Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2414/15.2T8CSC.L1-7
Relator: HIGINA CASTELO
Descritores: INCAPACIDADE ACIDENTAL
TESTAMENTO
DOCUMENTO AUTÊNTICO
FORÇA PROBATÓRIA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/22/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Texto Parcial: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I. A incapacidade acidental, no momento do testamento, para entender o sentido das declarações ou exercer livremente a vontade torna o testamento anulável, incumbindo ao autor, beneficiário da pretendida anulação, o ónus de alegar e provar factos que permitam ao julgador afirmar esse estado de incapacidade.

II. A demência num estado não grave, sem mais pormenorizada caracterização, não gera necessariamente incapacidade permanente, mas mera intermitência nas faculdades de entender e querer, sem afastar períodos de plena lucidez.

III.O documento autêntico que incorpora o testamento dos autos, ao qual não foi oposta (muito menos, provada) falsidade, faz prova plena dos factos que refere como praticados pela notária, assim como dos factos que nele são atestados com base nas perceções desta; o simples facto de a notária, tendo ouvido as declarações da testadora e com ela conversado, não se ter apercebido de qualquer incapacidade da mesma é primeira e qualificada garantia de que a testadora gozava, quando testou, de capacidade de entender, de querer e de adequadamente manifestar a sua vontade.

(Sumário da relatora – art. 663, n.º 7, do CPC)

Decisão Texto Parcial: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa.


I.Relatório:


ANTÓNIO S., ALEXANDRE S., FRANCISCO S., MARIANA B. e MARGARIDA S., autores no processo indicado à margem, em que é ré SEBASTIANA L., notificados da sentença absolutória proferida em 14 de março de 2017 e com ela não se conformando, interpuseram o presente recurso.

Os autores intentaram a ação pedindo que:
a)- Seja declarado nulo ou anulado o testamento outorgado por Helena L., no dia 29 de agosto de 2011, lavrado a fls. 4 e 4 verso do Livro de Testamentos Públicos número 1..., no Cartório Notarial de Lagoa, sito em Lagoa (Algarve), na Rua do Município de S. Domingos, Lote 7, rés-do-chão direito, a cargo da Notária Dra. Ana P..
b)- Seja declarado nulo ou anulado o testamento outorgado por Helena L., no mesmo dia 29 de agosto de 2011, lavrado a fls. 3 e seguintes do Livro de Testamentos Públicos numero 1..., no Cartório Notarial de Lagoa, sito em Lagoa (Algarve), na Rua do Município de S. Domingos, Lote 7, rés-do-chão direito, a cargo da Notária Dra. Ana P..
Invocam, em suma que a testadora padecia de doença neuro-degenerativa - demência - diagnosticada por médico em 2006, pelo que na data dos testamentos não tinha capacidade de entender e querer.
A ré foi pessoalmente citada e deduziu contestação na qual impugnou os factos que fundamentalmente alicerçam os pedidos.
Após julgamento, foi proferida a sentença absolutória com a qual os autores não se conformam.

Os recorrentes terminam as suas alegações de recurso, concluindo:
«AVem o presente recurso interposto, de facto e de direito, da decisão proferida nos autos à margem identificados que julgou a acção improcedente por não provada, absolvendo a Ré do pedido.
BPara fundar a sua convicção sobre os factos provados e não provados, o Tribunal "a quo" teve primordialmente em conta vários meios de prova que, analisados e criticados, sumariamente elencou na decisão de que se recorre entre os quais se encontra uma procuração datada de 2010, a fls. 122 dos autos principais.
CSobre este meio de prova [procuração datada de 2010, a fls. 122 dos autos principais], cuja junção pela recorrida foi requerida em 25/10/2016, veio a Mma. Juiz "a quo" em sede de audiência de discussão e julgamento de 9 de Fevereiro de 2017 proferir despacho de indeferimento e desentranhamento.
DResulta da decisão sob recurso, em sede de análise crítica da prova produzida nos autos, que a prova documental elencada pela Mma. Juiz "a quo" e com base na qual proferiu a sua decisão, lhe permitiu dar como provados os factos 1 a 14, 18 a 27, 29, e 31 a 35, sendo que, refira-se, alguns destes pontos por acordo das partes e outros por documentos juntos, não impugnados.
ENuma primeira análise não se antevê sequer a possibilidade de um documento cuja junção foi indeferida permitir prova de qualquer facto concreto.
FDispõe o artigo 413º do CPC que "o tribunal deve tomar em consideração todas as provas produzidas, tenham ou não emanado da parte que devia produzi-las, sem prejuízo das disposições que declarem irrelevante a alegação de um facto, quando não seja feita por certo interessado".
GDonde, e porque indeferida a sua junção, se determinado meio de prova não foi produzido, também o Tribunal não pode tomá-lo em consideração na sua decisão, como fez.
HSob epígrafe "nulidades da sentença", dispõe o artigo 615º do CPC que "1 - é nula a sentença quando: (...) o juiz (...) conheça de questões de que não podia tomar conhecimento (...)”. Nulidades que, conforme prevê o nº 2 do mesmo artigo "(...) só podem ser arguidas perante o tribunal que proferiu a sentença se esta não admitir recurso ordinário, podendo o recurso, no caso contrário, ter como fundamento qualquer dessas nulidades."
IE nulidade que como tal expressamente se vem arguir, já que foram levados em conta para a decisão do Tribunal "a quo" documentos que não foram produzidos, por indeferimento do próprio Tribunal.
JCaso assim não se entenda - nulidade da sentença - sempre se entenderá que estamos perante uma nulidade processual cujo regime, efeitos e prazos de arguição, se encontram previstos nos artigos 186º ss do CPC.
LDestarte o regime de arguição das nulidades processuais principais, típicas ou nominadas vem contemplado nos arts. 186º a 194º e 196º a 198º do CPC, sendo que as nulidades secundárias, atípicas ou inominadas -, genericamente contempladas no nº 1 do art. 195º -, só produzem nulidade quanto a lei expressamente o declare ou quando a irregularidade possa influir no exame e discussão da causa, como é o caso.
MConsiderando o regime de arguição destas nulidades processuais, ditas secundárias, previsto no artigo 199º, nº 1 do CPP, e uma vez que "in casu" tal nulidade foi cometida na sentença "o prazo para a arguição conta-se do dia em que, depois de cometida a nulidade, a parte interveio em algum ato praticado no processo ou foi notificada para qualquer termo dele, mas neste último caso só quando deva presumir-se que então tomou conhecimento da nulidade ou quando dela pudesse conhecer, agindo com a devida diligência."
NSem embargo, e de não somenos importância é o facto de a Mma. Juiz "a quo" não especificar, como devia, que documentos é que permitiram provar o quê.
OCom efeito, menciona a decisão sob recurso que, para prova da factualidade vertida nos pontos 1 a 14, 18 a 27, 29, 31 a 35, levou em consideração o acordo das partes e documentos juntos, não impugnados.
PUma vez que, com referência a qualquer dos demais pontos dos factos provados, não foram considerados quaisquer documentos, permitimo-nos concluir que todos os documentos elencados pela Mma. Juiz "a quo" para motivação da matéria de factos serviram, só e apenas, para provar os referidos pontos 1 a 14, 18 a 27, 29, 31 a 35, sem conseguirmos especificar, no entanto, que documento serviu para provar qualquer um dos pontos, e naturalmente que facto foi provado pela referida procuração datada de 2010, a fls. 122 dos autos principais.
QA sentença é, pois, nula quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão.
RRefere a este respeito o Professor Castro Mendes (in “Direito Processual Civil”, Vol. III, pg. 308), que uma sentença nula “não contém tudo o que devia, ou contém mais do que devia”.
SIgnorou, pois, o tribunal recorrido, sem do mais, a obrigatoriedade de fundamentação da decisão proferida.
TSendo a mesma nula por falta de fundamentação de facto, conforme resulta dos disposto das disposições conjugadas dos artigos 154, nº 1, 607, nº2 e art.º 615.º, n.º 1 al. b) do CPC e do art.º 205.º, n.º 1 da CRP.
UO dever de fundamentação das decisões visa de uma banda, “impor ao juiz um momento de verificação de controlo crítico da lógica da decisão”, e “permitir às partes o recurso da decisão com perfeito conhecimento da situação”, e de outro, “ tornar possível um controlo externo e geral sobre a fundamentação factual, lógica e jurídica da decisão, garantindo a transparência do processo da decisão” – Vd. Ac. TC n.º 304/88, de 14/12 no BMJ 3982/230 e no DR, II serie, de 11.04.1989.
VNo caso concreto, a decisão sob "recurso" omite a especificação da prova em que se baseia para dar como provados determinados factos, fazendo apelo inclusivamente a meios de prova não produzidos nos autos, razão pela qual somos a que a referência genérica nela constante não satisfaz o mínimo legal de fundamentação, estando a mesma ferida de invalidade.

