Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
5796/20.0T8LRS.L1-7
Relator: MICAELA SOUSA
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
DIREITO DE REGRESSO DA SEGURADORA
ACIDENTE DOLOSAMENTE PROVOCADO
LISTISCONSÓRCIO NECESSÁRIO ACTIVO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/05/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: 1–A excepção dilatória da ilegitimidade por preterição do litisconsórcio necessário, porque de conhecimento oficioso pode ser invocada depois da contestação e já em sede de recurso, podendo ser conhecida pela Relação, desde que o juiz, no despacho saneador, não a tenha apreciado, limitando-se a afirmar, de forma tabelar, que as partes eram legítimas.


2–A seguradora que reconheceu perante o lesado a responsabilidade do seu segurado, enquanto causador do acidente provocado dolosamente e que ressarciu os danos dele decorrentes, tem legitimidade activa para, desacompanhada do primeiro, demandar o segundo com vista a exercer o seu direito de regresso.

3–Os acidentes dolosamente provocados pelo causador do acidente a que alude a alínea a) do n.º 1 do artigo 27º do Regime do Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel são aqueles cujo resultado o segurado quis ou previu, sendo que a previsão da norma que estipula o direito de regresso abrange os acidentes de viação dolosos, cometidos com dolo directo ou eventual.


Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam as Juízas na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa


I–RELATÓRIO


A, sociedade comercial com sede na Avª. ....., n.º ....., .....-... - L_____ intentou contra B, contribuinte fiscal n.º 1........, residente na Rua ..... ....., n.º ....., 3º ....., .....-... - O_____ a presente acção declarativa de condenação, com processo comum formulando o seguinte pedido:
a)A condenação do réu no pagamento à autora da quantia de 6 201,20 € (seis mil duzentos e um euros e vinte cêntimos), acrescida dos juros de mora vencidos, calculados à taxa de juro legal em vigor, desde a data da primeira interpelação (22-05-2018) até à presente data, no valor de 537,55 € (quinhentos e trinta e sete euros e cinquenta e cinco cêntimos), e vincendos até integral e efectivo pagamento do devido.

Alega, para tanto, muito em síntese, o seguinte:
No exercício da actividade de seguradora, a autora celebrou com o réu um contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel, titulado pela apólice n.º 4026568, garantindo a responsabilidade civil emergente da circulação do veículo da marca Renault, modelo Clio, com a matrícula ##-##-XH;
No dia 27-08-2017, pelas 20 horas, ocorreu um sinistro na Rua ....., em O..... B....., que envolveu o veículo segurado pela autora, conduzido pelo réu e o motociclo Yamaha XJ6, com a matrícula ##-HZ-##, conduzido por Jorge ....., tendo o primeiro, que seguia no sentido Norte-Sul, na faixa da direita, decidido mudar de faixa, o que assinalou apenas após ter iniciado a manobra, quase colidindo com o motociclo ##-HZ-##, que circulava na faixa da esquerda, vindo a imobilizar a viatura, mais à frente, no semáforo, que se encontrava vermelho; o motociclo posicionou-se à sua esquerda e o condutor alertou o condutor do ##-##-XH para a manobra perigosa que acabara de fazer;
Quando o sinal luminoso passou a verde e ambos os condutores retomaram a marcha, o réu começou a aproximar-se do eixo da faixa de rodagem e guinou o seu veículo para a esquerda, abalroando o motociclo ##-HZ-##, provocando a sua queda, que se imobilizou 5 metros mais à frente, na faixa de rodagem de sentido contrário;
Com a sua conduta, sabia o réu que estava a violar a lei e a integridade física do condutor do motociclo ##-HZ-##, provocando-lhe lesões físicas e nos seus bens, prevendo esse possível resultado e conformando-se com ele;
A autora assumiu a responsabilidade pelo sinistro perante o lesado, ao abrigo do contrato de seguro celebrado, e em 17-01-2018 ressarciu-o pelos danos verificados.

Citado, o réu deduziu contestação aceitando o vertido nos artigos 1º a 6º, 9º, 10º, 12º e 13º da petição inicial e alegando, muito em síntese, o seguinte (cf. Ref. Elect. 10069846):
A autora assumiu a responsabilidade pelo sinistro contra as indicações do segurado e a sua descrição dos factos;
O réu mudou de faixa com o cuidado devido mas o condutor do motociclo não gostou da manobra, de tal modo que, quando o réu parou no semáforo, foi colocar-se à sua esquerda, e dirigiu-lhe expressões de censura;
Ambos arrancaram ao sinal verde, e uns metros antes do embate que veio a ocorrer, o condutor do motociclo, com luvas, deu um soco no espelho retrovisor do veículo do réu, partindo-o, o que o levou a, sentindo-se agredido nos seus bens, reagir de modo instintivo, e defensivo e em reacção deu uma pequena guinada para o lado esquerdo, para dar um sinal que se afastasse, mas o motociclo ia mais junto do seu carro do que supôs;
Nunca teve intenção de provocar qualquer dano ao condutor, nem previu que essa pequena guinada no volante pudesse levar ao embate que ocorreu;
Os vidros do espelho partido estavam à frente do automóvel porque o condutor do motociclo, após o embate e se levantar, e de lhe dar um muro, o impediu de sair do automóvel, ameaçando-o para não sair do veículo, mas o condutor do motociclo estava fora e com certeza com o pé arrastou o espelho para a frente;
Ainda que tivesse agido com dolo eventual, o réu sempre teria actuado em legítima defesa, nos termos do art.º 337.º, n.º 1 do Código Civil;
Impugna também os valores ressarcitórios reclamados pela autora e os danos alegados, que entende não lhe poderem ser assacados.

Pugna, assim, pela improcedência da acção e pela sua absolvição do pedido.

O réu deduziu ainda reconvenção pedindo a condenação da seguradora no pagamento da quantia de 1 200,00 €, acrescida de juros de mora a título de indemnização pelos danos que suportou na sua própria viatura e que estavam abrangidos pelo contrato de seguro.

Em 6 de Novembro de 2020, a autora deduziu réplica alegando que, de facto, embora o contrato de seguro incluísse a cobertura de danos próprios, até ao montante de 7 500,00 €, estava prevista uma franquia de 20%, nunca tendo sido reclamados quaisquer danos à autora em momento anterior ao da apresentação da contestação, que, por terem sido causados dolosamente pelo réu, não estão cobertos pela apólice, para além de os desconhecer, pelo que a reconvenção deverá ser julgada improcedente (cf. Ref. Elect. 10226667).

Em 3 de Dezembro de 2020 teve lugar a audiência prévia no âmbito da qual foi liminarmente admitida a reconvenção, tendo o réu/reconvinte, logo depois, desistido do pedido reconvencional, desistência judicialmente homologada (cf. Ref. Elect. 146687221).

Nessa mesma audiência foi o réu convidado a concretizar os factos por si alegados no que diz respeito à verificação de actuação em legítima defesa, o que este fez, alegando que que momentos antes de virar o volante, o condutor do motociclo deu-lhe um murro no espelho retrovisor, e o partiu, e em ato contínuo, para defesa do património, o Réu virou o volante para o avisar que se devia afastar mais”,tendo sido concedida oportunidade à seguradora para exercer o contraditório.

Foi proferido despacho saneador tabelar e foi fixado o objecto do litígio e enunciados os temas da prova, sem reclamação.

Realizada a audiência final, em 23 de Junho de 2021 foi proferida sentença que julgou a acção procedente, com o seguinte dispositivo (cf. Ref. Elect. 148580689):
1.–Condeno o Réu B no pagamento à autora da quantia total de € 6.201,20 (seis mil duzentos e um euros e vinte cêntimos), acrescida dos juros de mora calculados à taxa legal sucessivamente em vigor, contados desde o dia 22.05.2018 até integral pagamento;
2.– Condeno o réu no pagamento das custas do processo – cfr. artigo 527.º n.º 1 do CPC.”

Inconformado com esta sentença, dela vem o réu interpor o presente recurso concluindo a respectiva motivação nos seguintes termos (cf. Ref. Elect. 11331404):
I–Proferida a douta Sentença pelo Tribunal a quo, que julgou procedente a acção instaurada pela A. e ora Recorrida Companhia Seguradora Victoria S.A., contra o R. ora Recorrente em pedido de direito de regresso no montante de € 6. 201,20, e juros de mora, não se conformando atento a recorribilidade pelo montante total em que ficou vencido, vem apelar nos termos seguintes.
II–O âmbito do Recurso é toda a matéria de facto e de direito.
III–A A. instaurou a acção, para efectivar direito de regresso, contra o seu segurado R., ora Recorrente, em virtude do contrato de seguro entre ambos.
IV–A presente acção reporta-se a um sinistro, acidente rodoviário, ocorrido a 27/08/2017, em que foram intervenientes o automóvel do ora Recorrente, com a matrícula ##-##-XH, com seguro na ora Recorrida, e um motociclo com a matrícula ##-HZ-##, o qual aliás se encontrava segurado noutra Companhia seguradora, alheia a estes autos.
V–Conforme supra alegado, o Recorrente sempre manteve perante a ora Recorrida, nas suas comunicações e informações após o sinistro, que este acidente, e respectiva responsabilidade, ocorreu por causa imputável unicamente ao condutor do motociclo.
VI–Não obstante esta postura e informação do Recorrente, conforme a Recorrida alega no seu art.º 40.º da p. i., a mesma decidiu assumir a responsabilidade perante o terceiro, ou seja perante o motociclo.
VII–Na sequência da assunção dessa responsabilidade, a A., ora Recorrida, pagou ao condutor do motociclo, os danos invocados pelo mesmo.
VIIIE vem pela presente Acção invocar o direito a ser reembolsada pelo ora Recorrente, desse valor pago ao condutor do motociclo.
IX–Para tanto, invoca a responsabilidade do R., ora Recorrente, imputando-lhe a causa do acidente, e rejeitando a versão dos factos relatados pelo mesmo, nomeadamente que tenha agido em legítima defesa, perante agressão ao seu automóvel pelo condutor do motociclo.
X–Para fundamento do direito de regresso, invoca dolo eventual por parte do R. ora Recorrente, na produção do acidente.
XI–A douta Sentença pronunciou-se sobre a responsabilidade, a causalidade do acidente, e imputação subjectiva do mesmo, e verificação dos pressupostos de direito de regresso, tendo decidido com provimento do alegado e peticionado pela A. contra o ora Recorrente.
XII–Todavia, verifica-se, na matéria e fundamentos seguintes, no entender do Recorrente, incorrecta decisão por parte do Tribunal a quo,.

Ilegitimidade activa

XIII–Assim, no entender do Recorrente, verifica-se a excepção dilatória de ilegitimidade da A. que deveria levar à consequente absolvição da instância.
XIVEfectivamente, a A. não vem exclusivamente requerer o reconhecimento e efectivação do direito de regresso, vem submeter ao Tribunal a quo toda a questão do acidente, a imputação da causa e grau de responsabilidade e culpa de cada um dos intervenientes.
XV–Ora, a A. não é interveniente, é alheia àquela situação factual e jurídica que foi o sinistro ocorrido naquele determinado tempo e local, e também não está nos autos em representação de algum segurado lesado que para a mesma tenha transferido a responsabilidade de ressarcimento de danos.
XVIA A. é a seguradora, e o R., o segurado, limitando-se as suas relações ao contrato de seguro entre ambos.
XVII–A apreciação da causalidade ou grau de culpa de um dos veículos ou condutores intervenientes no sinistro em causa, implica simultaneamente a averiguação da culpa do outro.
XVIII–Assim, para apreciação da responsabilidade na produção do acidente, a A. carece de legitimidade.
XIX–De facto, o Réu ora Recorrente contestou essa imputação de responsabilidade, e nos termos da Sentença essa responsabilidade na produção do acidente foi efectivamente apreciada e julgada.
XX–A legitimidade processual será nesta questão, do condutor e proprietário do automóvel, o ora Recorrente, e, na qualidade de contraparte, do condutor e proprietário do motociclo.
XXI–São as partes legítimas originárias, interessadas, e sem qualquer delas, não poderá ser discutida e apreciada a questão da responsabilidade, até para efectivação do contraditório.
XXII–Assim, para esta questão a A. por si, não tinha legitimidade, e essa questão carece de ser julgada nos termos da causa de pedir da acção, e sempre careceria ainda que não invocada, como condição para eventual procedência do pedido de direito de regresso formulado pela A..
XXIII–Para “discussão” desta questão da determinação da responsabilidade e imputação do acidente, o condutor e proprietário do motociclo tinha de ser parte nos autos.
XXIVAssim, verifica-se ilegitimidade por preterição de litisconsórcio necessário activo.
XXVIlegitimidade, pela natureza da situação jurídica, nos termos do art.º 33.º n.º 1 e 2 do CPC.
XXVI–A qual não foi sanada até à prolação da Sentença, pela intervenção provocada prevista no art.º 316.º n.º 1 do CPC.
XXVII–Pelo que em consequência deveria a mesma ter absolvido o R. da instância, por verificação de excepção dilatória de ilegitimidade activa.
XXVIII–Salvo se aplicável, por o mérito da causa se mostrar integralmente favorável ao R., com o mias determinado neste normativo, o art.º 278.º n.º 3, 2.ª parte do CPC.

Questão Prejudicial

XXIX–Ainda que assim não se entendesse, sem conceder, a questão do conhecimento da responsabilidade na produção do acidente, sempre seria uma questão prévia, prejudicial, para apreciação do restante mérito da acção, ou seja do direito ao reembolso que a A. pretende no pedido, e só para este restante a A. era parte legítima, pelo que deveria a Sentença determinar a suspensão da instância, até ser resolvida, eventualmente em acção judicial, a questão controversa da responsabilidade na produção do acidente.
XXXTodavia apreciando-se o mérito da causa, sempre a acção deveria ser julgada improcedente, nomeadamente pelas razões a seguir elencadas. Valoração do depoimento da testemunha, condutor.
XXXI–No entender do R., é incorrecto o julgamento da matéria de facto, que qualifica o depoimento da testemunha: Jorge ....., como credível para descoberta e determinação da verdade material dos factos relevantes, essencialmente dos factos que a douta Fundamentação considerou não provados, nomeadamente os factos não provados 1 e 2, com o seguinte teor: « 1.- Na ocasião descrita no ponto 8 “supra”, o condutor do motociclo deu um murro no espelho retrovisor do veículo ##-##-XH e partiu-o. 2.- Só após esse murro no espelho é que o réu efectuou a manobra descrita no ponto 9 “supra”».
XXXII–Pois os factos 1 e 2, só esta testemunha, Jorge ....., os negou, sendo também a única testemunha que sobre os mesmos se pronunciou.
XXXIII–Além desta testemunha, só o ora Recorrente se pronunciou sobre essa factualidade, em declarações, e também assim resulta da motivação da Sentença, como os únicos a pronunciarem-se sobre essa factualidade.
XXXIV–A douta Sentença valoriza o depoimento desta testemunha, Jorge ....., nomeadamente classificando-o de espontâneo e descomprometido (in pág. 7).
XXXV– Não tendo valorizado, no entender do Recorrente, o facto de o mesmo ser o condutor do motociclo, interveniente no acidente, com interesse directo na causa e no seu desenlace, portanto com razões para contradizer a versão do R. da forma mais eficaz.
XXXVI–O seu depoimento, sobre os factos não provados, não se encontra reforçado ou confirmado por outro meio de prova.
XXXVII–Acresce a relação de animosidade com o ora Recorrente desde a data do sinistro em causa.
XXXVIII–Assim, sempre por natureza necessariamente depoimento presumido não credível.
XXXIX–A douta Sentença, nenhum desses aspectos negativos para este depoimento refere como tal, não indicando assim também quaisquer razões que, não obstante, justificassem que venha valorizado nos termos que da mesma constam.
XL–O seu depoimento foi determinante para a consequente procedência da acção, como resulta da geral motivação dessa procedência, nomeadamente do julgamento dos factos considerados não provados.
XLIAssim, nos termos referidos, considerando ainda a indiciação documental, referida nas supra alegações, não deveria o seu depoimento ser considerado credível pela Mmª Juiz a quo, nomeadamente no que tange à matéria dos factos julgados não provados.
XLII–Não tendo sido, assim, efectuada uma correcta valoração do depoimento, e apreciação dos factos, mormente julgados não provados, nomeadamente com uma «prudente convicção» como determina o art.º 607.º n.º 5 CPC e, nos termos da qual os mesmos deveriam ser considerados provados, com consequente improcedência da acção.

