Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
9/11.9TVLSB-C.L1-2
Relator: PEDRO MARTINS
Descritores: PRETERIÇÃO DO TRIBUNAL ARBITRAL
CLÁUSULA COMPROMISSÓRIA
COMPETÊNCIA
LITISCONSÓRCIO NECESSÁRIO
INCOMPETÊNCIA DO TRIBUNAL ARBITRAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/15/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I. “Os tribunais judiciais só devem rejeitar a excepção dilatória de preterição de tribunal arbitral, deduzida por uma das partes, determinando o prosseguimento do processo perante a jurisdição estadual, quando seja manifesto” “que a convenção invocada é nula ou ineficaz” ou inaplicável.
II. Quando os réus estão numa situação de litisconsórcio necessário a excepção de preterição de tribunal arbitral deduzida por um deles improcede. Mas não é esse o caso dos autos.
(da responsabilidade do Relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo assinados:

“A”, SA, intentou a presente acção contra “B”, “C” e “D”, SA, pedindo a condenação das rés a) a cessar imediatamente a utilização de quaisquer cópias da base de dados ... de que é titular a autora, e a eliminar todas as cópias que tenha em seu poder, assim como quaisquer documentos que tenham resultado da análise da mesma, e b) solidariamente, a pagar à autora uma indemnização no valor de 2.044.142€, correspondente às perdas e danos efectivamente sofridos pela autora em resultado da violação dos seus direitos de propriedade intelectual (direito de autor e segredos de negócio), montante ao qual deve acrescer o dos danos que a autora venha a sofrer e os encargos que venha a suportar em resultado do mesmo comportamento ilícito, ainda por liquidar; e, subsidiariamente a este pedido, c) a pagar à autora, solidariamente, uma indemnização com base na equidade, no valor mínimo de 1.044.142€, correspondente ao montante das remunerações que a autora auferiria caso licenciasse os direitos em causa, acrescido dos encargos com a protecção dos seus direitos e investigação e cessação da conduta lesiva das rés, nos termos do n.º 5 do art. 211.º do Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos e do n.º 5 do artigo 338.º-L do Código da Propriedade Industrial, montante ao qual acrescerão os encargos a suportar pela autora até final do presente processo.
A autora, para o efeito e entre o mais, alega a existência de dois contratos, um de 2005, consolidado em 2006, e outro de Novembro de 2009, e situa o início da actuação das rés em Julho de 2009 (veja-se o que-sito 37 da base instrutória).
A “B” (= 1ª ré) e a “C” (= 2ª ré) excepcionaram a incompetência relativa do tribunal, por preterição de tribunal arbitral.
Alegaram para o efeito que autora e rés celebraram entre si dois contratos de prestação de serviços, um primeiro datado de 13/12/2006, no qual outorgaram as 1ª e 2ª rés, e um segundo, datado de 09/11/2009, no qual outorgou apenas a 1ª ré; foi ao abrigo e em execução destes contratos que estas rés acederam aos dados que a autora alega configurarem programas de computador ou bases de dados protegidos e que teriam sido cedidos pelas 1ª e 2ª rés à 3ª ré, com isso causando danos à autora, por cuja reparação estas rés seriam responsáveis; a apreciação destes pedidos depende, além do mais, da interpretação e aplicação do clausulado destes contratos; sucede que o contrato de 2006 contém uma cláusula, 21.2, estabelecendo que “todos os litígios, controvérsias ou pretensões decorrentes ou relacionados com o presente contrato ou com alguma junção de carteiras, incluindo os relativos à violação, cessação, cumprimento, interpretação ou invalidade destes que não sejam resolvidos pelas partes ao abrigo da cláusula 21.1, deverão ser resolvidos, de acordo com as Regras de Arbitragem da Câmara de Comércio Internacional, por três árbitros nomeados de acordo com aquelas Regras”; trata-se de um pacto atributivo de competência exclusiva ao Centro de Arbitragem Institucionalizada da CCI, para conhecer de todos os litígios emergentes da execução ou violação do contrato que liga autora e 1ª e 2ª rés, afastando a competência que de outro modo caberia ao tribunal judicial para se pronunciar sobre esta matéria; a violação desse pacto conduz, nos termos do disposto no art. 108.º do CPC, à incompetência relativa deste tribunal, determinando, nesta parte, a absolvição da instância, devendo a acção prosseguir unicamente para apreciação das matérias relacionadas com o contrato de 2009 que, por não conter idêntica cláusula de arbitragem, cai sob a alçada do tribunal judicial; contrato esse no qual intervêm apenas a autora e a 1ª ré, única ré contra a qual a acção aqui em causa deve, pois, prosseguir. Ou seja, a 2ª ré deveria ser absolvida da instância, na totalidade, e a 1ª ré deveria sê-lo na parte relativa à matéria relacionada com o contrato de 2006. E não se diga que está aqui em causa a responsabilidade por facto ilícito, pois as rés agiram sempre no quadro das relações contratuais estabelecidas com a autora, tendo sido nesse âmbito que acederam às informações e dados que a autora considera protegidos, reconduzindo-se a matéria em discussão à interpretação e execução dos contratos entre ambas celebrados.
