Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
324/14.0TELSB-DQ.L1-9
Relator: PAULA CRISTINA JORGE PIRES
Descritores: CONSTITUIÇÃO DE ASSISTENTE
LEGITIMIDADE
REQUISITOS LEGAIS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 12/16/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: 1.–Tem sido comummente aceite, que o conceito de ofendido para efeitos de legitimidade para constituição como assistente, coincide com o adotado para se aferir da legitimidade para apresentação de queixa, previsto no art.° 113.°, n.° 1, do Código Penal, onde igualmente se estabelece que ofendido é o titular dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação.
Exige-se, como condição de legitimidade, a existência de um interesse específico, particularmente qualificado, que intercede na relação entre o bem jurídico e o sujeito afetado. Deste modo, só será ofendido quem for titular de um interesse legítimo, tutelado pela lei, ou seja a legitimidade do ofendido é aferida necessariamente em relação ao crime concreto que estiver em causa, e a delimitação do seu conceito encontrar-se-á na tipologia criminal concretamente expressa em lei. Só assim é possível determinar se uma pessoa viu os interesses que a lei quis especificamente proteger afectados pela conduta adoptada pelo arguido ou pelo suspeito, concedendo-lhe assim a legitimidade para poder ser admitido nos autos com a qualidade de assistente;

2.–No caso inexistindo qualquer conexão entre o crime imputado aos arguidos e o prejuízo e interesse alegado pelo recorrente para se constituir como assistente, tal constituição não deverá ser consentida por inexistir qualquer interesse legitimo do recorrente para intervir nos autos como assistente, ou seja, a legitimidade do recorrente deve ser aferida em relação aos crimes concretos que estiverem em causa e a delimitação do seu conceito encontrar-se-á na tipologia criminal concretamente expressa em lei. Só assim será possível determinar se uma pessoa viu os interesses que a lei quis, especificamente, proteger afetados pela conduta alegadamente criminosa dos suspeitos.

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, as Juízas que integram a 9.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:


I–RELATÓRIO


No Tribunal Central de Instrução Criminal de Lisboa – Juiz 1, no âmbito do processo n.º 324/14.0TELSB, o Recorrente AA requereu a sua constituição como assistente, ao abrigo do disposto no art.º 68.º, n.º 1, al. a) e n.º 3, do Código de Processo Penal.

Por despacho proferido, foi indeferida a sua constituição como assistente invocando-se a sua falta de legitimidade para tal no âmbito dos autos e nos termos do art.º 68.º, n.º 1, al. a), e n.º 3, do Código de Processo Penal.