X Se por um lado a Mm. Juiz "a quo" deu como provado que:
- Helena L. expressava-se de forma clara e lógica quanto outorgou o testamento, conforme foi atestado pela Sra. Notária do Cartório Notarial onde o mesmo foi outorgado. (38)
- Apenas por ter chegado à conclusão que a falecida Helena L. estava lúcida e tinha capacidade para entender a decisão que estava a tomar é que foi outorgado o testamento em causa. (41)

Z Por outro lado dá como não provados os seguintes factos:
- Que a testadora não se encontrando no pleno gozo das suas capacidades mentais e volitivas, não tinha consciência do conteúdo da declaração que emitiu. (np-11)
- Que a falecida Helena L. tinha capacidade de entender a relevância e solenidade do ato de testar e tinha vontade de praticar aquele ato nos termos em que o praticou. (np- 13).

AA)Ora, entenda-se, ou bem que a falecida se expressava de forma clara, lógica e lúcida, quando outorgou o testamento, concluindo-se assim pela sua capacidade para entender a decisão que estava a tomar (factos considerados provados), ou bem que se considera que não se dá como provado que a falecida Helena L. tinha capacidade de entender a relevância e solenidade do ato de testar e tinha vontade de praticar aquele ato nos termos em que o praticou - (np-13) - porque se não tinha tal capacidade de entender a relevância e solenidade do ato de testar e a vontade de praticar aquele ato nos termos em que o praticou também não se pode dar como provado que o fez de forma clara, lógica e lúcida.
AB)A decisão proferida sobre tais factos nos termos em que o foi [quer quanto aos provados, quer quanto aos não provados] reveste-se de tal forma contraditória que se reconduz claramente a uma contradição insanável na apreciação da prova, ferindo de nulidade a sentença proferida.
AC)Estipula-se no art. 615.º do CPC, sob a epígrafe de “causas de nulidade da sentença” e na parte que ora releva, que é “nula a sentença quando: … c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível...” [n.º 1], derivando ainda do mesmo preceito que as “… nulidades mencionadas nas alíneas b) a e) do n.º 1 só podem ser arguidas perante o tribunal que proferiu a sentença se esta não admitir recurso ordinário, podendo o recurso, no caso contrário, ter como fundamento qualquer dessas nulidades...” [n.º 4].
AD)A decisão é, pois, obscura quando contém algum passo cujo sentido seja ininteligível e ambíguo, quando alguma passagem se preste a interpretações diferentes e/ou sentidos porventura opostos.
AE)A factualidade supra vertida presta-se a interpretações diametralmente opostas, quanto ao objecto em discussão neste litígio, pondo, dessa forma, em causa a cabal e total compreensão da decisão proferida.
AF)A sentença de que se recorre é, pois, nula, nos termos do artigo 615º, 1, al. c) atenta a obscuridade e consequente ambiguidade da decisão sobre os factos que lhe estão subjacentes.

AG) O Tribunal "a quo" deu como provados os seguintes factos:
a)- Que a falecida Helena L. padecia de uma doença neurodegenerativa (demência) diagnosticada por médico especialista durante o ano de 2006. (12)
b)- Que desde o dia 29 de Maio de 2006, a falecida era acompanhada pelo Dr. J.P.V., médico e chefe do Serviço de Neurologia.(16)
c)- Que a falecida apresentava em 2006, um quadro clínico com perda de memória, de agravamento lentamente progressivo, desorientação no tempo e dificuldades crescentes nas actividades da vida diária, p. ex. ida às compras e em trabalhos domésticos. (17)
d)- Que a demência é uma perda de capacidades mentais suficientemente grave para interferir com a capacidade de uma pessoa agir normalmente no trabalho, ou em sociedade, sendo caracterizada por um defeito nas memórias de curto e longo prazo, e pela desintegração da personalidade devido a alterações no discernimento e no julgamento. (22)
e)- Que a demência é a progressiva deterioração da função cognitiva, ou seja a capacidade de pensar e raciocinar. (23)

AH) Para prova desta factualidade fundou a Mma. Juiz "a quo" a sua convicção com base do acordo das partes, e documentos juntos, não impugnados.
AI) Sem contudo especificar, como também já referimos, quais os documentos que permitiram concluir por tal decisão, vem depois a Mma. Juiz "a quo" dar como não provados os seguintes factos:
1)- Que a falecida apresentava um grau de incapacidade superior a 60% de acordo com o capítulo X de uma tabela nacional de incapacidades (grau de avaliação das incapacidades em psiquiatria) pelo que, estaria incapacitada para a execução de tarefas ao nível da gestão das pessoas e dos seus próprios bens. (np-7)
3)- Que a testadora não se encontrando no pleno gozo das suas capacidades mentais e volitivas, não tinha consciência do conteúdo da declaração que emitiu. (np-11)
4)- Que a falecida Helena L. tinha capacidade de entender a relevância e solenidade do ato de testar e tinha vontade de praticar aquele ato nos termos em que o praticou. (np-13)