A autora replicou, quanto a esta excepção, dizendo que o pedido de indemnização formulado pela autora funda-se em duas causas de pedir distintas que correspondem, no essencial, à violação de direitos absolutos de que a autora é titular, e não à violação de quaisquer disposições contratuais constantes do contrato celebrado em 2006; tal relação contratual é apenas o contexto, o pano de fundo, em que ocorreu a violação dos direitos da autora; a existência de relações contratuais entre as partes não destitui a autora dos direitos que a lei lhe confere quanto à respectiva propriedade intelectual; os contratos celebrados entre as partes não tinham por objecto a regulação da protecção da propriedade intelectual da autora; tal matéria está fora do objecto de tais contratos; se assim não se entender, estar-se-á, quando muito, perante a questão do concurso entre responsabilidade extracontratual e contratual; ora, a posição maioritária da doutrina e jurisprudência nacionais (cfr., por todos, António Pinto Monteiro, Cláusulas Limitativas e de Ex-clusão de Responsabilidade Civil, Almedina, 2003, págs. 430-431) admite que o lesado tem direito a optar pelo regime de responsabilidade que entenda ser mais adequado a sustentar a sua pretensão. Ora, a autora optou por utilizar como fundamento da sua pretensão o regime da responsabilidade extracontratual, regime esse que, na já referida ausência de regulação contratual específica, era o que melhor se adequava ao presente caso. É essa a orientação da doutrina, que refere claramente verificar-se “um concurso de títulos de aquisição de pretensões, de tal modo que o autor pode invocar qualquer deles” (Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, II - Direito das Obrigações, Tomo III, 2010, pág. 399). Nessa medida, o foro próprio para apreciação de tal pretensão é o que for competente para julgamento da responsabilidade extracontratual. Sendo manifestamente inaplicável a convenção de arbitragem constante de um (e apenas um, aliás) dos contratos celebrados entre as partes, pois que respeita exclusivamente aos litígios decorrentes do cumprimento ou incumprimento de obrigações constantes desse específico contrato, não abrangendo questões de responsabilidade extracontratual. Constate-se, aliás, o absurdo que decorreria da remessa para tribunal arbitral de parte da pretensão da autora, que seria julgada parcelarmente em cada jurisdição (comum e arbitral), com probabilidade de decisões incoerentes e contraditórias. A única solução razoável é a de considerar competentes os tribunais judiciais para o julgamento desta pretensão indemnizatória, fundada na violação de direitos absolutos. É, nestes termos, improcedente a invocada excepção.
Entretanto, a autora desistiu do pedido contra a 3ª ré.
No despacho saneador foi julgada improcedente a excepção da preterição de tribunal arbitral, no essencial com base nas seguintes considerações:
“[…] parece-nos que a questão a decidir não passa por saber se a responsabilidade em causa é contratual ou extracontratual.