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Inconformado com esta decisão, da mesma interpôs o presente recurso, formulando, no termo da motivação, as seguintes conclusões:
I.–O presente recurso tem como objeto o Douto Despacho proferido pelo Meritíssimo Juiz a quo, que indeferiu o pedido de constituição de assistente.
II.–Considerou o Douto Despacho que o recorrente e outros requerentes de constituição de assistente fundamentam o seu pedido na aquisição de ações do BES.
III.–Considerou igualmente o Douto Despacho que, aquando do encerramento do inquérito, por despacho de 14.07.2020 foi consignado que, com base em queixa apresentada no dia 2.12.2014, havia sido instaurado o processo com o NUIPC 6049/14.9T9PRT, que corre seus termos no DCIAP e cujo objecto se reconduz à apreciação dos factos relacionados com o aumento de capital do BES, concretizado em 2014.
IV.–Conclui o Douto Despacho que os factos relatados e que fundamentam os pedidos de constituição como assistente em causa, não são objecto destes autos, não tendo os requerentes legitimidade para se constituírem assistentes.
V.–No requerimento de pedido de indemnização civil e constituição de assistente veio o recorrente indicar que subscreveu 63.500 ações ordinárias, escriturais, nominativas, emitidas pelo Banco Espírito Santo S.A, pelo valor de 30.797,50 euros.
VI.–O BES, entidade emitente das ações era tida aos olhos do mercado, entidades reguladoras e ao público em geral como uma entidade de elevado grau de fiabilidade.
VII.–A queda do valor de cotação de tais produtos financeiros, e consequente perda e danos na esfera patrimonial do recorrente, está intimamente relacionada com os factos descritos na acusação deduzida pelo Ministério Público.
VIII.–Com a resolução decretada pelo BES e pelo Banco de Portugal, devido aos enormes passivos que este tinha ocultado nas suas contas e nas das sociedades que sobre elas exerciam controlo, gerou um prejuízo ao recorrente no montante de 30.797,50 euros, pois as suas ações deixaram de ser cotadas em mercado.
IX.–Conforme resulta da acusação, no final de 2009 já o GES se encontrava em bancarrota.
X.–Através de deliberações aprovadas nas diferentes reuniões dos Conselhos de Administração (CA) de cada uma das sociedades, foram fabricados instrumentos de dívida emitidos pelas diferentes sociedades do grupo com o objetivo virem a capitalizar e financiar as diferentes entidades, promovidos e vendidos junto dos clientes dos balcões do grupo, e em particular, junto de clientes do BES.
XI.–Tal era legitimado pela certificação da documentação contabilística de entidades isentas e neutras, desconhecedoras de que já em 2009 a ESI se encontrava em bancarrota apresentando capitais próprios negativos.
XII.–Violando a obrigação legal de apresentar a ESI a escrutínio judicial em processos de natureza falimentar, o arguido BB manteve a ESI como estrutura chave na captação de liquidez junto de terceiros, liquidez que redirecionou pelas várias áreas de negócio do Grupo, tendo ordenado atos de manipulação das contas (cfr. fls. 300 e 301 Acusação).
XIII.–No BESI, de cuja administração fazia parte, o arguido BB socorreu-se de CC para que esta produzisse estudos sobre o valor da ESFG que em termos contabilísticos justificasse o seu empolamento nos ativos da ESI (Fls. 302 da Acusação).
XIV.–A real situação negativa da ESI e a ficcionada situação que apresentava, diferente, lograda com documentos criados para este efeito, contaminou progressivamente a atividade dos bancos ESPÍRITO SANTO (Fls. 302 da Acusação).
XV.–Com base neste aparelho fraudulento, BB usou da sua influência em todos os bancos ESPÍRITO SANTO para vender aos respetivos balcões várias modalidades de financiamento da ESI, quer em Portugal, quer no estrangeiro, com base em decisões tomadas em Portugal (Fls. 3030 da Acusação).
XVI.–Resulta da acusação que “Foi com base nos trabalhos de auditoria a que se faz referência, e numa certificação legal de contas do BES de 2013 falsificada por BB, que se tornou possível o processo do aumento de capital do BES, culminado a 16.06.2014”(Fls. 82), e “Os atos levados ao conhecimento da administração determinaram, no fecho do primeiro semestre de 2014, perdas históricas para um banco em Portugal, tornando o BES inelegível para manter relações de financiamento com contrapartes do sistema bancário europeu.”(Fls. 83 da Acusação).
XVII.–Sobre a ESFG importa reter que a atividade da ESI, RFI e ESR envolvia as unidades bancárias ESPÍRITO SANTO e ESFIL, tinha por efeito a exposição patrimonial e reputacional destas, com possibilidade de perdas que afetavam o seu valor, e por contaminação o valor dos ativos investidos pela ESFG nestas empresas (Fls. 308 da Acusação).
XVIII.–Entre 2009 e 2014, a viciação de contas foi maquinada, executada ou mantida não só por BB, mas também, pelo menos, por DD,EE,FF e GG.
XIX.–Os arguidos agiram com intenção de obter para si, ou para entidades do Grupo Espírito Santo, um enriquecimento ilegítimo, tendo, para o efeito utilizado as estruturas do BES de modo que estas comercializassem produtos financeiros que os primeiros sabiam não deter valor ou serem pouco fiáveis.
XX.–Tendo com isso levado o recorrente a subscrever ações no aumento de capital, o que lhe causou um prejuízo patrimonial correspondente ao montante investido.
XXI.–Os arguidos, com as suas condutas, bem sabiam que ao emitirem as indicadas ações e ao mandatarem entidades para, no mercado, promoverem e comercializarem a venda deste, iriam causar prejuízos aos adquirentes dos produtos financeiros.
XXII.–Os factos expostos nas conclusões V a XXI foram relatados no pedido de constituição de assistente formulado pelo recorrente, sendo as condutas dos arguidos descritas no despacho de acusação.
XXIII.–Considerou o Douto Despacho recorrido que o objeto do processo com o NUIPC 6049/14.9T9PRT, que corre seus termos no DCIAP se reconduz à apreciação dos factos relacionados com o aumento de capital do BES, concretizado em 2014.
