Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
304/16.0T8MTJ.L1-9
Relator: CRISTINA BRANCO
Descritores: DECISÃO ADMINISTRATIVA
NOTIFICAÇÃO AO MANDATÁRIO
IRREGULARIDADE PROCESSUAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/09/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIMENTO
Sumário:
I – O art. 47.º, n.º 2, do RGCOC impõe que a decisão administrativa condenatória seja notificada ao mandatário anteriormente constituído nos autos.
II - Não vindo expressamente cominada como nulidade, a falta desse acto que a lei prescreve configura uma irregularidade que afecta o valor do acto praticado, pelo que mesmo que não seja arguida pode ser oficiosamente reparada (cf. art. 123.º do CPP, ex vi art. 41.º do RGCOC).

III – Se, apesar de tal irregularidade ter sido tempestivamente arguida, a ANSR, em lugar de praticar o acto que havia sido omitido e de assim sanar o apontado vício, profere uma nova decisão condenatória, pratica um acto expressamente vedado por lei, uma vez que estava impedida de apreciar, de novo, a mesma infracção, a não ser que, havendo recurso, decidisse revogar a decisão anteriormente proferida (art. 184.º do C. Estrada).

IV - Encontrando-se esgotado o poder da autoridade administrativa com a prolação da primeira decisão, a segunda decisão condenatória proferida é ilegal, devendo considerar-se juridicamente inexistente.

V - A sua notificação não produz, assim, quaisquer efeitos, designadamente o de sanar a irregularidade anteriormente cometida, pelo que terá de concluir-se pela anulação do processado após o requerimento em que tal vício foi arguido, procedendo-se à notificação em falta e dela se contando o prazo para interposição do recurso de impugnação judicial.
(sumário elaborado pela relatora)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 9.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa

I. Relatório
1. Nos autos de contra-ordenação com o n.º 304/16.0T8MTJ do Tribunal da Comarca de Lisboa, Montijo – Instância Local – Secção Criminal – Juiz 1, L..., identificado nos autos, impugnou judicialmente a decisão administrativa da Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária (ANSR), que lhe aplicou, pela prática de uma contra-ordenação p. e p. pelos arts. 27.º, n.ºs 1 e 2, al. a), 136.º, 138.º, 143.º, 145.º, n.º 1, al. b), e 147.º, todos do Código da Estrada (CEst), a sanção acessória de inibição de conduzir pelo período de 90 (noventa) dias.
2. Após audiência de julgamento, foi proferida sentença que, julgando parcialmente procedente a impugnação judicial, condenou o recorrente na sanção acessória de inibição de conduzir pelo período de 60 (sessenta) dias, mantendo, no mais, o decidido.
3. Inconformado com essa decisão, interpôs o arguido o presente recurso, que termina com as seguintes conclusões (transcrição):
«1. Diferentemente do que a Meritíssima Juiz "a quo" considerou, a invocada irregularidade decorrente da falta de notificação à mandatária do ora recorrente da primeira decisão administrativa proferida pela ANSR, em 3 de Junho de 2014, não foi sanada através da notificação da segunda decisão administrativa proferida pela ANSR, em 6 de Fevereiro de 2015, na medida em que esta última notificação se reporta apenas à segunda decisão administrativa proferida. Ora,
2. A sanação daquela invocada irregularidade apenas se concretiza com a efectivação da notificação em falta, isto é, com a notificação à mandatária do ora recorrente da primeira decisão administrativa proferida (cfr. o disposto no n.° 2 do art.° 47.° do RGCOC). Aliás,
3. Tendo sido proferida, em 3 de Junho de 2014, (a primeira) decisão administrativa sobre a infracção rodoviária objecto do auto de contra-ordenação em causa nos presentes autos, esgotou-se o poder de apreciação da ANSR relativamente à infracção rodoviária em causa, por força do disposto no art.° 184.° do CE. Assim,