AJ)Sobre a evidente contradição entre estes factos também já tivemos ocasião de nos pronunciar. Iremos agora e, salvo melhor e douto entendimento, pronunciar-nos quanto à prova que impunha decisão diversa desta outra que julgou como não provados os factos enunciados como np-7 e np-11.
AL)A testemunha J.P.V. é médico neurologista e acompanhou a falecida desde o dia 29 de Maio de 2006, no quadro da doença neuro-degenerativa (demência) que lhe foi diagnosticada.
AM) O registo do seu depoimento encontra-se gravado com o número 20170209144721_3608356_ 2871331, com cerca de 1 hora e 26 minutos de duração.
AN)Este clínico refere ter acompanhado a falecida desde Maio de 2006, e referiu que atento o lapso de tempo teve de se socorrer dos elementos que constavam do processo clínico; não hesitou por isso em afirmar que observou a falecida em 21 consultas [27.00m], e que soube da morte da Sra. D. Helena, por ter sido procurado dois dias depois pela cuidadora que lhe comunicou a morte da Sra. e lhe pediu que atestasse que a falecida se encontrava em pleno das suas capacidades [21.00m-23.00m], o que a testemunha recusou por não corresponder à verdade.
AO)A primeira consulta da falecida ocorreu em 26 de Maio de 2006, sendo que à data lhe foram fornecidos elementos subjetivos do quadro clínico da paciente, com uma evolução de cerca de três anos, dados que lhe foram comunicados pela acompanhante da paciente, que na altura foi uma sobrinha - [04.50m]. Naquela altura, refere que a doente se encontrava já numa fase de demência ligeira [05.60m] que é já um estado de patologia [16.00], que não se confunde com o avançar da idade.
AP)Durante o ano de 2009, a falecida começou a ter alterações comportamentais, o que já indiciava que o estádio da doença se encontrava noutro patamar, daí ter sido introduzido um novo medicamento na terapêutica [25.00m a 28.00m]
AQ)A partir desta altura 2009/2010 a doente começa a ter um comportamento mais alheado, por ex. vinha à consulta, cumprimentava e depois estava sempre a olhar para o ar [28.00m-30.00m].
AR)Afirma ainda o especialista que "a partir do momento em que as pessoas começam a ficar dementes é muito difícil ter uma conversa com princípio, meio e fim.(...) Neste tipo de patologias, começam a faltar nomes, não ter palavras. Os discursos são incompletos, depois é muito difícil o doente ter uma conversa, à medida que a situação vai evoluindo, porque não há uma situação de reversibilidade." [31.00m-35.00m]
AS)Refere ainda que a partir de certa altura a doente começou a ter dificuldades motoras [40.00m]... a partir de 2011... tendo inclusivamente prescrito a partir dessa altura um medicamento que se dá para a doença de Parkinson [42.00]. E não duvida que em 2011 a doente não apresentava lucidez [43.00], admitindo como possível que tenha sido comunicada a morte de um familiar e que se tenha esquecido, porque basta dois minutos para não se lembrar das coisas [45.00m].
AT)Esta testemunha é autora e signatária do documento número 16 junto aos autos apensos no qual atesta pormenorizadamente, na qualidade de médico assistente da falecida que a mesma padecia de uma "doença neurodegenerativa - demência- e independentemente da entidade (Doença de Alzheimer, demência vascular, demência frontotemporal, demência mista...), com incapacidade superior a 60% (esta estimativa é fundamentada na interpretação, por analogia, da Tabela Nacional de Incapacidades, no Cap. X - critérios de avaliação em Psiquiatria - Grau V) e não teria o discernimento necessário e, portanto, estaria incapacitada para a execução de tarefas ao nível da gestão de pessoas e bens".
AU)De todo em todo, e apesar dos especiais conhecimentos médicos da testemunha, quer por via da sua especialidade - médico neurologista - quer por ter seguido Helena L., no âmbito dessa especialidade, entendeu a Mma. Juiz "a quo" que foi muito impressiva a prova produzida quanto à capacidade de querer e perceber da falecida do momento do testamento, apresentada por outras testemunhas, que ofereceram de igual modo credibilidade.
AV)Escusamos de transcrever os depoimentos de Laura M., Helena S., e Luísa M. que, no entender da Mma. Juiz "a quo" foram muito credíveis, por não terem qualquer interesse patrimonial nos autos, ignorando porém tratarem-se de amigas e vizinhas de grande proximidade com a Ré, factos que julgamos terem sido bem explanados em sede de alegações mas que o Tribunal não acolheu.

AX)De todo o modo, em face das declarações prestadas pelo médico assistente da falecida e na sequência aliás da matéria de facto dada como provada quanto à doença/patologia da falecida, e não obstante a contradição expressa entre a factualidade provada e não provada, deveria o Tribunal "a quo" ter dado como provados os seguintes factos:
1)- Que a falecida apresentava um grau de incapacidade superior a 60% por referência ao capítulo X da tabela nacional de incapacidades, atento o grau de demência que apresentava
2)- Que a testadora não se encontrando no pleno gozo das suas capacidades mentais e volitivas, não tinha consciência do conteúdo da declaração que emitiu.

