Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
5752/09.0TDLSB.L1-5
Relator: LUÍS GOMINHO
Descritores: NE BIS IN IDEM
VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/08/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO PARCIAL
Sumário: Iº O crime de violência doméstica é muito mais que uma soma de ofensas corporais, não sendo as condutas que integram o tipo consideradas autonomamente, mas antes valoradas globalmente na definição e integração de um comportamento repetido revelador daquele crime;
IIº Na avaliação desse comportamento, a ponderação de um facto objecto de um processo autónomo, arquivado por falta de queixa da ofendida, não configura violação do princípio ne bis in idem;
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na Secção Criminal (5.ª) da Relação de Lisboa:

I - Relatório:

I – 1.) No 2.º Juízo Criminal de Lisboa, foi o arguido A..., com os demais sinais dos autos, submetido a julgamento em processo comum com a intervenção do tribunal singular, acusado pelo Ministério Público da prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152.º, n.º 1, als. b) e c), e n.º 2, do Cód. Penal, e de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo art. 86.º, n.º1, als. c) e d), da Lei n.º 59/2006, de 23 de Fevereiro, na redacção que lhe foi introduzida pela Lei n.º 17/2009, de 6 de Maio, em conjugação com os art.ºs 2.º, n.º 1, als. p), q), ae), az), e n.º 3, al. p), 3.º, n.º 3 e n.º 4, al. a), e 6.º do mesmo diploma.

A assistente aderiu à acusação do Ministério Público e formulou pedido de indemnização civil contra o arguido, reclamando o pagamento da quantia de €1.000,00, a título de danos morais, acrescida de juros legais até efectivo e integral pagamento.
*
Proferida respectiva sentença veio-se a decidir o seguinte:

- Condenar o arguido A... pela prática de crime de detenção de arma ilegal de defesa, previsto e punido pelo art. 86.º, n.º1, al. c), por referência ao art. 2.º, n.º 1, al. t) da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, na pena de quinze meses de prisão.
- Condená-lo pela prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 1, al. b), e n.º2, do Código Penal, na pena três anos de prisão.
- Em cúmulo jurídico, na pena única de três anos de prisão, cuja execução se suspendeu pelo período de três anos.

Mais foi condenado:
- Na pena acessória de inibição de uso e porte de arma pelo período de três anos.
- Na pena acessória de obrigação de frequência de um programa específico de prevenção da violência doméstica com a duração mínima de um ano e máxima de três anos correspondente ao período de suspensão da pena.
- No pagamento à demandante da quantia de €5.000,00 a título de indemnização.

I – 2.1.) Inconformado com o assim decidido, recorreu o arguido A... para esta Relação, que assim condensou as razões da sua discordância:
1.ª - O presente recurso tem por objecto toda a matéria de facto da sentença proferida nos presentes autos relativa ao crime de violência doméstica, p. e p. pelo art.152°, do C.P.
O tribunal a quo considerou provado que no dia 22 de Julho de 2005, pelas 11H50 "no interior da citada residência, o arguido desferiu uma chapada na cara da assistente, causando-lhe directa e necessariamente traumatismo craniano e facial, com equimose na região malar esquerda e sangramento".
Também, o tribunal a quo considerou provado que no dia "no dia 31 de Dezembro de 2005, no interior da citada residência, o arguido agrediu a assistente com bofetadas, murros e com uma trela, por causa de não ter passado o fim do ano com ele, tendo antes ido trabalhar".
Por fim, o tribunal de primeira instância considerou provado que "na madrugada de 1 de Janeiro de 2006, após ter sido contactada pelo arguido, a assistente entrou em casa e nessa altura este fechou a porta e começou a agredi-la, desferindo-lhe bofetadas, socos, pontapés que a atingiram no corpo, conduta que lhe causou escoriações na face e vários hematomas nos membros inferiores".
2.ª - No caso em apreço, o Tribunal a quo condenou um arguido por factos que tinham sido objecto de um arquivamento com carácter definitivo, tendo deste modo, julgado inconvenientemente por ter violado o princípio constitucional ne bis in idem consagrado no n.º 5, do art. 29.º da CRP.
3.ª - O tribunal a quo também considerou provado que: "Além de que o arguido não permitia que a assistente não falasse com ninguém que não fosse conhecido dele, especialmente indivíduos do sexo masculino."
4.ª - Não se retirando da afirmação da assistente (prestado em audiência e gravado em CD entre o minuto 30'18 e 30'58) qualquer conteúdo nem limites do alegado desagrado por parte do arguido, pelo que esse facto não podia ter sido considerado como provado sem qualquer testemunha e sem qualquer exemplo que o pudesse comprovar.
5.ª - O tribunal a quo deu como provado que: " Mas assim que a criança nasceu a 24 de Janeiro de 2007, o arguido voltou aos poucos à mesma conduta contra a assistente, isto é, começou a ofendê-la moralmente, chamando-lhe "filha da puta", a desvalorizá-la enquanto pessoa, dirigindo-lhe as expressões "não fazes nada", " não prestas", "burra", "estúpida", e continuando com uma desconfiança terrível sobre a fidelidade da assistente, procurando controlar todo os seus espaços "porque demoraste tanto, viram-te ali, acolá, etc.", e gerando deste modo um clima permanente de insegurança da companheira."
6.ª - Não se fez prova das injúrias mencionadas, dada a falta de concretização minuciosa e exaustiva das mesmas, por parte da assistente.
7.ª - Por outro lado é consabido que não podem ser feitas à assistente, para preservar e garantir a espontaneidade das respostas, perguntas sugestivas, cavilosas, impertinentes, nem, de modo geral, quaisquer outras perguntas que prejudiquem a referida espontaneidade e sinceridade do depoimento. Como poderá ter sido dado como provado o facto, dada a indução do Meritíssimo Juiz em relação à resposta, "Filha da Puta", não se vislumbrando assim, espontaneidade e sinceridade da declaração da assistente em audiência (vd., minuto 13'04) e do Digníssimo Procurador do MP relativamente às restantes injúrias (vd., minuto 31'25 a 31'53)?
8.ª - O tribunal deu como provado: "Também sempre que a assistente lhe respondia e defendia a sua honra, o arguido, por vezes, desferia-lhe estalos na cara, apertava-lhe os cabelos e o pescoço."
9.ª - Aquando da gravação entre o minuto 13'14 e o minuto 13'30, questionada a assistente sobre este facto, nada refere quanto ao facto de ser apertada no pescoço, não podendo deste modo vir referido na sentença como facto provado.
10.ª - O tribunal a quo considerou, ainda, provado que: "Assim sucedeu, entre outras vezes em momentos incertos, no dia 29.º aniversário da assistente, dia 12 de Fevereiro de 2009.
A assistente estava em casa a amamentar o pequenino (o filho mais novo), quando entrou em discussão com o arguido, na sequência da qual, este puxou-lhes os cabelos até fazê-la cair ao chão."
11.ª - A mesma apenas relata um facto que por si só não é suficiente para aferir que a mesma disse a verdade.
12.ª - Nunca a assistente referiu, como seria expectável, o que sucedeu à criança visto ter afirmado que a tinha no seu colo (por estar a amamentá-la) aquando da queda no chão.
13.ª - Aquando da audição da gravação no minuto 13'38, é notória uma contradição nas declarações da assistente que por um lado refere que estava a amamentar a criança, como também diz que a criança estava ao seu lado no sofá, desconhecendo se a posição exacta em que afinal a criança se encontrava.
14.ª - O tribunal a quo ao dar como provado que:
- " Bem como em dia incerto no mês de Outubro de 2009, pouco antes de a assistente ter sido acolhida em casa de abrigo.
- A assistente estava em casa com o arguido quando este lhe chamou irresponsável e lhe disse que não era uma encarregada de educação.
- A assistente respondeu-lhe, infirmando as suas palavras.
- O arguido não gostou da resposta, agarrou a assistente pelo pescoço e arrastou-a até à casa de banho.
- Fechou a porta, e depois agrediu a assistente com estalos na cara e puxou-lhes os cabe-los;
- Por fim, forçou-a a ter relações sexuais consigo".
15.ª - O Meritíssimo Juiz nos factos dados como provados referiu que a assistente foi arrastada pelo arguido até à casa de banho, no entanto, a assistente referiu que o arguido a tinha levado e não arrastado (vd. de minuto 16'10 a 16'45).
16.ª - Já no interior da casa de banho, a assistente não referiu que o arguido lhe tivesse dado bofetadas e puxado os cabelos, mas tão-somente estar a discutir e o arguido a tê-la forçado a ter relações sexuais. (vd. de minuto 16'10 a 16'45).
17.ª - O tribunal a quo considerou como provado que: "O arguido também ameaçava a assistente, dizendo-lhe que se fizesse queixa dele que lhe retirava o filho mais velho e que nunca mais o veria, palavras que a intimidavam, tanto mais que sabia que ele tinha família em França".
18.ª - A convicção do tribunal baseou-se mais uma vez no depoimento da assistente sem qualquer outro tipo de prova que sustentasse a sua tese.
19.ª - Este facto dado como provado foi também induzido pelo Digníssimo Procurador do MP, que refere ao minuto 31'40 a 32'52, dando-lhe assim a resposta não se vislumbrando qualquer respeito pela espontaneidade e sinceridade das declarações da assistente recorrida.
20.ª - Por fim, foi dado como provado pelo tribunal a quo que:
- A situação que mais intimidou a assistente ocorreu quando o filho mais novo tinha alguns meses de idade.
- Estavam em casa e o arguido mandou as crianças para a sala. E, estando sozinho no quarto com a assistente encostou-lhe uma arma de fogo, prateada, à cabeça, e proferiu a seguinte expressão "estoiro-te agora a cabeça".
21.ª - Mais uma vez o tribunal a quo considerou como provados os factos referidos, baseando a sua convicção unicamente no depoimento da assistente.
22.ª - O Meritíssimo Juiz valorou mal depoimento da assistente na sua globalidade.
23.ª - Pelo exposto, o tribunal não interpretou, nem aplicou, correctamente o art.152.º do C.P.
24.ª - Em suma, não restam dúvidas que o recorrente não praticou o crime em que foi condenado.
25.ª - Nos termos do supra alegado e não tendo o recorrente praticado o crime em que foi condenado, deve o mesmo ser absolvido do pedido de indemnização civil.
Termos em que, deve ser dado provimento ao presente recurso e, por via dele, ser revogada a sentença recorrida e, em consequência, ser o recorrente absolvido do crime de violência doméstica em que foi condenado, bem como do respectivo pedido de indemnização civil.

I – 2.2.) Respondendo ao recurso interposto, a Digna magistrada do Ministério Público, ainda que sem a dedução de conclusões, teve a oportunidade de consignar as razões pelas quais, no seu entendimento, a sentença recorrida deve ser mantida.

I – 2.3.) Já a assistente B... concluiu:
1.º - Quanto à matéria factual, posta em crise, pelo ora e aqui arguido recorrente, salvo o devido respeito, não lhe assiste razão.
2.º - Bem, esteve o Tribunal a quo em condenar o arguido, no âmbito do processo supra, uma vez que se provou, tout court, que o ora e aqui recorrente, arguido, praticou todos os factos descritos na douta acusação. Vejamos,

3.º - Desde logo, aquando do 1.º interrogatório perante Juiz de Instrução Criminal, a fls. 101, no dia 16 de Junho de 2011, cfr. resulta do preceituado no art. 141.º do Cód. Proc. Penal.

4.º - No decurso do respectivo interrogatório, onde todos os requisitos estavam reunidos, ou seja, quer o previsto no art. 141.º do Cód, Proc. Penal, quer como estava representado por Defensor; o ora e aqui arguido recorrente, após conhecimento dos factos constantes da douta acusação, cfr. fls. 94 a 98, disse que queria prestar declarações. E quais foram as declarações prestadas?

5.º - As mesmas encontram-se a fls. 101, e declarou, ipsis verbis, (sic) "Agrediu por diversas vezes a ofendida de forma violenta."

6.º - E, mais, as mesmas não foram alvo de contradita. Quer o arguido, bem como o seu Defensor, aceitaram, tout court, a douta acusação!

7.º - A instâncias do Mm.º Juiz a quo, confrontado com declarações do ora e aqui arguido recorrente, verificando discrepância nas suas declarações, lhe foi exibido o teor de fls. 101 onde afirmou que agredia violentamente a ora e aqui assistente! (v.g. art. 357.º do Cód. Proc. Penal).

8.º - Ora, salvo o devido respeito, quando vem agora o ora e aqui recorrente, dizer que esses factos constantes da douta acusação já foram relevados noutros processos e por isso não estão sujeitos a prova, não lhe assiste razão.

9.º - Aliás, no art. 7° do recurso do ora e aqui arguido recorrente, o mesmo diz que os factos supra mencionados já foram objecto de despacho de arquivamento. Contudo, para se contar uma história deve-se ter em linha de conta toda uma linha condutora, isto é, o arguido tinha e tem todo ele um longo historial de violência doméstica!

10.º - Não estaremos aqui no âmbito de 1 crime continuado, cfr. o preceituado no art. 79.º do Cód. Penal?

11.º - Vem, ainda, dizer que todo este processo não devia ter corrido os seus termos, por inadmissibilidade legal do procedimento. Também aqui, salvo o devido respeito, parece-nos, que não existe essa inadmissiblidade legal do procedimento. E porquê?

12.º - Estamos no âmbito de outro processo, contudo, sobre factos praticados anteriormente graves e iguais!

13.º - Por isso não se percebe, quando no seu art. 18° do Recurso vem dizer que o principio ne bis in idem, foi largamente violado...

14.º - Conforme relatado anteriormente, salvo o devido respeito, o que aqui houve foi uma acusação e uma sentença por outros factos, que apesar da semelhança com os processos anteriores, tiveram força jurídica para chegarem a bom porto, v.g. o disposto no n.º 2 art. 374.º do Cód. Proc. Penal.

15.º - Determina que a fundamentação da sentença contenha a enumeração dos factos provados e não provados, que serão, como resulta do art. 368.º, n.º 2, do mesmo diploma legal, apenas os que, sendo relevantes para a decisão, estejam descritos na acusação, ou na pronúncia, tenham sido alegados na contestação, ou que resultem da discussão da causa.

16.º - Ora, não querendo entrar no âmbito da defesa do ora e aqui arguido recorrente, ficamos estupefactos com a afirmação da suposta violação do principio constitucional ne bis in idem, porque assim fosse, pergunta-se: Porque não abriu a instrução? Ou, porque não contraditou em sede de contestação esses factos? Ou mais ainda, porque não contraditou os factos em sede de interrogatório judicial a fls. 101 e ss? Aliás, dada a palavra para argumentar a mesma não pretendeu argumentar e pôr em crise a douta acusação...

17.º - Também se verifica, muito elementarmente, que 99% de toda a sentença é do processo supra e não dos anteriores!

18.º - Verificamos também que o ora e aqui arguido recorrente, não tem em linha de conta o processo pelo qual foi acusado, mas única e exclusivamente os processos anteriores ... Ou seja,

19.º - Vem dizer, nos pontos 25° e 26° do seu recurso, que o regime aplicado pela Lei 59/2007, de 4 de Setembro, não se lhe aplica, ora tal não lhe assiste razão.

20.º - Os factos pelos quais veio e foi acusado resultam do ano de 2009, logo o regime da presente Lei já se encontrava em pleno vigor!!!

21.º - Vem também a mostrar-se surpreendido pelo facto da convicção do Tribunal a quo ter-se baseado única e exclusivamente nas declarações da assistente, ora, salvo o devido respeito, quem ficou agora surpreendido foi a assistente com o escrito no art. 43° do recurso, pois o ora e aqui arguido recorrente não apresentou qualquer testemunha bem como não contestou a presente acusação...

22.º - E mais, no ponto 44° do seu recurso, levanta a questão da credibilidade das declarações da assistente, (sic) "Porque razão se há-de atribuir maior credibilidade ás declarações da assistente em detrimento das do arguido."

23.º - Certamente, o Mm. Juíz a quo, e muito bem, relevou as declarações da assistente por os seguintes motivos: 1.º por ter tido coragem em levar o processo até ao fim e 2.º pelo ocorrido na audiência em julgamento, onde o arguido estava a mentir nas suas declarações e por isso, ao abrigo do preceituado no art. 357.º n.º 1 al. b) do Cód. Proc. Penal foi confrontado com as suas declarações prestadas perante um Juiz!

24.º - O simples facto de a assistente ter reconhecido de forma cabal e sem qualquer tipo de dúvidas, a arma a fls. 83° da acusação leva o arguido a pôr em causa a credibilidade das declarações da assistente... Mas é ou não verdade que existia uma arma, arma essa que a assistente reconheceu de forma cabal que foi a mesma que lhe foi apontada à cabeça pelo o ora e aqui arguido recorrente...

25.º - Aliás, quando exibido o fotograma da arma, a fls. 83, a assistente, sem reservas, desde logo a reconheceu como sendo a que lhe foi apontada à cabeça!

26.º - É de salientar-se que o crime imputado ao ora e aqui arguido recorrente, é cometido com bastante frequência e que não se coaduna com o padrão que é exigido no actual estado de evolução da sociedade. Qualquer dos cônjuges, ou unidos de facto, tem direito ao bem-estar, devendo cada um deles contribuir não só para o seu, como também para o do outro!

Matéria de Direito:

27.º - No tocante ao crime de detenção de arma ilegal de defesa encontram-se reunidos os elementos objectivos e subjectivos do tipo, bem esteve o Tribunal a quo em aplicar-lhe a medida da pena.
28.º - Quanto ao crime de violência doméstica p. e p. no art. 152.º, n.ºs 1 e 2 do Cód Penal, também bem esteve o Tribunal a quo em condenar o arguido pela prática deste ilícito.

29.º - Temos que ter em linha de conta, para tal, o preceituado no art. 79° do Cód. Penal, punição do crime continuado.

30.º - Uma vez que o ora e aqui arguido recorrente, deu muita importância aos crimes anteriormente praticados, e colocou ênfase no seu recurso, no n.º 2 do art. 79.° é-nos dito o seguinte: (sic) "Se depois de uma condenação transitada em julgado, for conhecida uma conduta mais grave que integre a continuação, a pena que lhe for aplicável substitui a anterior."

31.º - O crime de violência doméstica encontra a sua ratio, não na protecção da comunidade familiar, mas na protecção da pessoa individual e da sua dignidade humana!

32.º - Logo, face a isso, a agravação prevista na al. b) do art. 152° do Cód. Penal se encontra preenchida, bem como a agravação do n.º 2 do mesmo artigo, ou seja, a conduta ocorreu no lar conjugal, em frente aos seus filhos, menores, dado que a intenção do legislador em punir estas situações ocorrem na normalmente sem presença de testemunhas.

33.º - Assim, podemos concluir sem margem para dúvidas que a conduta do ora e aqui arguido, recorrente, preenche objectiva e subjectivamente o crime de violência doméstica que lhe era imputado! E mais,

34.º - E por ser assim, o Pedido Cível deve-se manter face ao alegado uma vez que estão reunidos todos os elementos previstos nos art. 483.º e ss do Cód. Civil, bem como do art. 562.º e ss do mesmo diploma legal.

35.º - Estatui o art. 483.º do Cód. Civil, quem violar ilicitamente o direito de outrém é obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da lesão.

36.º - O princípio geral que preside à obrigação de indemnizar, é o de repor o lesado na situação que existiria caso não tivesse ocorrido a lesão.

Nestes termos, deve manter-se a decisão do Tribunal a quo, e manter-se a condenação ao arguido na pena única de 3 anos de prisão, suspensa por igual período, pela prática de 1 (um) crime de detenção de arma ilegal de defesa, p. e p. arts. 86.º, n.º1, al. c), por referência ao art. 2°, n.º1, al. t) da Lei 5/2006, de 23 Fevereiro, pela prática de 1 (um) crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152.º, n.º 1, al. b) e n.º 2 do Cód. Penal e condenar o arguido no pagamento à demandante da quantia de €5000,00 (cinco mil euros).

II – Subidos os autos a esta Relação, a Exm.ª Sr.ª Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no sentido de sustentar a improcedência do recurso.
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No cumprimento do preceituado no art. 417.º, n.º 2, do Cód. Proc. Penal, apenas a assistente produziu a alegação melhor constante de fls. 296.

Seguiram-se os vistos legais.
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Porque não foi requerida a realização de audiência teve, nessa conformidade, lugar a conferência.
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Cumpre apreciar e decidir:

III – 1.) Como já resulta evidente pelo acima deixado transcrito, com o recurso ora apresentado, visa o arguido A... discutir os diversos pontos da matéria de facto provada que sustentaram o essencial da sua condenação pelo crime de violência doméstica.
De permeio, ficam suscitadas duas outras questões: eventual violação do princípio ne bis in idem, e indevida aplicação do art. 152.º, n.º1, al. b), do Cód. Penal, por ser a lei mais desfavorável ao arguido.

I – 2.) Como temos por habitual, vejamos conferir primeiro a factualidade que se mostra definida:

Factos provados:
1 - A assistente B… e o arguido iniciaram no ano de 2002 comunhão plena de vida, como se fossem marido e mulher.
2 - Tinham ultimamente residência comum na Rua ….
3 - Desta união tiveram dois filhos, C…, nascido em 30/08/2003, e D…, nascido em 24/01/2007.
4 - Ainda quando o menor C… era uma criança de colo, o arguido, após ter chegado do trabalho, entrou em discussão com a assistente e, na sequência da mesma, apertou-lhe o braço com bastante força e desferiu-lhe uma chapada na cara, fazendo-a tombar na cama com a criança que tinha ao colo.
5 - Desde então, e de modo frequente, o arguido passou a insultar a assistente, chamando-lhe "filha da puta", "estúpida", "burra", a levantar suspeitas sobre a sua fidelidade, dizendo-lhe que andava com outros homens, e a desvalorizá-la na sua valia como pessoa, dizendo-lhe "não prestas para nada", "não fazes aqui nada”, “não sabes educar as crianças”.
6 - O arguido vivia obstinado com ciúmes da assistente, sentimento que gerava discussões no seio casal, na sequência das quais aquele lhe desferia, por vezes, bofetadas na cara.
7 - Além de que o arguido não permitia que a assistente falasse com ninguém que não fosse conhecido dele, especialmente indivíduos do sexo masculino.
8 - No dia 22 de Julho de 2005, pelas 11h50, no interior da citada residência, o arguido desferiu uma chapada na cara da assistente, causando-lhe directa e necessariamente traumatismo craniano e facial, com equimose na região malar esquerda e sangramento.
9 - No dia 31 de Dezembro de 2005, no interior da citada residência, o arguido agrediu a assistente com bofetadas, murros e com uma trela, por causa de não ter passado o fim de ano com ele, tendo antes ido trabalhar.
10 - Na madrugada do dia 1 de Janeiro de 2006, após ter sido contactada pelo arguido, entrou em casa e nessa altura este fechou a porta e começou a agredi-la, desferindo-lhe bofetadas, socos, pontapés que a atingiram no corpo, conduta que lhe causou escoriações na face e vários hematomas nos membros inferiores.
11 - Para evitar mais agressões a assistente fugiu para cima do telhado, até que foi socorrida pelos Bombeiros e PSP.
12 - Devido a este facto a assistente separou-se do arguido e foi viver para uma pensão.
13 - Contudo, reconciliaram-se quando a assistente engravidou do segundo filho, o menor D….
14 - Depois da criança nascer, no dia 24 de Janeiro de 2007, o arguido a apelidar a assistente de (lhe?) "filha da puta", dirigindo-lhe igualmente expressões do tipo "não fazes nada", "não prestas", " burra", "estúpida", procurando controlar todos os seus passos e gerando deste modo um clima permanente de insegurança na companheira.
15 - Conduta que era praticamente diária, por vezes acompanhada de estalos na cara, apertos nos cabelos e o pescoço.
16 - Assim sucedeu, entre outras vezes em momentos incertos, no dia do 29° aniversário da assistente, dia 12 de Fevereiro de 2009.
17 - A assistente encontrava-se em casa a amamentar o pequenino (o filho mais novo), quando entrou em discussão com o arguido, na sequência da qual, este puxou-lhe os cabelos até fazê-la cair ao chão.
18 - Bem como em dia incerto do mês de Outubro de 2009, pouco antes de a assistente ter sido acolhida em Casa de Abrigo, em que após discussão sobre a forma desta cuidar dos filhos o arguido agarrou a assistente pelo pescoço e arrastou-a até à casa de banho.
19 - Local onde fechou a porta, e depois agrediu a assistente com estalos na cara e puxou-lhe os cabelos, forçando-a a ter relações sexuais consigo.
20 - O arguido também ameaçava a assistente, dizendo-lhe que se fizesse queixa dele que lhe retirava o filho mais velho e que nunca mais o veria.
21 - Quando o filho mais novo tinha apenas alguns meses de idade o arguido estando sozinho no quarto com a assistente, encostou-lhe uma arma de fogo, prateada, à cabeça, e proferiu a seguinte expressão "estoiro-te agora a cabeça".
22 - A assistente acabou por marcar, sem que o arguido soubesse, uma entrevista com a assistente social.
23 - Nesse mesmo dia, 21 de Outubro de 2009, a assistente saiu de casa e foi acolhida na Santa Casa da Misericórdia, e, cerca de 20 dias depois, em Casa de Abrigo da UMAR, na companhia dos filhos.
24 - Onde se manteve até Agosto de 2010.
25 - A assistente não mais viu o arguido desde que foi acolhida na Casa de Abrigo.
26 - Continua a ter imenso medo do arguido, receando que ele lhe possa fazer mal ou retirar-lhe os filhos.
27 - Na sequência de execução de busca domiciliária consentida pelo arguido à sua residência, sita na Rua …, que teve lugar pelas 15h50 do dia 15 de Junho de 2010, foi apreendido em seu poder o seguinte:
A) Em cima de um móvel, no hall de entrada, uma pistola, de calibre .22LR (equiparado ao calibre 5,56mlm, no sistema métrico), de marca e modelo não especificados, cujo número de série foi retirado do corpo através de punção, de fabrico francês, em razoável estado de conservação e de funcionamento, de funcionamento semi-automático, de cano estriado, no sentido dextrógiro, com o comprimento de 108 mim, de percussão lateral, com o respectivo carregador, municiado com sete munições de calibre .22 (equiparado ao calibre 5,56 mim, no sistema métrico), de marca C "CHEDDITE", de origem francesa;
B) Na sala, em cima de um móvel, dentro de uma chávena, uma munição, de calibre .32 Magnum (equiparado ao calibre 7,65mlm, no sistema métrico), de marca FC "FEDERAL CARTRIDGE", de origem norte-americana; uma munição, de calibre 9m/m (equiparado ao calibre .38, na designação anglo-americana), de marca SB "SELLIER & BELLÜT", de origem checa; uma munição, de calibre 7,65m/m (equiparado ao calibre .32, na designação anglo-americana), de marca LE, de origem não referenciada, e 5 (cinco) munições, de calibre 8mm, de Salva (isto é, desprovidas de projéctil, contendo somente pólvora para efeito detonante), de marca HP "HIRTENBERG", de origem austríaca;
C) Num dos quartos, um marcador de "PAINT BALL", de calibre 69, de marca SHERIDAN, modelo P.G.P., com o número de série P044205, de fabrico norte-americano, com o comprimento de cano de 202 mim, em, mau estado de conservação.
28 - O arguido não era portador de licença de uso e porte de arma que lhe permitisse deter em seu poder a pistola de calibre .22 LR.
29 - O arguido agiu com consciência e vontade de, molestar o corpo da assistente, assim como vexá-la na sua honra e consideração pessoal, bem como atemorizá-la de modo a limitar a sua liberdade de acção, atingindo deste modo a sua saúde física, mental e psíquica.
30 - Mostrando-se indiferente ao dever especial de respeito que devia nutrir, com um empenho acrescido, para com a mesma, atenta a especial relação entre ambos.
31 - O arguido sabia que não podia deter a arma de fogo (pistola) nem as respectivas munições sem que fosse titular do livrete de manifesto de arma e da respectiva licença de uso e porte, e, não obstante, agiu com consciência e vontade de a deter fora destes condicionalismos legais.
32 - Ainda sabia que não podia deter as munições de calibre de 7,65m/m e 9m/m, por serem de uso exclusivo das forças de segurança.
33 - O arguido agiu deliberada, livre e conscientemente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.

Mais se provou que:
34 - O arguido trabalha numa "Sex Shop" auferindo cerca de €600,00 mensais.
35 - Paga de renda de casa €275,00 mensais.
36 - Tem de habilitações literárias a 4a classe.
37 - Encontra-se em Portugal à perto de 31 anos.
38 - Para além de dois filhos em comum com a assistente tem igualmente um filho a residir em França com 12 anos de idade.
39 - Do seu certificado de registo criminal não se mostram averbadas quaisquer condenações.
40 - Devido à conduta do arguido a assistente sofreu dores, hematomas, várias escoriações, bem como, vivia com medo constante, num estado de perturbação e ansiedade e angústia permanente.

Factos não provados:
Não se provou que:
a) Aquando do referido em 10) dos factos provados o arguido agrediu a assistente socorrendo-se igualmente de uma corrente metálica.

Porque tal matéria releva igualmente para a apreciação do recurso, confiramos igualmente a fundamentação exarada para justificar a convicção factual acima exposta:
O tribunal formulou a sua convicção sobre a factualidade provada e não provada com base na prova produzida na audiência nos seguintes termos:
O arguido, para além das declarações que prestou sobre a sua situação pessoal e profissional, relativamente aos factos negou que alguma vez mantivesse relações sexuais com a assistente contra a vontade desta, ou que lhe tivesse apontado uma arma à cabeça, a perseguisse ou a agredisse de forma gratuita e por tudo e por nada, apenas admitindo que ocorreram discussões com troca de palavras e, nesse contexto, terá respondido às agressões da assistente mas nunca a agredindo de forma violenta.
Relativamente a alguns dos episódios referidos na acusação, mormente o de dia 22 de Julho de 2005 negou a sua autoria, admitindo que talvez os vizinhos tivessem chamado a polícia na altura devido ao barulho decorrente de discussão entre ambos, no tocante a dia 31 de Dezembro de 2005 também negou esse facto admitindo que no dia 1 de Janeiro de 2006 a assistente resolveu ir trabalhar para o bar, telefonou-lhe várias vezes e quando esta retomou a meio da manhã a casa discutiram e ela foi para o telhado, desconhecendo o motivo pelo qual o fez, apenas sabe que depois surgiu a polícia no local.
Reportou-se igualmente ao facto de entender que a assistente era má mãe não cuidava correctamente dos menores nem da casa e que saiu de casa na data referida nos autos não mais a vendo desde então nem aos filhos.
Sobre a arma e munições apreendidas nos autos reconheceu a sua propriedade e o conhecimento da ilegalidade da situação.
Confrontado com o teor das declarações que prestou perante o JIC negou que o que tivesse então referido correspondesse à realidade, mormente que agredia violentamente a assistente enquanto viveram juntos.
A assistente B…, apesar de manter um sotaque característico de pessoa provindo dos países de leste teve um depoimento claro e perfeitamente perceptível relatando de forma bastante circunstanciada e sentida os factos referidos nos autos e de que foi vítima.
As datas em que foi agredia, a primeira vez que tal sucedeu, as agressões subsequentes e tipo de agressões, as relações sexuais forçadas que por vezes era vítima, a sua dependência social, familiar e económica que manteve em certos períodos da vivência em comum, mormente nas duas gravidezes, o facto de ter chegado a sangrar da face as expressões com era frequentemente brindada, o facto de ter saído de casa e depois tentado ainda a conciliação decorrente da segunda gravidez, a pedido do arguido, mas que pouco tempo volvido voltou a descambar em agressões físicas e psíquicas, as ameaças constantes de que lhe retirava os filhos, o controlo do seu dia-a-dia, pondo em causa as suas qualidades de mãe.
O episódio da arma (que reconheceu com sendo a indicada nos autos a fls. 83 de cor prateada), e sua saída definitiva da casa do casal acompanhada dos menores após ter solicitado ajuda à assistente social.
Continua a ter receio do arguido.
Por fim admitiu que no período de vivência comum com o arguido chegou a ter uma relação com terceira pessoa).
Sobre o seu relacionamento inicial com o arguido e sua presença em Portugal, referiu que na altura que conheceu o arguido trabalhava num bar como dançarina, estava em território português à perto de ano e meio, vivia com umas colegas, não se encontrava legalizada facto que só ocorreu em 2007 altura em que a Bulgária entrou na União Europeia, tinha 22 anos de idade, não falava quase nada de português, quando se juntou com o arguido engravidou do primeiro filho e parou de trabalhar, aos 9 meses de idade do menor voltou a trabalhar no bar, ficou de novo grávida e parou de novo de trabalhar, encontrando-se na dependência económica do arguido, numa das vezes que apresentou uma queixa isolada desistiu da mesma porque estava grávida do segundo filho e voltou a viver com o arguido.
Ao nível documental o tribunal estribou-se no teor do CRC de fls. 202, ficha clínica de fls. 26-27, termo de autorização de busca domiciliária de fls. 75, auto de apreensão de fls. 79 a 84, auto de exame directo de fls. 115, guia de depósito da arma e munições de fls. 122, "print" do Registo individual das crianças de fls. 126 e 127.
Face ao acima sumulado à excepção da agressão do arguido à assistente com recurso a uma corrente metálica, realidade em momento algum referida pela assistente, o tribunal deu como provados os factos imputados ao arguido.
As declarações da assistente foram extremamente consistentes, mostraram-se devidamente balizadas no tempo e no espaço a sua situação de dependência ao arguido aquando da sua vivência em comum com o arguido é uma decorrência lógica da sua situação pessoal, ilegal na altura em território nacional, depois com filhos menores para criar, abandono do seu trabalho para o efeito, com a consequente dependência económica adveniente, a sua tenra idade, cerca de oito anos mais nova que o arguido, pessoa que já residia em Portugal há vários anos.
Por outro lado a forma inexplicável como o arguido refere que a polícia chegou a comparecer na casa do casal, mormente a fuga da assistente para o telhado da casa, segundo referiu por motivos de discussões, bem como o facto de ter referido só se ter defendido das investidas da assistente permitem-nos concluir pela veracidade das declarações da assistente, que a par dos dados clínicos juntos aos autos devem ser complementadas pela abismal diferença da complexidade física do arguido em relação à assistente, pessoa franzina e de baixa estatura claramente sem massa muscular ou corporal capaz de agredir o arguido em circunstancias normais.
Ainda no tocante aos dados clínicos junto aos autos estes não comprovam a existência de agressões em todos os momentos históricos referidos nos autos, contudo tal facto não afasta, sem mais, a hipótese da sua verificação, a assistente confirmou-os, relatou os motivos pelos quais se encontrava de certa forma subjugada ao arguido e porque desistiu de uma das queixas, declarações que se mostram por isso ancoradas em dados objectivos que atestam a credibilidade das declarações e por conseguinte da sua verificação.
É ainda de realçar quanto a este aspecto que estamos perante um ilícito que na presente situação, como o é na esmagadora maioria das vezes, ocorreu na então casa de morada do casal, sendo por isso normal que apenas as pessoas mais chegadas tenham conhecimento dos factos e neste caso a assistente não tem familiares em Portugal e não existia ninguém mais próximo do casal que privasse com estes na então casa de morada de família.
Por fim é certo que a assistente a instâncias da mandatária de defesa do arguido admitiu ter tido um relação com terceira pessoa quando viveu com o arguido, contudo além de tal facto não ter sido referido por este, nada justifica um cenário de agressão constante e reiterada, quer em momento pretérito à aludida relação, quer em momento ulterior, ou seja embora se admitisse que num contexto desta natureza em dado momento surgisse uma altercação até com eventual agressão física de pequena monta, facto que embora não justificado poderia ser visto como um privilegiamento da conduta eivada por um assomo de ira momentâneo, já mal se compreende uma conduta reiterada de agressão física e verbal tal como a descrita nos autos.


III – 3.1.) Passando agora ao tratamento das questões atrás indicadas, antes de entramos na apreciação do mérito da impugnação que foi dirigida à matéria de facto provada, por razões de precedência lógica, forçoso será analisar a crítica colocada a seu montante (já que contende com a própria “extensão” do objecto do processo), e que se atém, como acima referiu, com uma eventual violação do princípio ne bis in idem.

Como se contextualiza tal alegação?
De harmonia com o expendido pelo recorrente, no universo dos provados, existem três factos que já terão sido objecto de apreciação em processos anteriores.
São eles, a saber:
- Que no dia 22 de Julho de 2005, pelas 11H50 "no interior da citada residência, o arguido desferiu uma chapada na cara da assistente, causando-lhe directa e necessariamente traumatismo craniano e facial, com equimose na região malar esquerda e sangramento".
- Que "no dia 31 de Dezembro de 2005, no interior da citada residência, o arguido agrediu a assistente com bofetadas, murros e com uma trela, por causa de não ter passado o fim do ano com ele, tendo antes ido trabalhar".
- E finalmente que: "na madrugada de 1 de Janeiro de 2006, após ter sido contactada pelo arguido, a assistente entrou em casa e nessa altura este fechou a porta e começou a agredi-la, desferindo-lhe bofetadas, socos, pontapés que a atingiram no corpo, conduta que lhe causou escoriações na face e vários hematomas nos membros inferiores".

Sobre os mesmos terá recaído arquivamento definitivo, pelo que, na sua perspectiva, já não seria possível a sua consideração uma vez mais nos presentes autos.

Percorrido o processado que o integra, retira-se, com efeito, que a situação referida naquele primeiro ponto está vertida no auto de notícia do processo a que correspondeu o NUIPC 705/05.0PHLSB (cfr. fls. 12 a 44).
A segunda e a terceira estão mencionadas no processo com o NUIPC 2/06.3PHLSB, incorporado no processo 135/05.3PALSB (cfr. fls. 130 a 141), sendo que, por sua vez, todos eles estão incorporados no presente 5752/09.0TDLSB.

Em bom rigor a decisão proferida pelo Ministério Público num caso e noutro, não assume exactamente a mesma natureza, ainda que em ambos, de despachos de arquivamentos se trate.
Naquele processo 705/05.0PHLSB o arquivamento decorre da circunstância de não ter havido queixa por parte da lesada e estarmos face a um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo art. 143.º do Cód. Penal (fls. 34/5), delito para o qual o Ministério Público não tinha condições de procedibilidade.
No processo 2/06.3PHLSB, o crime de maus tratos abstractamente tido por verificável no caso, foi tido como não preenchido, considerando-se antes estar-se perante o concurso de dois crimes de ofensa à integridade física simples, donde em face da desistência da queixa apresentada e da sua homologação, o arquivamento acabar por decorrer desta forma de extinção do respectivo procedimento criminal.

III – 3.2.) Com é sabido, o princípio ne bis in idem “deriva originariamente do conceito de caso julgado e da correlativa necessidade de segurança jurídica” (neste sentido Luis Mota Carmo, O Ne Bis In Idem Como Fundamento De Recusa Do cumprimento do Mando de Detenção Europeu, Tese de Mestrado, Universidade de Lisboa, Faculdade de Direito, pág.ª 64).

Encontra consagração expressa na Constituição da República Portuguesa, no respectivo art. 29.º, n.º 5, mas está também proclamado em diferentes textos internacionais pertinentes à salvaguarda dos direitos, liberdade e garantias fundamentais, nomeadamente, no art. 14.º, n.º 7, do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos e no art. 4.º do Protocolo n.º 7 à Convenção Europeia dos Direitos do Homem.

Segundo aquele normativo da Lei Fundamental, “ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime”, o que no fundo enuncia o que a Doutrina geralmente denomina de “efeito negativo do caso julgado”.

Com ele pretende-se “impedir qualquer novo julgamento da mesma questão”, ou na formulação mais próxima do texto constitucional, “impedir novo julgamento sobre o mesmo crime” (neste sentido, G. Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Verbo, 2.ª Ed., 2000, Vol. III, pág.ªs 38/39).

Por estarmos perante despachos de arquivamento, para mais proferidos antes da fase de acusação, podia-se ser levado a pensar que pela circunstância de não envolverem qualquer julgamento sobre o mérito do objecto do processo, não seriam idóneos a produzir aquele efeito preclusivo próprio da res judicata, como parece querer resultar da douta resposta do Ministério Público.

A questão como é óbvio não tem essa simplicidade.
Basta pensar, por exemplo, no despacho de pronúncia que pode assumir tal efeito, e ainda assim não envolve um julgamento em sentido estrito, ou que, “a nível da União Europeia, o Tribunal de Justiça já decidiu que o ne bis in idem também se reporta a decisões que embora não tendo sido proferidas por uma autoridade judicial põe definitivamente fim ao processo mesmo que não tendo conhecido de mérito” (cfr. Luis Mota Carmo, obra citada, pág.ª 78).

Entre nós, a problemática dos efeitos a esse nível do despacho de arquivamento tem sido objecto do tratamento da Doutrina, ainda que nem sempre com resultados coincidentes.

III – 3.3.) Uma das hipóteses que permitiria uma resposta satisfatória no sentido de se ter como não verificada aquela impossibilidade considerativa nas situações supra reportadas (em jeito muito próximo do também alegado pelo Ministério Público), poderia passar por um concreto entendimento a dar à expressão “julgado pelo mesmo crime” constante do art. 29.º, n.º 5, da CRP.

Com efeito, na recensão efectuada por Luis Mota Carmo, que uma vez mais aqui trazemos à colação, será possível divisar entre os Autores pelo menos três correntes interpretativas na procura da definição daquela identidade criminal:

Para a corrente naturalística o objecto do processo penal é um facto histórico que importa reconstruir.
Neste conspecto, Cavaleiro de Ferreira ao comentar a expressão mesmos factos constante da previsão do corpo do artigo 148.º e do artigo 150.º do Código de Processo Penal de 1929, referia que o facto é de considerar, processualmente, como um evento naturalístico, objecto de investigação e prova, seja qual for a qualificação jurídica. Cavaleiro de Ferreira explicita que "de comum, para fundamentar naturalisticamente a identidade, deve atender-se aos factos praticados, ou seja à acção. Podem variar as circunstâncias, os elementos acidentais da actividade que constitui o objecto do processo, mas não a própria acção. E assim haverá caso julgado material quando se acusa em novo processo pela mesma acção, embora acrescida de novas circunstâncias, embora seja diferente o evento material que se lhe segue ou diversa a forma de imputação subjectiva."

Para a corrente normativa a acção tem que se reportar a um dever-ser, portanto a um valor. Como tal, só a norma é que pode dar o valor ou desvalor da conduta. Eduardo Correia dizia que: "A realidade, mais precisamente, um comportamento de um sujeito nas suas relações de coincidência ou não coincidência com um facto representado, é, pois, o verdadeiro objecto processual, ou seja, aquilo sobre que incide a investigação. ( ... ) esta representação nunca será de um facto puramente naturalístico, mas de um juízo de valor; não será nunca uma pura descrição de um facto naturalístico (no sentido do tipo legal de Beling) mas a figuração de um facto teleológico normativo concreto. O objecto é a "concreta e hipotética violação jurídico-penal". Segundo esta perspectiva, o facto processual tem de ser visto à luz da norma e é comparando previsões de normas que se pode dizer se estamos ou não perante o mesmo facto.

É claro que também aqui não falta uma terceira via:


Entretanto, uma terceira via foi ganhando adeptos, a qual configuraria o objecto do processo já não como o facto histórico hipotético em que se recorreria ao elemento aglutinador tirado da própria natureza, mas também não seria a concreta e hipotética violação jurídico-penal em que o pólo aglutinador seria a referência jurídico-penal e em termo de unidade criminosa. Para esta terceira via, o facto é «um recorte, um pedaço de vida, um conjunto de factos em conexão natural (e não naturalística, por tal conexão não ser estabelecida com base em meros juízos procedentes de uma racionalidade própria das ciências da natureza) analisados em toda a sua possível relevância jurídica.

Neste sentido Souto de Moura afirma "o facto é, antes do mais, o facto natural, no sentido de facto histórico que as provas vão reconstruir. Obviamente, que o facto natural é recolhido para o processo na medida em que tenha relevância jurídico-penal, e só nessa medida, mas isso não implica que perca a sua natureza ontológica, relativa ao domínio do ser, e se transforme para o processo só em algo atinente ao mundo dos valores. O facto terá, antes, uma natureza ambivalente, na medida em que existe como facto histórico dentro e fora do processo, mas transitou para o processo, porque passou a valer como violação jurídico-penal. Assim, o objecto do processo mais não é do que uma realidade histórica que se pretende ver valorada por normas jurídico-penais.

Pelos motivos que melhor desenvolve (crime diverso não é tipo de crime diverso, porque o tipo pode permanecer o mesmo e os factos serem diferentes, a necessidade do facto ter de ser encarado numa perspectiva ontológica e axiológica, perspectiva particularmente cara à teoria finalista, a existência de um thema probandi definido pela acusação/pronúncia na decorrência de um processo com características acusatórias, a consideração dos limites processuais decorrentes da alteração substancial dos factos) a posição propugnada naquela tese de mestrado sobre este tópico em particular, é a de que:

“(…) a expressão mesmo crime terá que ter uma idêntica base factual referida a uma norma que lançará luz sobre a qualificação da materialidade do facto. O facto é naturalístico, mas haverá um elemento normativo que determinará a identidade. E correlativamente crime diverso será outro objecto do processo ou objecto do processo diferente do inicial”.

III – 3.4.) Procurando reverter estas considerações teóricas para o caso concreto haveria então que concluir o seguinte:

Se se pretendesse voltar a investigar ou sancionar o arguido pelos factos indicados enquanto crime de ofensa à integridade física, obviamente que a excepção de caso julgado operaria.
O mesmo aconteceria se aqueles tivessem sido valorados enquanto crime de maus tratos (a anterior designação do crime do art. 152.º)
Só que o crime de violência doméstica é muito mais que uma soma de ofensas corporais. Em bom rigor, pode existir mesmo que estas últimas nunca tenham sido produzidas.

Como se afirma no Ac. da Rel. de Coimbra de 15/12/2010, proferido no processo 512/09.0PBAVR.C1, “de acordo com a razão de ser da estrutura normativa do crime do artigo 152.º, do CP [versão do Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de Março, com as alterações que sucessivamente foram introduzidas pelas Leis 65/98, de 2 de Setembro, 7/2000, de 27 de Maio, e 59/2007, de 4 de Setembro], as condutas que integram os respectivos tipos-norma não são autonomamente consideradas enquanto, eventualmente, integradoras de um ou diversos tipos de crime; são, antes, valoradas globalmente na definição e integração de um comportamento repetido revelador de um crime de maus tratos (lei antiga) ou violência doméstica (lei nova)”.

Donde, como é diverso o crime em apreciação, ou seja, o enfoque que se pretende emprestar a esses factos, pois que apenas na cumulação com outros podem traduzir aquela diferente realidade normativa, não se deveria ter aqui por preenchida uma situação de caso julgado, o mesmo é dizer, de violação do princípio ne bis in idem.

Na falta de um outro tempo para maturação destas ideias, entenderemos por ora ser precipitado tomar estas asserções como doutrinariamente inquestionáveis, sem outro esforço de aferição ou teste.
Por isso vamos assentar a nossa posição nos seguintes considerandos:

Para a integração do crime de violência doméstica pelo qual o arguido foi condenado, tais factos não são imprescindíveis.

Mais, se em relação aos reportados a 31 de Dezembro de 2005 e madrugada de 1 de Janeiro de 2006 (pontos 9 a 11), até poderemos conceder que exista caso julgado pelo efeito “extintivo” que a homologação da desistência de queixa comporta para o respectivo procedimento criminal (embora o que a Lei refere, é que a desistência “impede que a queixa seja renovada”), o mesmo não concluiremos em relação ao primeiro facto (que reporta a situação verificada em 22 de Julho de 2005), que é uma simples decisão formal ditada por razões processuais decorrente da constatação da falta de legitimidade do Ministério Público para prosseguir a acção penal.

Neste caso, entendemos não existir aquele efeito preclusivo.

III – 3.5.) No que concerne à impugnação dirigida pelo recorrente, apreciadas as declarações prestadas pela assistente em audiência a partir da respectiva gravação, e bem assim conferido o exame crítico das provas exarado pelo Tribunal, somos em entender que em termos gerais, à excepção de algumas precisões meramente circunstanciais que nada de fundamental modificam o sentido final conferido à decisão, o essencial da matéria de facto está bem julgado.

Desde logo não se invoque para sustentar a não prova de determinados factos a circunstância da mesma se filiar em exclusivo nas declarações da assistente ou o seu valor probatório dever ser diminuído na contraposição das prestadas pelo arguido.

Tais argumentos não se mostram procedentes: Em primeiro lugar porque não existe entre nós qualquer regra processual, que em termos de generalidade, aponte para que determinados factos devam ser demonstrados por específicos meios de prova, ou muito menos, faça derivar do número de declarantes concordes a convicção a retirar dessa sustentação.

Depois, porque como fica claro da fundamentação, para o Mm.º Juiz a quo, “As declarações da assistente foram extremamente consistentes, mostraram-se devidamente balizadas no tempo e no espaço”.
Por isso as tomou como melhores do que as produzidas pelo arguido, que até teve de confrontar com o anteriormente afirmado a juiz de instrução criminal em inquérito.
Também por isso concluiu “pela veracidade das declarações da assistente, que a par dos dados clínicos juntos aos autos devem ser complementadas pela abismal diferença da complexidade física do arguido em relação à assistente, pessoa franzina e de baixa estatura claramente sem massa muscular ou corporal capaz de agredir o arguido em circunstâncias normais”.

Este melhor valor da prestação probatória da assistente não se nos afigura contestável.
Não que aqui ou ali não tivéssemos detectado uma ou outra incongruência.
Veja-se o caso de indicar inicialmente que a primeira agressão sofrida terá tido lugar em 31 de Dezembro de 2005, quando no prosseguimento da sua narração acabamos por constatar que aquela primeira vez realmente ocorreu em 22 de Julho de 2005.

Invalida tal circunstância o valor das suas declarações nesse particular?

A resposta é para nós negativa: não vemos aqui, com efeito, qualquer intenção de procurar subverter a verdade. Trata-se de um simples lapso de exposição.
O que seria de estranhar, é que após seis anos volvidos sobre os factos, aquela conseguisse reproduzir em fidelidade absoluta a sua cronologia por dia, mês e ano.
E que tais factos não são simples obra da sua invenção está aí para o provar a referida participação no processo 705/05.0PHLSB.

Adjuve-se ainda o seguinte:

Sem embargo da desconformidade acima registada, o nível de reprodução das situações transmitidas em audiência quer na perspectiva da narração do que foi vivenciado quer no da sua arrumação temporal, situa-se em patamares claramente positivos, para mais tratando-se de uma pessoa que não é de nacionalidade portuguesa e não tem um domínio total da nossa língua.

A favor da sua credibilidade pontua também a circunstância de pese embora os diversos episódios de violência sofridos, aquela não se apresentar, prima facie, a agigantar as agressões e humilhações perpetradas pelo seu companheiro.

Igualmente não escondeu pormenores que até a poderiam comprometer – por exemplo, que em 2005 manteve uma relação com um outro homem, quando já vivia com o recorrente.

Mas onde sobretudo aquelas declarações ganham outro significado é quando são integradas contextualmente com os outros factos e elementos que asseguram a sua credibilidade geral:
A arma utilizada na situação referida no ponto 21 existe efectivamente.
De algumas agressões existe o traço da sua participação ou queixa senão mesmo alguma informação clínica.
O facto não vale como crime ou acto autónomo para sua consideração nestes autos, mas não deixa de fazer cogitar, pois que a assistente o afirmou, qual o motivo que pode levar alguém a refugiar-se no telhado da sua casa não havendo fogo ou calamidade semelhante.
Também não será seguramente obra do acaso a circunstância da assistente ter que ser acolhida pela Santa Casa da Misericórdia e depois numa casa abrigo da UMAR…

III – 3.6.) Mas consideremos mais de perto os diferentes pontos de irresignação identificados pelo arguido:

Sobre o ponto n.º 4: “Ainda quando o menor C… era uma criança de colo, o arguido, após ter chegado do trabalho, entrou em discussão com a assistente e, na sequência da mesma, apertou-lhe o braço com bastante força e desferiu-lhe uma chapada na cara, fazendo-a tombar na cama com a criança que tinha ao colo”.

Afora a aporia já acima mencionada de que na realidade não se tratou da primeira agressão registada aquando da vivência comum com o arguido, no mais a matéria de facto respectiva tem conforto claro nas declarações da assistente.
Situa-a por alturas do final de 2003 – dá como marco o Natal e a circunstância do seu filho mais velho ter então mais ou menos 4 meses -, relatando que estava sentada na cama com o menor ao colo e que foi agredida por uma chapada do seu companheiro na cara, que a fez cair e ao seu filho na cama.

Em relação ao ponto 7: Sustenta a matéria de facto que “Além de que o arguido não permitia que a assistente falasse com ninguém que não fosse conhecido dele, especialmente indivíduos do sexo masculino.

Neste particular poderemos conceder que o teor do afirmado por aquela em audiência não sustenta na sua especificidade o conteúdo que o Tribunal assinala para o facto em questão.
O que a mesma veiculou, é que na sequência (ou em paralelo) com os ciúmes - referidos no anterior ponto 6. -, o arguido exercia sobre ela uma atitude de “controlo” constante dos seus movimentos fora de casa.

Como se revelava?
Insistindo em saber quanto tempo demorava para ir buscar as crianças, a que horas chegava à casa, se tinha ido ou sido vista neste ou naquele sítio…

Nesta conformidade, nada temos a opor que o mencionado ponto 7. possa ter uma redacção deste tipo:

Além de que o arguido procurava controlar os seus movimentos fora de casa, inteirando-se com insistência sobre os tempos, razões e lugares dessas deslocações.

Sobre o incorrecto julgamento do ponto n.º 14: “Depois da criança nascer, no dia 24 de Janeiro de 2007, o arguido (passou) a apelidar a assistente de "filha da puta", dirigindo-lhe igualmente expressões do tipo "não fazes nada", "não prestas", " burra", "estúpida", procurando controlar todos os seus passos e gerando deste modo um clima permanente de insegurança na companheira.”

Critica-se aqui a circunstância de não se ter feito “prova das injúrias mencionadas, dada a falta de concretização minuciosa e exaustiva das mesma, por parte da assistente”.

Como bem o faz anotar a Digna Procuradora-Adjunta na sua douta resposta, já em momento anterior o Mm.º Juiz havia perguntado à assistente “que ofensas verbais eram essas” que aquela estava a afirmar ter sido alvo de forma constante durante o tempo de convivência com o ora arguido.
Ao que a mesma respondeu: “peço desculpa … filha da puta, estúpida, não fazes aqui nada”, e numa versão algo elaborada, “não era boa encarregada de educação” das crianças.
A questão não é retomada com a mesma proficiência enunciativa em relação a esta situação concreta, concede-se, mas também não vemos que houvesse uma necessidade absoluta de se estar sempre a repetir o mesmo, quando na realidade, segundo a declarante, tais ofensas eram constantes.

Aliás, neste particular, o arguido parece pretender jogar em dois terrenos antagónicos: se o Mm.º Juiz formula as perguntas de uma forma mais cingida à acusação, “não há espontaneidade e sinceridade”.
Mas quando dela se afasta para permitir uma declaração mais natural, já se afirma que a prova não é “exaustiva e minuciosa”.

A crítica ao ponto 15 acaba por perder grande parte do seu conteúdo. Com efeito aí não se afirma que “Também sempre a assistente lhe respondia e defendia a sua honra, o arguido, …” mas apenas, em articulação com as injúrias e controlo dos seus passos referidos no ponto anterior, que tal “Conduta que era praticamente diária, por vezes acompanhada de estalos na cara, apertos nos cabelos e o pescoço.”

E destes apertos (ou puxões) nos cabelos e do pescoço falou a assistente.

Nos pontos 16 e 17 enuncia-se o seguinte: “Assim sucedeu, entre outras vezes em momentos incertos, no dia do 29° aniversário da assistente, dia 12 de Fevereiro de 2009.
A assistente encontrava-se em casa a amamentar o pequenino (o filho mais novo), quando entrou em discussão com o arguido, na sequência da qual, este puxou-lhe os cabelos até fazê-la cair ao chão.”

Sobre a suficiência das declarações daquela para fins probatórios já acima deixamos exposto o nosso pensamento.
O ser ou não estranho que a assistente não tivesse referido o que aconteceu ao menor, isto é, se também caiu ao chão, também não é argumento a que conferimos especial significado.

Se havia real curiosidade ou interesse por parte da Defesa em esclarecer essa incidência, então a audiência era a sede indicada para o efeito, o que não foi aproveitado.
O mesmo se diga sobre a real ou pretensa contradição entre a afirmação em como estava a amamentar ou que tinha a criança ao seu lado no sofá.

Do incorrecto julgamento dos pontos 18 e 19 que referem:
18 - Bem como em dia incerto do mês de Outubro de 2009, pouco antes de a assistente ter sido acolhida em Casa de Abrigo, em que após discussão sobre a forma desta cuidar dos filhos o arguido agarrou a assistente pelo pescoço e arrastou-a até à casa de banho.
19 - Local onde fechou a porta, e depois agrediu a assistente com estalos na cara e puxou-lhe os cabelos, forçando-a a ter relações sexuais consigo.”

A objecção que aqui é colocada tem a ver com a alegação de que a assistente terá dito em audiência que o arguido a levou à casa de banho e não que a arrastou para a casa de banho.

Sinceramente não atingimos onde se pretende chegar, tanto mais que aquela condução sempre seria na pressuposta contrariedade da sua vontade.

Ainda assim o recorrente não tem razão. A assistente menciona num primeiro momento que o arguido a levou à casa de banho, mas mais à frente, a uma pergunta posta pela Defesa, afirma (minuto 44`25 da gravação) “era aquela última discussão da qual eu falei, que ele me arrastou para a casa de banho …”.

O que na realidade aqui poderá ser desconforme é que, como depois vai ser dito, a casa de banho não teria chave, e o que aconteceu é que o arguido se interpôs entre a porta e a assistente, barrando-lhe a saída.

No ponto 20, que tem o seguinte conteúdo: “O arguido também ameaçava a assistente, dizendo-lhe que se fizesse queixa dele que lhe retirava o filho mais velho e que nunca mais o veria”, não se mostra escrita a frase contida na conclusão 20.ª “palavras que a intimidavam, tanto mais que sabia que ele tinha família em França”; Da mesma maneira que no ponto 21, também não se diz: “a situação que mais intimidou a assistente ocorreu” ou “estavam em casa e o arguido mandou as crianças para sala”.

A crítica, aqui uma vez mais repetida, é a de que o Tribunal se bastou com as declarações da assistente no estabelecimento desses factos. Trata-se de um argumento recorrente na economia da motivação apresentada em relação ao qual nada mais temos a acrescentar.

Quanto à circunstância do Mm.º Juiz ter valorado mal o seu “depoimento”, traduzirá seguramente uma perspectiva pessoal da análise da prova, mas o arguido não nos consegue convencer dessa conclusão ou que tivesse havido um indevido ou manifesto mau uso do princípio da sua livre apreciação nesse particular.

III – 3.7.) Mesmo desconsiderada a matéria de facto dos pontos 9 e 10 (e dos que deste último são consequentes) e também substituído o teor do ponto 7 por aquele acima preconizado, nada de essencial se modifica em termos de Direito.

Como já se deixou afirmado, o tipo legal previsto no art. 152.º, mais do que a soma dos diversos ilícitos que o podem preencher, v.g. ofensas à integridade física, injúrias ou ameaças, protege de uma forma ampla “a dignidade humana da vítima, a sua saúde física e psíquica, a sua liberdade de determinação, que são brutalmente ofendidas, não apenas através de ofensas, ameaças ou injúrias, mas essencialmente através de um clima de medo, angústia, intranquilidade, insegurança, infelicidade, fragilidade, humilhação, tudo provocado pelo agente, que torna num inferno a vida daquele concreto ser humano” (cfr. neste sentido, ac. da Rel. de Lisboa de 07/12/2010, no processo 224/05.4GCTVD.L1-5).

Sendo certo que aquelas ofensas à integridade física, injúrias ou ameaças traduzem as modalidades de comportamento mais óbvias que o podem integrar, outras ao seu lado se podem perfilar, como os maus-tratos psíquicos, “as estratégias e condutas de controlo, o abuso verbal e emocional que perturbe «a normal convivência e as condições em que possa ter lugar o pleno desenvolvimento da personalidades dos membros do agregado familiar” (cfr. ac. da Rel. de Lisboa de 27/02/2008, no processo 1702/2008-3, disponível, tal como o anterior, no endereço electrónico www.dgsi.pt/jtrl).

Ora um pouco de tudo isto se reúne no caso presente: injúrias, controle de movimentos, agressões físicas, com ou sem a presença dos filhos, relações sexuais forçadas, ameaças, desconsideração das suas capacidades de educar os filhos, humilhações …, a que não falta sequer a reiteração agora afastada pelo n.º 1 daquele preceito.

O recorrente opõe que ao ser-lhe o regime conferido pela Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro, ao já mencionado art. 152.º do Cód. Penal, por aí lhe foi aplicado um regime mais desfavorável em relação aos factos cometidos antes da sua vigência.
Porém, não tem razão!

O crime de violência doméstica é um crime único ainda que de execução reiterada.
Com efeito, «a execução é reiterada quando cada acto de execução sucessivo realiza parcialmente o evento do crime; a cada parcela de execução segue-se um evento parcial. Porém, os eventos parcelares devem ser considerados como evento unitário. A soma dos eventos parcelares é que constitui o evento do crime único».

Tratando-se de um crime único, a consumação ocorre com a prática do último acto de execução (assim por exemplo, o acórdão da Relação de Coimbra acima citado), o qual se veio a verificar em Outubro de 2009.

Nesta conformidade, afora a alteração da redacção do facto constante do ponto 7 dos provados e da desconsideração dos pontos 9 e 10, quando ao essencial, o recurso é pois de julgar improcedente e não provado.


IV – Decisão:

Nos termos e com os fundamentos expostos, na muito parcial procedência do recurso interposto pelo arguido A..., decide-se alterar a matéria de facto provada constante do ponto 7 de modo a ficar a constar:

7 - Além de que o arguido procurava controlar os seus movimentos fora de casa, inteirando-se insistentemente sobre os tempos, razões e lugares dessas deslocações.

Na decorrência da desconsideração do ponto 10, o 11 e o 12 passarão a ter a seguinte redacção:
11 – Na madrugada do dia 1 de Janeiro de 2006 a assistente fugiu para cima do telhado, até ser socorrida pelos Bombeiros e PSP.
12 – De seguida separou-se do arguido e foi viver para uma pensão.

No mais, afora a igual desconsideração do ponto 9 da matéria de facto, pelos motivos atrás indicados, considerar o recurso improcedente e não provado.

Sem custas, dada a actual redacção do art. 513.º, n.º 1, do Cód. Proc. Penal.

Elaborado em computador. Revisto pelo Relator, o 1.º signatário.

Lisboa, 8 de Novembro de 2011

Relator: Luís Gominho;
Adjunto: José Adriano;