4. Estava vedado à ANSR proferir a segunda decisão administrativa sobre a mesma infracção.
5. Tendo-o feito (aliás, numa altura em que a primeira decisão administrativa estava em vigor e não tinha sido revogada, revogação essa que, inclusive, seria ilegal, na medida em que o primeiro recurso de impugnação judicial interposto suscitou, antes de mais, a irregularidade referida em 1. e apenas subsidiariamente as demais questões), a segunda decisão administrativa, proferida em 6 de Fevereiro de 2015, é juridicamente inexistente. Acresce que,
6. Em caso algum a segunda decisão administrativa poderia substituir a primeira e, muito menos, com vista à sanação da invocada irregularidade, não só porque nessa segunda decisão nada foi expressamente referido nesse sentido, como também porque esse não era o meio correcto e próprio e, finalmente, porque à ANSR estava vedado proferir segunda decisão administrativa sobre a mesma infracção rodoviária, nos termos do supra citado art.° 184.° do CE.
7. A douta sentença recorrida, ao decidir que a invocada irregularidade se encontrava sanada com a notificação da segunda decisão administrativa proferida e que esta não era ilegal decidiu incorrectamente, violando as disposições legais acima citadas, motivo por que deve ser revogada, reconhecendo-se que a segunda decisão administrativa, proferida em 6 de Fevereiro de 2015, é juridicamente inexistente e que a irregularidade invocada pelo ora recorrente em 4 de Agosto de 2014 não se encontra ainda sanada, ordenando-se, por fim, a anulação de todo o processado após a apresentação do requerimento através do qual o ora recorrente invocou a aludida irregularidade.
8. O que tudo o ora recorrente requer que seja decretado por esse Venerando Tribunal, com as legais consequências, concretamente com a subsequente baixa do processo à ANSR para efectivação da notificação à mandatária do ora recorrente da primeira decisão administrativa, proferida em 3 de Junho de 2014.
Termos em que, e nos mais de direito aplicável, que V. Exas. doutamente suprirão, deve ser dado provimento ao presente recurso, nos moldes e com as consequências expostas, assim fazendo V. Exas., Venerandos Desembargadores, a costumada, necessária e indispensável JUSTIÇA
4. O recurso foi admitido, por despacho de fls. 198 dos autos.
5. Na sua resposta, o Ministério Público junto do Tribunal recorrido pugnou pela improcedência do recurso, concluindo:
«1. Por sentença, proferida em 16 de novembro de 2016, foi concedido parcial provimento ao recurso interposto por Luis António Lousa Duarte, tendo o recorrente sido condenado na sanção acessória de inibição de conduzir pelo período de 60 (sessenta) dias, nos termos do disposto nos artigos 27.°, n.° 1, e 2, al. a), 136.°, 138.1', 145.°, al. b), 143.° c 147.° do Código da Estrada, mantendo-se, no mais, a decisão recorrida nos seus preciso termos-
2. Em nosso entender a decisão recorrida não merce qualquer censura.
3. Consideramos, pois, que a sentença objecto do presente recurso se encontra devidamente fundamentada, nela constando os motivos de facto e de direito que fundamentaram a decisão.
4. Com efeito, é nosso entendimento que da prova produzida em audiência de julgamento resultaram provados os factos dados como tal.
5. Na verdade, assim o cremos, toda a prova produzida quer nos autos quer em audiência de julgamento foi mui doutamente apreciada.
Termos em que deve ser negado provimento ao recurso, como é de JUSTIÇA».
6. Nesta Relação, o Senhor Procurador-Geral Adjunto apôs o seu visto, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 416.º, n.º 1, do CPP.
7. Colhidos os vistos legais, foi o processo à conferência, cumprindo apreciar e decidir.
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II. Fundamentação
1. Delimitação do objecto do recurso
Como é jurisprudência assente, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, é pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação apresentada, em que sintetiza as razões do pedido (art. 412.º, n.º 1, do CPP), que se delimita o objecto do recurso e os poderes de cognição do Tribunal Superior.
