Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
681/14.8TVLSB.L1-2
Relator: JORGE LEAL
Descritores: RESOLUÇÃO
ARRENDAMENTO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/03/2016
Votação: MAIORIA COM * DEC VOT E * VOT VENC
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Sumário: Sumário (art.º 663.º n.º 7 do CPC)
I. Nos termos do n.º 1 do art.º 1070.º do Código Civil, “o arrendamento urbano só pode recair sobre locais cuja aptidão para o fim do contrato seja atestada pelas entidades competentes, designadamente através de licença de utilização, quando exigível.”
II. Nos termos do art.º 5.º n.º 7 do Dec.-Lei n.º 160/2006, de 8 de agosto (diploma que regulamenta o disposto no n.º 1 do art.º 1070.º do CC), caso o locado não disponha de licença de utilização, por motivo imputável ao senhorio, o locatário poderá resolver o contrato, além de reclamar indemnização pelos danos sofridos.
III. No que concerne à existência de licença de utilização do locado, haverá que distinguir a licença a cargo do senhorio/proprietário do imóvel a arrendar, atinente à genérica possibilidade de utilização do edifício, da licença adstrita à específica atividade que o locatário irá exercer no locado, cuja obtenção poderá estar a cargo do locatário e não do senhorio.
IV. Deverá relegar-se para momento ulterior à prolação da sentença a liquidação dos danos sofridos pelo arrendatário de local destinado à atividade de restauração, que efetuou despesas tendo em vista a instalação do respetivo estabelecimento, mas se viu obrigado a resolver o contrato por o imóvel locado não ter licença (genérica) de utilização nem a mesma ser obtenível em tempo útil, se se constatar que entre essas despesas se inclui a aquisição de bens aparentemente recuperáveis e utilizáveis e transacionáveis, não tendo ficado claro em que termos os materiais adquiridos puderam ou poderiam ser aproveitados noutro local e foram ou poderiam ser transacionados, com maior ou menor prejuízo em relação ao valor da aquisição.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral:

Acordam os juízes no Tribunal da Relação de Lisboa

RELATÓRIO
Em 29.4.2014 Unipessoal, Lda, intentou nas Varas Cíveis de Lisboa (atualmente, Instância Central, 1.ª Secção Cível, da Comarca de Lisboa) ação declarativa de condenação, na forma comum, contra Palmira e marido Álvaro.
A A. alegou, em síntese, que com início em 01 de março de 2013 tomou de arrendamento aos RR. um prédio urbano a estes pertencente, sito em Lisboa, para aí instalar e explorar um restaurante. Sucede que, apesar de os RR. lhe terem assegurado que o locado tinha licença de utilização, veio a apurar que tal não era verdade nem seria possível, máxime por oposição da Câmara Municipal de Lisboa. Ora, a A. efetuou no locado diversas obras e adquiriu mercadoria tendo em vista a atividade que aí iria exercer e com cujos proventos amortizaria o investimento feito e auferiria lucros. Uma vez que se viu impossibilitada de exercer a sua atividade no locado, em 12.9.2013 a A. resolveu o contrato.
A A. terminou pedindo que os RR. fossem condenados a pagar-lhe a quantia de € 73 737,96, “referente aos investimentos efetuados com obras e maquinaria utilizada, no espaço objeto do arrendamento” e numa quantia a título de lucros cessantes, a ser apurada em sede de liquidação de sentença.
Os RR. contestaram, afirmando que tinham tido o cuidado de informar a A. que o locado não tinha licença de utilização, sendo até duvidoso que dela carecesse. A A. assumiu o encargo de obter junto das entidades competentes, incluindo a CML, a suas expensas, as licenças ou dispensa das mesmas, inerentes à atividade que pretendia exercer. Negaram, assim, qualquer responsabilidade nos prejuízos alegados pela A., mais impugnando as despesas invocadas, quanto à sua realização e necessidade, e bem assim questionando a sua efetuação sem prévia garantia de que a atividade em causa seria licenciada. Em reconvenção, os RR. alegaram que a A. continuava na posse do locado, pelo que estava em dívida, em relação à renda estipulada (€ 600,00 por mês), o equivalente a 14 rendas, a que acresceria as que se vencessem até entrega do locado.
Os RR. concluíram pela sua absolvição do pedido, face à improcedência da ação, por não provada, e pediram que, em reconvenção, a A. fosse condenada a pagar-lhes a quantia de € 8 400,00, correspondente às rendas vencidas, bem como nas rendas vincendas até efetiva entrega do locado aos RR., bem como nos juros de mora correspondentes desde a data de vencimento das prestações decorrentes da locação em dívida.
A A. respondeu à reconvenção, pugnando pela sua improcedência.
Foi proferido saneador tabelar e realizou-se audiência final.
Em 26.6.2015 foi proferida sentença, que culminou com o seguinte dispositivo:
Em face do exposto, o Tribunal:
1. Julga a presente ação parcialmente procedente e, em conformidade, condena a Ré Palmira (…) a pagar à Autora Unipessoal, Lda. uma indemnização no montante de cinquenta e nove mil, quinhentos e vinte e nove euros e trinta e nove cêntimos (€ 59.529,39), acrescida de juros de mora contados desde a data da citação e até integral e efetivo pagamento;
2. Absolve o Réu Álvaro (…) do pedido;
3. Julga o pedido reconvencional parcialmente procedente e, consequentemente, condena a Reconvinda, Unipessoal, Lda. a pagar à Reconvinte Palmira (…) a quantia de seiscentos euros mensais desde 13 de Setembro de 2013 inclusive e até à entrega efetiva do locado.
As custas da ação são da responsabilidade da Autora/reconvinda e da Ré/Reconvinte na proporção do respetivo decaimento.”