Do dolo

XLIII–A A. vem invocar o direito de regresso, fundando-se e invocando dolo por parte do Réu.
XLIV–Efectivamente a A. na p. i., (art. 11), invoca os pressupostos do dolo na modalidade de dolo eventual.
XLVE é nessa modalidade que a douta Sentença julga procedente o invocado dolo.
XLVI–Porém, não resulta da prova produzida, nomeadamente do julgamento da matéria de facto, factos que indiciem dolo por parte do R..
XLVII–Tanto que, quer a A. na instauração da acção, quer ora a motivação da Sentença admitem não ter havido intencionalidade na produção do acidente, nomeadamente nas passagens transcritas nas supra alegações, que referem a conduta do R., de movimento do volante para a esquerda, como «atitude intimidatória».
XLVIII–Ou seja, a guinada do R. no volante, não foi intencional no sentido de vir a provocar o embate, com o consequente derrube da mota e do condutor.
XLIX–Restaria assim o dolo eventual, o qual no entender do Recorrente, não poderia ser considerado, pois nenhuma prova há nesse sentido, baseando-se a decisão numa análise genérica de casos, em que porventura haveria dolo eventual, mas que no caso concreto no entender do Recorrente não vem indiciado.
L–Assim, não poderia a douta Sentença em consequência considerar como verificado o dolo, devendo em consequência ter julgado improcedente o pedido de regresso da A.

Da legítima defesa.

LI–Tendo-se concluído pela verificação de dolo eventual, então verificar-se-iam os pressupostos de actuação em legítima defesa por parte do R., conforme o mesmo invocou.
LII–Para tanto era mister considerar provada a descrição dos factos tal como o A., desde o início manteve, ou seja que o condutor do motociclo, momentos imediatamente antes do embate das viaturas, ou seja da guinada do R. para a esquerda, lhe partiu com um soco o espelho retrovisor esquerdo do automóvel, tendo essa guinada sido a reacção instintiva do R. a essa agressão ao automóvel.
LIII–E de facto a douta Sentença deveria ter julgado provada essa agressão, como supra referido, também porque só a mesma, verificando-se porventura esse dolo eventual, permite compreender os actos subsequentes, nomeadamente o movimento do volante para o lado em que circulava o motociclo.
LIV–É de salientar também, a forma como o motociclo, desde que ambos estiveram parados no semáforo, um ao lado do outro, e até aí as versões são no essencial coincidentes, ao arrancarem, manteve-se “colado”, “não largou”, “não descolou” do andamento do automóvel, sendo que a sua cilindrada em relação a este automóvel lhe permitia, logo ao arrancar do semáforo pôr-se em dois segundos em considerável avanço relativamente ao mesmo, e o embate veio a ocorrer cerca de trinta metros, ou mais, após o semáforo.
LVO facto de os vidros de espelho retrovisor, virem a ser detectados 2 ou 3 metros após o local em que parou a viatura do ora Recorrente após o embate, não é incompatível com a descrição dos factos pelo mesmo, permitindo apenas concluir que estaria, porventura, em erro ao julgar que os vidros teriam caído no local do “soco” invocado.
LVI– Assim, supletivamente, ou seja admitindo-se como verificado dolo eventual, ou seja não intenção, não pretensão, mas previsão hipotética dessa possibilidade de choque, e conformação com ela, então, só se compreenderia a conduta do R. ora Recorrente, como reacção a algo relevante, ou seja, teria de admitir-se também, como já referido a outros títulos, a ocorrência tal como o R. mantém e sustenta, ou seja, que imediatamente antes o condutor do motociclo lhe partiu o espelho retrovisor do automóvel com um soco.
LVII–Esse soco, partindo o espelho é uma agressão ao património, inadmissível, e que o visado, estando presente não seria obrigado a tolerar, permitindo-lhe a Lei e nomeadamente a Constituição o direito a reagir em legítima defesa, para afastar essa agressão, como decorre do art.º 21.º da CRP, e art.º 337º n.º 1 e 2 do C.C.
LVIII–Ou seja deveria ter concluído por verificada a legítima defesa, nos termos invocados, considerando verificarem-se os respectivos pressupostos, atento a agressão emitente, e acabada de concretizar ao seu património, usando os meios ao seu alcance e imediatamente disponíveis para afastar essa agressão.
LIX–Nesses termos, não tendo agido com dolo, ainda que eventual, mas no uso e exercício de um direito legal e constitucional, devendo, nos mesmos termos, em consequência, ter sido julgada a acção improcedente, e o R. absolvido do pedido.

Erro nos pressupostos.

LX– Determina a douta Sentença, na sequência de apreciação da supletivamente invocada legítima defesa, não apreciar a questão de eventual erro quanto à verificação dos seus pressupostos, justificando que esse erro não foi invocado pelo R. ora Recorrente (in pág. 12).
LXI–Parece assim concluir a douta Sentença que se teria indiciado erro, porventura pela prova produzida em audiência, quanto aos pressupostos da legítima defesa.
LXII–No entender do Recorrente, caberia unicamente, por excepção, ao R. invocar a legítima defesa. Porém, qualquer objecção à mesma, caberia à parte contrária ao impugnar essa excepção.
LXIII–Assim, o Tribunal a quo, ao aludir à eventual verificação de erro, deveria pronunciar-se acerca da verificação ou não de mesmo.
LXIV–Por outro lado, a legítima defesa, na factualidade dos autos, não poderia ter sido considerada desproporcional e excessiva, mas adequada à agressão no momento concretizada, entre desconhecidos, tanto mais que o ora Recorrente, não previra nem pretendia o embate entre as viaturas, ou seja o resultado tal como veio a ocorrer.

in dubio pro reo.

LXV–Considerando que, relativamente à ocorrência da agressão ao espelho pelo condutor o motociclo e relativamente à verificação de dolo, e essencialmente neste aspecto da verificação do dolo, do conjunto da fundamentação e motivação, decorre ter havido por parte do Tribunal a quo, dúvida relevante e insanável, a mesma justificava como adequada Decisão aplicação do princípio in dubio pro reo.
LXVIDe facto, verifica-se não intencionalidade na produção do acidente.
LXVII–O dolo eventual, mais do que qualquer outro tipo de dolo, é de âmbito subjectivo do agente, não podendo concluir-se unicamente pelo resultado.
LXVIII–A fundamentação ou motivação, no entender do Recorrente, não indica o fundamento dessa conclusão, nomeadamente relativo à personalidade do R. e conduta social do mesmo.
LXIX–Não se encontrando suficientemente justificada essa imputação de previsão por um lado, e de conformação, por outro, com o resultado.
LXX–Factores, entre outros nomeadamente supra alegados, que permitem concluir que o Tribunal a quo não poderia ter deixado de chegar à dúvida entre dolo eventual e negligência consciente, ou simples negligência, e relevante, e insanável, atento os factos dados como provados, e a não intencionalidade imputada ao mesmo, como referido, devendo, assim, ter decidido aplicando o princípio in dubio pro reo.
LXXI– E, em consequência julgar improcedente a acção.
Incorrecta interpretação da norma aplicada.
LXXIINo entender do R., verifica-se incorrecta interpretação do art.º 27.º n.º 1 al. a) do Decreto-Lei n.º 291/2007 de 21 de Agosto, nomeadamente da expressão: «causador do acidente que o tenha provocado dolosamente» (ora sublinhado).
LXXIII–Trata-se da norma jurídica invocada pela ora Recorrida como fundamento do direito de regresso, e foi aplicada pela Sentença ao caso dos autos.
LXXIV–Porém, no entender do Recorrente, a norma, com a «previsão» acima transcrita: «causador do acidente que o tenha provocado dolosamente», pretende aplicar-se aos casos em que se verifica, por parte do veículo, ou responsável, causador do acidente, intencionalidade de provocar o acidente.
LXXV–Ou seja, não prevê os casos de dolo eventual, no entender do Recorrente.
LXXVI–Assim, a norma não poderia ser aplicada ao caso dos autos, por a factualidade não se subsumir à mesma.
LXXVII–Devendo ser interpretada como não aplicável a situações de dolo eventual, ou seja de não intencionalidade, e até maxime aos casos de dolo eventual de formação instantânea e sem tempo de previsão, reflexão, premeditação, e mesmo de conformação, por parte do agente como é o caso dos autos.
LXXVIII–Não sendo aplicável, como não é no entender do Recorrente, deveria a douta Sentença ter proferido decisão de improcedência da Acção e do pedido. Assim, entre outras normas foram violadas ou incorrectamente aplicadas: O art.º 27.º n.º 1 al. a) do Decreto-Lei n.º 291/2007 de 21 de Agosto, o princípio in dúbio pro Reo; o art.º 487.º n.º 1 do CC.; art.º 21.º da CRP; e art.º 337º n.º 1 e 2 do CC.; art.º 272.º do CPC; art.º 607.º n.º 5 CPC e art.º 278.º 1 d) CPC.
Conclui pugnando pela procedência do recurso com a consequente revogação da decisão e a sua absolvição da instância, por ilegitimidade da autora ou pela suspensão da instância por pendência de causa prejudicial e, assim se não entendendo, pela absolvição do pedido.
A autora/recorrida apresentou contra-alegações sustentando a manutenção da decisão recorrida (cf. Ref. Elect. 11451953).
*

II–OBJECTO DO RECURSO

Nos termos dos art.ºs 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1 do Código de Processo Civil[1] é pelas conclusões do recorrente que se define o objecto e se delimita o âmbito do presente recurso, sem prejuízo das questões de que este tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente, apenas estando adstrito à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para conhecimento do objecto do recurso. De notar, também, que o tribunal de recurso deve desatender as conclusões que não encontrem correspondência com a motivação - cf. A. Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2016, 3ª edição, pág. 95.

Assim, perante as conclusões da alegação do réu/apelante há que apreciar as seguintes questões:
a)-A ilegitimidade activa da seguradora por preterição de litisconsórcio necessário;
b)-A suspensão da instância por causa prejudicial;
c)-A admissibilidade da impugnação da matéria de facto;
d)-A imputação da responsabilidade pela verificação do sinistro à conduta dolosa do réu/recorrente;
e)-A legítima defesa como causa de justificação da ilicitude/o erro sobre os pressupostos como causa de exclusão da culpa.

Colhidos que se mostram os vistos, cumpre apreciar e decidir.
*

III–FUNDAMENTAÇÃO

3.1.–FUNDAMENTOS DE FACTO

A sentença sob recurso considerou como provados os seguintes factos:
1.No exercício da sua actividade, a Autora celebrou com o Réu um contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel, titulado pela apólice n.º 4026568, nos termos do qual se comprometeu a garantir a responsabilidade civil emergente da circulação do veículo da marca Renault,modelo Clio,com a matrícula ##-##-XH ..
2.Tal contrato teve início em 01.03.2009.
3.No dia 27.08.2017, pelas 20 horas, ocorreu um acidente de viação na Rua ....., em O..... B....., em que foram intervenientes o veículo ##-##-XH, e o motociclo Yamaha XJ6, com a matrícula ##-HZ-##..
4.O veículo ##-##-XH era conduzido pelo réu.
5.O veículo ##-HZ-## era conduzido pelo seu proprietário, Jorge ......
6.Na ocasião descrita no ponto 3 “supra”, o Réu havia imobilizado o veículo ##-##-XH no semáforo que se encontrava vermelho e o condutor do motociclo posicionou-se à sua esquerda, entre o veículo ##-##-XH e o eixo da faixa de rodagem, junto ao traço contínuo que separa os dois sentidos de trânsito.
7.Nessa ocasião, foram trocadas palavras entre os condutores sobre uma manobra realizada momentos antes.
8.Quando o sinal luminoso mudou para verde, ambos os veículos iniciaram a sua marcha.
9.Após terem iniciado a marcha, o réu guinou o veículo ##-##-XH propositadamente para a esquerda, onde se encontrava o motociclo ##-HZ-##, tendo-lhe embatido.
10.O que provocou a sua queda no chão, bem como do respectivo condutor.
11.A manobra descrita no ponto 9 foi efectuada voluntariamente pelo réu.
12.Em consequência da queda, o motociclo ##-HZ-## arrastou-se no solo cerca de 5 metros.
13.Ficando com estragos na sua estrutura e componentes cuja reparação ascendia ao valor de 4918,29€.
14.O seu valor venal era de 4.500,00€ e o salvado de 477,00€.
15.A autora pagou ao proprietário do motociclo a quantia de 4.023,00€ como indemnização pela sua “perda total”.

16.O condutor do motociclo, por força da queda, ficou com estragos nos seguintes bens que usava e transportava consigo na ocasião:
a.-Calças Revit Airware;
b.-Blusão Revit Ignition;
c.-Capacete Schuberth SR1;
d.-Viseira Schuberth SR1;
e.-Luvas;
f.-Botas;
g.-Intercomunicador do capacete;
h.-Saco depósito da mota;
i.-Mochila Taurus;
j.-Óculos de Sol;
k.-Lente máquina Canon;
l.-Coluna portátil JBL;
m.-Ipod Touch;
n.-Telemóvel Samsung Galaxy S6.