Aliás, tendo a autora desistido do pedido relativamente à 3ª ré, parece-nos mais claro estar em causa relações contratuais estabelecidas entre a autora e as rés.
O facto de se tratar de direitos absolutos não invalida tal consideração. A propriedade, o direito de autor, o segredo comercial, podem ser desrespeitados de várias formas, inclusive no âmbito contratual.
Sem embargo, há mais do que um contrato de servicing agreement a apreciar e não só aquele que contém a cláusula de arbitragem citada pelas rés.
É claro que no último servicing agreement, de 2009, não intervém a 2ª ré. Porém, tal não significa que se deva cindir as responsabilidades das duas rés, sendo uma apreciada por um tribunal arbitral e outra por um tribunal comum.
As responsabilidades das duas rés são apresentadas de forma incindível, pelo que, não havendo razão para fazer prevalecer apenas a convenção de arbitragem de 2006, considero improcedente a excepção invocada.”
A 2ª ré recorre desta decisão – para que seja revogada e substituída por outra que a absolva da instância -, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:
“1. Vem proferido despacho saneador que julgou improcedente a excepção dilatória de preterição de tribunal arbitral voluntário invocada pela 2ª ré na contestação, decisão esta que é recorrível, nos termos e para os efeitos do disposto na alínea b) do n.° 2 do art. 691.° do CPC.
2. Segundo o tribunal recorrido, as putativas responsabilidades da 2ª ré e da 1ª ré seriam “incindíveis”, razão pela qual seria de julgar improcedente a referida excepção dilatória.
3. Sucede, porém, que, e salvo o devido respeito, a decisão proferida pelo tribunal a quo não tem razão de ser à luz da cláusula arbitral existente no contrato de prestação de serviços celebrado, em 13/12/2006, entre a 2ª ré e a autora.
4. Na verdade, não existe, desde logo, uma situação de litisconsórcio passivo necessário de natureza legal, contratual ou natural que exija a intervenção da 2ª ré e da 1ª ré na presente lide, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 28.° do CPC.
5. Com efeito, o pedido indemnizatório formulado pela autora pode ser apreciado separadamente em relação à 2ª ré e à 1ª ré (a primeira numa acção arbitral e a outra nesta acção judicial) sem qualquer prejuízo para a autora, razão pela qual é manifesto que as alegadas responsabilidades da 2ª ré e da 1ª ré perante a autora - por uma putativa violação de direitos de autor - não são, ao contrário do que sustenta o tribunal recorrido, “incindíveis”.
6. Ora, a cláusula 21.2. do contrato de prestação de serviços celebrado entre a 2ª ré e a autora atribui competência exclusiva ao Centro de Arbitragem Institucionalizada da Câmara de Comércio Internacional para conhecer de todos os litígios emergentes da execução ou violação do contrato de prestação de serviços celebrado entre a 2ª ré e a autora (cfr. doc. 7, junto com a petição inicial).
7. No caso concreto, o pedido formulado pela autora contra a 2ª ré prende-se com uma alegada violação - por parte da 2ª ré - de uma putativa base de dados ou programa de computador da autora, os quais estariam protegidos pelo Direito de Autor.
8. A apreciação do pedido formulado pela autora na presente acção apenas poderá ser levada a cabo através da interpretação do contrato de prestação de serviços em causa nos autos, uma vez que foi no âmbito e através do mesmo que a 2ª ré acedeu – alegadamente - aos dados em formato electrónico que estariam protegidos pelo Direito de Autor.
9. Por conseguinte, não há a menor dúvida de que os autos incidem sobre as relações contratuais estabelecidas entre a 2ª ré e a autora, tendo, aliás, o próprio tribunal recorrido reconhecido que “parece-nos mais claro estar em causa relações contratuais estabelecidas entre a autora e as rés” (cfr. acta de audiência preliminar).
10. Deste modo, e atendendo ao facto de o contrato de prestação de serviços celebrado entre a 2ª ré e a autora dispor de uma cláusula arbitral, é evidente que o tribunal recorrido deveria ter absolvido a 2ª ré da instância, uma vez que não é competente para apreciar o litígio na parte que diz respeito à 2ª ré, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 108.°, alínea b) do art. 288.°, e alínea j) dos arts. 494.° e 495.°, todos do CPC.