A R. Palmira apelou parcialmente da sentença, tendo apresentado alegações em que formulou as seguintes conclusões:
a) devendo a fundamentação conter os elementos que permitam a reconstituição do itinerário cognoscitivo subjacente a decisão, situação que, em sede de decisão sobre a matéria de facto, implica a identificação concreta dos documentos e dos segmentos dos depoimentos que sustentam a consideração de um determinado facto como provado ou não provado (art. 607º, nº 4, do Cod. Proc. Civil), verifica-se que os factos provados sob os nºs 4, 7, 9, 10, 11, 13 e 25 se mostram difusamente fundamentados, em moldes de justificar o lançar mão do disposto no art. 662º, nº 2, al. d) do Cod. Proc. Civil, por forma a que a mesma motivação seja complementada com indicação dos segmentos dos documentos e dos depoimentos que determinam a consideração probatória;
b) inculca o ponto 7 (e, inerentemente, o ponto 8) dos factos provados que a A. assinou o contrato num pressuposto, criado pela R., de que o locado estava legalizado para o exercício da actividade comercial, sendo certo que, como decorre dos depoimentos das testemunhas Rui (…), Pedro (…) e das declarações de parte da ora recorrente que a R. deu acesso a documentos do imóvel, máxime certidão do registo predial, que revelam a não obrigatoriedade de licença de utilização do imóvel e a inexistência de qualquer licenciamento comercial, de forma a que a A. ficou com o encargo de efectuar o licenciamento, apenas decorrendo tal pressuposto de uma errada (infantilmente errada) interpretação da R. da certidão que se estava perante uma "propriedade horizontal", não devendo a consideração probatória subsistir;
c) para mais, aliado ao ponto 8 dos factos provados, com que faz uma relação de causa-efeito o ponto 7 dos mesmos factos provados, mesmo que o locado estivesse licenciado para actividade comercial, o facto de se tratar de uma actividade industrial - restaurante - torna absolutamente irrelevante a mesma consideração para licenciamento de restauração;
d) os factos nºs 9, 10 e 11 dos factos provados, pecam, desde logo, por serem inconclusivos e absolutamente carentes de concretização, concretamente no que concerne á alusão a "adquiriu materiais", "adquiriu serviços", indicando um valor dos "materiais e serviços supra referidos", sem especificar quais, em violação do art. 607º, nº 4, do Cod. Proc. Civil, que remete para o elenco de factos na acepção de serem os elementos concretos sobre que deve recair a prova, claros, precisos e bastantes;
e) mesmo que se procurar suprir aquela indicação genérica por via de remissão para os documentos constantes da petição inicial, constata-se que os documentos juntos: ou não mostram a efectivação de pagamento - docs. nºs 2, 3, 4, 5, 6, 7, 19, 20, 21 e 34; ou não revelam nexo de causalidade especifico com o locado - todas com excepção da factura 7 - por não serem directamente afectas ao locado, pelo que os mesmos factos devem ser tidos por não provados;
f) situação que igualmente afecta o facto provado sobre o nº 25, pois que entre a data do contrato e a data da primeira factura decorrem quase dois meses, tendo intercalarmente a Camara Municipal de Lisboa notificado a A. da não aceitação do pedido, por um lado, tendo a testemunha Pedro Filipe Almeida Branco confirmado que as obras apenas se realizariam após a resposta da Camara;
g) decorre dos autos que a A. pretendia exercer uma actividade industrial, e não comercial, pelo que a relação causa-efeito constante do ponto 13 dos factos provados carece de fundamento;
h) a tal acresce a confirmação da elucidação prestada pela R. conforme decorre das suas declarações de parte, o que igualmente determina a impugnação, também, do ponto 1 dos factos não provados;
i) lançando mão a sentença recorrida, como elementos de enquadramento normativo dos factos, o disposto no art. 227º, nº 1, do Cod. Civil, sempre se terá de aquilatar a verificação cumulativa dos quatro requisitos subjacentes ao seu accionamento, concretamente: a) uma situação de confiança traduzida na boa fé própria da pessoa que acredita numa conduta alheia; b) uma justificação para essa confiança, sem desacerto dos deveres de indagação razoáveis; c) um investimento de confiança consiste em, da parte do sujeito, ter havido um assentar efectivo de actividades jurídicas sobre a crença consubstanciada, em termos que desaconselham o seu preterir; d) uma imputação da confiança á pessoa atingida pela protecção dada ao confiante;
j) ora, no caso vertente, os elementos indubitavelmente transmitidos, constituídos por certidão do registo predial, mostram, por um lado, que o prédio em causa, sendo um pavilhão, não está legalmente sujeito a licença de utilização (cf. os arts. 6º A, nº 1, al. a) e 6º, nº 2, al. l) do Regime Juridico da Urbanização e Edificação, sendo que apenas a errada leitura da mesma, identificando o imóvel como submetido a propriedade horizontal, gerou o falso pressuposto;
k) sendo que, pretendendo-se instalar um estabelecimento de restauração, exercício típico de actividade industrial, a pretendida licença para comércio seria, de todo em todo, inútil;
l) tendo, em sede de indagação subsequente por parte da A. junto da Camara Municipal de Lisboa, esta informado, ainda antes de realizadas quaisquer obras, que a mesma não aceitava o licenciamento para aquele fim do mesmo estabelecimento;
m) tendo o dever de informação sido preenchido com todos os elementos disponíveis e na posse da R.;
n) para mais, não foi feita prova da realização legitima de despesas por forma do contrato de arrendamento, sendo que antes de iniciadas as obras a A. já tinha em posse informação contrária ao licenciamento por parte da edilidade licenciadora;
o) sendo que quanto aos equipamentos que alegadamente adquiriu para o locado, os mesmos podem ser utilizados noutro lado, devolvidos ou vendidos, pelo que o pagamento dos mesmos pela R. envolve um efectivo enriquecimento sem causa pois que, daquela forma, a A. beneficia dos mesmos bens pagos pela R.;
p) tendo o locado sido entregue (após prolação da sentença) pela A. á R., no mesmo não se encontram quaisquer bens dos alegadamente adquiridos, ou se verificam a realização de quaisquer benfeitorias;
q) benfeitorias que, de qualquer forma, mesmo que fossem incorporadas no locado, foram objecto de renuncia a reclamação de indemnização pela A. na al. f) do contrato por si celebrado;
r) nem sequer havendo lugar a benfeitorias, tendo a A. declarado a aptidão do locado ao fim a que se destinava, e não tendo a mesma apresentado qualquer autorização escrita da R. para a sua realização;
s) como consequência da declaração de nulidade do contrato, á luz do art. 289º, nº1, do CC deve a A. ser condenada a pagar a totalidade das rendas inerentes ao tempo de ocupação do locado;
t) a sentença recorrida, salvo melhor opinião, violou os comandos legais contidos nas presentes conclusões de recurso e enferma de erro de julgamento.
A apelante terminou pedindo que o recurso fosse julgado procedente por provado e a sentença recorrida revogada, com as legais consequências.
Não houve contra-alegações.
Foram colhidos os vistos legais.
FUNDAMENTAÇÃO
As questões suscitadas no recurso são as seguintes: falta de fundamentação de alguns dos factos provados; impugnação da matéria de facto; (ir)responsabilidade da R. face à A.; integral procedência da reconvenção.
Primeira questão (falta de fundamentação de alguns dos factos provados)
A apelante defende que a decisão de facto relativa aos n.ºs 4, 7, 9, 10, 11, 13 e 25 carece da devida fundamentação (tais factos, entende a apelante, mostram-se “difusamente fundamentados”), justificando que se lance mão do disposto no art.º 662.º, n.º 2 alínea d) do CPC, “por forma a que a mesma motivação seja complementada com indicação dos segmentos dos documentos e dos depoimentos que determinam a consideração probatória”.
Vejamos.
Nos termos da alínea d) do n.º 2 do art.º 662.º do CPC a Relação, no exercício dos seus poderes de reapreciação da decisão de facto, deve, mesmo oficiosamente, “determinar que, não estando devidamente fundamentada a decisão proferida sobre algum facto essencial para o julgamento da causa, o tribunal de 1.ª instância a fundamente, tendo em conta os depoimentos gravados ou registados”.
Com efeito, os tribunais, que administram a justiça em nome do povo (art.º 202.º n.º 1 da CRP), devem fundamentar as suas decisões, “na forma prevista na lei” (n.º 1 do art.º 205.º da CRP).
E a lei diz, no texto do n.º 4 do art.º 607.º do CPC, que “na fundamentação da sentença, o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção; o juiz toma ainda em consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras de experiência.”
A fundamentação “ilumina” a decisão de facto, indica às partes, ao tribunal ad quem e à comunidade em geral as razões que levaram o juiz a firmar a sua convicção, e certifica que o juiz analisou as provas de forma ponderada e completa, assim reforçando a adesão que se pretende que a decisão do tribunal mereça, no desiderato de rápida e eficaz pacificação do litígio.
Os factos dados como provados, e cuja fundamentação a apelante entende ser “difusa”, são os seguintes:
4. “A Autora negociou e celebrou o contrato supra referido para instalar no prédio supra referido um restaurante “Music Burger”, à semelhança de outros já instalados em Lisboa (art. 3.º da PI)”.
7. “A Autora assinou o contrato no pressuposto de que o locado estaria legalizado para o exercício da atividade comercial (art. 9.º da PI)”.
9. “Após a celebração do contrato, a Autora adquiriu materiais para a realização de obras no locado, que realizou, e adquiriu serviços, tendo em vista a instalação do restaurante “Music Burger” no locado; (art. 12.º da PI).