17.Estes bens tinham um preço global de 2.072,95€.
18.Para reparação desses danos, descritos no ponto 15 “supra”, autora pagou a quantia de 2.072,95€.
19.Na sequência do embate e queda, o condutor do motociclo foi ainda transportado para o Hospital, onde foi assistido, tendo a autora pago a quantia de 105,25€ pelo atendimento médico e realização de exames.
20.Em 22 de Maio de 2018, a autora dirigiu uma carta ao réu através da qual solicitou o pagamento da quantia de 6.201,20€, para reembolso do montante despendido com a reparação do acidente.
*

O Tribunal a quo considerou como não provados os seguintes factos:
1.Na ocasião descrita no ponto 8 “supra”, o condutor do motociclo deu um murro no espelho retrovisor do veículo ##-##-XH e partiu-o.
2.Só após esse murro no espelho é que o réu efectuou a manobra descrita no ponto 9 “supra”.
3.O que fez como reacção e para “defender” o seu veículo, afastando o motociclo.
*

3.2.– APRECIAÇÃO DO MÉRITO DO RECURSO

3.2.1.- Da legitimidade activa da seguradora

O recorrente invoca a ilegitimidade da autora para sustentar que a decisão deveria ter sido no sentido da sua absolvição da instância, dado que nos autos se discute a questão da imputação da causa e responsabilidade pela verificação do acidente, situação a que a demandante é alheia, sendo que a sua relação com o demandado se limita ao contrato de seguro celebrado entre ambos; sustenta que para a averiguação da responsabilidade pela produção do sinistro era necessário que estivessem na acção os condutores de ambos os veículos, sendo que quem tem legitimidade para discutir tal questão são os proprietários do motociclo e do veículo automóvel, pelo que se verifica preterição de litisconsórcio necessário activo.
A autora/recorrida pronunciou-se no sentido da improcedência de tal excepção, desde logo porque face ao contrato de seguro não é alheia à situação e estava obrigada a reparar as consequências do sinistro perante o terceiro lesado.
Uma vez que a excepção de ilegitimidade activa foi invocada apenas nas alegações de recurso, cumpre apreciar da oportunidade de tal alegação.
A ilegitimidade processual configura uma excepção dilatória que obsta a que o tribunal conheça do mérito da causa e dá lugar à absolvição da instância, sendo de conhecimento oficioso – cf. art.ºs 278º, n.º 1, d), 576º, n.ºs 1 e 2, 577º, e) e 578º do CPC.

Contudo, estabelece o art.º 573º, n.º 1 do CPC queToda a defesa deve ser deduzida na contestação, excetuados os incidentes que a lei mande deduzir em separado”, acrescentando o n.º 3 que “Depois da contestação só podem ser deduzidas as exceções, incidentes, e meios de defesa que sejam supervenientes, ou que a lei expressamente admita passado esse momento, ou de que se deva conhecer oficiosamente”.
Tal preceito consagra o princípio da concentração da defesa, do qual decorre que o demandado deve deduzir na contestação ou oposição todos os meios de defesa que tenha ao seu alcance, sob pena da respectiva preclusão.

Não obstante, a lei processual consagra quatro excepções a esse princípio:
- os incidentes que devem ser deduzidos em separado;
- os meios de defesa supervenientes, ou seja, os fundados em factos que se verifiquem depois de esgotado o prazo para contestar ou deduzir oposição (superveniência objectiva), ou de que o demandado só tenha conhecimento depois de esgotado esse prazo (superveniência subjectiva);
- os meios de defesa que a lei expressamente admita após tal momento;
- os meios de defesa de que o Tribunal deva conhecer oficiosamente.

Como decorrência deste princípio, a doutrina e a jurisprudência têm sublinhado que os recursos não servem para apreciar questões (de direito ou de facto) novas, mas apenas reapreciar questões já debatidas.

Nessa medida, refere António Abrantes Geraldes, op. cit., pág. 97:
“A natureza do recurso como meio de impugnação de uma anterior decisão judicial, determina uma outra importante limitação ao seu objecto decorrente do facto de, em termos gerais, apenas poder incidir sobre questões que tenham sido anteriormente apreciadas, não podendo confrontar-se o tribunal ad quem com questões novas.

Na verdade, os recursos constituem mecanismos destinados a reapreciar decisões proferidas, e não a analisar questões novas, salvo quando, nos termos já referidos, estas sejam de conhecimento oficioso e, além disso, o processo contenha os elementos imprescindíveis. Segundo a terminologia proposta por Teixeira de Sousa, podemos concluir que tradicionalmente temos um modelo de reponderação que visa o controlo da decisão recorrida, e não um modelo de reexame que permita a repetição da instância no tribunal de recurso.”

Este entendimento foi acolhido pela jurisprudência, referindo-se, designadamente, no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7-07-2016, processo n.º 156/12.0TTCSC.L1.S1[2]: “Efectivamente, e como é entendimento pacífico e consolidado na doutrina e na Jurisprudência, não é lícito invocar nos recursos questões que não tenham sido objecto de apreciação da decisão recorrida, pois os recursos são meros meios de impugnação das decisões judiciais pelos quais se visa a sua reapreciação e consequente alteração e/ou revogação”; no mesmo sentido, acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra de 14-01-2014, processo n.º 154/12.3TBMGR.C1 e do Tribunal da Relação do Porto de 16-10-2017, processo n.º 379/16.2T8PVZ.P1.

Mas precisamente porque a lei processual admite a invocação de excepções de conhecimento oficioso após a contestação, a jurisprudência tem sublinhado que essas questões podem ser suscitadas apenas em sede de recurso – cf. neste sentido, acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 17-11-2016, processo n.º 861/13.3TTVIS.C1.S2 e do Tribunal da Relação de Guimarães de 19-01-2017, processo n.º 347/14.9T8GMR.G1.

No caso em apreço, é inegável que só nas alegações de recurso é que o réu e ora apelante veio suscitar a excepção de ilegitimidade activa, por preterição de litisconsórcio necessário.

Como tal, sobre a matéria da excepção não recaiu qualquer decisão no Tribunal de 1ª instância, que se limitou a proceder à sua apreciação tabelar e, por isso, o tribunal de recurso está em condições de conhecer da excepção – cf. art. 595º, n.ºs 1, a) e 3 CPC.

No entanto, apesar de a excepção constituir matéria de conhecimento oficioso, o tribunal de recurso continua vinculado aos factos que as partes apresentaram nos autos e é com base nesses elementos que pode apreciar o pressuposto processual, em obediência ao princípio do dispositivo – cf. art.º 5º do CPC; acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 18-09-2017, processo n.º 5968/16.2T8VNG.P1.

Como decorre do relatório supra, a causa de pedir invocada nesta acção assenta na ocorrência de um acidente de viação consistente no embate entre o motociclo ##-HZ-## e o veículo automóvel ##-##-XH, cuja responsabilidade civil decorrente dos riscos de circulação estava transferida para a seguradora, aqui demandante, e no facto de, na sequência desse acidente, a seguradora ter assumido a reparação dos danos decorrentes para o motociclo, pretendendo agora obter o reembolso das quantias que despendeu, o que faz sustentando que o acidente foi dolosamente causado pelo condutor do ##-##-XH, o réu, ora recorrente.

Parece entender o recorrente – se bem se compreende a sua alegação – que, dependendo o direito ao reembolso da demonstração da causa do acidente e que esta lhe seja imputável, a discussão sobre as razões determinantes da sua ocorrência e da contribuição de cada um dos condutores dos veículos nele envolvidos apenas poderia ter lugar na presença de ambos, o que aqui não sucede, porque o condutor do motociclo não é parte, daí que a seguradora seja parte ilegítima para a acção.

A legitimidade processual contende com a posição da parte relativamente a uma determinada e concreta acção, de maneira que o demandante seja o titular do direito e demandado o sujeito da obrigação, no pressuposto de que o direito e a obrigação existam de facto.

Deste modo, “a legitimidade processual é apreciada por uma relação da parte com o objecto da acção. Essa relação é estabelecida através do interesse da parte perante esse objecto: é esse interesse que relaciona a parte com o objecto para aferição da legitimidade.” – cf. Miguel Teixeira de Sousa, A Partes, o Objecto e a Prova na Acção Declarativa, Lisboa 1995, Lex, pág. 48.

A legitimidade depende, assim, do “interesse directo em demandar” a determinar pela utilidade que resulta da procedência da acção, enquanto sujeito da relação material controvertida tal como é configurada pelo autor.

Logo, a legitimidade não constitui uma qualidade pessoal para ser parte em juízo (como a capacidade), “mas antes uma posição perante a matéria controvertida no litígio, ou seja, perante o objecto do processo” – cf. Francisco Ferreira de Almeida, Direito Processual Civil, Volume I, 2ª Edição, 2018, pág. 382.

A titularidade da “relação material controvertida” tal como foi alegada no articulado inicial assume-se, pois, como critério definidor do pressuposto processual legitimidade.

“Assim, a legitimidade processual caracteriza a concreta posição de quem é parte numa causa, “perante o conflito de interesses que aí se discute e pretende resolver”, posição essa que é “o ser-se a pessoa (ou pessoas) cuja procedência da acção lhes atribui uma situação de vantagem (autor) ou a pessoa ou as pessoas a quem essa procedência causa uma desvantagem”, o réu - cfr. Remédio Marques, Acção Declarativa à Luz do Código Revisto, 3.ª edição, Coimbra Editora, 2011, páginas 372/373” – cf. acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 15-12-2016, processo n.º 28/16.9T8FLG.P1.

Sucede que o interesse que advém, por princípio, da titularidade da relação material controvertida pode dizer respeito a várias pessoas.

Se respeitar a uma pluralidade de partes principais que se unam no mesmo processo para discutirem uma só relação jurídica material, configura um litisconsórcio.

Há porém situações em que é permitido que só uma delas intervenha, embora possam participar as restantes, e outras ocasiões em que é exigida a intervenção de todas em conjunto. No primeiro caso o litisconsórcio será voluntário (cf. art. 32º do CPC) e no segundo, necessário (cf. art. 33º do CPC).

A regra é a do litisconsórcio voluntário ou facultativo para a generalidade das relações jurídicas com titularidade plurisubjectiva: a acção pode ser intentada conjuntamente por todos os interessados ou contra todos eles e o autor pode propor a acção contra vários réus, assistindo ainda, quer ao autor, quer ao réu, a possibilidade de provocarem a intervenção de outras partes (terceiros).

Nesses casos, a falta de alguma das partes não exerce qualquer influência sobre a legitimidade daquela ou daquelas que já estão no processo, caso em que o juiz apreciará apenas a quota-parte do interesse que estas tenham na relação material – cf. Francisco Ferreira de Almeida, op. cit., pág. 386.

Diversamente, no litisconsórcio necessário há uma única acção com pluralidade de sujeitos, sendo a cumulação subjectiva imposta por lei ou exigida por prévia determinação dos interessados ou ainda pela própria natureza da relação jurídica.

O art.º 33º, n.º 1 do CPC prevê o litisconsórcio legal quando estipula que se o negócio ou a lei exigirem a intervenção dos vários interessados na relação controvertida, a falta de qualquer deles é motivo de ilegitimidade.

O seu n.º 2 reporta-se ao litisconsórcio natural ao estipular a intervenção necessária de todos os interessados quando, pela própria natureza da relação jurídica, ela seja necessária para que a decisão produza o seu efeito útil normal, isto é, sempre que, não vinculando embora os restantes interessados, possa regular definitivamente a situação concreta das partes relativamente ao pedido formulado.

Como é sabido, a companhia de seguros, por força do contrato de seguro que haja celebrado com o seu segurado e desde que este se mostre válido e em vigor à data do acidente, paga a indemnização devida pelos danos por ele causados, em acidente de viação da sua responsabilidade, e assume integralmente esse pagamento sem nada exigir do seu segurado.

Isto decorre do facto de o nosso sistema legal ter instituído o regime do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel – cf. art.ºs 146º a 148º da Lei do Contrato de Seguro aprovada pelo DL 72/2008, 16 de Abril[3] e art.ºs 1º e 4º do DL n.º 291/2007, de 21 de Agosto, que aprova o Regime do Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel[4].

O contrato de seguro de responsabilidade civil, neste caso obrigatório, investe a seguradora na obrigação de pagar as indemnizações que sejam devidas pelo seu segurado, pois que este, através desse contrato, remete para a seguradora o risco da ocorrência de sinistros. A obrigação de suportar o risco constitui a prestação da seguradora, a que corresponde (enquanto contrato bilateral e sinalagmático como é o contrato de seguro), por parte do segurado, a obrigação de pagar o prémio.

Diferentemente da generalidade do seguro de responsabilidade civil, em que o segurador assume tão-só face ao segurado (e não perante terceiro) a obrigação de se lhe substituir no pagamento de indemnizações a terceiros, no contrato de seguro obrigatório, o terceiro adquire o direito à prestação a cumprir pelo segurador, mediante a celebração do contrato entre segurado e seguradora – cf. Maria Clara Lopes, Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel, pág. 20.

Mercê do contrato de seguro “transfere-se” para a seguradora a responsabilidade que derivar dos riscos da circulação do veículo a que o seguro respeita, que recairiam sobre o segurado.

Estando as indemnizações a atribuir ao lesado abrangidas pelo montante do capital segurado, compete à seguradora satisfazer tal obrigação, pagando-lhe as indemnizações que são devidas (cf. art. 12º, n.º 1 do DL n.º 291/2007, de 21-08).

Apesar de a opção da lei nacional ser pelo sistema da socialização do risco, reforçada com a criação do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, não deixou, contudo, de ter em atenção a responsabilidade individual do interveniente no acidente, em determinadas situações, impondo-lhe a obrigação de ressarcir (ou reembolsar) a seguradora da indemnização paga ao lesado.

Atente-se que o regime geral do contrato de seguro subtrai do âmbito da responsabilidade do segurador a obrigação de efectuar a prestação convencionada em caso de sinistro causado dolosamente pelo segurado (cf. art.º 46º, n.º 1 do RJCS), mas quanto ao seguro obrigatório de responsabilidade civil, a cobertura de actos ou omissões dolosos depende daquilo que resulte da lei ou regulamento – cf. art.º 148º do RJCS.

O art.º 15º, n.º 2 do RSORCA estipula queO seguro garante ainda a satisfação das indemnizações devidas pelos autores de furto, roubo, furto de uso do veículo ou de acidentes de viação dolosamente provocados, sem prejuízo do disposto no número seguinte.”

E no âmbito do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, o art.º 27º, n.º 1 do RSORCA enuncia as situações em que a companhia de seguros deve proceder ao pagamento da indemnização devida ao lesado, sem poder opor ao lesado os comportamentos dolosos do tomador do seguro ou do segurado, ficando, contudo, com o direito de receber do seu segurado a quantia que tiver pago ao terceiro não responsável pelo acidente – cf. art.º 144º do RJCS.