AZ)Resultando assim directamente contrariado o facto dado como provado no ponto numero 38 que deveria ter sido julgado não provado (Helena L. expressava-se de forma clara e lógica quando outorgou o testamento.)
BA)Resulta ainda provado no entendimento da Mma. Juiz "a quo" que a falecida teve conhecimento da morte da mulher do sobrinho Fernando, (34), considerando não provado que a falecida teve conhecimento da morte do sobrinho Fernando (np -9).
BB)Para prova da factualidade deste ponto 34, o Tribunal " a quo" fundou a sua convicção no acordo das partes e documentos juntos, não impugnados.
BC)Tratando-se de matéria controvertida, não se percebe qual o acordo ou o documento que tenham permitido ao Tribunal fundamentar a sua convicção que, de resto, não deixa de ser acertada, porque é facto que a falecida teve conhecimento da morte da mulher do sobrinho Fernando.
BD)Alexandre S. que prestou de declarações como parte e cujo gravação se encontra registada com o numero 20170209161508_3608356_2871331, filho do referido sobrinho Fernando referiu perentoriamente que a morte do seu pai, tal como a da mãe, lhe foi comunicada [15.00m] tendo o próprio declarante visitado a falecida Helena em Cascais, com o propósito de lhe contar [17.00], mais adiantando que a reação da mesma foi uma reação desinteressada, sendo certo que acredita que não terá sido ele a dar-lhe a noticia em primeira mão [18.00].
BE)A testemunha Ana S. cujo depoimento se encontra gravado com o número de registo 20161104110349_3608356_2871331 refere também [25.00m - 35.00m] que existia uma grande ligação entre a falecida Helena L.e aquele sobrinho Fernando, que morreu com um cancro no Pâncreas, sendo que foi visitar ao Hospital de Tomar, onde estava internado, três semanas antes da sua morte.
A notícia da sua morte foi-lhe comunicada telefonicamente pela depoente, que antes disso havia falado, também telefonicamente, com a recorrida para que esta preparasse a falecida tia para a noticia, inclusivamente para tentar perceber se ela queria ou não ir ao funeral do sobrinho.
BF)Perante estas declarações e depoimentos prestados em nosso entendimento de forma isenta, e segura, apesar dos laços familiares do declarante e da depoente com os recorrentes, a Mma. Juiz " a quo" desconsiderou o teor dos mesmos, na sua plenitude, e considerou não provado o facto de a noticia da morte do sobrinho Fernando ter sido dada à falecida Helena L., descurando a possibilidade de a mesma se ter esquecido, por força da sua demência, como de resto veio a acontecer com a mulher deste sobrinho, que, como dissemos, já havia também falecido, e não obstante, no primeiro testamento outorgado, a falecida o identificou ainda como casado.
BG)Afigura-se-nos pois que o Douto Tribunal "a quo" fez uma incorreta interpretação da prova produzida nos autos, e que a resposta a tais questões de facto merecia entendimento diverso. Quanto a nós,
BH)No ponto 34 da factualidade provada, e por força da prova produzida, deveria o Tribunal ter reconhecido que "a falecida teve conhecimento quer da morte da mulher do sobrinho, quer da morte do sobrinho".
BI)Sem embargo, a resposta ao ponto 37 deveria também ela ser diferente e considerar o Tribunal que "nesse momento, a R. teve de informar a falecida Helena L.que o seu sobrinho já havia falecido, uma vez por força da sua doença, a mesma já não o recordava, já que não raras vezes era acometida por esquecimento e confusão "eliminando-se o ponto 49 da factualidade provada e o ponto np-9 da factualidade não provada.
BJ)Entende o Tribunal "a quo" na decisão sob recurso, à semelhança de jurisprudência que refere, que o simples facto de o testamento ser outorgado sob o crivo notarial, lhe confere uma primeira e reforçada garantia de que a testadora gozava de um mínimo bastante de capacidade anímica para querer para entender o que afirmou ser sua vontade.
BL)Parece-nos particularmente abalada a credibilidade da testemunha Ana P., notária, perante a qual foi lavrado este testamento, e cujo registo do depoimento se encontra gravado com o número 20161103160554_3608356_2871331 quando questionada se, se lhe tivesse sido comunicado que a testadora padecia de uma doença de Alzheimer ou de uma demência, o seu procedimento teria sido outro [18.00m-20.00m], e a mesma responde que faria exatamente a mesma coisa. Refere a depoente que se falando com a pessoa a mesma lhe parecer dentro das suas capacidades normais, não vê necessidade de procedimento excecional, e que "se depois a senhora sai dali e não está normal, isso eu não sei!"
BM)Estamos em crer que por alguma razão específica prevê o Código do Notariado, no seu artigo 67º, a intervenção de peritos médicos em testamentos públicos, a fim de atestarem a sanidade mental dos outorgantes, a pedido destes ou do próprio Notário.
BN)E estamos também em crer que, por alguma razão especial se dirigiu a recorrida ao consultório médico do neurologista assistente da falecida, Dr. J.P.V., dois ou três dias depois da morte dela, com o propósito de que o mesmo lhe atestasse a sanidade mental da paciente, relembre-se o depoimento do mesmo [20170209144721_3608356_ 2871331] entre o minuto 20 e o minuto 23.
BO)Dispõe o artigo 662º do CPC que o Tribunal da Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes e a prova produzida impuserem decisão diversa.
BP)Afigura-se-nos, salvo melhor e douto entendimento, que perante a prova produzida, à qual se alheou o Douto Tribunal "a quo", deverão V. Exas. Venerandos Juízes Desembargadores alterar a factualidade provada, em consonância com as alegações supra expostas.
BQ)Consideramos pois que, no caso concreto, os recorrentes alegaram e demonstraram em juízo que a falecida Helena L. não tinha capacidade para querer e entender o alcance do ato e solenidade de que se reveste um testamento,
BR)Sendo que perante o avançado estado do seu deficit cognitivo associado à demência de que era portadora nos permite concluir que o testamento sub judice não representa a livre, inteira e esclarecida vontade da falecida.
BS)Uma vez que a mesma se encontrava desprovida do necessário discernimento que lhe permitisse entender o sentido e o alcance da sua declaração.
BT)Pelo que deve, pois, ser judicialmente declarado nulo ou anulável o testamento outorgado por Helena L., no dia 29 de Agosto de 2011, lavrado a fls. 4 e 4 verso do Livro de Testamentos Públicos numero 1..., no Cartório Notarial de Lagoa, sito em Lagoa (Algarve), na Rua do Município de S. Domingos, Lote 7, rés-do-chão direito, a cargo da Notária, Dra. Ana P.
BU)A sentença de que se recorre violou, por errónea interpretação e aplicação, os artigos 2180º, 2189º, 2190º, 2199º do Código Civil, artigos 154º, 195º, 413º, 607º e 615º do CPC, e artigo 205º da CRP.
Termos em que, com muito douto suprimento de V. Exas. e em conformidade com o exposto, deve ser dado provimento ao presente recurso de apelação, e em consequência revogada a decisão proferida, e substituída por outra que declare nulo ou anulável o testamento outorgado por Helena L., no dia 29 de Agosto de 2011, lavrado a fls. 4 e 4 verso do Livro de Testamentos Públicos numero 1..., no Cartório Notarial de Lagoa, sito em Lagoa (Algarve), na Rua do Município de S. Domingos, Lote 7, rés-do-chão direito, a cargo da Notária, Dra. Ana P., com todas as inerentes e legais consequências.»

A ré contra-alegou, pugnando pela improcedência do recurso e confirmação da sentença.

Foram colhidos os vistos e nada obsta ao conhecimento do mérito.

Objeto do recurso
Sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso, são as conclusões das alegações de recurso que delimitam o âmbito da apelação (arts. 635, 637, n.º 2, e 639, n.ºs 1 e 2, do CPC).

Tendo em conta o teor daquelas, colocam-se as seguintes questões:
A sentença enferma de nulidade?
O tribunal a quo apreciou mal os factos?
O(s) testamento(s) deve(m) ser declarado(s) nulo(s) ou anulado(s)?