10.O valor dos materiais e serviços supra referidos ascendeu a €59.529,39; (art. 14.º da PI).
11. “O valor supra referido foi despendido na preparação do locado para o início da laboração do restaurante da Autora “Music Burger”; (art. 16.º da PI).”
13. “À data da outorga do contrato, 17 de Janeiro de 2013, a Autora desconhecia que no locado não poderia vir a exercer uma atividade comercial por falta de licença de utilização do mesmo; (art. 18.º da PI)
25. “Após a celebração do contrato, a Autora iniciou as obras de reparação e de instalação do estabelecimento de restauração; (art. 37.º da PI).
Transcreve-se a fundamentação da decisão de facto, nos trechos relevantes para esta questão:
No que respeita aos factos provados, o Tribunal fundou a sua convicção:
1/ Nos documentos juntos aos autos, concretamente:
(…)
Nos documentos n.ºs 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 25, 26, 27, 28, 29, 30, 31, 32 e 33, complementados com o depoimento da testemunha Rui (…), relevantes para o facto provado n.º 10.
2/ No depoimento das testemunhas:
- Rui (…), cujo conhecimento dos factos resulta da circunstância de trabalhar para a Autora e de ter participado na negociação do contrato em causa nos autos; o seu depoimento – prestado de forma clara, escorreita e sem contradições – foi relevante para os factos provados n.ºs 4, 7, 8, 9, 10, 11, 13, 26 e 27;
- Miguel (…), cujo depoimento – prestado de forma que nos pareceu verdadeira - foi relevante para prova do facto provado n.º 25;
- Filipe Almeida, funcionário da empresa que trata dos processos de licenciamento das lojas da Autora, cujo depoimento foi relevante para o facto provado n.º 25.
Ou seja, o tribunal a quo deu a conhecer que a sua convicção quanto ao valor dos materiais e serviços empregues no locado assentou em prova documental, que identificou, complementada com o depoimento de uma determinada testemunha, indicando a respetiva razão de ciência; quanto aos restantes factos ora em análise, atinentes à finalidade do arrendamento, pressupostos subjacentes e investimento realizado, o tribunal a quo esclareceu que a sua convicção assentou no depoimento de três testemunhas, cuja razão de ciência indicou, bem assim emitindo um juízo sobre a credibilidade de tais depoimentos.
Embora sucinta, a fundamentação supra transcrita é suficiente para que os seus destinatários identifiquem a fonte do juízo do tribunal, compreendam as razões desse juízo e possam, por sua vez, fazer a sua própria avaliação crítica. Sendo certo que em princípio as partes, que assistiram ao julgamento, não precisam que o tribunal indique qual o “segmento” do depoimento que terá sido relevante, em particular quando, como é o caso, se está perante factos probandos que não revestem particular complexidade. Note-se que é às partes que queiram impugnar a decisão de facto que cabe identificar em concreto os “segmentos” dos depoimentos que, no seu entender, justificam decisão diversa (art.º 640.º n.º 2 alínea a) do CPC), e não ao tribunal. A identificação das passagens dos depoimentos é um ónus das partes, nas circunstâncias supra referidas, e não do tribunal. Ao tribunal caberá adequar à densidade do seu objeto o grau de pormenor na apreciação dos depoimentos, o que passará, ou não, pela menção a excertos concretos dos depoimentos. In casu, não se vê que tenha havido omissão que inviabilize, como se disse, a compreensão da decisão de facto.
Questão diversa é a discordância com o juízo fundamentador, com a avaliação efetuada pelo tribunal a quo dos meios de prova apontados, quiçá contrabalançados com outros que sejam indicados pela parte impugnante.
Essa é matéria situada num outro plano, o da crítica à decisão de facto, ou melhor, ao conjunto dos factos provados e não provados composto pelo tribunal a quo, e que constitui objeto do próximo trecho do recurso.
Segunda questão (impugnação da decisão de facto)
O tribunal a quo deu como provada a seguinte
Matéria de facto
1. Entre a Autora e a Ré Palmira (…) foi outorgado o contrato anexo à Petição Inicial como documento n.º 1 e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, contrato esse datado de 17 de janeiro de 2013, o qual foi denominado de «Contrato de Arrendamento para Fins Comerciais»; (art. 1.º da PI)
2. O contrato supra referido teve por objeto o prédio urbano sito na Av. (…), Lisboa, sito na freguesia de São Mamede, em Lisboa, inscrito na matriz sob o art. (…) de referida freguesia; (art. 4.º da PI)
3. Pelo referido contrato, a Ré declarou dar de arrendamento à Autora o prédio supra descrito, para o exercício da atividade de restauração e «outras análogas dentro do ramo de alimentação», pelo prazo de 7 anos, com início em 1 de Março de 2013 e termo em 29 de Fevereiro de 2020, mediante uma renda mensal no valor de € 600,00; (arts. 3.º, 5.º, 7.º e 13.ºda PI)
4. A Autora negociou e celebrou o contrato supra referido para instalar no prédio supra referido um restaurante “Music Burger”, à semelhança de outros já instalados em Lisboa; (art. 3.º da PI)
5. As assinaturas dos outorgantes foram reconhecidas presencialmente pelo dr. Tiago (…); (art. 2.º da PI)
6. O prédio supra referido encontra-se registado na Conservatória do Registo Predial de Lisboa em nome da Ré, ali constando como título de aquisição a usucapião; (art. 4.º da PI)
7. A Autora assinou o contrato no pressuposto de que o locado estaria legalizado para o exercício da atividade comercial; (art. 9.º da PI)
8. A Autora assumiu o encargo de, junto das entidades competentes, nomeadamente da Câmara Municipal, obter e a suas expensas, a licença para o exercício da atividade de restauração; (art. 7.º da Contestação)
9. Após a celebração do contrato, a Autora adquiriu materiais para a realização de obras no locado, que realizou, e adquiriu serviços, tendo em vista a instalação do restaurante “Music Burger” no locado; (art. 12.º da PI)
10. O valor dos materiais e serviços supra referidos ascendeu a €59.529,39; (art. 14.º da PI)
11. O valor supra referido foi despendido na preparação do locado para o início da laboração do restaurante da Autora “Music Burger”; (art. 16.º da PI)
12. No prédio em questão nos autos funcionou um salão de jogos durante 20 anos, uma firma de materiais de construção durante 10 anos, e um stand auto durante três anos; (art. 17.º da PI)
13. À data da outorga do contrato, 17 de Janeiro de 2013, a Autora desconhecia que no locado não poderia vir a exercer uma atividade comercial por falta de licença de utilização do mesmo; (art. 18.º da PI)
14. Em 18 de Fevereiro de 2013, a Autora deu entrada nos serviços camarários de Lisboa de uma «declaração prévia» com vista à abertura do restaurante no locado; (art. 16.º da PI)
15. A Câmara Municipal de Lisboa enviou à Autora um ofício datado de 19 de Fevereiro de 2013 com o seguinte teor:
«No dia 18/02/2013 deu entrada nestes serviços uma Instalação de Declaração Prévia para o local supra mencionado.
Após apreciação liminar, verificou-se que faltava a cópia da licença de utilização ou alvará de restauração e bebidas, tendo sido a requerente avisada na mesma altura para a entrega desse mesmo documento (quis entregar o pedido sem esse documento).
Após pesquisa no sistema Gesturbe, verificou-se que para o local não existe nenhum pedido de autorização de utilização para Restauração e Bebidas, e segundo a requerente nunca foi emitido nenhum alvará para esse fim, afirmando inclusive que não existe antecedentes em arquivo (construção ilegal?).