XXIV.–A manipulação de documentação contabilística, com vista a poder ser possível a realização de um aumento de capital do Banco Espírito Santo S.A., dá corpo ao texto que os concretiza em sede de acusação, na qual são imputados os crimes de associação criminosa para a prática de crimes de falsificação, previsto no art.º 256º, burla (qualificada), previsto nos art.ºs 217º e 218º, infidelidade, previsto no art.º 224º, branqueamento, previsto no art.º 368º-A, todos do Código Penal, e de corrupção ativa e passiva no setor privado, previstos nos art.º 8º e 9º da Lei 32/2008, de 21.04, e de manipulação de mercado, previsto no art.º 379º do Código de Valores Mobiliários (Fls. 84 da Acusação).
XXV.–Sendo factos objeto do despacho de acusação
XXVI.–De acordo com o Acórdão TRL de 03.02.2016, proferido no âmbito dos presentes autos (processo 324/14.0TELSB-L.L1-3), “Têm legitimidade para se constituírem assistentes, os lesados por uma instituição bancária onde se investigam os crimes de burla simples e qualificada, abuso de confiança, falsificação de documentos, branqueamento de capitais e fraude fiscal, e cujo processo tem como arguido, entre outros, o Presidente do respectivo Banco”.
XXVII.–No referido acórdão estava em causa a factualidade relativa à subscrição de ações por ocasião do aumento de capital lançado pelo Banco Espírito Santo (BES), em 2014.
XXVIII.–Concluiu o referido Acórdão, perante a factualidade descrita pelos requerentes aquando do pedido para constituição como assistentes ser perfeitamente aceitável admitir os recorridos na qualidade de assistentes, como titulares dos interesses que a incriminação visou especialmente proteger, uma vez que, na sua óptica, viram o seu património afetado pelas condutas.
XXIX.–Nas condutas referidas no requerimento de constituição de assistente e na acusação estão em causa crimes de burla qualificada e de infidelidade, tendo estas condutas produzido diretamente impacto no recorrente, confrontado com um prejuízo patrimonial elevado.
XXX.–O recorrente é o titular do interesse que constitui objeto jurídico imediato dos crimes de burla qualificada e infidelidade, interesse próprio e direto que não se consubstancia somente na pessoa do lesado.
XXXI.–O mesmo se conclui relativamente a eventuais crimes de falsificação e de abuso de confiança, atenta a descrição da factualidade alegada pelo recorrente.
XXXII.–Com efeito, o crime de falsificação de documento é um crime contra a vida em sociedade, em que o bem jurídico segurança e confiança do tráfico probatório, mas não é o único bem jurídico particularmente protegido com a correspondente incriminação, atendendo ao conjunto do tipo.
XXXIII.–Como requisito subjetivo, se exige que o agente tenha atuado com a intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou Estado ou alcançar para si ou para terceiro benefício ilegítimo.
XXXIV.–Quando for o caso, verificados os elementos materiais do iter criminis, é essa especial direção de vontade do agente: prejudicar outra pessoa, que dita o completamento do crime.
XXXV.–O que impõe a conclusão, face a este elemento subjetivo, de que o tipo em causa visa proteger aqueles valores, mas (também) em razão do prejuízo que os atentados contra eles podem causar a interesses de particulares.
XXXVI.–Esses interesses particulares, se bem que não exclusivamente, são pois protegidos de modo particular pela incriminação, constituindo um dos objetos imediatos da incriminação.
XXXVII.–Assim, se num caso concreto os arguidos visaram com a falsificação causar prejuízo aos interesses particulares de determinada pessoa, neste caso todos os adquirentes de obrigações PT, estes poderão constituir-se assistentes.
XXXVIII.–No tipo legal de falsificação de documento do artigo 256.° do Código Penal, a circunstância de ser aí protegido um interesse de ordem pública não afastou, sem mais, a possibilidade de, ao mesmo tempo, ser também imediatamente protegido um interesse suscetível de ser corporizado num concreto portador, aquele cujo prejuízo o agente visava, assim se afirmando a legitimidade material do ofendido para se constituir assistente.
XXXIX.–O Acórdão n.° 1/2003 – Processo n.° 609/02 - do Supremo Tribunal de Justiça, disponível in www.dgsi.pt concluiu, quanto ao crime de falsificação:
«No procedimento criminal pelo crime de falsificação de documento, previsto e punido pela alínea a) do n.º 1 do artigo 256.º do Código Penal, a pessoa cujo prejuízo seja visado pelo agente tem legitimidade para se constituir assistente.»”.
XL.–Assim, o Acórdão 1/2003, estabelece que o vocábulo “especialmente” usado pela lei significa “de modo especial, num sentido de particular e de não exclusivo” de sorte que” quando os interesses imediatamente protegidos  pela  incriminação,        sejam, simultaneamente, do Estado e de particulares...a pessoa que tenha sofrido danos em consequência da sua prática tem legitimidade para se constituir assistente.”
XLI.–O direito penal tem por encargo proteger os bens jurídicos e todos os preceitos penais podem reconduzir-se à proteção de um ou vários bens jurídicos que podem ser lesados cumulativamente ou alternativamente, sendo, neste caso, os interesses particulares também objeto imediato da proteção pela norma incriminadora.
XLII.–A ampliação do conceito de ofendido, não deixando de estar ligada ao conceito de bem jurídico, consagrado no artigo 68º, n.º1 alínea a) do CPP acarreta o correto equilíbrio entre a necessidade de punir a necessidade que esta punição seja feita de forma justa e ponderada contribuindo assim para a realização de um processo penal mais equitativo e pacificador, uma vez que a participação da vítima é um fator de extrema importância para o saudável funcionamento da Administração da Justiça pelo que, nunca deve ser menosprezada e abandonada.
XLIII.–Neste contexto, o Recorrente apresenta-se com legitimidade para se constituir assistente nos presentes autos.
XLIV.–O Douto Despacho violou a al. a) do n. 1 do artigo 68. do Código de Processo.
NESTES TERMOS, E NOS MELHORES DE DIREITO QUE DOUTAMENTE SERÃO SUPRIDOS POR V. EXAS., DEVERÁ O PRESENTE RECURSO SER JULGADO PROCEDENTE POR PROVADO E, EM CONSEQUÊNCIA, SER REVOGADO O DOUTO DESPACHO RECORRIDO, SENDO SUBSTITUÍDO POR OUTRO NO QUAL SEJA ADMITIDA A CONSTITUIÇÃO DE ASSISTENTE PELO RECORRENTE, FAZENDO V. EXAS.
A HABITUAL E NECESSÁRIA JUSTIÇA!

