Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2271/20.7T8BRR.L1-2
Relator: PAULO FERNANDES DA SILVA
Descritores: DIVÓRCIO
SEPARAÇÃO DE FACTO
PRAZO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/28/2022
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I. O divórcio em razão da separação de facto pressupõe:
- A inexistência de comunhão de vida entre os cônjuges durante um ano seguido (elemento objetivo);
- A intenção, de ambos ou de um dos cônjuges, durante tal lapso de tempo, em não restabelecer a comunhão (elemento subjetivo).

II. Naquele prazo de um ano inclui-se o lapso de tempo decorrido até ao final da audiência de discussão e julgamento.

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 2.ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa


RELATÓRIO.


Nesta ação de divórcio sem consentimento, em que é A. B… e é R. L…, em 26.10.2020 o A. pediu que o casamento celebrado entre ambos fosse dissolvido por divórcio.

Frustrada a tentativa de conciliação, a R. contestou, proferiu-se despacho saneador/condensação e em 18.11.2021 realizou-se a audiência de discussão e julgamento, após o que o Tribunal recorrido proferiu sentença nos seguintes termos:
«(…) decide-se julgar a presente ação procedente, por provada, e em consequência, decreta-se o divórcio entre autor e ré, assim se dissolvendo o casamento entre ambos celebrado».

Inconformada com tal decisão, dela recorreu a R., apresentando as seguintes conclusões:
«29º.-A Recorrente, Ré, contestou o pedido e opõe-se desde início à sua procedência, por o mesmo não corresponder à sua vontade nem aos pressupostos legais exigidos.
30º.-A decisão recorrida dá procedência ao pedido em violação da lei substantiva, designadamente, do art. 1781º, alínea a), do Código Civil (na redação introduzida pela Lei nº 61/2008, de 31 de outubro).
31º.-Foi alegado e assim consta da sentença que o pedido fundamentava-se na violação dos deveres de respeito, cooperação, assistência e na separação de facto desde 2019.
32º.-A decisão recorrida por falta de prova cedo manifestou que improcedia o pedido com fundamento em quaisquer outros factos que, independentemente da culpa dos cônjuges, mostrem a rutura definitiva do casamento, cfr. (art. 1781º, al.d) do Código Civil).
33º.-Transcreve-se da decisão recorrida: «O autor peticiona o seu divórcio por estes dois fundamentos. Relativamente ao fundamento constante da al. d) da mencionada disposição legal, temos que, face à factualidade provada, é manifesto que o mesmo não resulta preenchido, pelo que, e sem necessidade de outras considerações, improcede o pedido relativamente a tal fundamento.»
34º.-Quanto ao fundamento da separação de facto a decisão recorrida é motivada de direito pela interpretação de que o período de separação de facto referido inclui o tempo decorrido desde a data da propositura da ação até ao encerramento da audiência final.
35º.-A Recorrente não se conforma com tal interpretação.
36º.-Da alegada separação de facto em dezembro de 2019, à petição apresentada à instância com data de 26/10/2020, não decorreu o período de um ano para que se pudesse com a verificação do decurso do mesmo aferir objetiva e rigorosamente a inexistência de comunhão de vida entre os cônjuges e o propósito de não restabelecer essa comunhão.
37º.-Do despacho saneador dos autos consta como tema da prova único, cfr. se transcreve em seguida: «O tema da prova consiste em saber: Do relacionamento entre autor e ré até Dezembro de 2019, designadamente, no que respeita à contribuição para as despesas domésticas.».
38º.-A duração da separação de facto não era sequer tema da prova para a audiência de julgamento.
39º.-A Ré, aqui Recorrente, não percebeu em nenhum momento dos autos sequer a relevância de se pronunciar sobre a situação da separação de facto para além do que constava do pedido contra si.
40º.-A causa objectiva de divórcio com base na separação de facto tem de verificar-se no momento em que é instaurada a acção, ou seja, a separação de facto por um ano consecutivo tem de estar verificada nessa altura, sendo irrelevante que se senha a verificar posteriormente, nomeadamente na fase de julgamento.
41º.-A haver alguma tendência judicial (entenda-se tendência valorativa para além do texto legal literalmente expresso pelo legislador) quanto às pretensões em causa em litígio, designadamente, a favor ou contra o divórcio, deveria prevalecer o valor constitucional e de ius cogens, desde logo, art. 36.º, n.º 2 da CRP, art. 16.º, n.º 1 e 3 da Declaração Universal dos Direitos do Homem, da família.
Nestes termos e nos demais de Direito com o douto suprimento de V. Exas, Venerandos Juízes Desembargadores do Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, ao presente Recurso depois de devidamente autuado deve ser concedido provimento e em consequência a decisão recorrida deve ser revogada e substituída por outra que se conforme à norma legal, designadamente, ao art. 1781º, alínea a), do Código Civil (na redação introduzida pela Lei nº 61/2008, de 31 de outubro) e aos valores constitucionais em causa.
ASSIM SE FAZENDO A COSTUMADA JUSTIÇA!»