Ora de acordo com o art. 10.º do Decreto-Lei n.º 234/2007 para que possa ser aceite uma declaração prévia de instalação tem que existir sempre um processo de autorização de utilização a correr na CML, caso contrário, não pode ser entregue uma declaração de instalação.
Posto isto, propõe-se a extinção do procedimento com base nesta informação.»; (arts. 20.º e 21.º da PI)
16. A Autora enviou aos Réus uma carta a solicitar a licença de utilização do locado; (art. 22.º da PI)
17. Mediante carta datada de 3 de Julho de 2013, os Réus responderam à supra referida missiva, anexa à Petição Inicial como documento n.º 44 e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido; (art. 23.º da PI)
18. A Câmara Municipal de Lisboa enviou à Autora uma carta registada com aviso de receção, datada de 04.07.2013, com o seguinte teor:
«(…)
Exmos. Senhores,
O pavilhão pré-fabricado que V. Exa. ocupa e sobre o qual fez um pedido de licenciamento encontra-se abusivamente instalado numa parcela de terreno municipal integrada na via pública, estando em curso um procedimento de despejo para o local.
Mais informamos que, sendo o Município o proprietário do terreno em causa, pretende reavê-lo livre e desocupado, o que é condição de prossecução de interesse público.
Em face do exposto, fica V. Exa. notificado de que é intenção deste Município ordenar a desocupação total do local, de forma a remover o pavilhão abusivamente instalado na parcela de terreno municipal, sendo-lhe dado o prazo máximo de 30 dias para o fazer, fundo o qual promoveremos a desocupação coerciva. (…)»; (art. 24.º da PI)
19. O mandatário da Autora enviou à Ré a carta anexa à Petição Inicial como documento n.º 46, datada de 15.07.2013 e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido; (art. 25.º da PI)
20. O mandatário da Autora enviou à Câmara Municipal de Lisboa a carta datada de 18 de Julho de 2013, anexa à Petição Inicial como documento n.º 48 e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido; (arts. 26.º e 27.º da Petição Inicial)
21. A Autora enviou à Ré uma carta datada de 9 de Setembro de 2013, e com aviso de receção, a qual foi pela segunda recebida em 12 de Setembro de 2013, carta essa anexa à Petição Inicial como documento n.º 49 e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido; (art. 29.º da PI)
22. Consta da referida missiva o seguinte: «Tendo em conta os prazos já decorridos sem que se vislumbre uma solução para o exercício no local arrendado por V. Exa. da actividade exercida por nós, por causa determinante e que lhe é directamente imputável, vimos proceder à resolução do contrato de arrendamento do imóvel sito na Av. Conselheiro Fernando Sousa, P.C. G 1070-072 em Lisboa.
Esta resolução tem como fundamento justa causa, tendo em conta que V. Exa. procedeu ao arrendamento daquele imóvel para a actividade de restauração, sem que o mesmo tivesse Alvará de Licença de Utilização do Imóvel, contrariamente ao que nos declarou na data do arrendamento. (…)»; (art. 29.º da PI)
23. Em resposta à carta supra referida, a Ré enviou à Autora uma carta datada de 18 de Outubro de 2013, anexa à Petição Inicial como documento n.º 50 e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido; (art. 30.º da PI)
24. A Autora recebeu o ofício enviado pela Câmara Municipal de Lisboa, datado de 21.06.2013, anexo à Petição Inicial como documento n.º 51 e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido; (art. 32.º da PI)
25. Após a celebração do contrato, a Autora iniciou as obras de reparação e de instalação do estabelecimento de restauração; (art. 37.º da PI)
26. A Autora mantém a posse do locado até à presente data;
27. A Autora apenas pagou a quantia de € 1.200,00 correspondente à 1.ª renda e caução;
28. Os Réus sabiam que o locado não tinha licença de utilização.
O tribunal indicou os seguintes
Factos não provados
1 - Antes de outorgado o contrato, os Réus tiveram o cuidado de informar a Autora que o locado não dispunha de licença de utilização;
2 – A renda foi fixada em função do facto de a Autora ter assumido o encargo de obter a licença de utilização.
O Direito
Nos termos do n.º 1 do art.º 662.º do CPC “a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.”
Pretendendo o recorrente impugnar a decisão relativa à matéria de facto, deverá, nos termos do art.º 640.º do CPC, sob pena de rejeição, especificar os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida e a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
No caso destes autos, a apelante impugna os factos dados como provados sob os n.ºs 7, 9, 10, 11, 13 e 25, e entende que deve dar-se como provado o facto considerado como não provado sob o n.º 1.
Para tal, a apelante invoca o depoimento das testemunhas Rui (…) e Pedro (…), assim como o depoimento da ora apelante, e questiona o conteúdo dos documentos juntos com a petição inicial sob os n.ºs 2 a 35.
O tribunal a quo, sobre a matéria ora impugnada, mencionou também o depoimento da testemunha Miguel (…).
Quanto ao n.º 7 da matéria de facto:
Está aqui dado como provado que “A Autora assinou o contrato no pressuposto de que o locado estaria legalizado para o exercício da atividade comercial”.
Não vislumbramos razões para que este facto não seja dado como provado. Foi expressamente afirmado pela testemunha Rui (…), colaborador da A., que foi quem tratou da celebração do negócio com os RR.. Note-se que o termo “atividade comercial”, retirado do alegado pela A. na petição inicial, e corroborado no depoimento da testemunha, não foi usado em contraposição a “atividade industrial”, mas num sentido amplo, de atividade económica em geral, exercida num estabelecimento aberto ao público. O confronto desse conceito com o de “atividade industrial” foi referido só agora, pela apelante, introduzindo uma questão que não foi minimamente aflorada na primeira instância e que não tem, pelo exposto, a virtualidade de alterar este ponto da matéria de facto.
Não existe qualquer desarmonia entre este facto e o dado como provado sob o n.º 8 (que a apelante aceita), que tem a seguinte redação:
A Autora assumiu o encargo de, junto das entidades competentes, nomeadamente da Câmara Municipal, obter e a suas expensas, a licença para o exercício da atividade de restauração”. Conforme resultou do depoimento da mesma testemunha, corroborada pela R., a A. encarregou-se de obter as licenças necessárias para poder exercer no local a atividade de restauração, na medida em que esta, pelas características inerentes à preparação e serviço de refeições, impunha particulares exigências, que a R. desconhecia se seriam obteníveis no caso. Porém, tais exigências não se confundem com a mera possibilidade de utilização do edifício locado, a que se refere o n.º 13 da matéria de facto, e que está implícito no n.º 7 da matéria de facto. A existência de obstáculos a esse nível não foi, segundo a testemunha, minimamente sinalizada pelos RR., tendo, pelo contrário, sido mencionada por eles anteriores atividades comerciais ali exercidas e entregue uma certidão do registo predial referente ao prédio. A referência, pela testemunha Rui Silva (e também pela testemunha Pedro Branco, que será mencionada mais adiante), de que o imóvel seria uma “propriedade horizontal”, ou assim o pensavam, em nada belisca o aqui dado como provado. Quanto à questão, posta pela apelante, de que o local não careceria de licença de utilização, tem natureza de direito e não de facto, devendo ser tratada na sede própria, a da apreciação jurídica da causa.
Nesta parte, pois, mantém-se a decisão de facto.
Quanto aos factos n.ºs 9, 10, 11 e 25.
Têm a seguinte redação:
9. “Após a celebração do contrato, a Autora adquiriu materiais para a realização de obras no locado, que realizou, e adquiriu serviços, tendo em vista a instalação do restaurante “Music Burger” no locado; (art. 12.º da PI).
10. “O valor dos materiais e serviços supra referidos ascendeu a €59.529,39; (art. 14.º da PI).