11. É o que decorre, desde logo, do célebre princípio da competência da competência do tribunal arbitral (designado na doutrina alemã por Kompetenz/Kompetenz), na vertente do efeito negativo, o qual se encontra legislativamente consagrado na lei (cfr. n.° 4 do art. 21.° da antiga Lei da Arbitragem Voluntária - Lei 31/86, de 29/08 - e no art. 5.° da nova LAV, aprovada pela Lei 63/2011, de 14/12).
12. De facto, o efeito negativo do princípio da competência da competência impõe aos tribunais estaduais o dever de se absterem de decidir antecipadamente sobre a competência dos árbitros, uma vez que, existindo convenção de arbitragem, cabe ao tribunal arbitral analisar e decidir esta questão em primeiro lugar.
13. Em suma, não há a menor dúvida de que, no caso concreto, a 2ª ré deveria ter sido absolvida da instância, por força da existência de uma convenção de arbitragem entre a 2ª ré e a autora.
Normas violadas: 108.°, alínea b) do 288.°, alínea j) do 494.°, 495.º, todos do CPC e art. 5.° da Lei 63/2011, de 14/12.
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A autora não apresentou, em tempo, contra-alegações.
Questões que cumpre solucionar: se a excepção de preterição de tribunal arbitral deve proceder.
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Os factos que interessam à decisão desta questão são os que resultam do relatório que antecede.
I
Da incindibilidade da matéria
Por força de uma cláusula compromissória – que é o caso da cláusula 21.2 transcrita acima – as partes de um contrato podem cometer à decisão de árbitros litígios eventuais emergentes de uma determinada relação jurídica contratual ou extracontratual (art. 1, nºs 1 e 2, da Lei 31/86, de 29/08), pelo que, excepto se também tiverem previsto uma competência concorrente, os litígios em causa não podem ser submetidos a um tribunal estadual (arts. 494/j e 288/1e, ambos do CPC).
No caso dos autos, a decisão recorrida afastou esta consequência com base na consideração de que a matéria de que a acção trata era incindível, englobava parte que estava abrangida pela cláusula compromissória e parte que não estava. Assim, a matéria tinha que ser apreciada por um só tribunal. E como não havia razão para dar preferência à cláusula compromissória [sobre as leis que prevêem a competência dos tribunais estaduais], então o julgamento tinha que ser feito pelo tribunal estadual.
A argumentação da decisão recorrida não passa, pois, pela questão do litisconsórcio necessário: a decisão seria a mesma ainda que só existisse uma ré na causa. O argumento é o da incindibilidade da matéria (a mesma linha de argumentação, embora oposta e referindo-se antes à indivisibilidade, pode ver-se no caso referido por Manuel Botelho da Silva, Pluralidade de partes em arbitragens voluntárias, Estudos em Homenagem à Prof. Doutora Isabel Magalhães Collaço, Vol., 2, Nov2002, págs. 526 a 528: o tribunal “assenta a sua argumentação na dispensabilidade lógica da apreciação conjunta dos litígios, considerando as acções divisíveis”; no caso dos autos dir-se-ia que o tribunal assenta a sua argumentação na indispensabilidade lógica da apreciação conjunta da matéria, considerando-a incindível).
Assim, o que importa, para já, é saber se, de facto, a matéria a julgar é incindível, estando parte dela no âmbito de aplicação da cláusula compromissória e outra parte fora dele.
Questão esta que surge apenas devido à forma como as duas primeiras rés deduziram a excepção, falando em matéria relacionada com o contrato de 2006 e matéria relacionada com o contrato de 2009.