II.Fundamentação de facto.
Estão provados os seguintes factos que, pelos motivos explicados em III.B., correspondem aos adquiridos em 1.ª instância:

1.No dia 21 de março de 2015, pelas 11.35, faleceu, no estado de viúva, Helena L., com última residência habitual na Praceta ..., Cascais.
2.Helena L. não deixou descendentes ou ascendentes vivos.
3.Helena L. tinha um irmão, Francisco P.S., falecido em 20 de abril de 1957, no estado de casado com Noémia S..
4.Este irmão de Helena L., Francisco P.S., deixou três filhos: Fernando S. já falecido em 15 de abril de 2009, no estado de viúvo de Graça S.; Carlos S.S. já falecido em 25 de julho de 1979, no estado de casado com Ana M.S.; e António S., ora A.
5.Os pré-falecidos Fernando S. e Carlos S.S. deixaram, por sua vez, descentes: Alexandre S., ora A., e Francisco S., Mariana B., e Margarida S., também AA.
6.Helena L. deixou testamento outorgado no dia 29 de agosto de 2011, no Cartório Notarial de Lagoa, sito em Lagoa (Algarve), na Rua do Município de S. Domingos, Lote 7, rés-do-chão direito, a cargo da Notária, Dra. Ana P..
7.Nesse testamento, outorgado a fls. 4 e 4 verso do Livro de Testamentos Públicos número 1..., a falecida institui como única universal herdeira a R., sua empregada, Sebastiana L., divorciada, natural de Belém, de nacionalidade brasileira, impondo-lhe os seguintes encargos: “a) o dever de tratar da testadora, facultando-lhe uma assistência digna e b) que nunca a coloque num lar” - cf. doc. 11 junto nos autos de procedimento cautelar.
8.Dispondo ainda que por este testamento revogou e substituiu outro testamento outorgado no mesmo cartório, na mesma data, e a fls. 3 e seguintes do mesmo livro de Notas para Testamentos Públicos.
9.Os AA. tomaram conhecimento do primeiro testamento na data em que se realizou o funeral da falecida, 1 de abril de 2015, tendo-lhes sido o mesmo apresentado pela Ré.
10.Foi por Helena L. outorgado imediatamente antes outro testamento, então revogado em momento imediatamente posterior, no qual a falecida instituiu como seus únicos e universais herdeiros a Ré e o seu sobrinho Fernando S., casado, residente em Lisboa, impondo-lhes os seguintes encargos: “a) o dever de tratar da testadora, facultando-lhe uma assistência digna e b) que nunca a coloquem num lar”.
11.Na data da outorga deste testamento, que é a mesma data do testamento seguinte, 29 de agosto de 2011, o sobrinho Fernando S. já havia falecido em 15 de abril de 2009, no estado de viúvo de Graça S..
12.A falecida Helena L. padecia de uma doença neuro-degenerativa (demência) diagnosticada por médico especialista durante o ano de 2006.
13.Em 23/05/2006 foi decidido pelos sobrinhos que a Helena L. contratasse a Ré, o que esta fez.
14.Por essa altura, a Ré passou a cuidar permanentemente da falecida, com a mesma passando a residir, e portanto pernoitando, com direito ao seu vencimento mensal, aos efetivos e devidos descontos para a segurança social e a alimentação.
15.A R. conhecia o estado de saúde da falecida e as circunstâncias degenerativas da sua doença.
16.Desde o dia 29 de maio de 2006, a falecida era acompanhada pelo Dr. J.P.V., médico e Chefe do Serviço de Neurologia
17.A falecida apresentava em 2006 um quadro clínico com perda de memória, de agravamento lentamente progressivo, desorientação no tempo e dificuldades crescentes nas actividades da vida diária, p. ex. ida às compras e em trabalhos domésticos.
18.A Ré assumiu em 2006 as funções vulgarmente conhecidas de “cuidadora permanente” de Helena L.
19.O exame realizado na consulta de 29 de maio de 2006 não apresentava sinais focais do sistema nervoso central, mas a avaliação breve do estado mental com o MMSE revelou um defeito cognitivo, indiciando provisoriamente o diagnóstico de síndrome demencial.
20.A falecida iniciou então terapêutica com Donepezilo 5, medicamento usado para atenuar os sintomas de demência em pessoas – cf. doc. v que se junta e se dá por integralmente reproduzido para os devidos e legais efeitos.
21.A demência consiste numa perda das funções mentais, geralmente associada com a idade avançada, envolvendo problemas com a memória e o raciocínio.
22.A demência é uma perda de capacidades mentais suficientemente grave para interferir com a capacidade de uma pessoa agir normalmente no trabalho ou em sociedade, sendo caracterizada por um defeito nas memórias de curto e longo prazo, e pela desintegração da personalidade devido a alterações no discernimento e no julgamento.
23.A demência é a progressiva deterioração da função cognitiva, ou seja, a capacidade de pensar e raciocinar.
24.A 30 de junho de 2006, enquanto aguardava a segunda consulta marcada pelo especialista Dr. J.P.V., igualmente acompanhada pela mulher do 1.º A., a falecida sofreu um episódio de perda do conhecimento e hemiparesia direita.
25.Na sequência do que foi internada no Centro Hospitalar de Cascais, para onde foi conduzida pelo INEM, e teve alta em 5 de julho de 2006, tendo o diagnóstico definitivo afirmado Leucoencefalopatia microangiopática, AIT, Ateromatose carotídea, Síndrome demencial, HTA, Dislipidemia e Hipotiroidismo.
26.A falecida foi medicada com sinvastatina e clopidogrel, para além da medicação prescrita anteriormente que manteve.
27.Foi medicada em 24 de setembro de 2009 com Risperidona 0,5 mg à noite.
28.Em 2010, numa consulta com o Dr. JPV, esteve com os olhos fechados, emitindo sons guturais, e completamente alheada.
29.A falecida sofria de incontinência urinária.
30.Uma vez, Helena L. perdeu ou foi furtada da quantia de € 500 que tinha na carteira.
31.Os pagamentos das despesas da falecida eram efetuados pela Ré, a qual, a partir de 2009, passou a utilizar um cartão de débito.
32.Nunca foram postos em causa pelos Autores quaisquer movimentos pela mesma efetuados.
33.A Ré entregava aos Autores os extratos bancários da conta, que os controlavam.
34.A falecida teve conhecimento da morte da mulher do sobrinho Fernando.
35.A falecida deixou à R., enquanto herdeira universal dos seus bens, o jazigo familiar onde se encontram sepultados os seus antepassados.
36.Após a outorga do primeiro testamento, as testemunhas que estiveram presentes no mesmo informaram a R., que nele não esteve presente, de que a falecida Helena L. havia instituído como seus herdeiros o referido sobrinho e a R.
37.Nesse momento, a R. teve que informar a falecida Helena L. que o seu sobrinho já havia falecido e, por decisão da falecida Helena L., foi outorgado novo testamento, no qual apenas instituiu como sua herdeira a ora R.
38.Helena L. expressava-se de forma clara e lógica quando outorgou o testamento, conforme foi atestado pela Senhora Notária do Cartório Notarial onde o mesmo foi outorgado.
39.Tendo procedido à leitura do testamento e à explicação do seu conteúdo, como decorre da lei e consta do respetivo documento.
40.A Notária manteve com a falecida Helena L. conversas, anteriormente à outorga do testamento, em privado e em público, a fim de atestar o estado mental desta.
41.Apenas por ter chegado à conclusão de que a falecida Helena L. estava lúcida e tinha capacidade para entender a decisão que estava a tomar é que foi outorgado o testamento em causa.
42.Os AA. apenas a acompanharam a algumas consultas até à data em que a falecida Helena L. foi internada a 30/06/2006.
43.A partir daquela altura foi sempre a R. quem acompanhou a mencionada falecida a todas as consultas e a realizar exames e análises, quando tal foi necessário.
44.O facto de a Ré ter passado a viver e a acompanhar continuamente Helena L. importou melhorias no estado psicológico, físico e mental por ter passado a tomar a medicação à hora certa, demonstrando progressos no seu tratamento.
45.A falecida Helena L. continuou a dar os seus passeios, sempre acompanhada da Ré.
46.A falecida depois de 2006, pelo menos em algumas fases, alimentava-se sozinha e tratava da sua higiene diária.
47.A falecida almoçava algumas vezes em restaurantes, conversava com outras pessoas, gostava de conviver e de sair de sua casa.
48.A referida Helena L. recebia na sua residência e convivia com visitas, amigos e vizinhos, que conhecia e a quem reconhecia.
49.Por vezes foi acometida pelo esquecimento e confusão.