11. “O valor supra referido foi despendido na preparação do locado para o início da laboração do restaurante da Autora “Music Burger”; (art. 16.º da PI).”
25. “Após a celebração do contrato, a Autora iniciou as obras de reparação e de instalação do estabelecimento de restauração; (art. 37.º da PI).
A testemunha Rui (…) descreveu exaustivamente e com múltiplos pormenores as obras e trabalhos efetuados no locado, explicando que se tratava de uma operação da qual a A. já tinha experiência e que decorreu com celeridade, em simultâneo com os passos dados para o licenciamento da obra e da atividade do estabelecimento. Explicou, nomeadamente, que vários móveis foram feitos à medida para aquele local em concreto. Narrou que quando se aperceberam de que o imóvel não tinha licença de utilização e que a CML considerava que o imóvel era ilegal e o queria demolir já as obras estavam em fase adiantada de realização e o investimento em fase de conclusão. Também as testemunhas Miguel (…) (vice-presidente da Junta de Freguesia da área do locado, à data dos factos, que se deslocou ao local pouco tempo depois das obras se iniciarem, tendo então comunicado à testemunha Rui Silva que o imóvel era considerado ilegal pela CML e havia projetos para ser demolido) e Filipe (…) (arquiteto que interveio na elaboração dos planos necessários às obras e contactou a CML para, como disse, consultar o “antecedente válido” do edifício, ou seja, documentação atinente aos desenhos de fachadas e plantas, a fim de os compatibilizar com as obras) depuseram no sentido de que as obras decorreram de forma célere, encontrando-se em estado avançado, quando a A. tomou conhecimento dos entraves existentes à abertura do estabelecimento.
A testemunha Rui Silva analisou pormenorizadamente os documentos juntos pela A. para comprovar as despesas tidas com a instalação do estabelecimento (documentos 2 a 39). Dessa análise resultou que, relativamente à fatura que constitui o documento n.º 6, a fls 25 dos autos, só é pertinente a referência ao termoacumulador, no valor de € 79,99. Os restantes itens da fatura reportam-se a produtos alimentares, que não respeitam ao caso dos autos. Assim, contrariamente ao valor total da fatura, no montante de € 969,58, considerado pelo tribunal a quo, há aí que levar em conta apenas € 79,99. No mais, face ao depoimento da aludida testemunha e às faturas juntas aos autos (cuja data de emissão, conforme decorreu do depoimento de Rui Silva e também do arquiteto Filipe Branco, podia ser posterior à da efetiva entrega da mercadoria e da prestação do serviço, face às relações de confiança comercial existentes entre a A. e os fornecedores), não há razão para não dar como provadas as restantes despesas aí mencionadas, no valor total de € 58 639,80. Sendo certo que mesmo que algumas das faturas não tenham a forma de recibo, comprovam o encargo correspondente à sua emissão, ou seja, a dívida que assim passou a incidir sobre o património da A..
A redação destes pontos mostra-se suficientemente concretizada, sendo certo que a remissão para os documentos onde estão descritos os trabalhos efetuados, os materiais adquiridos e os serviços prestados deu a conhecer e dá a conhecer as realidades a que se reportam, em termos que foram julgados suficientes pelo tribunal e pelas partes na primeira instância, e que continuam a sê-lo, como decorre do teor concretizado da impugnação efetuada pela apelante e da apreciação realizada por esta Relação, da qual decorreu a alteração supra exposta.
Contudo, se é certo que o supra exposto vale para a determinação das despesas efetuadas, afigura-se-nos que, para o efeito de emissão de um juízo acerca do apuramento dos prejuízos efetivamente suportados, é conveniente incluir, no rol da matéria de facto provada e a título exemplificativo, e para ser considerado mais adiante em sede de apreciação do direito, a transcrição parcial da fatura que constitui o documento n.º 34, junto com a petição inicial (fls 52 e 53).
Em suma, mantém-se o teor dos n.ºs 9, 10, 11 e 25 da matéria de facto, com a ressalva do valor constante no n.º 10, e adita-se um n.º 10-A, correspondente à fatura n.º 34, junta com a p.i. (fls 52 e 53 dos autos).
Assim, altera-se o n.º 10 da matéria de facto, que passará a ter a seguinte redação:
10. “O valor dos materiais e serviços supra referidos ascendeu a € 58 639,80; (art. 14.º da PI).
Adita-se um n.º 10-A, com a seguinte redação:
Entre os materiais referidos em 9 e 10, incluem-se os seguintes bens:
Um aparador;
Seis candeeiros Oriente;
Dois móveis de parede para copos;
Um armário refrigerado vertical;
Uma bancada de frio Inoxtel de 2 metros;
Uma bancada Inoxtel de 1,5 metro;
Uma bancada Nuetra Inox Apolo de 1,20m;
Uma bancada inox com cuba de lavagem;
Dois louceiros de parede inox 1,20m;
Um fogão Bertos com 4 bicos trifásico;
Uma fritadeira dupla Junex;
Uma hotte de extração de fumos inox de 2 metros;
Uma caldeira termal 50 litros;
Um motor de extração de fumos;
Uma máquina de lavar loiça Krupps;
Um frigorífico vertical Phillips 800 lts;
Dois lava mãos inox com pedal;
Um banho maria alimentar;
Um forno Krupps com grill;
Um micro-ondas Belonda;
Um mata-moscas inox 100 m2;
Uma máquina de gelo Artifrio 40 kgs;
Um POS Front Office Glaudius;
Uma máquina café Rancilio 2 grupos;
Duas impressoras térmicas;
Uma gaveta monetária metal preta;
Um sistema operativo Winrest Pro 2009;
Um LCD 42” Samsung preto LED;
Seis mesas de madeira preta 120x600;
Doze cadeiras Oriente pretas;
tudo no total de € 39 802,80, incluindo IVA.”
Quanto à impugnação do n.º 13 da matéria de facto e do n.º 1 dos factos não provados.
Têm a seguinte redação:
13. “À data da outorga do contrato, 17 de Janeiro de 2013, a Autora desconhecia que no locado não poderia vir a exercer uma atividade comercial por falta de licença de utilização do mesmo; (art. 18.º da PI)
1 (não provado)- “Antes de outorgado o contrato, os Réus tiveram o cuidado de informar a Autora que o locado não dispunha de licença de utilização”.
Quanto ao n.º 13, já se esclareceu que o termo “atividade comercial” não está aqui usado em contraposição a “atividade industrial”, distinção essa que só agora, em sede de recurso, a apelante suscita, pois nunca foi sequer aflorada na primeira instância. No mais, assim como quanto ao n.º 1 dos factos não provados, reitera-se o exposto quanto ao ponto n.º 7 da matéria de facto, de que decorre que também aqui não há fundamento para alterar a decisão de facto.
Terceira questão (responsabilidade da R. face à A.)
Está provado que em 17.01.2013 a A. e a R. Palmira celebraram um contrato mediante o qual a R. Palmira obrigou-se a proporcionar à A. o gozo de um prédio urbano sito em Lisboa, para que a A. aí exercesse a atividade de restauração e outras análogas dentro do ramo de alimentação, mediante o pagamento da renda mensal de € 600,00.
As partes celebraram, pois, entre si, um contrato de arrendamento urbano, para fim não habitacional (artigos 1022.º, 1023.º, 1067.º do Código Civil).
Após a celebração do contrato a A. iniciou as obras necessárias à instalação do estabelecimento de restauração (n.º 25 da matéria de facto).