Mas a excepção de preterição do tribunal arbitral tem de ser apreciada tendo em conta o confronto entre a cláusula compromissória e a causa de pedir e o pedido formulado pela autora (mais ou menos neste sentido, veja-se João Luís Lopes dos Reis, A excepção da preterição do tribunal arbitral (voluntário), publicado na ROA.1998, pág. 1124: “para que a excepção seja apreciada e proceda, tem o réu o ónus de a alegar e provar, como resulta do art. 495.º do CPC, isto é, tem de provar que existe uma convenção de arbitragem susceptível de ser aplicada ao litígio definido pelo autor” – o sublinhado é deste acórdão), sendo que esta apenas invocava os dois contratos, em termos genéricos, como pano de fundo de uma conduta que surge no âmbito de um só contrato, o primeiro, pois que o segundo ainda nem sequer existia (a imputação dos factos refere-se a Julho de 2009 e o segundo contrato só surge em Novembro de 2009…). E, para além disso, pela forma como a acção é delineada, nunca o primeiro contrato deixou de vigorar e de ser o pano de fundo da actuação das rés. O segundo contrato não faz cessar o primeiro, antes se junta a ele.
Assim, há de facto uma incindibilidade da matéria de facto, que decorre da forma como a autora descreve a actuação das rés, mas essa incindibilidade não tem de corresponder à negação da separação artificial sugerida pelas rés entre matéria relacionada com o contrato de 2006 e o contrato de 2009.
Ou seja, a incindibilidade não resulta de não se poder separar a parte da matéria que diz respeito ao contrato de 2005/2006 (que tem uma cláusula compromissória) da parte da matéria que diz respeito ao contrato de 2009 (que não tem uma cláusula compromissória).
Antes resulta de toda ela ter como pano de fundo o contrato de 2005/2006, de toda ela estar relacionada com tal contrato, contrato esse que tem uma cláusula compromissória que a autora estava obrigada a observar.
O que quer dizer, entre o mais, que a excepção devia valer para toda a acção e não só para parte dela (a parte relativa ao contrato de 2005/2006), com estas duas rés queriam.
II
Da aplicabilidade da cláusula compromissória
A autora diz (na réplica) que a cláusula compromissória não se aplica porque a acção foi delineada como de responsabilidade extra-contratual por violação de direitos absolutos e a cláusula respeita exclusivamente aos litígios decorrentes do cumprimento ou incumprimento de obrigações constantes do contrato de 2005.
Logo à primeira vista dir-se-ia que a autora não tem qualquer razão dados os termos muito amplos com que a cláusula foi redigida, referindo-se a “todos os litígios, controvérsias ou pretensões decorrentes ou relacionados com o presente contrato”. Ora, a matéria da acção está relacionada com o contrato.
Isto é um outro modo de dizer que não é de modo algum manifesto que a cláusula compromissória não abranja toda a matéria desta acção. O que é suficiente para impor a procedência da excepção, pois que, antes de o tribunal arbitral se pronunciar sobre a questão da sua competência, o tribunal estadual não o pode fazer, a não ser que logo possa dizer que a cláusula compromissória é manifestamente nula, ineficaz ou inaplicável ao caso.
Neste sentido, veja-se o ac. do STJ de 10/03/2011 (5961/09.1TV LSB.L1.S1 – da base de dados do ITIJ, aqui como de seguida): 1. Face ao princípio, ínsito no art. 21.º/1 da LAV, segundo o qual incumbe prioritariamente ao tribunal arbitral pronunciar-se sobre a sua própria competência, apreciando para tal os pressupostos que a condicionam – validade, eficácia e aplicabilidade ao litígio da convenção de arbitragem –, os tribunais judiciais só devem rejeitar a excepção dilatória de preterição de tribunal arbitral, deduzida por uma das partes, determinando o prosseguimento do processo perante a jurisdição estadual, quando seja manifesto e incontroverso que a convenção invocada é nula ou ineficaz ou que o litígio, de forma ostensiva, se não situa no respectivo âmbito de aplicação. 2 […] bastando [a] plausibilidade de vinculação das partes à convenção de arbitragem, decorrente de um juízo perfunctório, para que, sem mais, cumpra devolver ao tribunal arbitral voluntário a prioritária apreciação da sua própria competência, nos termos do art. 21.º/1 da LAV.