Como refere Maria Amália Santos, in O direito de regresso da seguradora nos acidentes de viação, pp. 5-6[5]:
“[…] o alcance social do seguro obrigatório, como regime indicado para a protecção dos lesados, tem aqui desvios quanto à assunção da responsabilidade, com a criação do direito de regresso a favor das seguradoras. E porque de um direito especial se trata, ele tem de ser invocado e demonstrado (em ação autónoma) nos termos gerais do direito, pela seguradora demandante, recaindo sobre si o ónus de alegação e prova dos factos constitutivos do seu direito; nenhuma disposição legal veio afastar o regime geral da responsabilização, criando presunções, alterando o ónus da prova, ou prevendo qualquer outro circunstancialismo que se desvie do regime geral. Ou seja, a seguradora terá de demonstrar judicialmente os pressupostos do direito de regresso invocado […]”

Trata-se, assim, nesta acção do direito de regresso da seguradora sobre o seu segurado, o aqui réu, direito que advém da relação contratual estabelecida entre as partes na acção.
O direito de regresso é um direito novo de que é titular a seguradora que, por via do pagamento da indemnização que efectuou, extinguiu a relação creditícia anterior, isto é, aquela que o terceiro lesado (no caso, o condutor do motociclo) tinha perante o lesante ou sua seguradora (o aqui réu).
Para exercer o seu direito, a seguradora terá de demonstrar judicialmente os pressupostos do direito de regresso invocado, ou seja, terá de demonstrar que o réu provocou o acidente de viação dolosamente.
Tal implicará, é certo, o apuramento sobre a dinâmica do sinistro e, bem assim, sobre a contribuição de cada um dos condutores (estando em causa uma colisão de veículos), mas em parte alguma a lei exige a intervenção de todos os participantes/lesados no acidente para que esteja assegurada a legitimidade processual, tanto mais que se está perante uma causa de pedir complexa que, em primeira linha, se desenha a partir do contrato de seguro celebrado entre a autora e o réu, em relação ao qual o outro interveniente no acidente (condutor do motociclo) é terceiro, não lhe competindo discutir os pressupostos do direito de regresso que apenas surge no contexto dessa relação contratual.

Além disso, ainda que se apele à necessidade de discutir a dinâmica do acidente em que interveio o lesado ressarcido, há que ter em conta que por via do disposto no art.º 140º, n.º 1 do RJCS, o segurador de responsabilidade civil pode intervir em qualquer processo judicial ou administrativo em que se discuta a obrigação de indemnizar cujo risco tenha assumido, suportando os custos – cf. António Menezes Cordeiro, Direito dos Seguros, 2ª Edição (Revista e Atualizada) 2017, pág. 812.

Tenha-se presente que nesta acção o que se pretende fazer valer não é o direito do réu, enquanto lesado, a obter uma qualquer indemnização da seguradora do outro interveniente no acidente de viação, mas sim o direito de reembolso da seguradora que, tendo considerado que o acidente é imputável ao réu e por ele provocado dolosamente, dele pretende obter o reembolso do montante despendido para ressarcir o lesado dos danos que suportou.

Como refere Miguel Teixeira de Sousa, in As Partes…, págs. 69 e 70:
“Pode entender-se que o litisconsórcio natural só existe quando a repartição dos vários interessados por acções distintas impediria uma composição definitiva entre as partes da causa [] Mas também pode defender-se que o litisconsórcio é natural não só quando a repartição dos interessados por acções diferentes impediria a composição definitiva entre as partes, mas também quando a repartição dos interessados por acções distintas poderia obstar a uma solução uniforme entre todos os interessados. []
Segundo a definição legal do art. 28º, n.º 2 2ª parte, o efeito útil normal é atingido quando sobrevém uma regulação definitiva da situação concreta das partes (e só delas) quanto ao objecto do processo. Porém, de acordo com a mesma definição, o efeito útil normal pode ser conseguido ainda que não estejam presentes todos os interessados ou, dito de outra forma, a ausência de um desses interessados nem sempre constitui um obstáculo a que esse efeito possa ser atingido: é o que resulta do facto de nessa definição se admitir expressamente a não vinculação de todos os interessados.”

No campo do litisconsórcio necessário estarão as relações indivisíveis por natureza, que têm de ser resolvidas de modo unitário para todos os interessados, sem a presença dos quais a decisão não conduziria a nenhum efeito útil e bem assim aquelas em que só a intervenção de todos produzirá, não apenas algum efeito útil, mas ainda o considerado normal, definindo a situação concreta entre as partes, de tal modo que não possa vir a ser inutilizada por outros interessados a quem a decisão não seja oponível.

Nos termos em que a relação material controvertida dos autos se apresenta não existe convenção das partes no sentido da intervenção de todos os interessados, nem a lei o impõe, pelo que não se está perante uma situação de litisconsórcio necessário legal.

De igual modo, não está em causa um litisconsórcio necessário natural que exija a intervenção do condutor do motociclo na acção. Pelo contrário, a intervenção deste é desnecessária para que se discuta a causa do acidente, competindo à autora alegá-la e prova-la enquanto pressuposto do seu direito.

Sabe-se que um mesmo evento originador de danos pode dar origem a relações materiais concorrentes entre si mas que não demandam a intervenção necessária de todos os respectivos titulares no processo.

Com efeito, existindo uma colisão entre veículos, o condutor de cada um deles pode demandar a seguradora do outro e/ou dos outros para fazer valer o seu eventual crédito indemnizatório, imputando-lhe a responsabilidade pela produção do evento, assim como estes podem demandar a seguradora do primeiro.

Não se trata, porém, de uma única acção com pluralidade de sujeitos mas sim de uma situação em que pode existir litisconsórcio meramente voluntário, numa simples acumulação de acções, conservando cada litigante uma posição de independência em relação aos seus compartes.

A não intervenção do condutor do motociclo ##-HZ-## não constitui motivo de ilegitimidade.

Com efeito, no domínio da responsabilidade civil emergente de acidente de viação vigora a regra da solidariedade (cf. art.º 497º, n.º 1 do Código Civil). Ou seja, cada um dos causadores dos danos e outros responsáveis podem ser demandados isoladamente pela totalidade do pedido indemnizatório.

Assim, refere, Francisco Rodrigues Rocha, in Da Sub-Rogação no Contrato de Seguro, Agosto 2011, pág. 109[6]:
“[…] por força da acção directa do terceiro lesado contra o segurador quanto ao pagamento da indemnização, prevista no art.146.º, n.º1, LCS, perfilhamos a opinião segundo a qual a lei estabelece hoje um regime de solidariedade passiva entre segurado e segurador nos seguros obrigatórios de responsabilidade civil. Juntamos, todavia, aos argumentos já aduzidos pela doutrina o de que, em nossa opinião, o art.144.º também é um não despiciendo argumento a favor da solidariedade passiva no seguro obrigatório de responsabilidade civil, conquanto surja inserto no âmbito do regime comum dos seguros de responsabilidade civil. Quer isto dizer que a lei previu que, pagando ao terceiro, o segurador, em certos casos, terá direito de regresso contra o tomador ou segurado, em termos símiles àqueles que sucedem nas obrigações solidárias. Símiles, dizemos, porque, summo rigore, nas relações internas, o vero devedor é o segurado lesante.”

Em face desta solidariedade, a ausência processual de qualquer condutor de veículo interveniente em acidente de viação não é, por si só, impeditiva da apreciação do iter causal do acidente na acção tendente a efectivar a correspondente responsabilidade civil, assim como não o será na acção em que a seguradora pretende exercer o seu direito de regresso.

Ademais, note-se, os pedidos de indemnização por acidente de viação apenas deverão, em princípio, ser exercidos contra as seguradoras, a menos que o valor do pedido exceda o limite máximo do capital coberto pela apólice (cf. art.º 64º, n.º 1, b) do RSORCA), sem prejuízo da discussão e definição da responsabilidade do condutor pela produção do acidente.

Acresce que no seguro de responsabilidade civil, via de regra, as posições do segurado e do segurador são coincidentes, pelo que correspondendo a prestação do segurador à obrigação de indemnizar, será a este que compete a direcção do litígio face ao lesado (cf. art.º 140º, n.º 7 do RJCS).

Tal como decorre do acima referido, a recorrida, seguradora do veículo ##-##-XH, assumiu a responsabilidade do acidente perante o outro interveniente, o condutor do motociclo ##-HZ-##, e ressarciu-o já pelos danos ocorridos, pelo que o direito que este pudesse eventualmente pretender dirigir contra o aqui réu estaria satisfeito pela aceitação da indemnização que lhe foi paga pela seguradora.

Sustentando o réu, condutor do ##-##-XH, que não teve culpa na produção do acidente e pretendendo discutir a responsabilidade da sua ocorrência no confronto do outro interveniente, terá, neste contexto, de o fazer perante a sua seguradora que, entretanto, assumiu já a responsabilidade pela produção do acidente.

A decisão a proferir na presente acção, sem a intervenção da seguradora do motociclo ##-HZ-##, produzirá, pois, os seus efeitos entre aquelas que são as partes nesta acção, ou seja, a seguradora que pagou a indemnização e o seu segurado.

Uma eventual demanda por parte do recorrente contra a seguradora/condutor do motociclo para fazer valer um direito que entenda ter perante este, enquanto responsável pela produção do acidente, esbarrará sempre com a assunção de responsabilidade pela seguradora do primeiro (podendo discutir-se a extensão do efeito de caso julgado a terceiros titulares de relações paralelas à definida ou com ela concorrentes[7]).

Acresce que a autora/recorrida nunca poderia intentar a presente acção contra o condutor do motociclo ou a sua seguradora, porquanto o direito que pretende fazer valer decorre precisamente do reconhecimento que fez de que o seu segurado foi o responsável pelo acidente, pelo que nenhum interesse tem na intervenção do condutor do motociclo na presente acção. Por outro lado, figurando no lado activo a sua seguradora, não poderia sequer o réu deduzir reconvenção, pretendendo, simultaneamente, fazer intervir a seguradora do condutor do motociclo, enquanto putativo responsável pelo acidente, porquanto nenhum pedido poderia dirigir contra a autora.

Assim, não se estando perante uma situação de litisconsórcio necessário é evidente que a seguradora/demandante, enquanto titular de um direito de regresso que aqui pretende exercer, sendo ela quem tem interesse em demandar, tem legitimidade para estar, por si só, no lado activo desta acção.

Improcede, assim, a excepção de ilegitimidade processual activa.
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3.2.2.- Suspensão da Instância por causa prejudicial

Suscita o recorrente, ainda que a propósito da necessidade de apreciar a questão atinente à responsabilidade na produção do acidente, para que seja conhecido o direito de regresso reclamado pela autora, que não sendo possível apreciar tal responsabilidade ilegitimidade da autora, deve ser determinada a suspensão da instância, até que seja aquela conhecida, em eventual acção judicial.

A recorrida limitou-se a afirmar que, sendo parte legítima, não existe qualquer motivo para a suspensão da instância.

Nos termos do art.º 272º, n.º 1 do CPCO tribunal pode ordenar a suspensão quando a decisão da causa estiver dependente do julgamento de outra já proposta ou quando ocorrer outro motivo justificado”.

A prejudicialidade de uma causa em relação a outra afere-se quando a decisão de uma acção pode prejudicar a decisão da outra, isto é, quando a procedência da primeira tira razão de ser à existência da segunda, inutilizando os efeitos pretendidos nesta.
Neste caso, a recorrente não alude à pendência de uma outra qualquer acção judicial onde esteja a ser apreciada, designadamente, a responsabilidade pela verificação do sinistro em causa nestes autos, pelo que a suspensão da instância só poderia ter lugar com base em “outro motivo justificado”.

A lei não esclarece o que se deva entender por outro “motivo justificado”, conferindo, assim, ao juiz uma ampla margem de liberdade de acção, podendo ordenar a suspensão quando entenda que há utilidade ou conveniência processual em que a instância se suspenda.

Refere o Professor Alberto dos Reis que a norma “nem faz depender de requerimento das partes o uso do poder de ordenar a suspensão, nem lhes recusa o direito de provocar, mediante requerimento, o exercício de tal poder. Há-de, portanto, concluir-se que o magistrado pode suspender a instância, ou por sua iniciativa, ou a requerimento das partes” – cf. Comentário ao Código do Processo Civil, Vol. 3.º, Coimbra Editora 1946, pp. 284- 285.

Não se tratará, porém, de um poder discricionário, mas antes de um poder legal limitado, pressupondo que se esteja perante um motivo suficientemente ponderoso para justificar a suspensão da marcha normal do processo, que se mostre conveniente e contribua para a justa resolução do litígio e, naturalmente, que não prejudique o princípio da igualdade das partes.

Ora, o motivo invocado pelo recorrente parece ser o que decorreria do reconhecimento da ilegitimidade activa da seguradora no que concerne à apreciação da responsabilidade pela verificação do sinistro.

No entanto, como resulta do atrás explanado, concluiu-se positivamente pela legitimidade activa da demandante, pelo que, independentemente da integração do conceito de motivo justificado, sempre se terá de concluir pela não verificação de qualquer fundamento para a suspensão da presente instância, dado que nada obsta a que se aprecie nesta sede os pressupostos do direito de reembolso da seguradora, onde se inclui, desde logo, a imputação da responsabilidade pelo acidente ao réu demandado.
*

3.2.3.- Da admissibilidade da impugnação da matéria de facto

Estabelece o art.º 662º n.º 1 do CPC que a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos por assentes, a prova produzida ou um documento superveniente, impuserem decisão diversa.
Ao assim dispor, pretendeu o legislador que a Relação fizesse novo julgamento da matéria de facto, fosse à procura da sua própria convicção e, assim, se assegurasse o duplo grau de jurisdição em relação à matéria de facto – cf. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 6-12-2016, processo n.º 437/11.0TBBGC.G1.S1.

Dispõe o art.º 640º, n.º 1 do CPC:
“Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a)- Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b)- Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c)- A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.”

À luz do normativo transcrito, afere-se que em quaisquer circunstâncias, o recorrente deve indicar sempre os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões.

Fundando-se a impugnação em meios de prova constantes do processo ou que nele tenham sido registados (existem três tipos de meios de prova: os que constam do próprio processo – documentos ou confissões reduzidas a escrito -; os que nele ficaram registados por escritos – depoimentos antecipadamente prestados ou prestados por carta, mas que não foi possível gravar -; os que foram oralmente produzidos perante o tribunal ou por carta e que ficaram gravados em sistema áudio ou vídeo), o recorrente deve especificar, na motivação, aqueles que, em seu entender, determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos.

O recorrente deve consignar, na motivação do recurso, a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, tendo em conta a apreciação crítica dos meios de prova produzidos, o que é exigido no contexto do ónus de alegação, de modo a evitar a interposição de recursos de pendor genérico ou inconsequente.

De notar que a exigência de síntese final exerce a função de confrontar o recorrido com o ónus de contra-alegação, no exercício do contraditório, evitando a formação de dúvidas sobre o que realmente pretende o recorrente – cf. A. Abrantes Geraldes, op. cit., pág. 142, nota 228.