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O recurso foi admitido, com subida imediata, em separado e com efeito meramente devolutivo.

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Notificado da interposição do recurso, respondeu o Ministério Público, concluindo pela forma seguinte:
1.–Importa, perante o teor do recurso, aquilatar se o recorrente se mostra investido na posição de titular dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação no âmbito dos presentes autos.
2.–O conceito de ofendido, para efeitos de legitimidade para constituição como assistente, coincide com o conceito adoptado para se aferir da legitimidade para apresentação de queixa, previsto no art° 113° n° 1 do Código Penal, onde igualmente se estabelece que ofendido é o titular dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação.
3.–A legitimidade do ofendido é aferida necessariamente em relação ao crime concreto que estiver em causa, e a delimitação do seu conceito encontrar-se-á na tipologia criminal concretamente expressa em lei. Só assim é possível determinar se uma pessoa viu os interesses que a lei quis especificamente proteger afectados pela conduta adoptada pelo arguido ou pelo suspeito.
4.–É a norma incriminadora que fornece ao intérprete o interesse que o legislador quis proteger, ao tipificar determinada conduta como criminosa.
5.–No caso vertente, o recorrente apresentou-se à constituição como assistente invocando apenas o disposto no do art° 68° n° 1 al. a) do CPP, tendo o tribunal a quo necessidade de recorrer aos termos do pedido cível deduzido.
6.–Sendo o seu fundamento na subscrição de 63.500 acções ordinárias, escriturais, nominativas, emitidas pelo Banco Espírito Santo S.A, no valor de 30.797,50 euros. Este produto financeiro foi adquirido no âmbito da operação de oferta pública em 2012.
7.–Não foram apuradas neste inquérito as circunstâncias em que foram comercializadas as mencionadas acções.
8.–O objecto do processo foi fixado com a acusação proferida no dia 14.07.2020.
9.–Nela não foi imputada a prática de qualquer crime por aqueles factos, pelo que, e salvo melhor opinião, não assume o recorrente, neste autos, a qualidade de ofendido nos termos e para os efeitos do art° 68° n°1 al. a) do CPP.
10.–E, por isso, carece de legitimidade para se constituir assistente, como se disse, no âmbito deste inquérito.
11.–Sempre se dirá, contudo, que não estando o recorrente investido na qualidade de ofendido, como pretende, sempre poderia ser admitido a intervir como assistente ao abrigo do que dispõe o art.° 68° n° 1 al. e) do CPP (o que não requereu), já que se procede por crimes de corrupção no sector privado.
12.–Todavia, nos termos pretendidos, deverá ser negado provimento ao recurso interposto, mantendo-se a decisão recorrida.
V. Ex.as farão, contudo, a MELHOR JUSTIÇA