O A. não contra-alegou.

Colhidos os vistos, cumpre ora apreciar a decidir.

II.

OBJETO DO RECURSO.

Atento o disposto nos artigos 608.º, n.º 2, 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2, todos do CPCivil, as conclusões do recorrente delimitam o objeto do recurso, sem prejuízo do conhecimento de questões que devam oficiosamente ser apreciadas e decididas por este Tribunal da Relação.
Nestes termos, atentas as conclusões deduzidas pela Recorrente, no presente recurso está em causa tão-só apreciar e decidir se deve ser decretado o divórcio das partes com fundamento na sua separação de facto por um ano consecutivo.
Assim.

III.

FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO.

O Tribunal recorrido deu como provados os seguintes factos:
«1.Autora e réu casaram um com o outro no dia 15 de Fevereiro de 2003 na Conservatória do Registo Civil …, sob o regime da comunhão de adquiridos – cf. fls. 7 verso e 8.
2.N… nasceu no dia 15 de Dezembro de 2004, na freguesia do…, concelho …, e é filha de B… e de L… – cf. fls. 8 verso e 9.
3.Autor e ré, à data do encerramento da audiência final, encontravam-se separados um do outro há cerca de dois anos, o que ocorreu na sequência da saída do autor da casa de morada de família, no Luxemburgo, e do seu regresso a Portugal onde se mantém.
4.O autor não pretende reatar a vida em comum com a ré».

IV.

FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO.

Sob a epígrafe “Ruptura do casamento”, o artigo 1781.º do CCivil, na redação da Lei n.º 61/2008, de 31.10, indica quatro fundamentos para tal rutura.
No caso vertente, está em causa tão-só o primeiro dos indicados fundamentos
Nos termos da alínea a) do referido artigo 1781.º do CCivil, constitui «fundamento do divórcio sem consentimento de um dos cônjuges a separação de facto por um ano consecutivo».
Segundo o artigo 1782.º, n.º 1, do CCivil, «entende-se que há separação de facto, para efeitos da alínea a) do artigo anterior, quando não existe comunhão de vida entre os cônjuges e há da parte de ambos, ou de um deles, o propósito de não a restabelecer».