Abrantes Geraldes pugna no sentido de que “A rejeição total ou parcial do recurso respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto deve verificar-se em alguma das seguintes situações:
a)-Falta de conclusões sobre a impugnação da decisão da matéria de facto (arts. 635º, n.º 4, e 641º, n.º 2, al. b));
b)-Falta de especificação, nas conclusões, dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados (art. 640º, n.º 1, al. a));
c)-Falta de especificação, na motivação, dos concretos meios probatórios constantes do processo ou nele registados (v. g. documentos, relatórios periciais, registo escrito, etc.);
d)-Falta de indicação exacta, na motivação, das passagens da gravação em que o recorrente se funda;
e)-Falta de posição expressa, na motivação, sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação.” – cf. op. cit., 2016, 3ª edição, pág. 142.

É conhecida a divergência jurisprudencial quanto a saber se os requisitos do ónus impugnatório previstos no normativo legal supra transcrito, devem figurar apenas no corpo das alegações ou se também devem ser levados às conclusões sob pena da rejeição do recurso (cf. art.ºs 635º, n.º 2 e 639º, n.º 1 do CPC).

No acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19-02-2015, processo n.º 299/05.6TBMGD.P2.S1 refere-se:
“a exigência da especificação dos concretos pontos de facto que se pretendem questionar com as conclusões sobre a decisão a proferir nesse domínio tem por função delimitar o objecto do recurso sobre a impugnação da decisão de facto. Por sua vez, a especificação dos concretos meios probatórios convocados, bem como a indicação exacta das passagens da gravação dos depoimentos que se pretendem ver analisados, além de constituírem uma condição essencial para o exercício esclarecido do contraditório, serve sobretudo de parâmetro da amplitude com que o tribunal de recurso deve reapreciar a prova, sem prejuízo do seu poder inquisitório sobre toda a prova produzida que se afigure relevante para tal reapreciação, como decorre hoje, claramente, do preceituado no n.º 1 do artigo 662.º do CPC. É, pois, em vista dessa função, no tocante à decisão de facto, que a lei comina a inobservância daqueles requisitos de impugnação com a sanção da rejeição imediata do recurso, ou seja, sem possibilidade de suprimento, na parte afectada, nos termos do artigo 640.º, n.º 1, proémio, e n.º 2, alínea a), do CPC. Não sofre, pois, qualquer dúvida que a falta de especificação dos requisitos enunciados no n.º 1 do referido artigo 640.º implica a imediata rejeição do recurso na parte infirmada.”

Entendeu-se em tal aresto que a especificação dos concretos pontos de facto deve constar das conclusões recursórias, não se afigurando que a especificação dos meios de prova nem, muito menos, a indicação das passagens das gravações devam constar da síntese conclusiva, bastando que figurem no corpo das alegações, posto que estas não têm por função delimitar o objecto do recurso nessa parte, constituindo antes elementos de apoio à argumentação probatória.

Num outro acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29-10-2015, processo n.º 233/09.4TBVNG.G1.S1 aduz-se, a este propósito, ser “possível distinguir um ónus primário ou fundamental de delimitação do objecto e de fundamentação concludente da impugnação []; e um ónus secundário – tendente, não tanto a fundamentar e delimitar o recurso, mas a possibilitar um acesso mais ou menos facilitado aos meios de prova gravados relevantes para a apreciação da impugnação deduzida – que tem oscilado, no seu conteúdo prático, ao longo dos anos e das várias reformas – indo desde a transcrição obrigatória dos depoimentos até uma mera indicação e localização das passagens da gravação relevantes.”

E o mesmo Tribunal afirmou no acórdão de 31-5-2016, processo n.º 1572/12.2TBABT.E1.S1 que “[] do art. 640º nº 1 al. b) não resulta que a de[i]scriminação dos concretos meios probatórios, constantes do processo ou da gravação realizada tenha que ser feita exclusiva e unicamente nas conclusões. Tem sim, essa especificação de ser efectuada nas alegações. Nas conclusões deve ser incluída a questão atinente à impugnação da matéria de facto, ou seja, aí deve introduzir-se, sinteticamente “os fundamentos por que pede a alteração (ou anulação) da decisão” (art. 639º nº 1), o que servirá para o recorrente afirmar que matéria de facto pretende ver reapreciada, indicando os pontos concretos que considera como incorrectamente julgados, face aos meios probatórios que indica nas alegações.”

Para além disto, importa realçar a distinção que se impõe efectuar entre aquilo que constitui requisito formal do ónus de impugnação da decisão de facto, cuja inobservância impede que se entre no conhecimento do objecto do recurso e o que se encontra já abrangido pelo âmbito da reapreciação da decisão de facto, devidamente impugnada, mediante a reavaliação da prova convocada e tida por relevante.

O recorrente inicia as suas alegações anunciando logo que “recorre de toda a matéria de facto e de direito” (parte A).

No entanto, depois de delimitar o objecto do recurso (parte B) - onde pretende que seja desconsiderado o depoimento da testemunha condutor do motociclo, considerando não provado o dolo eventual que lhe foi imputado ou, demonstrado este, que seja verificada a legítima defesa que invocou, julgando-se a acção improcedente -, o apelante passa a suscitar a ilegitimidade da autora (parte C) e a existência de questão prejudicial (parte D), para só então, na parte E, introduzir a questão da valoração do depoimento da testemunha Jorge ..... .

Neste âmbito, refere o recorrente que tal depoimento não poderia ter sido valorado para dar como não provados os factos descritos sob os pontos 1. a 3. da matéria de facto não provada, sobre os quais apenas essa testemunha se pronunciou, negando-os e, além dela, sobre ela se pronunciou o próprio recorrente, em declarações de parte, considerando que o tribunal não podia ter considerado tal depoimento credível, por se tratar do condutor do motociclo, com interesse directo na causa; considera que este depoimento foi determinante para a decisão da imputação da responsabilidade do acidente, porque não se deu como provado que antes da guinada do réu/apelante no volante do carro, o condutor do motociclo deu um murro no espelho retrovisor e partiu-o.

Prossegue o recorrente explicando as razões por que não se conforma com a credibilidade conferida pela 1ª instância à testemunha, referindo que uma peritagem rigorosa levaria a impedir que se concluísse que o espelho se quebrou com o choque da mota ##-HZ-## com o veículo ##-##-XH, como explica:
“Como se poderia concluir de peritagem rigorosa, no entender do Recorrente, não faz qualquer sentido induzir ou deduzir que o espelho se tenha quebrado com o choque da mota ##-HZ-## com o veículo ##-##-XH, porque:
1.-O guiador - manípulo da mota que fica sensivelmente ao mesmo nível do espelho não poderia ter partido o espelho, uma vez que numas linhas tiradas na vertical do espelho em relação ao local de embate da roda da mota no guarda-lamas do carro ##-##-XH e na horizontal do espelho em relação ao manípulo do guiador da mota, este manípulo fica a cerca de 30 centímetros (cm) antes do espelho retrovisor.
2.-Portanto, como o manípulo do guiador não é elástico, não poderia ser o manípulo do guiador ou qualquer peça da mota a partir o espelho retrovisor. Só poderia ser, e foi de facto o punho do braço, esse sim com elasticidade suficiente da ora testemunha que partiu o espelho retrovisor da viatura ##-##-XH antes do embate que fez cair a mota e o motociclista.

A testemunha é parte interessada pois foi quem recebeu a indemnização paga pela Victoria, presta testemunho que contradiz a verdade ao negar que deu um murro no espelho da viatura ##-##-XH do R e que foi a causa de todo este incidente. Não a testemunha acreditada que pudesse dar alguma credibilidade à narrativa da A.”

Para sustentar a sua versão dos factos invoca ainda a página 73 dos documentos da petição inicial, onde, como diz, as lesões clínicas registadas são referentes ao braço e mão direitos e a página 55, onde se refere que o embate do motociclo no automóvel ocorreu com a lateral direita e o motociclo tombou para o lado esquerdo, de onde não resultaria que fosse atingido o espelho do automóvel com a colisão, para concluir que o depoimento de Jorge ..... não deveria ser considerado credível, designadamente, quando à matéria dos factos julgados não provados, que no seu entender deveriam ser considerados provados.

As alegações prosseguem com a apreciação do recorrente sobre a ponderação efectuada na sentença recorrida sobre o dolo eventual que lhe é imputado - que entende não resultar da prova produzida -, tecendo considerações sobre a apreciação jurídica efectuada pela 1ª instância nessa sede e, bem assim, quando à invocada legítima defesa, onde o próprio reconhece que era necessário considerar provada a descrição dos factos tal como os alegou, sem que, porém, introduza em momento algum quais os elementos de prova carreados para os autos que no seu entender justificariam a modificação dos factos não provados para provados:

“Para tanto era mister considerar provada a descrição dos factos tal como o R., desde o início manteve, ou seja que o condutor do motociclo, momentos imediatamente antes do embate das viaturas, ou mais precisamente, da guinada do R. para a esquerda, lhe partiu com um soco o espelho esquerdo do automóvel, tendo essa guinada sido a reacção instintiva do R. a essa agressão ao automóvel.
E de facto a douta Sentença deveria, como já supra alegado, ter julgado provada essa agressão, conforme invocado, mas também porque só a mesma, verificando-se porventura esse dolo eventual, permite compreender os actos subsequentes do R., nomeadamente o movimento brusco do volante para o lado em que circulava o motociclo.
É de salientar também, a forma como o motociclo, desde que ambos estiveram parados no semáforo, um ao lado do outro, e até aí as versões são no essencial coincidentes, ao arrancarem, manteve-se “colado”, “não largou”, “não descolou” do andamento do automóvel, sendo que a sua cilindrada em relação a este automóvel lhe permitia, logo ao arrancar do semáforo pôr-se em dois segundos em considerável avanço relativamente ao mesmo, e o embate veio a ocorrer cerca de trinta metros, ou mais, após o semáforo.
Também é de salientar, que não deixa de ser estranho, embora o R. supusesse que os vidros do espelho partido se encontrariam antes do local do embate, que os mesmos viessem a ser detectados dois ou três metros após o local em que ficou parada a viatura do R., ou seja mais à frente no sentido em que as viaturas circulavam.
Parece sustentar a Sentença a versão da autora nestes autos, ou seja que esse espelho teria sido partido no momento do embate, e não imediatamente antes, como sustenta o R. e justifica a sua reacção ao guinar o volante.
Porém, resulta das fotos, juntas pela A. na p.i., ao automóvel do R. que o embate da moto foi junto ao guarda-lamas da roda da frente do automóvel, entre o guarda-lamas e a porta, tendo ficado aí a chapa amolgada tendo sido aí o ponto de choque da roda da mota com o automóvel, como se pode concluir. Não sendo assim possível que o espelho fosse partido pelo volante do motociclo que ficaria atrás e acima do espelho, o que pode ser visto em gráfico de imagem recente, de uma moto semelhante, mas de menor cilindrada, e dimensão, junto do carro do A. ora Recorrente:

Certo é que, de uma forma ou outra, sem conceder, esses vidros do retrovisor, salvo outra explicação, tomaram uma velocidade superior ao conjunto de que faziam parte, ao automóvel, não constando travagens e sendo a velocidade reduzida, o que não é incompatível, mas compatível com o soco invocado pelo R., momentos antes do embate, não obstante o mesmo ter suposto que os vidros do espelho teriam ficado no local do soco invocado.
Assim, supletivamente, ou seja admitindo-se como verificado dolo eventual, ou seja não intenção, não pretensão, mas previsão hipotética dessa possibilidade de choque, e conformação com ela, então, só se compreenderia a conduta do R. ora Recorrente, como reacção a algo relevante, ou seja, teria de admitir-se também, como já referido a outros títulos, a ocorrência tal como o R. mantém e sustenta, ou seja, que imediatamente antes o condutor do motociclo lhe partira o espelho retrovisor do automóvel com um soco.
Esse soco, partindo o espelho é uma agressão ao património, inadmissível, e que o visado, estando presente não seria obrigado a tolerar, permitindo-lhe a Lei e nomeadamente a Constituição o direito a reagir em legítima defesa, para afastar essa agressão, como decorre do art.º 21.º da CRP, segunda parte: «Todos têm o direito de resistir a qualquer ordem que ofenda os seus direitos, liberdades e garantias e de repelir pela força qualquer agressão quando não seja possível recorrer à autoridade pública.». e, nomeadamente do art.º 337º n.º 1 e 2 do C.C.: «1.- Considera-se justificado o acto destinado a afastar qualquer agressão actual e contrária à lei contra a pessoa ou património do agente ou de terceiro, desde que não seja possível fazê-lo pelos meios normais e o prejuízo causado pelo acto não seja manifestamente superior ao que pode resultar da agressão.
2.- O acto considera-se igualmente justificado, ainda que haja excesso de legítima defesa, se o excesso for devido a perturbação ou medo não culposo do agente.».
Ou seja deveria ter concluído por verificada a legítima defesa, nos termos invocados, considerando verificarem-se os respectivos pressupostos, tendo-se verificado a agressão emitente, e acabada de concretizar ao seu património, usando os meios ao seu alcance e imediatamente disponíveis para afastar essa agressão.
Usando de legítima defesa, como invoca, e devendo ser reconhecido esse direito face aos factos, nomeadamente agressão ao espelho, que também se invoca como devendo ter sido considerada provada pela não credibilidade do depoimento testemunhal do condutor do motociclo, como referido, o R. ora Recorrente, não agiu com dolo, ainda que eventual, mas no uso e exercício de um direito legal e constitucional, devendo, nos mesmos termos, em consequência, ter sido julgada a acção improcedente, e o R. absolvido do pedido.”

Nas suas contra-alegações, a autora/recorrida pugna pela rejeição do recurso quanto à impugnação da matéria de facto, porquanto o recorrente não indica os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, nem o sentido diverso que no seu entender se impunha e não indica os concretos meios probatórios que impunham decisão diversa, limitando-se a discordar da apreciação feita pelo tribunal recorrido, assim como não indica as passagens da gravação quer do depoimento da testemunha, quer das suas declarações, de onde resulta o erro na apreciação da prova; além disso, a impugnação de toda a matéria provada não faz sentido, porque os pontos 1. a 6. correspondem a matéria alegada pela recorrida e expressamente aceite pelo recorrente, assim como os pontos 7. a 11. resultam das declarações por si prestadas na audiência de julgamento, não sendo feita também qualquer referência aos pontos 12. a 20. dos factos provados.

Não obstante as exigências inerentes à impugnação da matéria de facto deverem ser apreciadas “à luz de um critério de rigor”, enquanto decorrência do princípio da auto-responsabilidade das partes, não se deve interpretá-las a um nível de exigência tal que seja violado o princípio da proporcionalidade, com a consequente denegação de reapreciação da decisão da matéria de facto – cf. neste sentido, A. Abrantes Geraldes, op. cit., pág. 143.

Além disso, deve considerar-se que “a insuficiência ou a mediocridade da fundamentação probatória aduzida pelo recorrente não releva como requisito formal do ónus de impugnação, mas, quando muito, como parâmetro da reapreciação da decisão de facto, na valoração das provas, exigindo maior ou menor grau de fundamentação por parte do tribunal de recurso, consoante a densidade ou consistência daquela fundamentação.” – cf. acórdãos Supremo Tribunal de Justiça de 19-02-2015, processo n.º 299/05.6TBMGD.P2.S1 e de 8-02-2018, processo n.º 8440/14.1T8PRT.P1.S1.