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Nesta Relação, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.

Foi cumprido o estabelecido no art.° 417.°, n.° 2, do Código de Processo Penal.

Colhidos os vistos, foram os autos à conferência.

Cumpre apreciar e decidir.

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IIFUNDAMENTAÇÃO

2.1.–Âmbito do recurso e questões a decidir

Constitui jurisprudência corrente dos tribunais superiores que o âmbito do recurso se afere e se delimita pelas conclusões formuladas na motivação apresentada (artigo 412°, n° 1, in fine, do Código de Processo Penal), sem prejuízo das que importe conhecer, oficiosamente por obstativas da apreciação do seu mérito, como são os vícios da sentença previstos no artigo 410.°, n.° 2, do mesmo diploma, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito (Ac. do Plenário das Secções do S.T.J., de 19/10/1995, D.R. I – A Série, de 28/12/).

No caso vertente, vistas as conclusões do recurso, a questão essencial nele suscitada consiste em saber se o  recorrente se pode constituir como assistente nos autos com o n.° 324/14.0TELSB, ao abrigo do disposto no art.° 68.°, n.° 1, al. a) e n.° 3, do Código de Processo Penal.

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2.2.–O despacho recorrido
Naquilo em que o mesmo releva para o conhecimento do objeto do recurso, foi a seguinte, em termos de matéria de facto, a decisão impugnada:

“(...) verifica-se (..) que, aquando do encerramento do inquérito, por despacho de 14.07.2020, a fls. 47935 e segs., maxime fls. 48004 a 48006, foi consignado que, com base em queixa apresentada no dia 2.12.2014, havia sido instaurado o processo com o NUIPC 6049/14.9T9PRT, que corre seus termos no DCIAP e cujo objecto se reconduz à apreciação dos factos relacionados com o aumento de capital do BES, concretizado em 2014. Verifica-se (..) que os factos relatados e que fundamentam os pedidos de constituição como assistente em causa, não são, pois, objecto destes autos.

Assim, no âmbito do presente inquérito, corroboramos o entendimento sancionado pelo detentor da acção penal, de que não têm os requerentes legitimidade para se constituírem assistentes, nos termos e para os efeitos do art.° 68° n° 1 al. a) do Código de Processo Penal, pelo que se indeferem os respectivos pedidos. (..)”

