguido confessa integralmente e sem reservas os factos que constam da acusação particular, desta forma:
Desde logo, importa referir que a essencialidade do juízo probatório se encontra alicerçado na confissão integral e sem reservas do Arguido em sede de audiência de julgamento, o qual, livre de qualquer reserva e coação, reconheceu a prática dos factos que ora se lhe imputam, nas circunstâncias de tempo, modo e lugar descritas na Acusação Particular.
Mas esta afirmação é contraditória com o elenco dos factos provados e não provados.
Por outro lado, o tribunal a quo não se pronunciou relativamente a todos os factos constantes da acusação particular, designadamente o que consta do seu ponto 8., onde se lê que “o arguido agiu de forma livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei”.
Nesta ordem de ideias, e à luz dos anteriores considerandos, não está fundamentada, na sentença em análise, a matéria de facto constante dos pontos A. e B., da factualidade não provada.
O tribunal recorrido não explicitou porque deu como não provado que em face das expressões enunciadas na mensagem de resposta enviada pelo arguido (e constante do ponto 5. dos factos provados), os assistentes sentiram-se e sentem-se envergonhados, vexados, humilhados, ofendidos no seu bom nome, honra, consideração, dignidade, credibilidade, prestígio e confiança, e que ao escrever o referido texto o arguido fê-lo com o propósito de atingir o bom nome, reputação, consideração, dignidade, credibilidade, prestígio e confiança dos assistentes, bem como prejudicar a sua imagem pessoal e profissional, contraditoriamente, como se disse acima, com o que fez verter na motivação, que a sua convicção se fundou na confissão integral e sem reservas do arguido.
Em conclusão: a sentença recorrida, ao nível da fundamentação da decisão fáctica, não deixa transparecer, por forma clara e suficiente, os motivos da decisão que o tribunal de primeira instância tomou relativamente aos factos que julgou não provados.
Por conseguinte, a sentença recorrida enferma de nulidade, por insuficiência de fundamentação.
Conquanto o recorrente não tenha invocado tal nulidade, de acordo com a jurisprudência largamente maioritária, que seguimos, as nulidades da sentença previstas no art.º 379.º, n.º 1, são de conhecimento oficioso.
Com efeito, com a alteração do Código de Processo Penal operada em 1998, esse artigo foi reformulado, aditando-se a al. c) do n.º 1, bem como o n.º 2, com o seguinte teor: «As nulidades da sentença devem ser arguidas ou conhecidas em recurso, devendo o tribunal supri-las, aplicando-se, com as necessárias adaptações, o disposto no n.º 4 do artigo 414º».
A expressão inovadora “ou conhecidas em recurso” deve ser entendida no sentido do conhecimento oficioso dessas nulidades, justificando-se o afastamento do regime do processo civil que, diversamente do penal, é enformado pelo princípio da livre disponibilidade das partes.
Esse n.º 2, do art.º 379.º, veio consagrar para as nulidades da sentença um regime específico, sem necessidade de reporte ao art.º 119.º, que estabelece o elenco das nulidades insanáveis, que devem ser oficiosamente declaradas em qualquer fase do procedimento.
Prescrevendo a lei em relação a alguns desses atos processuais o regime das nulidades insanáveis, mal se compreenderia que, em caso de incumprimento do estabelecido para o ato decisório por excelência, que é a sentença, o conhecimento da respetiva nulidade não fosse oficioso.
O conhecimento das restantes questões supra enunciadas fica prejudicado com a verificação e declaração da nulidade da sentença recorrida.
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III – DECISÃO
Nestes termos, acordam, em conferência, os Juízes que integram a 9.ª Secção Criminal desta Relação, em:
a) Revogar a sentença proferida em 23 de junho de 2022, a qual deve ser pelo mesmo tribunal substituída por outra que supra o apontado vício de falta de fundamentação nos termos sobreditos;
b) Não conhecer das demais questões suscitadas, por se mostrarem prejudicadas.
Sem custas por não serem devidas (art.º 513.º, n.º 1, do Código de Processo Penal).
Notifique.
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Lisboa, 23 de fevereiro de 2023
Maria José Sebastião Cortes
Paula de Sousa Novais Penha
Carlos da Cunha Coutinho