Quanto ao ónus de indicação exacta das passagens relevantes dos depoimentos gravados, este “deve ser interpretado em termos funcionalmente adequados e em conformidade com o princípio da proporcionalidade, não sendo justificada a imediata e liminar rejeição do recurso quando – apesar de a indicação do recorrente não ser, porventura, totalmente exata e precisa -, não exista dificuldade relevante na localização pelo Tribunal dos excertos da gravação em que a parte se haja fundado para demonstrar o invocado erro de julgamento […]” – cf. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 6-06-2018, processo n.º 1474/16.3T8CLD.C1.S1, onde se convoca o conteúdo do acórdão desse mesmo Tribunal de 29-10-2015, processo n.º 233/09.4TVNG.G1.S1.

Analisando as alegações apresentadas pelo réu/apelante, verifica-se que, ao contrário do inicialmente anunciado, a sua impugnação quanto à decisão sobre a matéria de facto não incide, de todo, sobre toda a matéria de facto provada e não provada, porquanto, tal como a recorrida refere, o recorrente nada de concreto aduziu relativamente aos factos provados, não tendo identificado nenhum deles como incorrectamente julgado e menos ainda indicado qual a decisão que pretendia que fosse proferida.

Com efeito, apesar do discurso manifestamente confuso e não linear e cingindo quase à refutação da credibilidade de um depoimento, é possível admitir quer estão apenas abrangidos pela impugnação que o recorrente pretende dirigir contra a decisão da matéria de facto os factos dados como não provados, divisando-se do seu arrazoado que pretenderia que esta Relação os considerasse como provados, o que, cum grano salis, pode ser tido como o cumprimento do ónus impugnatório que resulta da previsão das alíneas a) e c) do n.º 1 do art.º 640º do CPC.

Porém, o apelante não especificou os meios probatórios que, relativamente a cada um dos factos impugnados, entende imporem decisão diversa, incumprindo, por essa via, o ónus estabelecido na alínea b) daquele n.º 1.

Na verdade, na sua motivação, o recorrente indica o depoimento da testemunha Jorge ..... para passar a efectuar considerações sobre a sua valia probatória, tentando afastar aquela que foi a percepção do tribunal recorrido sobre a credibilidade da apontada testemunha, não deixando, contudo, de referir que esta foi a única testemunha que depôs sobre a matéria colocada em crise, que a negou, sem que se perceba como pretende o recorrente que o tribunal dê como provados tais factos e com base em que depoimentos.

Na verdade, independentemente da credibilidade da única testemunha que depôs sobre a matéria vertida nos factos não provados, estes foram por ela negados, como aponta o próprio recorrente, pelo que, certamente, não pretenderá este valer-se desse depoimento – cujas passagens, aliás, não identificou – para modificar o juízo probatório firmado na decisão da 1ª instância.

Mais convoca, além disso, as suas próprias declarações de parte, referindo que se pronunciou em sentido inverso. Contudo, o recorrente absteve-se de indicar quais as passagens das suas declarações que deveriam ser atendidas e de onde resultaria a prova de cada um dos factos dados como não provados, não tendo sequer efectuado uma súmula dessas declarações, pois que prossegue apenas com a análise do depoimento da testemunha Jorge ....., para referir que era o condutor do motociclo e que por essa razão não podia ter sido relevado o seu depoimento, por ter interesse na causa.

E as alegações prosseguem acentuando a falta de credibilidade da testemunha e a sua não conformação com o facto de o Tribunal a ter relevando, fazendo alusão a questões atinentes ao guiador-manípulo da mota e sua posição relativamente ao espelho da viatura ligeira e a análises periciais que não constam dos autos, não foram solicitadas e sobre factos que tão-pouco constam dos temas da prova.

O apelante não indica qual o depoimento ou qual a parte das suas declarações prestadas na audiência final, assim como não transcreve quaisquer excertos, não faz qualquer referência ao início e termo da passagem que considera relevante para alcançar a modificação do decidido, limitando-se depois a tecer considerações sobre a valia probatória do depoimento da testemunha, sem estabelecer a necessária conexão entre os meios probatórios que considera relevantes (e que não indicou) e os concretos pontos de facto que pretende ver alterados, não apresentando tais provas como fundamento da decisão que entende dever ser proferida, ou sequer qualquer tipo de indicação sobre o relevo das suas próprias declarações, no confronto com os demais meios de prova, para afastar aquela que foi a convicção do tribunal recorrido.

Assim, o recorrente não explicita de que modo e relativamente a que pontos, em concreto, poderiam as suas declarações ter a virtualidade de alcançar a pretensão por ele visada (a prova dos factos dados como não provados).

Menciona ainda os documentos juntos à petição inicial, aludindo às páginas 73 e 55 (que não concretiza a que se reporta), para mencionar as lesões clínicas registadas (braço e mão direitos) e a descrição do embate como tendo sido entre a lateral direita e que o motociclo tombou para o lado esquerdo, de onde resultaria que, em face dessa dinâmica, o espelho da viatura não teria sido atingido com a colisão, sem que explicite de que modo, com base em tal documento, não conjugado com qualquer outro elemento de prova, poderia alcançar a modificação das respostas negativas proferidas pelo tribunal a quo.

Quer relativamente à prova testemunhal e por declarações de parte invocada, quer quanto à prova documental mencionada, o recorrente, não satisfez o ónus impugnatório acima especificado, o que se conclui face à total ausência de apreciação crítica seja dos depoimentos, seja dos documentos juntos aos autos, que, no seu entender, justificariam dar como provados os factos não provados, no confronto com os demais meios probatórios deles constantes e, bem assim, em conjugação com a tomada de posição que as partes tenham assumido perante estes. Ou seja, o recorrente não efectuou qualquer ponderação crítica da apreciação da prova por parte da 1ª instância para fundamentar a pretensão de revisão da decisão de facto por parte desta Relação.

Não sendo especificados os meios probatórios que o apelante entende impor decisão diversa relativamente a cada um dos concretos factos que considera incorrectamente julgados, não estabelecendo qualquer ligação entre os meios probatórios que indica e os concretos pontos de facto que pretende ver alterados, não indicando sequer em que passagem das suas declarações (posto que quanto à testemunha que menciona, é o próprio a referir que esta os negou) em que se louva para concluir de modo diverso, e sem qualquer análise crítica válida ou perceptível da prova documental, é de concluir que o réu/apelante incumpriu o ónus estabelecido no artigo 640.º, n.º 1, al. b) do CPC.

Veja-se, neste sentido, considerando, é certo, o princípio da proporcionalidade e da adequação, que cumpre observar, aquele que tem sido o entendimento do Supremo Tribunal de Justiça em situações similares:

o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10-11-2020, processo n.º 21389/15.1T8LSB.E1.S1:
“[…] embora os Recorrentes no corpo das alegações tenham indicado vários elementos probatórios fizeram-no em termos de reescrutínio indiscriminado e global da factualidade subjacente à causa, que de modo algum satisfaz a exigência legal ínsita na referida alínea b) do n.º 1 do artigo 640.º do CPC, que tem por finalidade impedir impugnações carecidas de fundamento probatório objetivo.
E se é certo que, ao invés da exigência legal prevista na alínea a) do n.º 1 do artigo 640.º do CPC (a qual deve constar das conclusões do recurso), a indicação especificada dos concretos meios de prova que imponham decisão diversa possui a sua sede própria no corpo das alegações, cabe sublinhar que a sua natureza (enquanto meio que dá suporte ao erro de julgamento da matéria de facto impugnada) impõe uma indicação precisa dos meios de prova que deveriam levar à pretensa modificação dos factos concretamente impugnados, pois que a lei obriga à especificação desses concretos meios probatórios em função dos pontos factuais impugnados.
Ora, nas alegações da apelação, os Recorrentes omitiram, relativamente aos factos objecto da sua censura, qualquer indicação especificada do(s) meio(s) probatório(s) que deveria levar a um juízo probatório em sentido diverso do decidido na sentença.
Aliás, decorre do posicionamento dos Recorrentes […] que a sua pretensão em termos de erro de julgamento da matéria de facto visa uma avaliação global da prova produzida porquanto procederam à indicação (no corpo das alegações) de vários depoimentos produzidos em audiência de julgamento que reputaram de relevantes […], bem como de elementos documentais, fazendo-o […] em termos que ilustram a falta de conexão entre os meios probatórios e os factos impugnados concretamente indicados:
Não constando pois das alegações os dados mínimos que permitiriam ao tribunal recorrido (e à parte contrária) determinar e localizar quais os meios probatórios passíveis de alterar os pontos fácticos impugnados […]”

o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10-12-2020, processo n.º 3782/18.0T8VCT.G1:
“[…] o recorrente enunciou qual a matéria de facto que entendia incorrectamente julgada […], o resultado que pretende para cada um desses incisos probatórios e os concretos meios probatórios onde funda a sua impugnação (testemunhas e documentos), mas é totalmente omisso quanto à indicação das passagens da gravação em que se baseia. E para que não exista equívoco, esta omissão de indicação não respeita à concretização de onde, no registo de gravação, em que número, minuto ou segundo da pista, começa e termina a parte do testemunho ou depoimento que se proteste como relevante para a formação de diversa convicção. Esta indicação também não está feita, mas o que falta decisivamente é a indicação das concretas passagens do testemunho ou depoimento que o recorrente devia assinalar, como sendo as significativas para o fim que persegue, as expressões tidas por decisivas. Em limite de explicação, acrescentamos que, se porventura o recorrente sinalizasse nos diversos depoimentos e testemunhos as partes do que cada um deles disse, como se acabou de dizer numa formulação clara “as expressões tidas por decisivas pelo recorrente”, fosse por transcrição fosse por alusão temática, então, como tem sido decidido (vd. revista no Processo 1825/09.7TBSTS.P1.S1, de 22/04/2014), à indicação das passagens da gravação, referida no preceito, bastaria aquela indicação segmentária do depoimento ou depoimentos e a identificação de quem os prestou, sem obrigatoriedade da sua transcrição. Porém, o que faltou em absoluto ao recorrente foi situar, na totalidade dos testemunhos e depoimentos que identificou a parte ou partes deles que interessavam à formação da convicção relativamente aos pontos que impugnou, isto é, em termos simples, o que fez foi dizer: entendo que estes factos estão mal julgados, para estarem bem julgados deveriam ter estas respostas e para o efeito de averiguar e decidir da bondade do que alego deve o tribunal consultar os documentos e ouvir na totalidade os depoimentos indico.
[…] fica suficientemente esclarecido que ele não cumpriu o ónus de “indicar com exatidão as passagens da gravação” que permitiria ao tribunal ficar a saber substancialmente da razão do desacordo e não apenas, utilitariamente, a situar no registo da gravação as passagens que se entendiam como relevantes e que, afinal, não foram mencionadas.
[…] a aceitar-se que bastava ao recorrente apontar qual a matéria de facto que queria ver alterada, em que sentido e, genericamente, que depoimentos em termos globais e não concretizados podiam satisfazer a sua pretensão, tal permitiria precisamente o que desde o início, no D.L. 39/95 sempre a lei quis evitar, ou seja, que não fosse possível provocar um novo julgamento.”

o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 3-11-2020, processo n.º 294/08.3TBTND.C3.S1:
“Na apreciação da (in)observância dos ónus previstos no art. 640.º do CPC, há que levar em devida linha de conta que a impugnação da matéria de facto não se destina a reiterar um julgamento na sua totalidade, mas antes a corrigir determinados aspetos que o recorrente entenda não terem merecido um tratamento adequado por parte do tribunal a quo.
[…] perante uma convicção do julgador de facto baseada em tantos elementos probatórios documentais, não podiam os Recorrentes fundar a sua impugnação numa afirmação genérica, não concretizada e desrespeitadora do ónus de especificação dos concretos meios probatórios que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida (art. 640.º, n.º 1, al. b), do CPC).”

Em face do acima aduzido e perante a extensa e concreta fundamentação da decisão da matéria de facto lavrada na sentença recorrida, onde a senhora juíza a quo ponderou criteriosamente a prova testemunhal e apontou, ponto por ponto, a razão da sua convicção, não podia o recorrente impugnar a matéria de facto da forma genérica e ampla como fez, sem qualquer especificação dos concretos meios probatórios que, no seu entender, impunham decisão diversa e que manifestamente se absteve de enunciar.
Com tais fundamentos, considerando não estar cumprido o ónus impugnatório cumulativo que resulta do n.º 1 do art. 640º do CPC, rejeita-se a impugnação da matéria de facto.
*

3.2.4.-A imputação da responsabilidade pela verificação do sinistro à conduta dolosa do réu/recorrente

Tendo presentes os factos apurados, que se mantêm inalterados, a 1ª instância apreciou a pretensão da seguradora/recorrida nos seguintes termos:
“O direito de regresso da Autora sustenta-se no disposto no artigo 27º, n.º 1, a) do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de agosto. O referido artigo determina que “satisfeita a indemnização, a empresa de seguros apenas tem direito de regresso (…) contra o causador do acidente que o tenha provocado dolosamente.
Comecemos por nos debruçar sobre o regime da responsabilidade civil, com vista ao apuramento da responsabilidade pela ocorrência do acidente.
Importa apurar a existência dos seguintes pressupostos da responsabilidade civil:
1.-Um facto voluntário do agente;
2.-A ilicitude desse facto;
3.-Que o facto seja censurável ao agente;
4.-A existência de um dano;
5.-Nexo de causalidade entre o facto praticado pelo agente e o dano.
Define-se a ilicitude como a violação de um direito de outrem ou na infracção de uma norma destinada a proteger interesses alheios.
Por sua vez, sendo a culpa um dos pressupostos da obrigação de indemnizar, para que a violação do direito de outrem ou de disposição legal destinada a proteger interesses alheios gere a responsabilidade civil é necessário que o agente tenha actuado com culpa, isto é, com dolo ou com negligência.
Neste caso concreto, sem necessidade de outras considerações, guinar o volante intencionalmente contra outro veículo/ motociclo, causando a sua queda, é necessariamente um facto ilícito, porquanto se trata de uma conduta violadora de um direito alheio, para além de contrariar as regras do Código da Estrada quanto à circulação de veículos, destinadas a proteger os interesses de todos quantos nela circulam, tendo sido frontalmente violado o disposto no artigo 11.º n.º 2 do CE, por ter sido praticado um acto que pôs em causa a segurança da condução do motociclo.
Para além do facto ilícito praticado pelo réu, é igualmente inequívoco que o mesmo actuou com culpa.
A culpa é um dos pressupostos da obrigação de indemnizar, como se retira do artº. 483º., nº. 1, do Código Civil (C.C.) – para que a violação do direito (absoluto) de outrem ou de disposição legal destinada a proteger interesses alheios gere a responsabilidade civil é necessário que o agente tenha actuado com culpa, ou seja, com dolo ou com negligência.