É também esta a posição do ac. do STJ de 20/01/2011 (2207/09.6 TBSTB.E1.S1) e do ac. do TRL de 05/06/2007 (1380/2007-1 – com várias outras referências), referenciados naquele, entre muitos outros; bem como a posição de João Luís Lopes dos Reis, estudo citado acima e que é referenciado por todos estes acórdãos, e da anotação ao ac. do STJ de 10/03/2011, de Mariana França Gouveia e de Jorge Morais Carvalho, publicada sob o título Convenção de arbitragem em contratos múltiplos nos CDP Out/Dez 2011, nº. 36, que lembram (com várias outras referências doutrinais e jurisprudenciais) que o efeito negativo do princípio da competência da competência está hoje consagrado de forma explícita no art. 5/1 da nova LAV (Lei 63/2011): “O tribunal estadual no qual seja proposta acção relativa a uma questão abrangida por uma convenção de arbitragem deve, a requerimento do réu deduzido até ao momento em que este apresentar o seu primeiro articulado sobre o fundo da causa, absolvê-lo da instância, a menos que verifique que, manifestamente, a convenção de arbitragem é nula, é ou se tornou ineficaz ou é inexequível” [note-se que esta inexequibilidade tem sido lida como inaplicabilidade] e ainda de António Sampaio Caramelo, quer no seu estudo sobre a A "autonomia" da cláusula compromissória e a competência da competência do tribunal arbitral, estudo publicado em Homenagem da FDL ao Prof. Doutor Inocêncio Galvão Telles: 90 anos, Almedina, Maio2007, especialmente págs. 124 e 125 [e que na pág. 127 lembra a designação por que tal princípio é conhecido na jurisdição estadual: princípio da auto-suficiência do processo (Teixeira de Sousa) e princípio da tutela provisória da aparência (Castro Mendes)], quer na anotação do ac. do TRL de 18/05/2004 (3094/2004-7), que vai no mesmo sentido, estudo e anotação publicados na RDES - Outubro-Dezembro – 2004/4, especialmente págs. 333/336.
III
Da crítica ao resultado prático
Diz a autora (na réplica) que seria um absurdo a remessa para tribunal arbitral de parte da pretensão da autora, que seria julgada parcelarmente em cada jurisdição (comum e arbitral), com probabilidade de decisões incoerentes e contraditórias.
O argumento é relevante e por isso deve ser apreciado
Ele pode ser rebatido por quatro modos diferentes:
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Primeiro: não é parte da pretensão da autora que vai ser remetida para o tribunal arbitral. Por força da forma como a acção foi intentada e por força do facto de a 1ª ré não ter interposto recurso da decisão recorrida, é toda a pretensão da autora contra uma das rés que vai ser remetida para o tribunal arbitral, ficando no tribunal estadual toda a pretensão da autora contra a outra ré. Isto tendo em consideração que: a) como se dirá à frente, a acção não diz respeito a um caso de litisconsórcio necessário, e b) o disposto no art. 683, nº.s 1 e 2, a contrario, do CPC.
Assim, a situação que vai passar a existir é a de, numa acção no tribunal estadual, vir a ser apreciada a responsabilidade da 1ª ré e, numa acção no tribunal arbitral, vir a ser apreciada a responsabilidade da 2ª ré. Ora, assim sendo, a eventual incoerência ou contraditoriedade das decisões que vieram a ser proferidas não tem relevo jurídico já que não há identidade de partes (arts. 497 e 498, ambos do CPC).
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Segundo, foi a autora que em parte criou a situação: se ela tivesse intentado a acção no tribunal arbitral, como tinha o ónus de o fazer, visto que tinha celebrado um contrato com uma cláusula compromissória, a situação não existiria (para a qualificação da situação como de ónus, veja-se o estudo de Lopes dos Reis citado, especialmente pág. 120).