E em 18.02.2013 a A. deu entrada nos serviços da Câmara Municipal de Lisboa de uma declaração prévia de instalação, ao abrigo do regime previsto no Dec.-Lei n.º 234/2007, de 19 de junho (n.ºs 14 e 15 da matéria de facto). Regime esse que, na senda do que foi depois aprovado e desenvolvido por diplomas como o Dec.-Lei n.º 48/2011, de 1 de abril (“licenciamento zero”, simplificação do regime de acesso e exercício de diversas atividades económicas) e o Dec.-Lei n.º 10/2015, de 16.01 (regime jurídico de acesso e exercício de atividades de comércio, serviços e restauração), previa a possibilidade de, em certas circunstâncias, a abertura de estabelecimento de restauração ou de bebidas se pudesse realizar independentemente de realização da vistoria e da emissão de título que legitimasse a utilização do imóvel para aquele fim.
Porém, a eficácia de tal declaração pressupunha, ou que já anteriormente à específica instalação daquele estabelecimento o local dispusesse de licença de utilização ou autorização para estabelecimento de restauração ou de bebidas (art.º 11.º do Dec.-Lei n.º 234/2007), ou que, não existindo tal licença, o interessado, uma vez concluída a obra e equipado o estabelecimento em condições de iniciar o seu funcionamento, tivesse requerido a concessão da licença ou da autorização para estabelecimento de restauração ou de bebidas, nos termos do Regime Jurídico da Urbanização e Edificação (RJUE), sem que tivesse obtido resposta nos prazos legalmente fixados para o efeito (art.º 10.º do Dec.-Lei n.º 234/2007).
Ora, a CML constatou que não ocorria nenhum dos requisitos atrás referidos (vide comunicação indicada no n.º 15 da matéria de facto). Mais, verificou-se que o prédio locado não tinha qualquer licença de utilização, conforme, aliás, veio a ser reconhecido pela senhoria, na carta mencionada no n.º 17 da matéria de facto (e vide n.ºs 13, 15, 18, 28 da matéria de facto).
Nos termos do n.º 1 do art.º 1070.º do Código Civil, “o arrendamento urbano só pode recair sobre locais cuja aptidão para o fim do contrato seja atestada pelas entidades competentes, designadamente através de licença de utilização, quando exigível.”
Sendo que, nos termos do n.º 2 do art.º 1070.º, “diploma próprio regula o requisito previsto no número anterior e define os elementos que o contrato de arrendamento urbano deve conter”.
O diploma referido no n.º 2 do art.º 1070.º é o Dec.-Lei n.º 160/2006, de 8 de agosto, alterado pelo Dec.-Lei n.º 266-C/2012, de 31.12.
No art.º 2.º do Dec.-Lei n.º 160/2006, sob a epígrafe “conteúdo necessário”, estipula-se que no contrato de arrendamento deve constar:
(…)
e) A existência da licença de utilização, o seu número, a data e a entidade emitente, ou a referência a não ser aquela exigível, nos termos do artigo 5.º.
Por sua vez o art.º 5.º tem a seguinte redação:
Licença de utilização
1 - Só podem ser objecto de arrendamento urbano os edifícios ou suas fracções cuja aptidão para o fim pretendido pelo contrato seja atestada pela licença de utilização.
2 - O disposto no número anterior não se aplica quando a construção do edifício seja anterior à entrada em vigor do Regulamento Geral das Edificações Urbanas, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 38382, de 7 de Agosto de 1951, caso em que deve ser anexado ao contrato documento autêntico que demonstre a data de construção.
3 - Quando as partes aleguem urgência na celebração do contrato, a licença referida no n.º 1 pode ser substituída por documento comprovativo de a mesma ter sido requerida com a antecedência mínima prevista na lei.
4 - A mudança de finalidade e o arrendamento para fim não habitacional de prédios ou fracções não licenciados devem ser sempre previamente autorizados pela câmara municipal.
5 - A inobservância do disposto nos n.os 1 a 4 por causa imputável ao senhorio determina a sujeição do mesmo a uma coima não inferior a um ano de renda, observados os limites legais estabelecidos pelo Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, salvo quando a falta de licença se fique a dever a atraso que não lhe seja imputável.
6 - A coima prevista no número anterior constitui receita do município, competindo a sua aplicação ao presidente da câmara municipal, com a faculdade de delegação em qualquer dos vereadores.
7 - Na situação prevista no n.º 5, o arrendatário pode resolver o contrato, com direito a indemnização nos termos gerais.
8 - O arrendamento para fim diverso do licenciado é nulo, sem prejuízo, sendo esse o caso, da aplicação da sanção prevista no n.º 5 e do direito do arrendatário à indemnização.
9 - Não se aplica o disposto nos números anteriores aos arrendamentos que tenham por objecto espaços não habitáveis nem utilizáveis para comércio, indústria ou serviços, nomeadamente para afixação de publicidade ou outro fim limitado.”
Decorre do supra exposto que, caso o locado não disponha de licença de utilização, por motivo imputável ao senhorio, o locatário poderá resolver o contrato, além de reclamar indemnização pelos danos sofridos.
Na apelação a R. veio, pela primeira vez nos autos, aventar que o imóvel arrendado não careceria de licença de utilização, na medida em que seria um pavilhão e por conseguinte estaria abrangido pelo disposto nos artigos 6.º-A, n.º 1, alínea a), 6.º, n.º 2 e alínea l) do art.º 2.º, do RJUE.
Vejamos.
Nos termos do Regime Jurídico da Urbanização e Edificação (RJUE), aprovado pelo Dec.-Lei n.º 555/99, de 16.12, com as alterações publicitadas, “edificação” é “a atividade ou o resultado da construção, reconstrução, ampliação, alteração ou conservação de um imóvel destinado a utilização humana, bem como de qualquer outra construção que se incorpore no solo com caráter de permanência” (alínea a) do art.º 2.º), constituindo uma operação urbanística, nos termos e para os efeitos do diploma (alínea j) do art.º 2.º). A realização de operações urbanísticas carece de controlo, que poderá revestir a modalidade de licença, comunicação prévia ou autorização de utilização (art.º 4.º do RJUE). Nos termos do n.º 5 do art.º 4.º do RJUE, “está sujeita a autorização a utilização dos edifícios ou suas fracções, bem como as alterações da utilização dos mesmos.
Como facilmente se intui e decorre da lei, a autorização de utilização de edifícios ou das suas frações autónomas destina-se a verificar a conclusão da operação urbanística, a conformidade da obra com o projeto aprovado e com as condicionantes legais, e bem assim verificar a conformidade da utilização prevista com as normas legais e regulamentares que fixam os usos e utilizações admissíveis, bem como a idoneidade do edifício ou sua fração autónoma para o fim pretendido (art.º 62.º do RJUE).
Nos termos da alínea l) do art.º 2.º do RJUE, citado pela apelante, que era a alínea m) à data dos factos, com a redação anterior à introduzida pelo Decreto-Lei n.º 136/2014, de 9.9, entende-se por obras de escassa relevância urbanísticaas obras de edificação ou demolição que, pela sua natureza, dimensão ou localização tenham escasso impacte urbanístico”.
Tais obras, nos termos da alínea c) do n.º 1 do art.º 6.º do RJUE, estão isentas de controlo prévio.
O art.º 6.º-A, introduzido no RJUE pela Lei nº 60/2007, de 04.9, e alterado pelo Dec.-Lei n.º 26/2010, de 30.3, concretiza o que deve entender-se, para este efeito, como obras de escassa relevância urbanística.
Segundo a apelante, o imóvel sub judice enquadra-se na alínea a) do n.º 1 do aludido artigo 6.º-A, que tem a seguinte redação:
As edificações, contíguas ou não, ao edifício principal com altura não superior a 2,2 m ou, em alternativa, à cércea do rés-do-chão do edifício principal com área igual ou inferior a 10 m2 e que não confinem com a via pública.