Em processo contra-ordenacional, o Tribunal da Relação conhece apenas da matéria de direito (art. 75.º, n.º 1, do RGCOC[1]), sem prejuízo do aludido conhecimento oficioso relativamente aos vícios previstos no art. 410.º, n.ºs 2 e 3, do CPP.
No caso dos autos, a única questão que o recorrente coloca é a da irregularidade da notificação da (primeira) decisão administrativa proferida pela ANSR, sustentando que, ao considerar encontrar-se tal vício sanado e não ser ilegal a segunda decisão administrativa daquela entidade, o Tribunal recorrido violou as disposições dos arts. 47.º, n.º 2, do RGCOC e 184.º do C. Estrada.
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2. Da decisão recorrida
Previamente à apreciação da questão suscitada, vejamos qual o teor da decisão recorrida, na parte que ora importa.
«I-Relatório
Nos presentes autos de recurso contra-ordenacional veio L... impugnar judicialmente a decisão proferida em 6 de Dezembro de 2015, nos autos de Contra-Ordenação n.° 912850604, da Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária, que condenou o ora recorrente pela prática da contra-ordenação prevista e punida pelo disposto nos artigos 27.° n.°1 e 2 al a) 2° do Código da Estrada na sanção acessória de inibição de conduzir pelo período de 90 dias, nos termos do disposto nos artigos 136.°, 138.°, 145.° n.°1 al b), 143.° e 147.° todos do Código da Estrada.
O recorrente procedeu ao pagamento voluntário da coima a título de depósito.

O recorrente alega em síntese:
a) a nulidade da decisão administrativa sob recurso por já ter sido, em data anterior, proferida decisão administrativa a propósito do auto em questão;
b) a nulidade da decisão por falta de consideração da defesa apresentada, da não concessão do direito de defesa quanto ao elemento subjectivo da infracção e dos averbamentos constantes do RIC, da omissão de factos que sustentem o elemento subjectivo e da falta de fundamentação, incluindo a falta de enumeração da matéria de facto provada;
c) impugnação da prática da infracção;
d) a medida da sanção acessória e a suspensão da execução.
(…)
Das Nulidades
Invoca o recorrente a nulidade da decisão administrativa sob recurso por já ter sido, em data anterior, proferida decisão administrativa a propósito do auto em questão, bem como a nulidade da decisão por falta de consideração da defesa apresentada, da não concessão do direito de defesa quanto ao elemento subjectivo da infracção e dos averbamentos constantes do RIC, da omissão de factos que sustentem o elemento subjectivo e da falta de fundamentação, incluindo a falta de enumeração da matéria de facto provada.
O Regime Geral do Ilícito de Mera Ordenação Social (instituído pelo Decreto-Lei n.° 433/82, de 27-10, com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.° 356/89, de 17-10, pelo Decreto-Lei n.° 244/95, de 14-09, pelo Decreto-Lei n.° 323/2001, de 17-12 e pela Lei n.° 109/2001, de 24-12), adiante designado apenas por RGCO, dispõe no seu art.° 50.° sob a epígrafe "Direito de audição e defesa do arguido", que "Não é permitida a aplicação de uma coima ou de urna sanção acessória sem antes se ter assegurado ao arguido a possibilidade de, num prazo razoável, se pronunciar sobre a contra-ordenação que lhe é imputada e sobre a sanção ou sanções em que incorre.".
Norma aquela que vem, aliás, na confluência dos direitos de consulta e de comunicação contidos nos art.°s 45.° a 47 °, do Decreto-Lei n.° 433/82, de 27 de Outubro, os quais decorrem, por sua vez, do princípio da legalidade consagrado no art.° 43.°, do mesmo diploma legal.