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Da inexistência de litisconsórcio necessário passivo
Terceiro: a situação poderia ser impedida – impondo-se a improcedência da excepção da preterição do tribunal arbitral – se estivéssemos perante uma hipótese de necessidade de litisconsórcio passivo entre as duas rés
(caso em que a acção arbitral se tornaria inviável porque incapaz de satisfazer de todo a pretensão do autor - neste sentido, por exemplo, Carla Gonçalves Borges, Pluralidade de Partes e Intervenção de Terceiros na Arbitragem, publicado na Themis, RFDUNL 2006/13, págs. 114/115 e 117, e Manuel Botelho da Silva, estudo citado, págs. 514 e 515 e 536 e 537),
mas não é esse o caso dos autos.
A obrigação de indemnização por factos ilícitos (foi assim que a acção foi delineada…) é uma obrigação solidária (art. 497 do CC). Não é, pois, necessário o litisconsórcio dos obrigados; o cumprimento da obrigação pode ser exigido de qualquer deles (art. 27/2 do CPC e arts. 512 e 517 – este a contrario -, ambos do CC).
E a obrigação de indemnização por violação do contrato (a seguir-se a posição da decisão recorrida, se é que é nesse sentido que ela vai…) é uma obrigação conjunta (excepto se a obrigação contratual fosse solidária, o que teria que ter sido alegado; como diz Antunes Varela, a responsabilidade contratual não prejudica a identidade da relação obrigacional - Das obrigações em geral, vol. I, 9ª edição, Almedina, 1998, pág. 538, nota 1 -, ou, como diz Menezes Leitão, Direito das Obrigações, vol. I, 9ª edição, Almedina, 2010, págs. 292/293: “na responsabilidade obrigacional [a solidariedade] só acontecerá se esse regime já vigorar para a obrigação incumprida”). Não é necessário o litisconsórcio para se demandar apenas um dos obrigados. Se a acção tiver sido proposta contra um só dos obrigados, o tribunal apenas conhecerá da respectiva quota-parte da responsabilidade do demandado (art. 27/1, 2ª parte, do CPC).
De resto, nunca o art. 28/2 do CPC foi lido como impondo o litisconsórcio necessário natural em casos de obrigação de indemnização solidária ou conjunta (veja-se, apenas por exemplo, Lebre de Freitas / João Redinha e Rui Pinto, CPC anotado, vol. 1.º, 2ª edição, Coimbra Editora, 2008, págs. 57/59; Lebre de Freitas, Introdução ao processo civil…, Coimbra Editora, 1996, pags. 164/167; Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nota, Manual de Processo Civil, 2ª edição, Coimbra Editora, 1985, págs. 163 a 169; e a tese de mestrado de João Pedro Pinto-Ferreira, Litisconsórcio Necessário Legal e Litisconsórcio Necessário Natural. A Necessidade ou não da Distinção, publicada na Themis - Ano X - n.º 19 – 2010, onde os exemplos de litisconsórcio necessário são os de acção de prestação de contas, acção de constituição de servidão legal de passagem, acção de anulação e de declaração de nulidade de negócios jurídicos e acção de defesa do direito de compropriedade sobre as partes comuns do prédio).
*
Procedem, assim, parcialmente as conclusões 10 a 13 e as restantes ou improcedem, ou são irrelevantes, por meramente descritivas ou introdutórias, ou estão certas mas não têm razão de ser face à fundamentação da decisão recorrida.
*
Visto que não se está perante um litisconsórcio necessário – como a própria 2ª ré o defende – o recurso interposto por esta não aproveita à 1ª ré (como já se disse acima: art. 683/1 do CPC) e, assim sendo, está transitada, quanto a esta, a decisão da improcedência da excepção da preterição do tribunal arbitral, pelo que os autos continuarão a correr na totalidade contra a mesma.
*
(…)
*
Pelo exposto, julga-se procedente o recurso, revogando-se a decisão recorrida quanto à improcedência da excepção dilatória da preterição do tribunal arbitral, substituindo-se por esta outra que a julga procedente, mas apenas quanto à 2ª ré, que vai absolvida da instância [arts. 494/j) e 288/1e), ambos do CPC].
Custas pela autora.

Lisboa, 15 de Novembro de 2012.

Pedro Martins
Eduardo Azevedo
Lúcia Sousa