O “pavilhão” referido pela recorrente constitui uma construção incorporada no solo com caráter de permanência, pelo que é um edifício para os efeitos do RJUE. Por outro lado, independentemente de se ignorar, por tal nem sequer ter sido levado a debate na primeira instância, as exatas caraterísticas físicas do imóvel locado, dúvidas não há que este confina com a via pública, pelo que não se integra na referida previsão legal ora apontada pela apelante.
Assim, a colocação em uso do aludido imóvel carecia de autorização municipal.
Cabendo à senhoria, por ser a sua proprietária, a obtenção da autorização ou licença de utilização.
Que não se confunde com o licenciamento da específica utilização do locado enquanto estabelecimento de restauração, pretendida pela A., ou seja, na definição legal, “estabelecimento destinado a prestar, mediante remuneração, serviços de alimentação e de bebidas no próprio estabelecimento ou fora dele” (art.º 2.º do Dec.-Lei n.º 234/2007, de 19.6; alínea f) do anexo II do Dec.-Lei n.º 48/2011, de 01.4; atualmente, v.g., alínea t) do art.º 2.º do Regime Jurídico de Acesso e Exercício de Atividades de Comércio, Serviços e Restauração, anexo ao Dec.-Lei n.º 10/2015, de 16.01). Objeto esse do arrendamento que, salvo o devido respeito por opinião em contrário, e na falta de elementos que apontem em sentido diverso, in casu não se enquadra numa atividade industrial, antes constitui uma atividade, do ponto de vista da classificação das atividades económicas (CAE), de prestação de serviços (vide Lista B do anexo I do Dec.-Lei n.º 48/2011, de 01.4 e, atualmente, lista V do anexo I do Regime aprovado pelo Dec.-Lei n.º 10/2015).
Conforme vem sendo entendido pela jurisprudência (inclusive ainda à luz do RAU), no que concerne à existência de licença de utilização do locado, haverá que distinguir a licença a cargo do senhorio/proprietário do imóvel a arrendar, atinente à genérica possibilidade de utilização do edifício, da licença adstrita à específica atividade que o locatário irá exercer no locado, cuja obtenção poderá estar a cargo do locatário e não do senhorio (vide, v.g., STJ, 06.7.2011, processo 4438/06.1TBVFX.L1.S1; STJ, 19.02.2008, processo 08A194; Relação de Lisboa, 11.9.2014, processo 381/11.0TVLSB.L1-2; Relação do Porto, 17.6.2013, processo 139/10.4TJVNF.P1, todos acessíveis in www.dgsi.pt).
No caso destes autos, como de resto seria de esperar, a A./arrendatária encarregou-se de obter a licença necessária à exploração do restaurante no locado (n.º 8 da matéria de facto).
Confiando que o imóvel teria licença de utilização (genérica, nos termos supra expostos), tanto mais que no prédio em questão já havia funcionado, durante longos anos, um salão de jogos, uma firma de materiais de construção e um stand de automóveis (n.º 12 da matéria de facto), além de que a situação legal do prédio não parecia indiciar irregularidades, posto que estava inscrito na matriz predial e descrito na competente conservatória do registo predial, com aquisição da sua propriedade inscrita a favor da senhoria (n.ºs 2 e 6 da matéria de facto).
Porém, constatou-se que afinal o imóvel não tinha a referida licença (genérica) de utilização, o que não pode deixar de ser imputado à senhoria, sua proprietária.
Assim, constatando que o problema não tinha solução em tempo útil, nomeadamente face à posição da CML sobre o assunto (a CML veio afirmar que a construção era ilegal, estando instalada em terreno municipal – cfr. n.º 18 da matéria de facto), a A. resolveu o contrato de arrendamento, por carta que a R. recebeu em 12.9.2013 (n.ºs 21 e 22 da matéria de facto).
Direito esse que lhe assistia, por disposição expressa no citado art.º 5.º n.º 7, do Dec.-Lei n.º 160/2006, de 8.8.
Tendo também direito a ser indemnizada pelos danos sofridos em consequência da conduta da R., conforme desde logo decorre do mesmo preceito.
Quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação” - art.º 562.º do Código Civil.
O dever de indemnizar compreende não só o prejuízo causado, como os benefícios que o lesado deixou de obter em consequência da lesão” - n.º 1 do art.º 564.º do CC.
Na fixação da indemnização pode o tribunal atender aos danos futuros, desde que sejam previsíveis” – n.º 2 do art.º 564.º do CC.
A indemnização é fixada em dinheiro, sempre que a reconstituição natural não seja possível, não repare integralmente os danos ou seja excessivamente onerosa para o devedor” – n.º 1 do art.º 566.º do CC.
Sem prejuízo do preceituado noutras disposições, a indemnização em dinheiro tem como medida a diferença entre a situação patrimonial do lesado, na data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal, e a que teria nessa data se não existissem danos” – n.º 2 do art.º 566.º do CC.
Se não puder ser averiguado o valor exacto dos danos, o tribunal julgará equitativamente dentro dos limites que tiver por provados” – n.º 3 do art.º 566.º do CC.
O princípio geral é o de colocar o património do lesado no estado em que se encontraria no caso de não ter ocorrido o facto lesivo. Na situação dos autos, provou-se que a A. realizou obras no locado, tendo em vista adequá-lo à utilização a que se destinava, suportando as despesas correspondentes. Tais despesas constituíam um investimento, pois com os lucros da exploração do restaurante a A. contava amortizar essas despesas e ainda auferir um rendimento líquido.
Porém, como se provou, por facto imputável à R. a A. viu-se impossibilitada de concretizar os seus intentos de exercer no locado a aludida atividade de restauração.
Sofreu, assim, um dano emergente, correspondente à despesa inutilmente suportada. Sendo certo que quanto aos lucros cessantes o tribunal a quo nada deu como provado, tendo absolvido a R. nessa parte do peticionado, sem impugnação do lado da A..
Quanto aos danos emergentes, afigura-se-nos que no caso destes autos a quantificação e concretização dos danos efetivamente sofridos carece de ulterior prova, na medida em que, conforme decorre das faturas juntas aos autos, pelo menos parte das despesas sofridas respeitam a bens aparentemente recuperáveis e utilizáveis e transacionáveis. Vide, v.g., o que resulta da fatura que constitui o documento n.º 34, junto com a petição inicial (fls 52 e 53), cujo teor foi já acima expressamente transcrito como n.º 10-A da matéria de facto. Aí menciona-se a aquisição dos seguintes bens:
Um aparador;
Seis candeeiros Oriente;
Dois móveis de parede para copos;
Um armário refrigerado vertical;
Uma bancada de frio Inoxtel de 2 metros;
Uma bancada Inoxtel de 1,5 metro;
Uma bancada Nuetra Inox Apolo de 1,20m;
Uma bancada inox com cuba de lavagem;
Dois louceiros de parede inox 1,20m;
Um fogão Bertos com 4 bicos trifásico;
Uma fritadeira dupla Junex;
Uma hotte de extração de fumos inox de 2 metros;
Uma caldeira termal 50 litros;
Um motor de extração de fumos;
Uma máquina de lavar loiça Krupps;
Um frigorífico vertical Phillips 800 lts;
Dois lava mãos inox com pedal;
Um banho maria alimentar;
Um forno Krupps com grill;
Um micro-ondas Belonda;
Um mata-moscas inox 100 m2;
Uma máquina de gelo Artifrio 40 kgs;
Um POS Front Office Glaudius;
Uma máquina café Rancilio 2 grupos;
Duas impressoras térmicas;
Uma gaveta monetária metal preta;
Um sistema operativo Winrest Pro 2009;
Um LCD 42” Samsung preto LED;
Seis mesas de madeira preta 120x600;
Doze cadeiras Oriente pretas;
tudo no total de € 39 802,80, incluindo IVA.