E constitui ainda o mesmo normativo (art.° 50.° do RGCO) decorrência directa do comando constitucional plasmado no art.° 32.°, n.° 10, da Constituição da República Portuguesa, de acordo como qual "nos processos de contra-ordenação, bem como em quaisquer processos sancionatórios, são assegurados ao arguido os direitos de audiência e defesa".
Por seu lado, o art.° 41.°, n.° 1, do Decreto-Lei n.° 433/82, de 27 de Outubro, manda aplicar, subsidiariamente, as normas contidas no Código de Processo Penal.
Preceitua o art.° 58.° do Regime Geral do Ilícito de mera ordenação social (RGCO), sob a epígrafe "Decisão condenatória", que «1- A decisão que aplica a coima ou as sanções acessórias deve conter:
a) A identificação dos arguidos;
b) A descrição dos factos imputados, com indicação das provas obtidas;
c) A indicação das normas segundo as quais se pune e a fundamentação da decisão;
d) A coima e as sanções acessórias.
2- Da decisão deve ainda constar a informação de que:
a) A condenação se torna definitiva e exequível se não for judicialmente impugnada nos termos do artigo 59°;
b) Em caso de impugnação judicial, o tribunal pode decidir mediante audiência ou, caso o arguido e o Ministério Público não se oponham, mediante simples despacho.
3- A decisão conterá ainda:
a) A ordem de pagamento da coima no prazo máximo de 10 dias após o carácter definitivo ou o trânsito em julgado da decisão;
b) A indicação de que em casa de impossibilidade de pagamento tempestivo deve comunicar o facto por escrito à autoridade que aplicou a coima.».

Compulsados os autos verifica-se que efectivamente a autoridade administrativa proferiu decisão em 3.6.2014 relativamente ao auto n.° 912850604 e que por ter sido invocada a irregularidade por falta de notificação da mandatária do recorrente.
Em substituição de tal decisão, com vista a sanar tal irregularidade, a autoridade administrativa profere a decisão de 06.02.2015 (fls. 69 e 70), a qual está sob apreciação. Efectivamente inexiste qualquer situação de ne bis in idem, uma vez que a irregularidade foi suscitada perante a autoridade administrativa, e a mesma sanou tal irregularidade proferindo nova decisão (igual à primeira) em data posterior (beneficiando o recorrente quanto aos prazos a correr) substituindo-a, devendo-se considerar sanada a irregularidade.

O art.° 54.° do RGCO não comina com a nulidade a falta de diligências instrutórias e a nulidade prevista na al. d) do art. 119.° do Código de Processo Penal diz respeito apenas aos casos de falta de inquérito ou de instrução em que a lei determinar a sua obrigatoriedade.
De acordo com o disposto no art.° 175.° do Código das Estrada, no que respeita às contra-ordenações rodoviárias, a única diligência obrigatória é a comunicação da infracção ao arguido e a concessão de prazo para que este, querendo, apresente a sua defesa.
No caso concreto ao recorrente foi comunicada a infracção no próprio dia da prática da mesma e foi-lhe concedido prazo para exercer o seu direito de defesa, sendo que o mesmo, através da sua mandatária, requereu a consulta dos autos.
De salientar que até à presente data, a própria signatária admite não ter consultado o processo, estando o mesmo livremente acessível na secção de processos para consulta.

Da leitura atenta dos factos carreados e dados como provados é manifesto que o auto de contraordenação e em concreto a decisão final em causa obedece aos requisitos enunciados, concretizando temporal e espacialmente as circunstâncias da prática da infracção, tendo apurado que o recorrente exercia a efectiva direcção do veículo conduzindo em desobediência às regras estradais agindo sem cuidado a que estava obrigado, o que sabia: podendo, em sede administrativa presumir-se o elemento subjectivo da conduta da própria descrição do elemento objectivo.
É assim feita uma apreciação objectiva factual concreta quanto à conduta estradal do recorrente.