Nada mais de relevante se provou, nomeadamente os contrariados diretamente pelos dados como provados, os prejudicados pelos dados como não provados e os seguintes:
[np]-1.– Que durante todo o percurso da sua doença os Autores e acompanhavam-na e visitavam-na mais que duas vezes por ano.
[np]-2.– Que o ordenado da Ré foi ajustado com os Autores.
[np]-3.– Que a partir de 2008, os distúrbios comportamentais passaram a ser mais evidentes, com apatia, alternando com agitação, e por vezes agressividade.
[np]-4.– Que Helena L. quando visitada pelos seus familiares encontrava-se sempre sentada num sofá, ou deitada na cama, alheada da realidade, num estado de completa apatia.
[np]-5.– Que Helena L. não compreendia, na maioria das vezes, o que lhe diziam, nem era capaz, tão pouco de se fazer compreender, ou de reter na memória factos que lhe fossem apresentados.
[np]-6.– Que Helena L., em regra, no ano de 2010 mantinha sons guturais, sem capacidade para manter qualquer tipo de conversa.
[np]-7.– Que a falecida apresentava um grau de incapacidade superior a 60%, de acordo com o capítulo X de uma tabela nacional de incapacidades (grau de avaliação das incapacidades em psiquiatria) pelo que, estaria incapacitada para a execução de tarefas ao nível da gestão das pessoas e dos seus próprios bens.
[np]-8.– Que Helena L. só permanecia cerca de três semanas a um mês por ano no Algarve.
 [np]-9.– Que a falecida teve conhecimento da morte do sobrinho Fernando.
[np]-10.– Que a testadora não se encontrando no pleno gozo das suas capacidades mentais e volitivas, não tinha consciência do conteúdo da declaração que emitiu.
[np]-11.– Que a pedido dos Autores não foi dado conhecimento do óbito do seu sobrinho Fernando S. à falecida Helena L., por esta nutrir por aquele muito carinho e isso lhe ir causar um grande desgosto.
[np]-12.– Que as melhorias eram sempre referidas pelo Dr. JPV, aquando das suas consultas.
[np]-13.– Que a falecida Helena L. tinha capacidade de entender a relevância e solenidade do ato de testar e tinha vontade de praticar aquele ato nos termos em que o praticou.
[np]-14.– Que a falecida por sistema em 2010 necessitava de ajuda para comer, para ir à casa de banho ou para se vestir.
[np]-15.– Que em 2010, a falecida já não conhecia, de todo, o dinheiro.
[np]-16.– Que à data do testamento, a falecida não tinha o discernimento necessário para, sem o apoio de terceiros, fazer uso do dinheiro, que já não conhecia.
[np]-17.– Que as melhorias eram sempre referidas pelo Dr. JPV, aquando das suas consultas.

III.Apreciação do mérito do recurso.

A.Das nulidades imputadas à sentença
Os recorrentes começam por invocar a nulidade da sentença, com os seguintes fundamentos: i) consideração pelo tribunal a quo, na fundamentação da decisão de facto, de um documento (procuração datada de 2010, a fls. 122 do processo principal) cuja junção não admitiu; ii) apelo genérico a um conjunto amplo de documentos para fundamentar um conjunto considerável de factos; iii) contradição insanável entre os factos provados 38 e 41 e os não provados np-11 e np-13.

As causas de nulidade da sentença constam das alíneas do n.º 1 do art. 615 do CPC, que passamos a reproduzir.

«1 É nula a sentença quando:
a)- Não contenha a assinatura do juiz;
b)- Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
c)- Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;
d)- O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;
e)- O juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido.»

Vejamos os vários aspetos invocados pelos recorrentes.

A procuração veio aos autos por requerimento da recorrida em 25/10/2016. Em sede de audiência de discussão e julgamento, em 9/02/2017, foi proferido despacho a indeferir a junção e a determinar o desentranhamento.
Todavia, na fundamentação da decisão de facto, o tribunal a quo afirmou que, para prova da factualidade vertida nos pontos 1 a 14, 18 a 27, 29, 31 a 35, levou em consideração o acordo das partes e documentos juntos, não impugnados; e elencou, entre os documentos analisados, a mesma procuração de fls. 122.
Fê-lo nos primeiros parágrafos da sua extensa fundamentação da decisão sobre a matéria de facto, ainda no âmbito de considerações genéricas sobre a prova. Ao listar os documentos dos autos, por evidente lapso material, lista também «fl 122 procuração datada de 2010».
Trata-se da única referência feita a «procuração» ou a «fls. 122» em toda a sentença. Na fundamentação que depois é feita, facto por facto, não existe qualquer referência a este documento. Claramente, ele apenas foi elencado de forma geral, como fazendo parte do acervo de documentos, por lapso, e sem qualquer influência na decisão de facto.

Na referência que na fundamentação da decisão de facto é feita ao conjunto dos documentos dos autos, para prova de um conjunto de factos, também não teve qualquer influência a procuração que tinha estado a «fls. 122» e que, entretanto tinha sido desentranhada. Basta ler esse conjunto de factos (1 a 14, 18 a 27, 29, 31 a 35) para perceber que a dita procuração não foi neles tida em conta.

Em suma, a referência ao documento em causa foi inócua e os factos encontram-se bem e extensamente fundamentados com referências aos vários meios de prova que foram influentes na decisão e com explicação das razões dessa influência.

Os recorrentes imputam ainda à sentença nulidade por contradição entre os factos provados 38 e 41 e os não provados np-11 e np-13. Um facto não provado não contraria um facto provado, na medida em que a não prova de um facto não significa a prova do seu contrário.

De todo o modo, leiam-se os factos em causa, para melhor percebermos:

Provado que:
Helena L. expressava-se de forma clara e lógica quanto outorgou o testamento, conforme foi atestado pela Sra. Notária do Cartório Notarial onde o mesmo foi outorgado. (38)
Apenas por ter chegado à conclusão que a falecida Helena L. estava lúcida e tinha capacidade para entender a decisão que estava a tomar é que foi outorgado o testamento em causa. (41)
Não provado:
Que a testadora não se encontrando no pleno gozo das suas capacidades mentais e volitivas, não tinha consciência do conteúdo da declaração que emitiu. (np-11)
Que a falecida Helena L. tinha capacidade de entender a relevância e solenidade do ato de testar e tinha vontade de praticar aquele ato nos termos em que o praticou. (np- 13)

O facto de se dar como não provado que a falecida tinha capacidade de entender e de querer o ato concreto não contradiz os factos de, aquando do ato, a mesma se expressar de forma clara e lógica e de a notária ter chegado à conclusão que a testadora estava lúcida e tinha capacidade para entender a decisão que estava a tomar.