Nestes termos, o divórcio em razão da separação de facto pressupõe:
· A inexistência de comunhão de vida entre os cônjuges durante um ano seguido (elemento objetivo);
· A intenção, de ambos ou de um dos cônjuges, durante tal lapso de tempo, em não restabelecer a comunhão (elemento subjetivo).
Como refere Guilherme de Oliveira, Manual de Direito da Família, edição de 2020, página 277, «[e]xige-se, em primeiro lugar, a separação de facto dos cônjuges, integrada por dois elementos, um objetivo e outro subjetivo. O elemento objetivo é a falta de vida em comum dos cônjuges, que passam a ter residências diferentes» sendo que a esse elemento «há de (…) acrescer um elemento subjetivo, que lhe dá forma e sentido. Tal elemento subjetivo consiste numa disposição interior ou, como diz o art. 1782.º, num “propósito”, da parte de ambos os cônjuges ou de um deles, de não restabelecer a comunhão de vida matrimonial».
«É necessário que o propósito de não restabelecer a comunhão exista desde a data em que a separação teve início, e que se mantenha durante um ano consecutivo».
Sendo aquele o termo inicial de contagem do prazo de um ano ininterrupto de comunhão matrimonial, é, contudo, controverso o respetivo termo final.
Para uns, o prazo de um ano deve necessariamente ocorrer à data da propositura da ação de divórcio sem consentimento.
Para outros, é tão-só necessário que tal prazo de um ano ocorra à data da produção de prova realizada na audiência de discussão e julgamento.         
A favor daquele primeiro entendimento invoca-se, no essencial, o disposto no artigo 611.º, n.º 1, do CPCivil, referindo-se que «sendo o decurso do prazo de um ano elemento substantivo do direito, potestativo, de obter o divórcio com base na separação de facto dos cônjuges, tal prazo tem de estar decorrido no momento da propositura da ação (…)», assim estando salvaguardado «o respeito pela intenção do legislador, que entendeu ser necessário um mínimo de tempo decorrido como demonstrativo da verificação da rutura da vida em comum, evitando-se resultados indesejáveis, como, no limite, autorizar qualquer dos cônjuges a propor a ação de divórcio, com fundamento na separação de facto, no dia seguinte à ocorrência da separação, contando com a demora do processo para perfazer o ano exigido na lei» - conforme acórdão desta Relação de 17.12.2015, relatado por Jorge Leal, proc. 425/13.1TMLSB.L1-2. Sufragando a mesma posição, vejam-se, entre outros, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 24.10.2006, proc. 06B2898, e 03.10.2013, proc. 2610/10.9TMPRT.P1.S1, da Relação de Lisboa de 10.02.2011, proc. 568/09.6TBMFR.L1-2, 15.05.2012, proc. 9139/09.6TCLRS.L1-7, 22.10.2013, proc. 16/11.1TBHRT.L1-7, 14.04.2016, proc. 273/14.1TBSCR.L1-2, 21.12.2016, proc. 14440/15.7T8LRS.L1-6, 21.09.2017, proc. 445/13.6TBPTS-L2-2, 13.09.2018, proc. 73/16.4T8CSC-2, relatado pelo aqui 1.º Adjunto, e 21.02.2019, proc. 3/18.9T8SXL.L1.2, relatado igualmente pelo aqui 1.º Adjunto, da Relação do Porto de 25.01.2001, proc. 0031753, 25.05.2006, proc. 0632604, 14.06.2010, proc. 318/09.7TBCHV.P1, 15.03.2011, proc. 5496/09.2TBVFR.P1, e 29.03.2011, proc. 1506/09.1TB0A2.P1, da Relação de Guimarães de 11.09.2012, proc. 250/10.1TBMBRG.G1, e 25.11.2013, proc. 320/12.1TBVLN.G1, e da Relação de Évora de 21.03.2013, proc. 292/10.7T2SNS.E1,todos publicados in www.dgsi.pt. 

Com o devido respeito por tal entendimento, sufraga-se, contudo, posição diversa daquele, defendendo-se, pois, que o prazo de «um ano consecutivo» em causa pode incluir o lapso de tempo decorrido até ao final da audiência de discussão e julgamento, sendo este, assim, o termo final daquele prazoneste sentido, vejam-se, entre outros, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 03.11.2005, proc. 05B2266, 06.03.2007, proc. 07A297, e 23.02.2021, proc. 3069/19.0T8VNG.P1.S1, da Relação de Lisboa de 15.05.2012, proc. 1017/09.5TMLSB.L1-7, 373/20.9T8ACB.C1, da Relação do Porto de 18.11.2021, proc. 7805/20.4T8PRT.P1, da Relação de Coimbra de 18.01.2022, proc. 373/20.9T8ACB.C1, e da Relação de Évora de 14.11.2013, proc. 550/10.0TMSTB.E1, e 27.02.2020, proc. 1055/19.0T8STR.E1, todos igualmente publicados in www.dgsi.pt.