Com efeito, como ensina o Prof. Antunes Varela, “a culpa exprime um juízo de reprovabilidade pessoal da conduta do agente: o lesante, em face das circunstâncias específicas do caso, devia e podia ter agido de outro modo. É um juízo que assenta no nexo existente entre o facto e a vontade do autor” (Cfr. “Das Obrigações em Geral”, vol. I, 10ª. Ed., págs. 566).

Podendo a culpa revestir a forma de dolo ou a forma de negligência (também dita mera culpa), cabem naquele os casos em que o agente quis realizar o facto ilícito (dolo directo), ou, não o querendo realizar directamente o previu como uma consequência necessária da sua conduta (dolo necessário) ou ainda, não querendo realizar directamente o facto ilícito, previu-o como uma consequência possível (dolo eventual), mas, mesmo assim, aceitou-o.

Ora, neste caso concreto, tendo em conta que o guinou o veículo ##-##-XH propositadamente para a esquerda, onde se encontrava o motociclo ##-HZ-##, tendo-lhe embatido, dúvidas não podem existir de que terá, pelo menos, actuado na modalidade de dolo eventual, que é uma forma de dolo, pois, com essa guinada do volante, e bem sabendo que o motociclo se encontrava ao seu lado, não pode deixar de ter configurado como possível embater-lhe e provocar o acidente, tendo aceitado essa possibilidade mas tal não foi obstáculo para prosseguir a sua conduta intimidatória.

Com efeito, não importa que o réu não tenha tido intenção directa de provocar o acidente, o dolo existe mesmo que esse seja o resultado de um acto cuja prática tenha sido intencional e que foi causador do acidente, como sucedeu neste caso: o réu teve uma atitude temerária, pois guinou intencionalmente o volante para a esquerda, contra o motociclo, ainda que, quanto à consequência, apenas possa até ter configurado como possível o resultado.”

O réu/recorrente insurge-se contra a afirmação de que actuou com dolo eventual, porquanto, no seu entender, tal como é referido na própria sentença, se admite que não terá havido intencionalidade da sua parte na produção do acidente; mais considera que, tal como decorre do que alegou nos artigos 16º a 19º da sua contestação, a guinada que deu no volante do seu carro não foi intencional, no sentido de pretender provocar o embate e o derrube da mota e do condutor, como veio a ocorrer, daí que não haja dolo directo ou necessário, assim como não houve dolo eventual, porque não pretendia este resultado nem o previu, tendo aliás, após o acidente, ficado sentado no interior do veículo.

A ora recorrida instaurou a presente acção visando exercer o direito de regresso que lhe é conferido pelo art.º 27.º, n.º 1, a) do RSORCA, nos termos do qual, satisfeita a indemnização, a empresa de seguros tem direito de regresso contra o causador do acidente que o tenha provocado dolosamente.

Como decorre já do acima expendido, na sequência da legislação precedente e bem assim atento o disposto no art.º 15º, n.º 2 do RSORCA, de acordo com o qual, o seguro garante ainda a satisfação das indemnizações ou de acidentes de viação dolosamente provocados, sem prejuízo do referido no número seguinte, a seguradora, paga a indemnização, terá direito de regresso, nos termos do art. 27° daquele diploma legal, sendo de realçar que o legislador quis salvaguardar os interesses dos lesados, mesmo nos casos em que os danos advêm de acidente dolosamente provocados.

Não obstante a contradição nos próprios termos que por uns tem sido apontada à expressão acidente dolosamente provocado, aludindo ao conceito de acidente apenas na sua acepção tradicional, isto é, de acontecimento casual e fortuito, a jurisprudência tem propendido, em sentido aparentemente uniforme, para o entendimento de que a expressão acidente não é aqui utilizada nesse sentido tradicional, mas antes no seu sentido mais geral de fenómeno ou acontecimento anormal decorrente da circulação de um veículo, acepção em que caberia o acidente dolosamente provocado, posição que se coaduna com a finalidade visada de protecção dos interesses do lesado – cf. acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 18-1222008, processo n.º 08P3852 – “Na proposição teleológica do regime do seguro obrigatório a perspectiva está centrada na garantia dos lesados, terceiros estranhos à utilização ou condução do veículo causador de danos, ou, em sucessivos afinamentos do conteúdo da garantia, mesmo qualquer ocupante do veículo que não seja o condutor […], e por isso, quando utilizadas as expressões «sinistro» ou «acidente», o plano de apreensão tem de ser considerado primeiramente do ponto de vista do lesado, e não tanto facto-centrado, no plano puro, e de certo modo neutro, do acontecimento. VIII - Para o lesado, todo o acontecimento resultante da circulação de um veículo com motor que lhe cause danos pessoais ou materiais, e a cuja génese ou domínio foi estranho, constitui um acidente («acidente de viação»), no sentido de ocorrência exógena e não esperada (inesperada), ou, do seu plano e perspectiva, fortuita. IX - Deste ponto de vista, de que parte o regime da garantia de seguro obrigatório (protecção e centralidade do lesado), a ocorrência voluntariamente provocada pelo condutor de um veículo, em circulação ou em condições de circulação, na via pública, em movimento, em circunstâncias aparentemente típicas de circulação, constitui, neste sentido, um «acidente», na expressão da lei, «dolosamente provocado».”; de 7-05-2009, processo n.º 09A0512 – “o conceito de acidente tem de ser perspectivado a partir da vítima”; de 17-01-2013, processo n.º 358/08.3TBVLP.P1.S1 e de 12-06-2017, processo n.º 8/07.5TBSTB.S1.

Daí que, para este efeito, se deva considerar que tanto é acidente o acontecimento estradal fortuito e casual como o dolosamente provocado, pois que em ambas as situações se mantém idêntico o interesse do lesado em ser indemnizado dos danos sofridos, sendo esse o interesse que a lei visa proteger – cf. ainda, neste sentido, José Carlos Moitinho de Almeida, in Seguro obrigatório automóvel: o direito português face à jurisprudência do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias, pp. 16-17[8] - “[…] a disposição em causa não é clara ao reportar-se a “acidentes de viação, dolosamente provocados”. Mas, tomada à letra, a palavra “acidentes” não abrange também as ocorrências atribuíveis a dolo eventual. Trata-se de disposição inspirada na Convenção de Estrasburgo de 20 de Abril de 1959, relativa ao Seguro obrigatório da Responsabilidade Civil no Domínio dos Veículos Automóveis e noutros direitos vigentes à época que, como o italiano, não fazem qualquer distinção. Mas, em nosso entender, há que interpretar o referido artigo 8.°, n.º 2 em conformidade com o direito comunitário e a jurisprudência do Tribunal de Justiça acima mencionada. Ora, as directivas têm como objecto o seguro de responsabilidade civil que resulta da “circulação” de veículos automóveis, a qual pode dar origem a acidentes bem como ser utilizada intencionalmente para a prática de crimes, e nenhuma prevê a exclusão da cobertura de danos causados dolosamente a qual deve, assim, ser garantida […]”

Acidentes dolosamente provocados pelo causador do acidente serão aqueles cujo resultado o segurado quis ou previu – cf. José Vasques, Contrato de Seguro - Notas para uma Teoria Geral 1999, pág. 357.
Cabem na previsão da norma que estipula o direito de regresso, os acidentes de viação como tal prefigurados e desejados pelo seu agente, ou seja, acidentes de viação dolosos, sejam eles cometidos com dolo directo ou eventual – cf. acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 15-05-2013, processo n.º 466/10.0PBBGC.P1.

O recorrente não coloca em crise o facto de se estar perante um acidente de viação traduzido na colisão entre o veículo por si conduzido, o ##-##-XH, e o motociclo ##-HZ-##, originada pela circunstância de ter guindado a sua viatura propositadamente para a esquerda, onde se encontrava o motociclo, tendo-lhe embatido, provocando a sua queda no chão, bem como a do condutor, manobra que foi por si voluntariamente efectuada – cf. pontos 4. a 11. da matéria de facto provada.

Em causa também não está o facto de a colisão ter sido originada pela conduta do réu/recorrente e tão-pouco a circunstância de os danos apurados (cf. pontos 12. a 19.) serem consequência desse embate.

O apelante não se insurge contra a qualificação jurídica efectuada pela decisão recorrida no sentido de que tal conduta – guinar o volante intencionalmente contra o motociclo – constituir um facto ilícito, porque infringe as regras do Código da Estrada, colocando em causa a segurança rodoviária (cf. art. 11º, n.º 2).

Discorda, contudo, o recorrente, da imputação da responsabilidade pela verificação do acidente que lhe é feita a título de dolo, porquanto, no seu entender, nada resulta dos factos provados que indique que a guinada no volante tenha sido intencional, ou seja, para provocar o embate, logo, não existindo dolo directo ou necessário, assim como nada aponta no sentido de ter previsto como possível o embate que veio a ocorrer, pelo que não se verifica dolo eventual.

Nos termos do art.º 4.º do RSORCA “Toda a pessoa que possa ser civilmente responsável pela reparação de danos corporais ou materiais causados a terceiros por um veículo terrestre a motor para cuja condução seja necessário um título específico […] deve, para que esses veículos possam circular, encontrar-se coberta por um seguro que garanta tal responsabilidade, como se verificava no caso da circulação do veículo ##-##-XH, cuja responsabilidade estava transferida para a seguradora demandante.

Por força do contrato de seguro celebrado entre o tomador do seguro e a seguradora e titulado pela apólice referida em 1., a companhia de seguros é a responsável pela satisfação ao lesado dos danos emergentes do evento danoso decorrente de culpa exclusiva do condutor do veículo cuja circulação estava devidamente segurada.

Como tal, a recorrida encontrava-se obrigada a satisfazer ao lesado os danos decorrentes do acidente de viação em causa, o que fez.

Tendo efectuado o pagamento da indemnização ao lesado nos termos sobreditos, a seguradora pretende agora, por via desta acção, exercer o direito de regresso contra o condutor do veículo em virtude de este ter provocado dolosamente o acidente, peticionando a sua condenação no pagamento do valor total que suportou, invocando o estatuído no art.º 27.º, n.º 1, a) do RSORCA.

A expressão o tenha provocado dolosamente implica, necessariamente, que o destinatário do exercício do direito de regresso seja o condutor culpado pela eclosão do acidente, ou seja, pressupõe a respectiva responsabilidade civil subjectiva fundada em culpa deste (excluindo-se, portanto, a responsabilidade objectiva ou pelo risco).

Devem verificar-se, pois, relativamente ao condutor, demandado em via de regresso, os vários pressupostos da responsabilidade subjectiva por facto ilícito, o que foi positivamente aferido pela decisão recorrida e aqui não foi colocado em crise.

Mais do que isso, a decisão recorrida considerou que estava preenchida a previsão da alínea a) do n.º 1 do art.º 27º do RSORCA, entendendo que o recorrente agiu pelo menos com dolo eventual, sendo contra este segmento da decisão que o apelante se insurge.

Adianta-se, desde já, que não se vislumbra como dissentir da ponderação efectuada pela 1ª instância.

Nos termos do disposto no art.º 483.º do Código Civilaquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação”.

Concluiu-se na sentença que o réu, tendo guinado o volante do seu veículo contra o motociclo ##-HZ-##, na direcção deste, acabando por nele embater e causar a sua queda, é um acto ilícito que tem de lhe ser imputado a título de culpa, ou seja, com dolo ou negligência, concluindo, depois, pela verificação de dolo eventual, com o fundamento que o réu sabia que o motociclo se encontrava a seu lado, pelo que, com a guinada do volante que efectuou, não poderia deixar de configurar como possível que viesse a embater-lhe e a provocar o acidente, possibilidade que aceitou e com ela se conformou, posto que prosseguiu com a sua atitude intimidatória.

Como refere Antunes Varela, o dolo é a modalidade mais grave da culpa, em que a conduta do agente é mais fortemente censurável face à estreita conexão entre a vontade e o facto – cf. Das Obrigações em geral, vol. I, 6ª edição, pp. 538-539.

O dolo abrange:

As situações em que o agente quis directamente realizar o facto ilícito – dolo directo:“o agente representa ou prefigurano seu
espírito determinado efeito da sua conduta e quer esse efeito como fim da sua actuação, apesar de conhecer a ilicitude dele;
As situações em que, não querendo directamente o facto ilícito, o agente, porém, previu-o como uma consequência necessária, segura, da sua conduta, estando o efeito ilícito e o resultado desejado ligados, conhecendo o agente esse nexo de causalidade e nem por isso não deixou de actuar – dolo necessário;
As situações em que o agente previu a produção do facto ilícito, não como uma consequência necessária da sua conduta, mas como um efeito apenas possível ou eventual – dolo eventualcf. Antunes Varela, op. cit., pp. 539-540.

A distinção do dolo eventual face à negligência consciente radicará na adesão da vontade do agente ao resultado: se o agente, ao actuar, não confiou em que o efeito possível se não verificaria, então aceitou esse resultado e há dolo; se actuou porque, ainda que infundadamente, confiou em que o resultado não se produziria, estar-se-á perante mera negligência (consciente).

Para que haja dolo é ainda necessário que o agente conheça as circunstâncias de facto que integram a violação do direito ou da norma tuteladora de interesses alheios e tenha consciência da ilicitude do facto, embora sem ser necessário que tenha a intenção de causar um dano a outrem, bastando a consciência do prejuízo, do carácter danoso do facto.

Quanto à possibilidade de violação da norma no dolo eventual, Menezes Cordeiro refere que “há dolo eventual quando a conduta do agente ainda possa ser reconduzida à violação da própria norma e não à simples inobservância de deveres de cuidado. Para tanto, basta averiguar se a conduta do agente era norteada, de antemão pela possibilidade da violação, sendo esta aceite como fim, ainda que instrumental.” – cf. Tratado de Direito Civil Português II Direito das Obrigações Tomo III 2010, pág. 471.

O réu convoca para reapreciação desta questão aquilo que alegou na sua contestação mas que não demonstrou, ou seja, que se sentiu agredido nos seus bens pela agressão do condutor do motociclo ao espelho do seu veículo e reagiu guinando o volante apenas para que aquele se afastasse, nunca tido intenção de provocar danos, nem tendo previsto que a guinada pudesse levar ao embate.

Ora, nada se apurou quanto a uma prévia agressão do condutor do motociclo ao espelho retrovisor do veículo ##-##-XH, embora o recorrente insista repetidamente nesse facto não demonstrado.

Com base nos factos apurados e estando provado que a manobra em causa – a guinada do veículo ##-##-XH propositadamente para a esquerda, onde se encontrava o motociclo ##-HZ-## – foi efectuada voluntariamente pelo réu, tendo este consciência da proximidade do motociclo, desde logo porque se havia colocado ao seu lado e porque foram trocadas palavras entre ambos os condutores (cf.- ponto 6-. e 7.), não se pode deixar de concluir, como o tribunal recorrido, que, por um lado, o réu quis efectuar aquela manobra e, por outro, que, ao fazê-la, tinha necessariamente de configurar como possível que tal constituísse um acto capaz de prejudicar o exercício da condução com segurança e aceitou essa possibilidade, ainda que não tenha querido ou tido intenção de embater no motociclo e provocar a sua queda.