Mais: o facto de se dar como não provado que a falecida tinha capacidade de entender e de querer o ato concreto é irrelevante para a decisão da causa, pois, como explicado na sentença e adiante voltaremos a esclarecer, recaía sobre os autores o ónus de provar o contrário – que a testadora não tinha capacidade de entender e de querer –, e não sobre a ré o ónus de provar que a tinha.

Por tudo o exposto, concluímos que a sentença não padece de qualquer vício subsumível às alíneas do n.º 1 do art. 615 do CPC.

B.Da reapreciação da prova
(...)
Por tudo o exposto, mantém-se a seleção de factos feita pelo tribunal a quo.

C.Aplicação do direito.
Está em causa na ação a apreciação da validade de testamentos públicos feitos por Helena L., em 29/08/2011, perante notário.
Mais especificamente, a causa de pedir reconduz-se à alegada incapacidade acidental da testadora de entender o sentido das suas declarações, aquando da realização dos testamentos – incapacidade que, por lei, torna o testamento anulável (art. 2199 do CC).
Não obstante, os autores pediram, a final, a declaração de nulidade dos testamentos, pelo que apreciaremos os factos também do ponto de vista de eventuais causas de nulidade.

De acordo com a regra geral, todas as pessoas singulares dispõem de capacidade testamentária ativa, podendo dispor dos seus bens (de todos ou de parte), para depois da morte – podem testar todos os indivíduos que a lei não declare incapazes de o fazer (art. 2188 do CC).
O art. 2191 do CC fixa o momento relevante na apreciação da capacidade testamentária ativa: o da data do testamento, no caso, 29/08/2011.
Nesta data, a testadora dispôs de todos os seus bens, para depois da morte, instituindo sua única e universal herdeira a empregada interna que tinha havia cerca de cinco anos. Não tendo herdeiros legitimários (v. arts. 2156 e 2157 do CC), estava livre para fazê-lo.
Fê-lo através do negócio próprio, o testamento: ato unilateral e revogável pelo qual uma pessoa dispõe, para depois da morte, de todos os seus bens ou de parte deles (art. 2179, n.º 1, do CC).

Testamento e nulidade.
No artigo 2189 do CC, a lei indica, de forma taxativa, os que são absolutamente incapazes de testar: menores não emancipados e interditos por anomalia psíquica (art. 2189 do CC). Há nestes casos uma presunção legal, jure et de jure, de que pessoas naquelas circunstâncias não têm capacidade de entender e de querer suficiente para disporem dos seus bens. Como corolário lógico, a lei sanciona com a nulidade os testamentos feitos por aqueles incapazes (art. 2190 do CC).

A testadora dos autos não se encontrava em nenhuma daquelas situações, ou seja, era maior e não interdita (nem sequer era inabilitada, nem tão-pouco há notícia de que lhe tenha sido instaurada qualquer ação com esses fitos).

Exprimiu cumprida e claramente a sua vontade, não se limitando a sinais ou monossílabos, em resposta a perguntas feitas, pelo que não se verifica causa de nulidade prevista no art. 2180 do CC.

A vontade da testadora está expressa no texto do testamento de forma absolutamente clara. De todo o modo não é para obviar a redações ambíguas ou equívocas que existe a norma do art. 2180, pois de outro modo não faria sentido a do art. 2187, relativa à interpretação dos testamentos. Como afirmam Pires de Lima e Antunes Varela, «a parte final do preceito, com a alusão expressa e direta aos casos em que a expressão da vontade do testador se tenha processado, não através de declarações verbais acabadas, mas de puros sinais ou acenos(de cabeça ou de mão) ou de simples monossílabos, em resposta a perguntas que lhe foram feitas, facilmente revela ao intérprete que a lei se quer, especificada, concreta e restritamente referir aos casos excecionais, mas verificáveis na prática, em que as declarações imputadas ao disponente não oferecem já (pelo estado de inconsciência, semiconsciência ou de depressão psicológica, em que ele se encontra, possivelmente com o espectro da morte à sua frente e com a presença inibitória de algumas pessoas à sua volta) as garantias mínimas de certeza e de autenticidade psicológica»(Código Civil Anotado, vol. VI, Coimbra Editora, 1998, nota 2 ao art. 2180). A situação da testadora evidenciada nos factos em nada se relaciona com a previsão do art. 2180.

O Código prevê, ainda, alguns casos de nulidade quando existe uma especial relação entre testador e beneficiário do testamento (arts. 2192 a 2198 do CC), por exemplo entre inabilitado e seu curador ou administrador legal de bens, situações que também não têm relação com a realidade dos autos.

Testamento e anulabilidade.
Para além dos casos de nulidade do testamento, já aludidos, a lei estatui a anulabilidade do negócio quando o testador se encontrava incapacitado de entender o sentido da sua declaração ou não tinha o livre exercício da sua vontade por qualquer causa, ainda que transitória (art. 2199 do CC).

Trata-se de regra idêntica à do art. 257, n.º 1, do CC, sobre a falta e vícios da vontade negocial, com uma especificidade: não se exige a notoriedade da incapacidade ou o conhecimento do declaratário, o que se compreende uma vez que o testamento é um negócio unilateral. As disposições destes artigos (257 e 2199 do CC) contemplam, não apenas situações em que a declaração é feita por quem está transitoriamente incapacitado de representar o sentido da declaração ou não tenha o livre exercício da sua vontade, mas também situações em que um indivíduo não interdito, mas com anomalia psíquica, realiza o negócio, fora de um intervalo lúcido (neste sentido, Carlos Alberto da Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 4.ª ed., Coimbra Editora, 2005, p. 249 e nota 277).

É, essencialmente, ao abrigo do art. 2199 do CC que se desenvolvem os factos que são causa de pedir nos presentes autos: a testadora estaria, no momento em que o testamento foi lavrado, afetada por uma deficiência psíquica que a teria incapacitado de entender e querer a sua declaração.
Recaía sobre os autores o ónus da prova dos factos integradores da previsão da norma. Àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado – art. 342, n.º 1, do CC. «Incumbe a quem impugna o testamento a prova de que o testador, no ato da outorga do testamento, estava impossibilitado de entender e querer o sentido e alcance da declaração. Ou seja, o ónus de prova dos factos integradores da incapacidade, no momento da realização do testamento, para avaliar o sentido da declaração de disposição de bens, com vista à anulação do mesmo, recai sobre o autor (vide, neste sentido, entre outros, do Supremo Tribunal de Justiça de 31.01.1991, AJ, 15.º/16.º, pág. 23, e da Relação do Porto, de 08.05.2000, BMJ, 497.º, pág. 444)» - assim se lê no Ac. TRC de 29/05/2012, proc. 37/11.4TBMDR.C1, entre outros.