O entendimento aqui sufragado afigura-se ser aquele que melhor corresponde ao princípio da atualidade da decisão consagrado no artigo 611.º, n.º 1, do CPCivil, o qual dispõe que «(….) deve a sentença tomar em consideração os factos constitutivos, modificativos ou extintivos do direito que se produzam posteriormente à propositura da ação, de modo que a decisão corresponda à situação existente no momento do encerramento da discussão».

Tal entendimento não constitui no caso uma alteração da causa de pedir, à revelia das normas que regem a modificação objetiva da instância, nomeadamente dos artigos 264.º e 265.º, ambos do CPCivil, pois o A., na sua petição inicial, já alegava o abandono do lar conjugal como aspeto da causa de pedir complexa da ação de divórcio, conforme artigo 7.º da petição inicial.

Como se refere no aludido acórdão do Supremo Tribunal de 23.02.2021, proc. 3069/19.0T8VNG.P1.S1, relatado por Maria João Vaz Tomé, «[o] art. 611.º, n.º 1, do CPC, permite, com algumas restrições, que na sentença sejam tomados em consideração factos que se produzam depois da propositura da ação. (…) “Acresce que hoje tem sido mais aberto ou flexível o entendimento sobre a configuração da causa de pedir e os parâmetros do seu ulterior completamento no decurso da instância, nos termos conjugados dos artigos 5.°, n.° 1 e 2, alíneas a) e b), 264.° e 265.°, 588.°, 590.°, n.° 4 a 6, e 611.°, n.° 1, do CPC”».
«(…) Sobre a referência temporal da falta do decurso do prazo de um ano consecutivo de separação de facto ao tempo da propositura da ação prevalece o princípio da atualidade da decisão consagrado no art. 611.º do CPC (…). Está em causa como que uma espécie de “utilidade superveniente da lide”».
Como se menciona no referido acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 06.03.2007, processo 07A297, relatado por Sebastião Póvoas, «[n]ão faria sentido, seria penoso para as partes e revelaria um notório desajustamento social e um excessivo apego a literalismos, vir agora dizer a um casal separado de facto há mais de» dois anos «(…) que deveriam intentar nova acção, com custas e desgaste inerentes para demonstrar o que, aqui, está exuberantemente patente».

É certo que in casu o A., aqui Recorrido, não apresentou articulado superveniente.

Contudo, como referem Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, volume 2.º, edição de 2019, «(…) [p]erante o atual art. 588, a ocorrência do facto constitutivo (igual ou diverso do invocado na petição inicial) deve ser alegada e provada em articulado superveniente; mas o simples decurso dum período que falte para se completar um prazo sem o qual a ação não possa proceder talvez dispense a invocação em articulado superveniente».

Afigura-se que o entendimento aqui seguido corresponde ao atual estado do direito de família português, designadamente das tendências legalmente consagradas em matérias de casamento e divórcio, alicerçadas em relações efetivas, sócio-afetivas, em liberdade de ser e estar. 