Isto é, há que, nos termos do n.º 2 do art.º 564.º do Código Civil e 609.º n.º 2 do CPC, relegar para decisão ulterior a determinação dos prejuízos realmente suportados pelo património da A. em relação às despesas efetuadas, por não ser claro em que termos os materiais adquiridos puderam ou poderão ou não ser aproveitados noutro local (cfr. n.º 4 da matéria de facto) e foram ou poderão ou não ser transacionados, com maior ou menor prejuízo em relação ao valor da aquisição.
Sendo que (contrariamente ao alegado pela apelante) não se mostra que as aludidas despesas foram realizadas quando já era sabido ou era cognoscível pela A. que o local não tinha licença (genérica) de utilização nem que a mesma não era obtenível em tempo útil.
E sendo certo também que, contrariamente ao pretendido pela apelante, uma vez extinto o contrato de arrendamento, por declaração resolutória assente na impossibilidade de utilização do locado, com os efeitos retroativos equivalentes à nulidade (artigos 433.º e 434.º n.º 1 do Código Civil), não tem aplicação o regime estipulado no contrato quanto à renúncia a indemnização por obras efetuadas no locado. E também não tem, salvo o devido respeito, qualquer valor a argumentação, avançada pela apelante, de que as obras efetuadas no locado não haviam sido autorizadas: como se, destinando-se o locado à exploração de um restaurante, num local que anteriormente funcionara como um salão de jogos, como estabelecimento de uma firma de materiais de construção e como um stand de automóveis (n.º 12 da matéria de facto), fosse possível que a locatária não tivesse sido autorizada pela senhoria à realização das obras necessárias à adequação do locado à atividade a que se destinava, ou seja, à instalação de um restaurante. A necessidade de autorização, por escrito, por parte do senhorio, para a realização de obras por parte do inquilino, mencionada na cláusula f) do contrato de arrendamento, deve, face ao contexto da celebração do contrato, espelhado na matéria de facto provada, ser interpretada como tendo em vista quaisquer obras ulteriores àquelas que foram necessárias à instalação do locado, ou obras que, realizadas aquando da instalação do restaurante, porventura extravasassem o exigível ou razoável, ou modificassem o locado de forma estrutural ou relevante.
O que não se provou que tivesse ocorrido.
Sobre o valor a liquidar incidirão juros de mora, à taxa legal sucessivamente vigente, contados desde a data da citação (art.º 805.º n.º 3, segunda parte, do Código Civil).
Quarta questão (reconvenção)
Em reconvenção a R. exigiu da A. o pagamento do valor equivalente à renda mensal convencionada no contrato (€ 600,00 mensais), vencida desde 1 de março de 2013 até à entrega do locado, descontando-se o montante de € 1 200,00, que a A. havia pago a título de primeira renda e caução.
O tribunal a quo julgou a reconvenção parcialmente procedente, tendo condenado a A. no pagamento das quantias vencidas e vincendas tão só a partir da data da resolução do contrato.
A apelante insiste na procedência da totalidade do pedido reconvencional, chegando ao ponto de alegar que a locatária havia feito uso do locado, utilizando-o como armazém (!).
O local foi tomado de arrendamento pela apelada a fim de aí instalar e explorar um restaurante, atividade com cujos proventos amortizaria o investimento efetuado e ainda auferiria, porventura, lucros. Tal desiderato foi frustrado, por motivos imputáveis à apelante. A apelada não logrou obter do locado o uso pretendido e convencionado, o qual não se confunde, seguramente, com o pretenso armazenamento de bens (acerca do que nada se provou), pelo que, como bem se ajuizou na sentença recorrida, a apelante não tem direito a ser remunerada por algo que não prestou. A compensação concedida pelo tribunal a quo à apelante/R. cingiu-se ao período posterior à data da extinção do contrato, momento a partir do qual a A. deixou de ter título que legitimasse a ocupação do locado.
Nesta parte, pois, nada há a alterar à sentença, improcedendo a apelação.
DECISÃO
Pelo exposto, julga-se a apelação parcialmente procedente e consequentemente altera-se a sentença recorrida, nos seguintes termos:
a) Julga-se a ação parcialmente procedente e, consequentemente, condena-se a R. Palmira da Conceição Gomes Soares a pagar à A., a título de indemnização por danos emergentes, a quantia que vier a ser liquidada, no valor máximo de € 58 639,80 (cinquenta e oito mil seiscentos e trinta e nove euros e oitenta cêntimos), acrescida de juros de mora, à taxa legal sucessivamente vigente, contados desde a data da citação e até efetivo e integral pagamento;
b) No mais, mantém-se a sentença recorrida.
As custas na primeira instância e nesta Relação são a cargo de ambas as partes, na proporção de 50% por cada uma quanto à ação e quanto à apelação e na proporção do respetivo decaimento, quanto à reconvenção.
Lisboa, 03.3.2016

Jorge Leal

Ondina Carmo Alves (vencida, conforme declaração de voto em anexo)

Olindo dos Santos Geraldes

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VOTO DE VENCIDA

§ Não acompanhei a fundamentação do Acórdão, quando ali se afirma que o objecto do arrendamento não se enquadra numa actividade industrial, posto que perante os equipamentos que terão sido adquiridos pelo autor e que se mostram discriminados no Nº 10-A dos Factos Provados, tudo aponta para que o autor visasse desenvolver no arrendado a actividade industrial de produção, transformação e fabrico de produtos alimentares, maxime, a confecção de refeições. Aliás, e como tem sido entendimento jurisprudencial, mormente ao nível do STJ, a actividade de restauração, implicando a produção ou transformação de bens e o fabrico de produtos alimentares, deve ser entendida como uma actividade industrial – v. a título meramente exemplificativo, Acs. STJ de 03.11.2009 (Pº9647/03.2TVLSB.S1), de 30.06.2011 (Pº734/06.6TBA), de 15.05.2013 (Pº 3424/07.9TBVNG.P1.S1) e de 13.02.2014 (Pº 373/04.6TBVFR.P2.S1), todos acessíveis em www.dgsi.pt.
§ Discordo, por outro lado, da decisão que fez vencimento, no que concerne à condenação do réu a pagar ao autor a indemnização, a apurar em liquidação ulterior, a título de danos emergentes, porquanto:
i. Tendo o autor alegado que havia adquirido mercadorias com vista à prossecução da actividade que iria exercer no locado, a verdade é que não alegou – como cumpriria – que, designadamente, os equipamentos discriminados no artigo 10-A dos Factos Provados não poderiam ser reaproveitados, ficando por apurar, ao cabo e ao resto, qual o dano efectivamente sofrido pelo autor.
ii. A omissão dessa alegação e, consequente, da respectiva prova – cujo ónus caberia ao autor – sempre implicaria a improcedência do pedido, não podendo ser dada ao autor nova oportunidade de, através de liquidação ulterior, proceder à alegação e prova dos factos omitidos, os quais se reconduzem aos próprios danos efectivamente sofridos e não apenas ao respectivo valor, pelo que não haveria que aplicar o disposto no artigo 609º, nº 2 do CPC – cfr. a este propósito, a título meramente exemplificativo, Ac. STJ de 30.04.2014 (Pº 593/09.7TTLSB.L1.S1).
§ Assim, e por considerar que no acórdão se está a conceder ao autor uma nova oportunidade de provar os danos efectivamente sofridos, e não apenas de quantificar o valor dos mesmos, julgaria improcedente o pedido indemnizatório, a título de danos emergentes, deduzido pelo autor, revogando, nessa parte, a decisão recorrida.


Lisboa, 03 de Março de 2016


Ondina Carmo Alves