A prova direta do facto essencial constituído pela capacidade do testador de entender e querer a declaração testamentária, ao tempo da feitura do testamento, é praticamente impossível, pelo que a mesma se faz através de factos instrumentais, dos quais, através de raciocínios que apelam às regras da experiência e/ou da lógica, se extrapola para a conclusão daquele facto essencial. Daí que esse facto coincida com uma conclusão jurídica, constituindo «matéria de facto-jurídico e não facto meramente material» (António Pais de Sousa e Carlos Frias de Oliveira Matias, Da incapacidade jurídica dos menores, interditos e inabilitados, p. 262, cit. no Ac. TRP de 04/05/2015, proc. 1267/12.7TVPRT.P1). Noutra abordagem, mas com idêntico efeito prático, «as hipóteses do art. 2199.º são proposições de direito, a concluir de factos alegados e provados pelas partes» (Rabindranath Capelo de Sousa, Lições de direito das sucessões, I, 4.ª ed., p. 184, nota 412, também cit. no Ac. STJ de 24/05/2011, proc. 4936/04.1TCLRS.L1.S1).

Na situação dos autos, os autores alegaram um conjunto de factos instrumentais conducentes à conclusão da incapacidade da testadora. Porém, a prova produzida levou à consideração de poucos e insuficientes para a pretendida conclusão.

De dizer também que a doença diagnosticada à testadora e que nunca atingiu estado grave não gera necessariamente incapacidade permanente, mas antes intermitente, havendo dias melhores e dias piores. Neste sentido o Ac. TRC de 29/05/2012, proc. 37/11.4TBMDR.C1, confirmando por unanimidade sentença da primeira instância: «É consabido que a doença de Alzheimer, sem mais pormenorizada caracterização, não permite concluir pela perda da faculdade de entender, nem afasta a possibilidade de, em determinados momentos, se verificar uma situação de lucidez».

O caso dos autos confirma a asserção genérica acabada de transcrever, tendo-se provado que a testadora no dia do testamento era senhora de si, expressava-se de forma coerente e demonstrando entender o que lhe era transmitido e exprimindo vontade clara e segura; o que é consentâneo com a vida que vivia durante o período de doença (factos 44 a 49).

De acordo com os factos 6 a 8, 10, 36 a 41, os testamentos cumpriram os requisitos materiais e formais, desde logo a forma de documento autêntico – documento exarado pelo notário no respetivo livro (arts. 2205 do CC, e 35, n.º 2, e 36 do Código do Notariado).

Compete, em geral, ao notário redigir o instrumento público conforme à vontade do declarante, devendo indagar, interpretar e adequar ao ordenamento jurídico essa vontade, e esclarecendo-o do seu valor e alcance (art. 4.º, n.º 1, do CN). Em especial, compete ao notário, lavrar testamentos públicos (art. 4.º, n.º 2, al. a), do CN).

Conforme ficou assente (v. factos 37 a 41), o testamento foi redigido pela notária, de acordo com as instruções da testadora. Como resulta da sua leitura, foi redigido em conformidade com o estabelecido no art. 42 do CN e com observância das formalidades descritas no art. 46 do CN. Depois, foi lido pela notária, na presença dos intervenientes, incluindo das testemunhas instrumentais (art. 67 do CN), e foi feita a explicação do seu conteúdo e das suas consequências legais de modo a que a notária se apercebeu de que o teor do documento correspondia à vontade da testadora, tudo em conformidade com o disposto no art. 50 do CN.

O último testamento dos autos (assim como antes o primeiro, por aquele revogado), como documento autêntico que é, faz prova plena dos factos que refere como praticados pela notária, assim como dos factos que nele são atestados com base nas perceções desta (n.º 1 do art. 371 do CC). Nos termos do disposto no art. 372, n.º 1, do CC, a força probatória dos documentos autênticos só pode ser ilidida com base na sua falsidade. O documento é falso (segundo o n.º 2), quando nele se atesta como tendo sido objeto da perceção da autoridade ou oficial público qualquer facto que na realidade se não verificou, ou como tendo sido praticado pela entidade responsável qualquer ato que na realidade não o foi. Não se provaram factos que ponham em crise a autenticidade do testamento e, nessa medida (também com esse fundamento), provou-se o que consta dos factos 6, 7, 8, 10, 11, 36 a 41.

A partir destes, podemos dizer, com Pires de Lima e Antunes Varela, que «a simples presença do notário (aditada à das testemunhas que, segundo a lei notarial, devem presenciar o ato) é uma primeira e qualificada garantia de que o testador gozava ainda, no momento em que foi revelando a sua vontade, de um mínimo bastante de capacidade anímica para querer e para entender o que afirmou ser sua vontade(Código Civil Anotado, vol. VI, 1998, nota 3 ao art. 2205).

Secundam-se também as palavras do Ac. TRC de 29/05/2012, proc. 37/11.4TBMDR.C1, que têm no nosso caso toda a pertinência:
«Sempre se dirá, no entanto, que o facto de o testamento posto em crise ser público mitiga as dúvidas do autor pois que a própria notária que o redigiu não verificou qualquer incapacidade que impedisse a testadora de conhecer o alcance do seu ato, tendo a mesma procedido à sua leitura e à explicação do seu conteúdo, como é de lei e consta do respetivo documento (cfr. artigos 46.º, n.º 1, al. l), e 50.º do Código do Notariado). Aliás, se tivesse tido dúvidas sobre a capacidade da testadora de querer e de entender, não teria lavrado o testamento ou poderia fazer intervir no ato um perito médico que abonasse a sanidade mental da outorgante (cfr. art. 67º, n.º 4, do mesmo código).»

Ou as do Ac. do TRL de 26/05/2009, proc. 100/2001.L1-7:
«IIA simples presença do notário, que é um funcionário especializado que goza de fé pública, aditada à das duas testemunhas que, segundo o art.67º, nºs 1, al. a) e 3, do Código do Notariado, devem presenciar o ato, é uma primeira e qualificada garantia de que o testador gozava ainda, no momento em que foi revelando a sua vontade, de um mínimo bastante de capacidade anímica para querer e para entender o que afirmou ser sua vontade.
IIIPor conseguinte, não pode deixar de se entender que, tendo o testamento sido exarado perante notário, existe uma forte presunção de que o testador tem aptidão para entender o que declara.»

Impõe-se concluir que, em 29/08/2011, quando fez os seus testamentos, Helena L. entendeu as suas declarações e as consequências jurídicas delas, e agiu de acordo com a sua livre vontade.

IV.Decisão.
Face ao exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar a apelação totalmente improcedente, confirmando a sentença recorrida.

Custas pelos recorrentes.



Lisboa, 22/05/2018


Higina Castelo
José Capacete
Carlos Oliveira

Decisão Texto Integral: