Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
5774/17.7T8FNC-A.L1-6
Relator: ANA DE AZEREDO COELHO
Descritores: SANEADOR-SENTENÇA
PRETERIÇÃO DE AUDIÊNCIA PRÉVIA
NULIDADE PROCESSUAL
NULIDADE DE SENTENÇA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 07/11/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I) O artigo 593.º, n.º 1, do CPC, prevê a dispensa de audiência prévia em casos que indica por remissão para o artigo 591.º do mesmo Código, omitindo dessa remissão a situação em que o juiz tenciona conhecer imediatamente de todo ou parte do mérito da causa.
II) Da conjugação dos artigos 591.º, n.º 1, alínea b), e 593.º, n.º 1, do CPC, este a contrario, resulta que a obrigatoriedade legal da audiência prévia quando o juiz se proponha conhecer do mérito na fase do saneador, exceptuada adequação formal ou o prévio acordo das partes, de tal notificadas.
III) O princípio do contraditório independe de o juiz considerar irrelevante a audição das partes, quando persistam no processo questões sobre que se não pronunciaram, v.g., a possibilidade de decisão de mérito sem produção de prova.
IV) A omissão de audiência prévia quando a mesma não podia ser dispensada determina a nulidade da decisão.
V) Esta nulidade deve ser invocada em sede de recurso da decisão de mérito, pois é o conteúdo desta que impõe a realização da audiência prévia e revela a omissão de acto prescrito pela lei; a reação adequada é a do recurso da sentença.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: ACORDAM na 6ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I) RELATÓRIO

M…, SA, executada nos autos de execução que lhe move C…, aos quais esta oposição está apensada, veio interpor recurso do saneador sentença que, decidindo dos embargos, os julgou improcedentes.
O Embargante alega ser nula a sentença por não ter sido convocada audiência prévia, o que constitui omissão de um acto processual com influência na decisão da causa, por ser obrigatória a sua realização para prolação de decisão de mérito naquela fase processual, configurando-se a decisão como decisão surpresa sem contraditório adequado, o que as leis processuais, maxime o artigo 3.º, nº 3, do CPC, proíbem.
Alega ainda, quanto ao mérito, em reduzida súmula, que a sentença considerou pretender a Recorrente defender-se nestes embargos por compensação, quando a mesma invocou a inexigibilidade da dívida com fundamento nas convenções celebradas entre as partes, nomeadamente, no acordo-quadro estabelecido.
Conclui pela procedência do recurso, sendo declarada a nulidade da decisão recorrida, por ilegal dispensa de audiência prévia, ou, subsidiariamente, ser revogada a decisão recorrida e substituída por outra que ordene o prosseguimento dos autos.
A Exequente contra-alegou defendendo que a audiência prévia não é de realização obrigatória na situação dos autos de prolação de decisão de mérito, como resulta da leitura conjugada dos artigos 593.º, n.º 1, e 591.º, n.º 1, alínea d), do CPC, sendo certo que nos autos se encontra assegurado o contraditório quanto a todas as questões colocadas, não podendo constituir surpresa a decisão de mérito que a própria lei prevê.
No que ao mérito da questão se refere, defendeu o julgado, mantendo a posição assumida nos autos.
Conclui pela improcedência do recurso e pela confirmação da decisão recorrida.
O Ex.mo Senhor Juiz a quo, na decisão que admitiu o recurso, expendeu considerações sobre a improcedência do mesmo, indicando que as partes se pronunciaram sobre todas as questões nos respectivos articulados, não lhes sendo lícito aditar factos, inclusive na audiência prévia, pelo que a dispensa de audiência prévia em nada conduziria a solução do litígio diversa da tomada, sendo certo que o Recorrente não invoca qualquer alegação que, carecendo de ser produzida na audiência prévia, visse essa possibilidade coarctada pela dispensa. Acresce que a Recorrente, enquanto embargante,  foi expressamente notificada por despacho para «exercer o seu direito ao contraditório quanto à matéria de excepção invocada na contestação e documentos juntos com a mesma, sob pena de tal direito ficar precludido», pelo que também sobre esta matéria lhe estaria vedado pronunciar-se em audiência prévia. Neste contexto, continua o Ex.mo Senhor Juiz, insurgir-se contra a dispensa de audiência prévia constitui abuso de direito processual, não conduzindo a qualquer resultado diverso do alcançado. No mais, defende que o n.º 1 do artigo 593.º do Código de Processo Civil expressamente prevê como fundamento de dispensa da audiência prévia o facto de a mesma se destinar somente a ser proferido despacho saneador a que se alude no artigo 595.º, n.º 1 — cf. alínea d) do n.º 1 do artigo 591.º do citado código, despacho saneador esse que consiste justamente no conhecimento do mérito, parcial ou total, da causa
O recurso foi admitido como apelação, com subida imediata, nos autos e efeito devolutivo.
Correram os vistos legais.

II) OBJECTO DO RECURSO

Estando a pronúncia deste Tribunal delimitada pelas conclusões do Recorrente - artigo 635.º, n.º 3, 639.º, nº 1 e 3, com as exceções do artigo 608.º, n.º 2, in fine, ambos do CPC, quanto a apreciação oficiosa -, cumpre apreciar e decidir das seguintes questões:
1) Da nulidade do saneador-sentença;
2) Na improcedência da primeira pretensão, do mérito da decisão de direito.

III) FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

A factualidade a considerar na apreciação e decisão é a que consta do relatório supra.

IV) FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

1. O processo é de oposição a execução para pagamento de quantia certa e a questão colocada é a da nulidade do saneador sentença proferido com dispensa de audiência prévia.
Ou seja, a questão colocada é a da interpretação do disposto no artigo 593.º, n.º 1, do CPC, na parte em que possibilita que o juiz dispense a realização de audiência prévia quando a mesma se destine apenas aos fins indicados nas alíneas d), e) e f) no n.º 1 do artigo 591.º.
Sendo um desses fins – o da alínea d) -, proferir despacho saneador, nos termos do n.º 1 do artigo 595º, norma que na sua alínea b) prevê a prolação de decisão de mérito, poderá considerar-se que esta última hipótese se enquadra na possibilidade de dispensa?
Ou, pelo contrário, está excluída a possibilidade de dispensa por a alínea b) do artigo 591.º, nº 1 - que prevê a audiência para facultar às partes a discussão de facto e de direito nos casos em que o juiz (…) tencione conhecer imediatamente, no todo ou em parte, do mérito da causa -, se não integrar na previsão do artigo 593.º, n.º 1, do CPC?
2. Adiantamos sufragar esta última posição.
Por uma primeira liminar razão que é a omissão de referência à alínea b) do n.º 1 do artigo 591.º no n.º 1 do artigo 593.º quando prevê a possibilidade de dispensa de audiência prévia.
Ou seja, o artigo (593.º) que prevê a dispensa de audiência prévia, prevê-a em determinados casos que indica por remissão para o artigo (591.º) que enuncia os diversos atos/conteúdos da audiência prévia, omitindo dessa remissão justamente o caso em que o juiz tenciona conhecer imediatamente de todo ou parte do mérito da causa.
Em conclusão, da conjugação dos artigos 591.º, n.º 1, alínea b), e 593.º, n.º 1, do CPC, este a contrario, resulta que a dispensa de audiência prévia não pode ocorrer quando o juiz se proponha conhecer do mérito na fase do saneador.
3. Certo é que a posição defendida pela Recorrida e pelo Ex.mo Senhor Juiz a quo, este no despacho que recebeu o recurso, defendem uma outra interpretação das normas, com uma dupla remissão do artigo 593.º, nº 1, para o artigo 591.º, nº 1, alínea d) e deste para o artigo 595.º n.º 1, alínea b).
Com o respeito que é devido a essa opinião, aliás esclarecidamente exposta, não cremos que a melhor hermenêutica a possa autorizar.
Se o legislador pretendesse incluir a prolação de decisão de mérito entre as hipóteses de dispensa de audiência prévia pelo juiz, sem mais, não teria omitido menção para o disposto na alínea b), do n.º 1, do artigo 591.º, quando remeteu para outras alíneas dessa norma.
No mesmo sentido se decide a questão enquadrando-a no sistema no seu conjunto. Estando prevista uma tramitação processual que não acolhe na normalidade da tramitação dos autos a prolação de decisão de mérito naquele momento processual, sempre o princípio do contraditório, que enforma todo o processo civil, indicaria ser mais adequada a conclusão pela exclusão legal da possibilidade de dispensa de audiência prévia no caso vertente.
4. No seu despacho de recebimento do recurso, como no que dispensou a audiência prévia, o Ex.mo Senhor Juiz a quo não deixou de considerar a necessidade de respeito pelo contraditório. E enunciou os diversos pontos porque entendia que o mesmo estava plenamente cumprido nos autos. Para tal analisou não só o facto de as partes se terem pronunciado sobre todas as questões controvertidas como, ainda, por ter concedido à Embargante pronúncia escrita quanto a matéria de excepção deduzida pela Embargada em contestação, aliás com a cominação de ficar precludida a possibilidade de defesa se dela não usasse nesses termos.
Não é essa, todavia, a questão. O princípio do contraditório não implica um juízo do juiz quanto à necessidade de ouvir as partes, nomeadamente por considerar que elas ainda têm algo a dizer-lhe com relevo para o que tem a decidir. Implica, antes, que as partes têm o direito de dizerem ao juiz aquilo que naquele momento ainda entendem ser relevante.
Ora, podendo as partes estar impedidas de carrear novos factos para os autos, podendo ter já abordado todas as questões a apreciar, podem ainda, na perspectiva de uma decisão imediata, querer aprofundar algumas questões, ou, talvez mais relevante, podem querer infirmar a conclusão a que o juiz chegou de que lhe era possível decidir. Essa é, pelo menos, uma oportunidade relevante cerceada. E não pode presumir-se que, mesmo sendo exercida, a decisão seria a mesma. Pela simples razão de que não foi exercida. 
5. Referimo-nos até agora à dispensa de audiência prévia prevista no artigo 593.º, n.º 1, que é a hipótese dos autos, dispensa que cabe apenas ao juiz sem que esteja adstrito a ouvir as partes (nos casos a que se aplica, que este o não é).
As razões de economia processual aventadas nos autos, de exaustão de razões, de pronúncia integral sobre todas as matérias, podem conduzir à não realização da audiência prévia. Mas não nestes termos, antes nos que a adequação formal permite – artigo 547.º do CPC - ou, meramente, mediante acordo das partes, para tal consultadas previamente, nos termos do artigo 3.º, n.º 3, do CPC.
6. Cremos ser esta a jurisprudência unânime deste Tribunal de Relação de que são exemplos os acórdãos de 8 de Fevereiro de 2018, processo 3054-17.7T8LSB-A.L1-6 (CRISTINA NEVES, que integra este Coletivo), de 22 de Março de 2018, no processo 1920/14.0YYLSB-A.L1-6 (TERESA SOARES), de 20 de Dezembro de 2018, processo 11749/17.9T8LSB.L1-7 (LUÍS ESPÍRITO SANTO), de 9 e 30 de Maio de 2019, nos processos 8764/16.3T8LSB.L1-8 E 4952/17.3T8LSB.L1-8 (ISOLETA COSTA), 6 de Junho de 2019, no processo 21172/16.7T8LSB.L1-2 (LAURINDA GEMAS).
No mesmo sentido se pronuncia o Professor Miguel Teixeira de Sousa (em https://blogippc.blogspot.com/search?q=%22Nas+a%C3%A7%C3%B5es+que+hajam+de+prosseguir%22, consultado em 2 de Julho de 2019).
  7. A prolação do saneador sentença sem a realização de audiência prévia, consubstancia-se assim na omissão de um acto que a lei impõe, com influência na decisão da causa em termos que já cremos ter explicitado, enquadrável na previsão do artigo 195.º, n.º 1, do CPC.
Nada obsta, porém, a que a mesma seja invocada em sede de recurso, em caso, como o que está em análise, em que é o conteúdo do acto subsequente que “revela” a omissão. Dizendo de outro modo, a omissão não se consuma pelo acto de dispensa da audiência e omissão da sua realização, antes se verifica face ao conteúdo da decisão de mérito que desvela a omissão por impor a realização da audiência prévia.
Desse modo, a reação adequada é a do recurso da sentença.
É o que defende o Professor Teixeira de Sousa no texto citado e o acórdão desta Relação supra indicado proferido no processo 8764/16.3T8LSB.L1-8. 
Sobre a questão o Supremo Tribunal de Justiça em acórdão de 23 de Junho de 2016, proferido no processo 1937/15.8T8BCL.S1 (ABRANTES GERALDES) é lapidar:
É usual afirmar-se que a verificação de alguma nulidade processual deve ser objecto de arguição, reservando-se o recurso para o despacho que sobre a mesma incidir.
Sendo esta a solução ajustada à generalidade das nulidades processuais, a mesma revela-se, contudo, inadequada quando nos confrontamos com situações em que é o próprio juiz que, ao proferir a decisão (in casu, o despacho saneador), omitiu uma formalidade de cumprimento obrigatório, como ocorre com a falta de convocação da audiência prévia a fim de assegurar o contraditório.
Em tais circunstâncias, depara-se-nos uma nulidade processual traduzida na omissão de um acto que a lei prescreve, mas que se comunica ao despacho saneador, de modo que a reacção da parte vencida passa pela interposição de recurso da decisão proferida em cujos fundamentos se integre a arguição da nulidade da decisão por excesso de pronúncia, nos termos do art. 615º, nº 1, al. d), in fine, do CPC.
 De tudo se conclui verificar-se nulidade do saneador sentença proferido nos autos por omissão de acto que a lei prescreve.
8. Fica prejudicada a apreciação das demais questões suscitadas no recurso relacionadas com o mérito dos embargos.
V) DECISÃO
Pelo exposto, ACORDAM em julgar procedente o recurso e, em consequência, anular a sentença recorrida, prosseguindo os autos seus termos.
Custas pela Recorrida – artigo 527.º, n.º 1 e 2, do CPC.
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Lisboa, 11 de Julho de 2019
Ana de Azeredo Coelho
Eduardo Petersen Silva
Cristina Neves