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2.3.–Apreciação do recurso
Dispõe o art.° 68.°, n.° 1, al. a), do Código de Processo Penal:
Podem constituir-se assistentes no processo penal, além das pessoas e entidades a quem leis especiais conferirem esse direito:

a)- Os ofendidos, considerando-se como tais os titulares dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação desde que maiores de 16 anos; (...)”.
Impõe-se, face aos termos do recurso interposto, averiguar se o recorrente se mostra investido na posição de titular dos interesses que a lei especialmente  quis proteger com as incriminações que invoca, posto que apenas fundamentou a sua pretensão de se constituir assistente com fundamento naquela alínea do art.° 68.°, do Código de Processo Penal.
Tem sido comummente aceite, que o conceito de ofendido para efeitos de legitimidade para constituição como assistente, coincide com o adotado para se aferir da legitimidade para apresentação de queixa, previsto no art.° 113.°, n.° 1, do Código Penal, onde igualmente se estabelece que ofendido é o titular dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação.
Exige-se, como condição de legitimidade, a existência de um interesse  específico, particularmente qualificado, que intercede na relação entre o bem  jurídico e o sujeito afetado.
Deste modo, só será ofendido quem for titular de um interesse legítimo, tutelado pela lei acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 18.11.2015, disponível em www.dgsi.pt.
O recorrente requereu a sua constituição como assistente, como acima se aludiu, com fundamento no art.° 68.°, n.° 1, al. a), e n.° 3, do Código de Processo Penal, bem como deduziu pedido de indemnização civil alegando que subscreveu  63.500 acções ordinárias, escriturais, nominativas, emitidas pelo Banco Espírito Santo S.A, pelo valor de 30.797,50 euros. Este produto financeiro foi  adquirido no âmbito da operação de oferta pública em 2012.

Invoca, além do mais, o Recorrente que: (...)
“Foi com base nos trabalhos de auditoria a que se faz referência, e numa certificação legal de contas do BES de 2013 falsificada por RS....., que se tornou possível o processo do aumento de capital do BES, culminado a 16.06.2014”(Fls. 82), e “Os actos levados ao conhecimento da administração determinaram, no fecho do primeiro semestre de 2014, perdas históricas para um banco em Portugal, tornando o BES inelegível para manter relações de financiamento com contrapartes do sistema bancário europeu.”(Fls. 83 da Acusação).
Sobre a ESFG importa reter que a atividade da ESI, RFI e ESR envolvia as unidades bancárias ESPÍRITO SANTO e ESFIL, tinha por efeito a exposição patrimonial e reputacional destas, com possibilidade de perdas que afetavam o seu valor, e por contaminação o valor dos ativos investidos pela ESFG nestas empresas (Fls. 308 da Acusação). (...)”

Por despacho do Ministério Público de fls. 63177, maxime 63179, com data de 05.04.2021, foi determinado que se informasse o ora recorrente, através do seu Ilustre Advogado e para os fins que fossem entendidos por convenientes, que corre termos no DCIAP o processo com o NUIPC 6049/14.9T9PRT, cujo objecto se reconduz à apreciação dos factos relacionados com o aumento de capital do BES, concretizado em 2014 e outros com eles, eventualmente, conexos.

Por despacho de fls. 63193 a 63212, maxime fls. 63209, foi indeferida a pretensão do recorrente de se constituir assistente por falta de legitimidade para tal no âmbito dos autos e nos termos do art° 68° n° 1 al. a) e 3 do Código de Processo Penal.

É deste despacho que é interposto o presente recurso.

No caso concreto, a legitimidade da recorrente deve ser aferida em relação aos crimes concretos que estiverem em causa e a delimitação do seu conceito encontrar-se-á na tipologia criminal concretamente expressa em lei. Só assim é possível determinar se uma pessoa viu os interesses que a lei quis, especificamente, proteger afetados pela conduta do(s) arguido(s) ou suspeito(s).

Todavia, a factualidade concreta por si alegada (compra de acções do BES e respetivo prejuízo) não foi levada ao objecto do processo, definido pela acusação formulada pelo Ministério Público no dia 14.07.2020.