Recorrendo mais uma vez ao referido acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23.02.2021, «[e]ntre os sistemas de divórcio-sanção, divórcio-remédio e divórcio pura constatação da ruptura do casamento, o legislador optou claramente pelo último».
«O princípio da liberdade de escolha dos cônjuges postula que ninguém deve permanecer casado contra sua vontade. A invocação da rutura definitiva da vida em comum é fundamento suficiente para que o divórcio seja decretado. A metamorfose do sistema de divórcio em vista da auto-realização insere-se num ethos de autonomia pessoal no domínio das relações de intimidade. “A estabilidade da família está nas mãos dos cônjuges”, não podendo o Direito garanti-la contra a vontade dos interessados. Na verdade, o significado jurídico do casamento mudou, especialmente neste século. O reconhecimento progressivo da individualidade humana resultou numa evolução do matrimónio de um estatuto virtualmente imutável para um facilmente dissolúvel».
«O legislador adoptou um modelo individualístico-associativo, baseado na plena igualdade dos cônjuges, um modelo que valoriza essencialmente a dimensão afetiva enquanto agregadora e legitimadora da sociedade conjugal, enquanto lugar de manifestação e de desenvolvimento da personalidade de cada um dos cônjuges e, consequentemente, mais exposto à eclosão de conflitos».
Conforme disposto no artigo 5.º, n.º 3, do CPCivil, «o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito», pelo que o entendimento sufragado na decisão recorrida quanto ao referido prazo de um ano não depende de alegação das partes, as quais exerceram o contraditório nos autos e não podiam deixar de saber da apontada controversa jurisprudencial com mais de década e meia.    
Ao contrário da posição da Recorrente, o entendimento sufragado não ofende o ius cogens ou valores constitucionalmente consagrados, designadamente em matéria de direito da família, sendo que nesse domínio a Recorrente limita-se à invocação de normas tão-só na última das conclusões do seu recurso e sem que minimamente contextualize a sua invocação. 
   
In casu.

A presente ação foi proposta em 26.10.2020.
Na sua petição inicial o A. alegou que a separação de facto ocorreu em dezembro de 2019.
Na sequência de julgamento realizado em 18.11.2021, foi dado como provado que A. e R. encontram-se separados de facto desde fins de 2019 e que o A. não pretende reatar a vida em comum com a R.
Ou seja, na situação vertente a separação de facto entre os cônjuges havia perdurado ininterruptamente durante mais de um ano à data do julgamento e o A., aqui Recorrido, tem o propósito de não restabelecer a comunhão conjugal com a R., ora Recorrente.

Em consequência, em função do exposto, procede o pretendido divórcio, conforme decisão recorrida que, assim, importa manter.

V.DECISÃO
  
Pelo exposto, julga-se improcedente o presente recurso e, em consequência, mantém-se a decisão recorrida nos seus precisos termos.  
Custas pela Recorrente – artigo 527.º, n.ºs 1 e 2, do CPC.



Lisboa, 28 de abril de 2022



Paulo Fernandes da Silva (relator)
Inês Moura (2.ª adjunta)
Pedro Martins [1.º adjunto, com o seguinte voto de vencido:


Os direitos que as partes pretendem ver reconhecidos em tribunal têm que ter os seus pressupostos preenchidos na data da propositura de uma acção. Ou seja, ninguém pode meter uma acção e esperar que os factos constitutivos do seu direito se venham a verificar no decurso da acção (como se a demora processual fosse um facto constitutivo do direito: neste sentido, ac. do STJ de 30/04/1997, BMJ 466, páginas 472 e seg, lembrado por Nuno Salter Cid, obra e local citados abaixo).
Isto tem aplicação, por inteiro, no caso dos divórcios, em que quase toda a doutrina e a maior parte da jurisprudência sempre defendeu que não se podia intentar uma acção de divórcio litigioso baseada na separação de facto por mais de um ano (chegou a ser de 6 anos), sem que esse prazo de um ano já estivesse verificado na data da propositura da acção (hoje a questão põe-se em relação ao divórcio sem consentimento, por separação de facto por mais de um ano: arts. 1781/-a e 1782, ambos do CC).
Dizer-se, simplesmente, como a tese contrária faz (por exemplo, no ac. do STJ de 03/10/2003, proc. 2610/10.9TMPRT.P1.S1), que o decurso do tempo não é, no caso, um facto constitutivo, mas um elemento de prova da cessação da comunhão, é uma simples afirmação, que tinha de ser demonstrada por aqueles que a fazem, porque vai contra o que sempre se entendeu por facto constitutivo de um direito.
Por isso, se o juiz tiver oportunidade para proferir um despacho liminar, deve indeferir liminarmente uma petição inicial de divórcio baseada numa separação de facto que ainda não tem um ano (art. 590/1 do CPC) e nenhuma norma lhe dá o direito de deixar a acção seguir, ou de atrasar o processo, ou de aceitar o atraso do processo com manobras dilatórias, à espera que, até ao encerramento da audiência final, tenha decorrido o prazo de um ano.
A tese seguida pelo acórdão, traduz-se em aceitar que o autor possa propor uma acção dizendo-se titular de um direito que o juiz sabe que ele não tem e que, apesar disso, a deixe seguir à espera que o processo se atrase o tempo suficiente para que esse direito venha a nascer.
E se se seguir esta posição nas acções de divórcio, então tem, por uma questão de coerência, que se passar a aceitar que os autores possam começar a intentar acções relativas a outros direitos inexistentes e que poderão nunca vir a adquirir se o processo correr normalmente.
A posição que se segue não tem nada, pois, a ver com posições a favor ou contra o divórcio, mas com a necessidade de um mínimo de rigor jurídico, por mais que se diga que ela é incompreensível socialmente (a mudança cabe ao legislador: pode alterar os requisitos do divórcio ou pode alterar o regime processual, admitindo que sejam feitos pedidos sem estar completado o prazo: como exemplo, veja-se o regime que resulta dos artigos 237, 238 e 246 do CC francês e 1126, 1126-1 e 472 do CPC francês, relativos ao divórcio por alteração definitiva da relação conjugal derivada da separação de facto por mais de um ano aquando do pedido de divórcio) ou que será incompreensível ou inaceitável pelo casal que for alvo dela, o que aliás não é correcto, pois que estas questões só se colocam quando um dos cônjuges não aceita o divórcio e, por isso, ao menos para um deles a decisão é perfeitamente compreensível (dito de outro modo, o que se defende na tese que este voto de vencido segue só tem sentido no pressuposto que os cônjuges não estão de acordo com o divórcio).
Com muitos outros argumentos e outro desenvolvimento, veja-se Nuno de Salter Cid, Desentendimentos conjugais e divergências jurisprudenciais, Lex Familiae, RPDF, ano 4, n.º 7, 2007, págs. 18 a 23, que relembra muitos autores e inúmeros acórdãos que vão todos neste sentido, indicando e criticando acórdãos que vão em sentido contrário, bem como o aproveitamento incorrecto que eles faziam dos então artigos 264, 663 e 664 do CPC (hoje artigos 5 e 661), também neste ponto com várias indicações de doutrina no mesmo sentido.
Apenas por exemplo, vejam-se os seguintes autores, todos citados por Nuno de Salter Cid:
Alberto dos Reis: “Aqui temos um caso nítido em que a lei substancial obsta a que o facto superveniente [constitutivo] exerça influência sobre o julgamento a proferir. […]; [….] tanto pela letra como pelo espírito da disposição é óbvio que os requisitos requeridos pelo artigo hão-de verificar-se no momento em que se apresenta em tribunal o pedido de divórcio […] Logo, se não existirem nesse momento, o juiz tem de indeferir o pedido, pouco importando que já existem à data da decisão.” (CPC anotado, vol. V, Coimbra Editora, reimpressão de 1984, pág. 191; os [] são de Nuno de Salter Cid).
Pereira Coelho/Guilherme de Oliveira, Divórcio e separação…, pp. 36-38, e, ultimamente, in Curso…, 4.º ed., pp. 638-641, numa ‘síntese’ de Nuno Salter Cid [Sobre a separação de facto como fundamento do divórcio, Textos de direito da família para Francisco Pereira Coelho, Imprensa da Universidade de Coimbra, Fev2016, páginas 31 a 77 – “recorri constantemente à prosa sugestiva de Pereira Coelho, a quem pertencem as expressões colocadas entre aspas no texto e na nota anterior” - DOI: http://dx.doi.org/10.14195/978-989-26-1113-6_2 [onde são actualizadas as referências à jurisprudência, com muitos outros acórdãos no mesmo sentido até 2013]:
Na sequência da Reforma, quanto ao divórcio, Pereira Coelho explicou com renovada clareza que ao «elemento objectivo», normalmente traduzido na falta de vida em comum, «que é a matéria da separação de facto, há-de (…) acrescer um elemento subjectivo, que anima essa matéria e lhe dá forma e sentido». O legislador, reconhecendo o carácter equívoco ou nebuloso que a separação de facto por vezes assume, em virtude da sua «grande plasticidade», ciente de que tudo pode depender das circunstâncias concretas e de que «há uma multiplicidade de situações» possíveis, terá querido dar ao intérprete uma noção, a um tempo suficientemente vaga e precisa, com base na qual este pudesse, em consciência e com base em factos ou circunstâncias a apurar, concluir que o casamento sucumbiu, perdeu a sua essência, e que por isso o divórcio é justificado. O prazo relevante para o efeito tem a função de ser um elemento de segurança capaz de tornar consistente aquela conclusão e vã ou muito remota a esperança de recuperação; e, por isso, ou também por isso, à data em que o divórcio for requerido com base no fundamento em apreço, tem de estar concluído sem interrupção, embora não seja de o considerar interrompido por os cônjuges se reunirem para acerto de assuntos do interesse de ambos e/ou dos filhos. Eis o sentido e alcance que, com um ou outro matiz, a melhor doutrina atribuiu à letra da lei, em consonância com o entendimento também exposto em diversos acórdãos.
Em Julho de 2016, Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, Direito da Família, Vol. I, Imprensa da Univ. de Coimbra, publicaram posição expressa nesse sentido, páginas 727-728.
Miguel Teixeira de Sousa: “esse prazo (…) deve estar completamente decorrido à data da propositura da acção de divórcio, porque sem o decurso daquele prazo a separação de facto não pode ser invocada como causa do divórcio (ac. RP de 11/10/1979, BMJ. 291/538)” (O Regime Jurídico do Divórcio, Almedina, 1991, pág. 84);
Abel Pereira Delgado, O Divórcio, Petrony, 1980, pág. 69 (é um prazo de carácter substantivo, pelo que há-de verificar-se à data do pedido => acórdão do STJ de 1/3/1979, publicado no BMJ. 285/324);
Pais do Amaral, Do Casamento ao Divórcio, Cosmos, Direito, 1997, pág. 96 (: o prazo deve estar completo no momento da propositura da acção, por se tratar de um elemento constitutivo do direito ao divórcio); e
Ferreira Pinto, Causas do Divórcio, Almedina, 1980, pág. 122.
Ainda no mesmo sentido:
Rute Teixeira Pedro, anotação 4 ao art. 1781, no CC anotado, vol, II, anotação 4, Almedina, 2017, pág. 682; e
Eva Dias Costa, CC anotado, Direito da Família, Coord, de Clara Sottomayor, Almedina, 2020, pág. 543,
No mesmo sentido deste voto vai o meu voto de vencido no ac. do TRL de 10 /09/2020, processo 25874/18.5T8LSB.L1-2, precisamente numa acção que não era de divórcio. E também os acórdãos de 13/09/2018, proc. 73/16.4T8CSC-2  e de 21/02/2019, proc. 3/18.9T8SXL.L1-2, relatados por mim.
Em consequência, revogaria a decisão recorrida pois que a separação de facto não existia há um ano à data da acção de divórcio].