Dentro da normalidade da vida e do modo como se processa o trânsito e sobretudo para quem conduz é expectável que um veículo que inopinadamente se desvia para o sentido onde está a circular um outro venha a embater neste, o que é, aliás, altamente provável, pelo que ao actuar voluntariamente no sentido descrito o agente aceitou a possibilidade de infringir a regra estradal que impõe que os condutores se abstenham de qualquer acto que coloque em causa a condução em segurança e se conformou com essa violação, prosseguindo a sua conduta. Actuou, pois, com dolo eventual.

Tendo sido o causador do acidente, a título doloso, sendo certo que o art. 27º, n.º 1, a) do RSORCA abrange todos os tipos de dolo como acima se deixou explanado, estão reunidos os pressupostos para o exercício do direito de regresso que a seguradora pretende fazer valer nesta acção.
*

3.2.5.–Da legítima defesa como causa de justificação da ilicitude/erro sobre os pressupostos como causa de exclusão da culpa
O réu alegou na sua contestação que a guinada no volante só ocorreu porque foi uma sua reacção ao facto de, uns metros antes do embate, o condutor do motociclo, com luvas, ter dado um soco no espelho retrovisor do seu veículo, partindo-o, pelo que reagiu a tal agressão, pretendendo apenas que o condutor do motociclo se afastasse, pelo que invocou uma actuação em legítima defesa, que excluiria a ilicitude da sua conduta.

O Tribunal recorrido apreciou esta questão do seguinte modo:

“Prevê o artigo 337.º do CC, sob a epígrafe “legítima defesa” que se “considera justificado o acto destinado a afastar qualquer agressão actual e contrária à lei contra a pessoa ou património do agente ou de terceiro, desde que não seja possível fazê-lo pelos meios normais e o prejuízo causado pelo acto não seja manifestamente superior ao que pode resultar da agressão (n.º 1). O acto considera-se igualmente justificado, ainda que haja excesso de legítima defesa, se o excesso for devido a perturbação ou medo não culposo do agente (n.º 2).
A legítima defesa é realizada pelo próprio titular de um direito, ou por terceiro, contra uma agressão atual e ilícita a esse direito, quando não for possível, em tempo útil, o recurso à autoridade pública.
São, assim, requisitos da legítima defesa (1) a agressão atual e ilícita; (2) a impossibilidade de o defendente recorrer aos meios normais para afastar a agressão e (3) o prejuízo causado pelo ato não ser manifestamente superior ao que pode resultar da agressão.
Em primeiro lugar, apenas é susceptível de legítima defesa qualquer agressão antijurídica e actual, no sentido em que a agressão deve ser iminente, a acontecer, a ter lugar no próprio momento.
Além disso, a necessidade da acção defensiva supõe que esta não deve passar além do que seja adequado para afastar e repelir eficazmente a agressão - princípio da menor lesão para o agressor, avaliada segundo critérios objectivos. Assim, quem defende deve escolher de entre os meios eficazes de defesa que estejam, em concreto, à sua disposição, aquele que resulte menos perigoso e que cause menor dano.
Ora, neste caso, da própria configuração da defesa apresentada pelo réu não resulta qualquer situação de legítima defesa, porquanto é o próprio réu a alegar (em sede de contestação e no seu requerimento de aperfeiçoamento em audiência prévia) que a agressão que lhe teria sido perpetrada (ainda que não provada) já havia sido concretizada e que apenas “reagiu como forma de reação” pretendendo” obrigar o condutor do motociclo a sentir a sua reação” e “afastar-se do automóvel e do espelho”, “para defender o seu património”, “para avisar o condutor que se devia afastar mais”.
Não resulta, pois, configurada uma situação de legítima defesa, nem sequer tendo sido alegados os seus necessários pressupostos.
Por outro lado, ainda que se tratasse de uma lesão iminente, ou mesmo de uma situação de erro quanto aos pressupostos da legítima defesa (o que não foi sequer alegado), a que o réu quisesse obviar, sempre estaríamos diante de uma manifesta desproporcionalidade, porquanto, o acto que intencionalmente praticou (guinada de volante contra o motociclo e que provocou um acidente de viação), foi manifestamente excessivo, ainda que estivesse em causa a iminência de lhe ser partido um espelho retrovisor.
Ora, o excesso de meios empregues apenas poderia justificar o acto praticado pelo réu caso esse excesso fosse devido a perturbação ou medo não culposo do agente (artigo 337.º n.º 2 do CC), nem sequer tendo sido alegada a factualidade subjacente que permitisse ao tribunal fazer essa apreciação.
Deste modo, o acto do réu não se encontra justificado, subsistindo a conclusão de que se tratou de um acto ilícito e culposo a título de dolo.”

Decorre do art. 141º do RJCS que, mesmo nos casos em que a cobertura dos actos dolosos não está excluída – como sucede no seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel -, a liberação de o segurador efectuar a prestação convencionada em caso de sinistro causado dolosamente pelo tomador do seguro ou pelo segurado cede perante a ocorrência de causa de justificação da ilicitude (cumprimento de um dever, obediência hierárquica, exercício de um direito, acção directa, legítima defesa, estado de necessidade, consentimento do lesado) ou de exclusão da culpa (erro acerca dos pressupostos da acção directa ou da legítima defesa, erro desculpável, medo relevante)cf. José Vasques, Lei do Contrato de Seguro Anotada 2016 3ª Edição, pág. 454.

Ora, a invocação da legítima defesa, a provar-se, teria a virtualidade de impedir o direito de regresso que a seguradora aqui vem accionar, porquanto, justificada a actuação ilícita do réu, manter-se-ia a prestação convencionada entre o segurado e a seguradora, sem que o equilíbrio e a justiça social impusessem ao segurado o dever de assumir a responsabilidade pelos danos ocorridos.

Não é, porém, o que sucede no caso dos autos, tal como foi correctamente explanado na decisão recorrida, a que se adere, desde logo porque não ficou provado o primeiro pressuposto do instituto da legítima defesa, qual seja, a existência de uma agressão ilícita, actual e momentânea que se impusesse repelir.

Aliás, o próprio recorrente afirma na motivação do recurso que para se concluir pela verificação de uma actuação em legítima defesa “era mister considerar provada a descrição dos factos tal como o réu, desde o início manteve, ou seja, que o condutor do motociclo, momentos imediatamente antes do embate das viaturas, ou mais precisamente, da guinada do réu para a esquerda, lhe partiu com um soco o espelho esquerdo do automóvel”, factos que, como é sabido, não estão demonstrados (cf. pontos 1. a 3. dos factos não provados).

No que diz respeito à legítima defesa putativa a questão releva enquanto motivo para eventual alargamento da justificação do acto.

Estatui o art.º 338º do Código Civil queSe o titular do direito agir na suposição errónea de se verificarem os pressupostos que justificam a acção directa ou a legítima defesa, é obrigado a indemnizar o prejuízo causado, salvo se o erro for desculpável.”

Menezes Cordeiro refere que o risco de situações que aparentem agressões corre por quem as crie e não pelos defendentes, daí que a legítima defesa putativa seja justificante quando a aparência justificativa não seja imputável ao agente – cf. Tratado de Direito Civil Português I Parte Geral Tomo IV 2007, pág. 434.

Ora, nesta matéria, nada se apurou também, sendo certo que, pretendendo o réu afastar a obrigação de reembolsar a seguradora pelos valores que esta despendeu para ressarcir o lesado, lhe incumbiria a ele o ónus de alegar e provar que, a ter reagido a uma suposta agressão, o erro não lhe era imputável.
Nada disso se apurou nos presentes autos, revelando-se despiciendas quaisquer outras considerações para além das vertidas na decisão recorrida.

Improcede, pois, também nesta sede, a argumentação recursória.
*

O recorrente alude ainda à existência de uma dúvida relevante e insanável manifestada pelo Tribunal a quo quanto à ocorrência da agressão ao espelho pelo condutor do motociclo, que deveria ter conduzido à aplicação do princípio in dubio pro reo, convocando novamente a possibilidade de erro quanto aos pressupostos da legítima defesa, sem que se descortine qual a questão que o recorrente pretende, em concreto, suscitar.

Não se vislumbra em que parte da sentença se louva o recorrente para afirmar que a 1ª instância revelou dúvida sobre a imputação da responsabilidade do acidente à sua conduta e quanto à natureza dolosa desta, o que, aliás, resulta da matéria de facto provada e da apreciação jurídica efectuada, que não merece qualquer censura.

Quanto à não abrangência pela previsão da norma do art.º 27º, n.º 1, a) do RSORCA da modalidade de dolo eventual já se deixou acima explanada posição contrária, nada se evidenciando da norma em referência no sentido de que o legislador tenha pretendido excluir o acidente provocado por dolo eventual do seu campo de aplicação, pois que também nessas situações o agente prevê a possibilidade de violação da norma (que não apenas de deveres de cuidado) e a aceita, mesmo que a título instrumental face ao fim prosseguido com a conduta.

Se, como pretende o recorrente, o legislador tivesse pretendido restringir a possibilidade de direito de regresso da seguradora aos casos em que o segurado provoca o acidente de modo intencional, com dolo directo (ou necessário), não se teria limitado a aludir a acidente provocado dolosamente, pois que o dolo, enquanto graduação da culpa em sentido amplo, é comummente distinguido em três tipos: directo, necessário e eventual, o que não podia deixar de ser do conhecimento do legislador – cf. neste sentido, o acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 14-01-2021, processo n.º 998/19.5T8ORM.E1, ainda que a propósito da previsão da alínea c) do n.º 1 do art. 27º do RSORCA (direito de regresso contra o condutor que haja abandonado o sinistrado), aí se referindo que a lei não menciona abandono doloso, mas a jurisprudência tem entendido que a mera referência ao abandono já transporta essa intencionalidade do condutor de não acompanhar nem prestar assistência às vítimas, criando um risco acrescido e onde expressamente se consideram abrangidos os três tipos de dolo).

Pelas razões supra expostas, improcede integralmente a apelação, devendo manter-se inalterada a decisão recorrida.
*

Das Custas
De acordo com o disposto no art. 527º, n.º 1 do CPC, a decisão que julgue a acção ou algum dos seus incidentes ou recursos condena em custas a parte que a elas houver dado causa ou, não havendo vencimento da acção, quem do processo tirou proveito. O n.º 2 acrescenta que dá causa às custas do processo a parte vencida, na proporção em que o for.
Nos termos do art. 1º, n.º 2 do Regulamento das Custas Processuais, considera-se processo autónomo para efeitos de custas, cada recurso, desde que origine tributação própria.
O recorrente decai em toda a extensão quanto à pretensão que trouxe a juízo, pelo que as custas (na vertente de custas de parte) ficam a seu cargo.
*

IV–DECISÃO

Pelo exposto, acordam as juízas desta 7.ª Secção do Tribunal de Relação de Lisboa, em julgar improcedente a apelação, mantendo, em consequência, a decisão recorrida.
As custas ficam a cargo do apelante.
*


Lisboa, 5 de Abril de 2022[9]



Micaela Marisa da Silva Sousa
Cristina Silva Maximiano
Amélia Alves Ribeiro



[1]Adiante designado pela sigla CPC.
[2]Acessível na Base de Dados Jurídico-documentais do Instituto de Gestão Financeira e Equipamentos da Justiça, IP em www.dgsi.pt, onde se encontram disponíveis todos os arestos adiante mencionados sem indicação de origem.
[3]Adiante designado pela sigla RJCS.
[4]Adiante designado pela sigla RSORCA.
[5]Julgar Online Novembro 2018, disponível em http://julgar.pt/wp-content/uploads/2018/11/20181126-O-direito-de-regresso-da-seguradora-nos-acidentes-de-via%C3%A7%C3%A3o-Maria-Am%C3%A1lia-Santos.pdf.
[6] Acessível em  https://www.asf.com.pt/NR/rdonlyres/E0A868B6-B492-413A-AC0C-BA5AE04CBFA2/0/FDULFranciscoRodriguesRochaDaSubroga%C3%A7%C3%A3onoContratodeSeguro.pdf.
[7]Cf. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30-03-2017, processo n.º 1375/06.3TBSTR.E1.S1: “Relativamente à extensão do caso julgado a terceiros, de entre eles, segundo Antunes Varela e outros distinguir-se-ão:
i)–os terceiros juridicamente indiferentes, a quem a decisão não produz nenhum prejuízo jurídico, não interferindo com a existência e validade do seu direito, embora podendo afetar a sua consistência prática ou económica, em relação aos quais não poderia deixar de se admitir a eficácia do caso julgado;
ii)–os terceiros juridicamente prejudicados, titulares de relações jurídicas independentes e incompatíveis com o caso julgado alheio, em relação aos quais nenhuma razão haverá para serem por ele atingidos;
iii)–os terceiros titulares de uma relação ou posição dependente da definida entre as partes por decisão transitada, a quem se tem reconhecido a eficácia reflexa do caso julgado;
iv)–os terceiros titulares de relações paralelas à definida pelo caso julgado alheio ou com ela concorrentes, considerando-se, quanto às primeiras, que o caso julgado só se estende às partes e, quanto às segundas que, se a lei não exigir a intervenção de todos os interessados, só lhes aproveita o caso julgado favorável.
A ineficácia do caso julgado em relação a terceiros é explicada por Alberto dos Reis nos seguintes moldes: «É perfeitamente compreensível este princípio da ineficácia do caso julgado em relação a terceiros. A sentença contém a formulação da vontade concreta da lei com referência a um caso particular. Como se alcança esta formulação? A sentença é um acto do juiz; mas para a produção desse acto contribui, na mais larga medida, a actividade do autor e do réu. São as partes que põem a questão; são as partes que articulam os factos; são as partes que alegam e discutem; são as partes, em suma, que preparam, mobilizam e fornecem ao juiz os materiais de conhecimento, os vários elementos de que há-de sair a sua convicção, expressa na sentença. Para bem ou para mal, a sentença, se é um acto do juiz, é ao mesmo tempo o produto de intensa e activa colaboração das partes. Por isso a sentença tem, como destinatários naturais, as partes e só as partes. Estender a eficácia da sentença a terceiros, estranhos ao processo, que não intervieram nele, que não foram ouvidos nem convencidos, que não foram colocados em condições de dizer da justiça, de alegar as suas razões, de exercer qualquer espécie de influência na formação da convicção do juiz – é uma violência que pode redundar numa iniquidade
[8]Acessível em https://www.stj.pt/wp-content/uploads/2018/01/moitinhoalmeida_seguroobrigatorio.pdf, consultado em 22 de Março de 2022.

[9]Acórdão assinado digitalmente – cf. certificados apostos no canto superior esquerdo da primeira página.