Da decisão administrativa em apreço resulta à saciedade que a mesma obedece aos requisitos formais e substanciais enunciados e, em concreto, à enumeração e explicitação dos factos que levaram ao processo lógico da tomada de decisão, fazendo uma descrição factual (quanto à tipicidade objectiva e subjectiva) e jurídica, enunciando as normas jurídicas aplicáveis.
Pelo exposto, entende o tribunal que inexiste qualquer nulidade do auto, da decisão ou do procedimento administrativo.»
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3. Da análise dos fundamentos do recurso
De acordo com as regras de precedência lógica importará, em primeiro lugar, apreciar as questões que obstem ao conhecimento do mérito da decisão.
Seguidamente das que a este respeitem, começando pelas atinentes aos vícios previstos no art. 410.º, n.º 2, do CPP.
Por fim, das questões relativas à matéria de direito.
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A única questão que vem suscitada no presente recurso[2] prende-se, como acima referimos, com a existência, na perspectiva do recorrente, de um vício processual cometido na fase administrativa do processo, sancionado como irregularidade, que foi oportunamente arguido e que, contrariamente ao que foi entendido pelo Tribunal recorrido, não se encontra ainda sanado.
Pretende, na procedência do recurso, a revogação da sentença recorrida e a anulação de todo o processado após a apresentação do requerimento através do qual arguiu a aludida irregularidade, com a devolução dos autos à ANSR para efectivação à sua mandatária da notificação da decisão administrativa proferida em 03-06-2014.

Vejamos, antes de mais, o que resulta dos autos, com relevo para a apreciação da questão:
- Em 24-11-2013 foi levantado o auto n.º 912850604, pela prática, por parte do ora recorrente, de uma contra-ordenação p. e p. pelos arts. 27.º, n.ºs 1 e 2, al. a), 2.º, 145.º, n.º 1, al. b), e 147.º, n.º 2, todos do C. Estrada, que lhe foi na mesma data comunicada, sendo-lhe concedido prazo para exercer o seu direito de defesa (cf. fls. 5-6);
- Em 20-12-2013, o recorrente apresentou defesa subscrita por mandatária, juntando procuração a favor da mesma (cf. fls. 9-17 e 116-120);
- Em 03-06-2014, a ANSR proferiu decisão, na qual decidiu condenar o recorrente, pela prática da mencionada contra-ordenação, na sanção acessória de 90 (noventa) dias de inibição de conduzir (cf. fls. 21-22);
- Para notificação dessa decisão foi enviada carta registada com A/R ao recorrente, que a recebeu em 17-07-2014 (cf. fls. 23);
- Em 04-08-2016, através da sua mandatária constituída, o recorrente arguiu a irregularidade decorrente da falta de notificação desta da decisão administrativa proferida, solicitando que se procedesse à notificação em falta e que só após a mesma se contasse o prazo para interposição do recurso de impugnação judicial (cf. fls. 24-32);
- Em 07-08-2014 interpôs recurso de impugnação judicial, no qual apresenta como primeira questão a decidir a da irregularidade da falta de notificação à sua mandatária da decisão administrativa proferida, e as demais questões a título subsidiário, apenas para o caso de aquela invocação não proceder ou de o vício ser entretanto sanado (cf. fls. 33-68);
- Em 06-02-2015, a ANSR proferiu nova decisão, na qual decidiu condenar o recorrente, pela prática da mencionada contra-ordenação, na sanção acessória de 90 (noventa) dias de inibição de conduzir (cf. fls. 69-70);
- Para notificação dessa decisão foi enviada carta registada com A/R à mandatária do ora recorrente, recebida em 23-02-2015 (cf. fls. 71);
- Em 16-03-2015, o recorrente apresentou requerimento a solicitar a indicação de data para proceder à consulta dos autos e, na mesma data, interpôs, desde logo, recurso de impugnação judicial da decisão administrativa de 06-02-2015, no qual suscita, em primeiro lugar, a questão da nulidade da decisão administrativa recorrida, por anteriormente ter sido proferida decisão a propósito do auto de contra-ordenação em causa (cf. fls. 72-103);
- Em 02-12-2015, a ANSR proferiu despacho de sustentação da decisão (cf. fls. 104-105), na qual, relativamente à questão acima identificada, refere:
«A alegada violação do ne bis in idem não se verifica, já que esta autoridade, por lapso, proferiu duas decisões, uma em 03.06.2014 e outra em 06.02.2015.