Como consta do despacho recorrido a factualidade CONCRETA relativa ao aumento de capital do BES – logo, a compra de ações por parte do Recorrente e seu prejuízo - é objeto de investigação em processo autónomo, o inquérito com o NUIPC 6049/14.9T9PRT, a qual ainda se encontra pendente no DCIAP.

A acusação formulada imputa aos arguidos nela identificados crimes de associação criminosa, corrupção activa e passiva no sector privado, manipulação de mercado, branqueamento, falsificação - (relativamente às demonstrações financeiras da ESPIRITO SANTO INTERNATIONAL – ESI -, ao uso de contratos de opção para transferência de verbas para entidades GES, à viciação de cartas de representação da ESI, à viciação da carta de representações para certificação legal das contas do BES, à viciação da carta de representações para certificação legal de contas da ESFG); burla qualificada (relativamente a colocações fiduciárias ESI em clientes do BPES, a venda de UP do Fundo ExS aos balcões do BPES, a obrigações ESI em unidades bancárias do GES, a colocação de acções preferenciais ESIOL e ESROL em unidades ESBP e BPES, a emissões RIOFORTE colocadas em unidades BPES, a colocação de papel comercial doméstico ESI em unidades do Grupo BES, a colocação de papel comercial doméstico RIOFORTE em unidades do Grupo BES, a venda de obrigações ES TOURISM EUROPE nas unidades do Grupo BES, a venda nas unidades do Grupo BES de acções preferenciais e obrigações do Grupo ESCOM MINING, a venda de divida ESFIL, a concessão de crédito a entidades do Grupo ESI através da unidade do ESBP, ao uso de unidades do Grupo BES para venda de obrigações BES FINANCE, BES PT, BES LONDON e BES LUXEMBOURG, a venda de EG PREMIUM a SPV que expunham clientes do Grupo BES, a venda de acções preferenciais de três SPV do Credit Suisse e EG PREMIUM a clientes do Grupo BES, a concessão de crédito à RFI com utilização do ESBP, a colocação de dívida da ES IRMÃOS em clientes da unidade do Grupo BES, a linhas de mercado monetário com a ESFIL), infidelidade (pela colocação de instrumentos de divida ESI em clientes do Grupo BES, pelas linhas de crédito concedidas a entidades do Grupo ESCOM, pelo uso da unidade BES em operações BES LONDON e envolvimento da GDC em operações BES LUXEMBOURG).

Como afirma o Ministério Público a narrativa factual da acusação não inclui  as circunstâncias relatadas pela recorrente na aquisição de ações do BES e não se apurou se e em que circunstâncias foi afectado o seu património; nem tal faz parte do objecto da acusação.
O recorrente apresentou-se à constituição como assistente invocando apenas o disposto no do art° 68° n° 1 al. a) do CPP, tendo o tribunal a quo necessidade de recorrer aos termos do pedido cível deduzido para analisar os termos do pretendido.

E, assim sendo, não tem, o recorrente, legitimidade, no âmbito destes autos e de acordo com o objeto neles definido, para se constituir assistente, pois em relação aos factos por si invocados não foi imputada a prática de qualquer crime, de modo a poder aferir-se que o recorrente é ofendido nos termos exigidos pelo art.° 68° n° 1 al. a) do CPP.

Os factos que fundamentam a pretensão do recorrente estão, isso sim, conexos com a investigação no âmbito do outro processo de inquérito que corre seus termos no DCIAP sob o NUIPC 6049/14.9T9PRT.

A decisão recorrida não padece de qualquer vício que determine a sua revogação, conforme é pugnado pela recorrente.
Deste modo, entende-se que o presente recurso não merece provimento, devendo, em consequência, a decisão recorrida ser mantida, nos seus precisos termos.

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IIIDECISÃO

Nestes termos, acordam, em conferência, as Juízas que integram a 9.ª Secção desta Relação, em negar provimento ao recurso interposto pelo recorrente AA.
Custas, a cargo do recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 (três) UCs - art.° 420.°, n.° 3, do Código de Processo Penal, e demais encargos legais.
Notifique.

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Lisboa, 16 de Dezembro de 2021


Paula Cristina Jorge Pires
Maria José Caçador