Sucede que aquela primeira decisão não tinha sido notificada à mandatária do arguido, e para colmatar essa irregularidade proferiu-se nova decisão.
Entretanto, e por despacho proferido em 11.06.2015, procedeu-se à revogação da decisão administrativa proferida em 03.06.2014.
Assim, actualmente, a decisão proferida em 06.02.2015 não viola qualquer princípio jurídico-constitucional.»
- Em 29-03-2015, a ANSR enviou os autos ao MP que, por despacho de 31-03-2015, os remeteu a juízo (cf. fls 2 e 3).

Cremos que deste elenco das diversas ocorrências processuais resulta bem claro que assiste razão ao recorrente.
De acordo com o disposto no art. 46.º, n.º 1, do RGCOC, todas as decisões, despachos e demais medidas tomadas pelas autoridades administrativas serão comunicadas às pessoas a quem se dirigem.
E o art. 47.º do mesmo diploma estabelece:
«1 – A notificação será dirigida ao arguido e comunicada ao seu representante legal, quando este exista.
2 – A notificação será dirigida ao defensor escolhido cuja procuração conste do processo ou ao defensor nomeado.
3 – No caso referido no número anterior, o arguido será informado através de uma cópia da decisão ou despacho.
4 – Se a notificação tiver de ser feita avarias pessoas, o prazo de impugnação só começa a correr depois de notificada a última pessoa.»
Assim, uma vez que à data da decisão administrativa condenatória (03-06-2014) o arguido tinha mandatária constituída nos autos (desde 20-12-2013) impunha-se que esta fosse notificada dessa decisão.
Não vindo expressamente cominada como nulidade, a falta desse acto que a lei prescreve configura uma irregularidade que afecta o valor do acto praticado, pelo que mesmo que não fosse arguida podia ser oficiosamente reparada (cf. art. 123.º do CPP, ex vi art. 41.º do RGCOC).
Ora, apesar de tal irregularidade ter sido tempestivamente arguida (logo em 04-08-2014), a ANSR, inexplicavelmente, em lugar de praticar o acto que havia sido omitido e de assim sanar o apontado vício, optou por proferir uma nova decisão condenatória, em 06-02-2015.
Mas a prolação dessa nova decisão condenatória constitui um acto expressamente vedado por lei: a autoridade administrativa estava impedida de apreciar, de novo, a mesma infracção, a não ser que, havendo recurso, decidisse revogar a decisão anteriormente proferida.
É o que resulta inequivocamente do art. 184.º do C. Estrada: «O poder de apreciação da entidade administrativa esgota-se com a decisão, exceto quando é apresentado recurso da decisão condenatória, caso em que a entidade administrativa a pode revogar até ao envio dos autos para o Ministério Público.»[3]
Encontrando-se esgotado o poder da autoridade administrativa com a prolação da primeira decisão (salvo para efeitos da revogação desta, o que não é o caso), a segunda decisão condenatória proferida é, por isso, ilegal, devendo considerar-se juridicamente inexistente[4].
E se assim é, não produz quaisquer efeitos, não tendo a sua notificação, naturalmente, a virtualidade de sanar a irregularidade anteriormente cometida, contrariamente ao que entendeu o Tribunal recorrido.
Não se alcança, de resto, de onde retirou o Tribunal a convicção de que a segunda decisão administrativa visou sanar essa irregularidade, dado que tal não consta no texto da mesma, onde não figura qualquer referência à anterior decisão.
Mas ainda que fosse esse o seu propósito (implícito), não o poderia alcançar, quer por não constituir o meio próprio para sanar a irregularidade quer por constituir, em si mesma, uma decisão inválida.
Por outro lado, se, por lapso, a mesma infracção tivesse dado origem a duas decisões condenatórias no mesmo processo, é evidente que teria de ser a segunda decisão a ficar sem efeito e nunca a primeira, como bem observa o recorrente[5].
Em suma, em lugar de proceder à sanação da irregularidade cometida, necessariamente através da prática do acto omitido – uma simples notificação – a ANSR enveredou por um processado absolutamente anómalo, desrespeitando as normas legais acima mencionadas e os direitos de defesa do arguido, que se viu privado da possibilidade de elaboração do seu recurso no prazo de que dispunha para o efeito, a contar da (omitida) notificação à sua mandatária constituída.
Porque a irregularidade oportunamente invocada não foi, até ao presente, sanada, terá que concluir-se pela procedência do recurso e pela consequente anulação do processado após o requerimento de 04-08-2016 (cf. fls. 24-32), procedendo-se à notificação em falta e dela se contando o prazo para interposição do recurso de impugnação judicial.
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III. Decisão
Em face do exposto, acordam os Juízes da 9.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa em, concedendo provimento ao recurso interposto pelo arguido, L..., anular o processado após o requerimento de fls. 24-32, e determinar a remessa dos autos à ANSR para proceder à notificação em falta.
Sem tributação.
Notifique.
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(Certifica-se, para os efeitos do disposto no art. 94.º, n.º 2, do CPP, que o presente acórdão foi elaborado e revisto pela relatora, a primeira signatária)
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                                                     Lisboa, 09.02.2017
Cristina Branco
Filipa Costa Lourenço

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[1] DL n.º 433/82 de 27-10, sucessivamente alterado pelos DLs n.ºs 356/89, de 17-10, 244/95, de 14-09, 323/2001, de 17-12, e pela Lei n.º 109/2001, de 24-12.
[2] Que havia também sido colocada na impugnação judicial da decisão administrativa proferida em 03-06-2014, que o Tribunal não apreciou.
[3] E, para as contra-ordenações em geral, do art. 62.º, n.º 2, do RGCOC: «2 – Até ao envio dos autos [ao MP] pode a autoridade administrativa revogar a decisão de aplicação da coima.»
[4] «A inexistência jurídica, categoria autónoma – ao lado da nulidade, da anulabilidade e da invalidade – a que corresponde um regime próprio (inexistência de efeitos), representa uma situação-limite quanto aos vícios de que pode padecer um determinado acto ao qual se pretende associar efeitos jurídicos.
No que concerne aos actos administrativos, para que estes possam valer como tal no plano jurídico têm de reunir determinados requisitos de validade, designadamente ser praticados por um órgão que integre a Administração Pública, no exercício de um poder administrativo conferido por lei e produzindo efeitos jurídicos numa situação individual e concreta (art.º 120.º do CPA).
Assim, um acto juridicamente inexistente será aquele que não reúne pelo menos um dos requisitos de validade, levando a ordem jurídica a rejeitar a sua qualificação como acto jurídico.» - cf. o Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 08-05-2014, proferido no Proc. n.º 05586/09, in www.dgsi.pt.
[5] O despacho de sustentação proferido pela ANSR a fls. 104-105 dos autos, no segmento em que se pronuncia sobre tal matéria, é, a todos os títulos, incompreensível: afirma que a prolação da segunda decisão se deveu a lapso, mas, de seguida, refere que foi proferida para sanar a irregularidade da falta de notificação da primeira. Depois, faz referência a um despacho de 11-06-2015 – do qual não existe vestígio nos autos – que, alegadamente, terá revogado a primeira decisão administrativa…quando, segundo o seu entendimento, esta havia já sido “substituída” pela segunda…