Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
5465/09.2TVLSB.L1-6
Relator: TERESA PARDAL
Descritores: RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
PRESUNÇÃO DE CULPA
SEGURADORA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/12/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Texto Parcial: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Sumário: - Não se provando as causas do incêndio que deflagrou num edifício onde a ré exerce a sua actividade, esta é responsável pelos danos causados a terceiros, por não ter ilidido as presunções de culpa previstas no artigo 493° do CC, resultantes da natureza da sua actividade.
- Encontrando-se transferida para seguradora a responsabilidade da ré pelos danos causados a terceiros pela sua actividade se se verificar a sua própria responsabilidade extracontratual, é também a ré seguradora responsável pelos danos causados pelo incêndio a terceiros.
- O recurso da sentença que absolveu as duas rés, interposto apenas por uma lesada, aproveita aos autores não recorrentes, nos termos do artigo 683° n°1 do CPC (redacção do regime anterior), mas só quanto ao pedido formulado contra a ré seguradora, pois só em relação a esta há litisconsórcio activo.
(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Parcial: Acordam os juízes do Tribunal da Relação de Lisboa:



RELATÓRIO:



Na acção declarativa com processo ordinário em que são autores A… e esposa B… (falecida na pendência da acção, ora representada pelo autor e pelos sucessores habilitados AB…, ABB… e AAB…) e intervenientes principais, como associados dos autores, J…, Lda e F… e em que são rés E…, Lda e Companhia de Seguros… e interveniente acessória Câmara Municipal…, alegaram os autores, na petição inicial, que são donos de um prédio onde residem, tendo ocorrido um incêndio na sede da 1ª ré, que se propagou ao prédio dos autores, destruindo a sua habitação e determinando a perda do recheio no valor global de 51 386,00 euros, sofrendo os autores transtornos e incómodos que avaliam em 5 000,00 euros, pelos quais é responsável a 1ª ré, bem como a 2ª ré seguradora, por a responsabilidade pelo sinistro estar coberta por um contrato de seguro celebrado por ambas.

Concluíram pedindo a condenação das rés a pagar-lhes a quantia de 56 386,00 euros acrescida de juros à taxa legal desde a propositura da acção até integral pagamento.

A ré E…, Lda contestou invocando a sua ilegitimidade, por a sua responsabilidade estar transferida para a ré seguradora e, por impugnação, alegou desconhecer os prejuízos invocados pelos autores, sendo os valores reclamados exagerados.

Alegou ainda que o incêndio foi combatido pelos bombeiros com técnicas incorrectas, tendo sido a conduta destes a causar eventuais danos aos autores, pelo que, a ser condenado, o contestante tem direito de regresso contra a Câmara Municipal… a quem pertence a unidade dos bombeiros. 

Concluiu pedindo a intervenção acessória provocada da Câmara Municipal…, a procedência da excepção da ilegitimidade e a improcedência da acção.

A ré Companhia Seguradora… contestou invocando a sua ilegitimidade, porque a situação não integra as coberturas da apólice do contrato de seguro que celebrou com a 1ª ré e, por impugnação, alegou desconhecer os factos alegados pelos autores.
Alegou ainda que, cobrindo a apólice apenas o valor de 25 000,00 euros menos franquia, deverão ser chamados a intervir nos autos outros lesados, como associados dos autores.

Concluiu requerendo a intervenção principal provocada dos lesados J…., Lda e F…, a procedência da excepção de ilegitimidade e a improcedência da acção.  
   
Admitidas as intervenções das chamadas nos termos em que foram requeridas, apenas se apresentaram a intervir a interveniente principal J…., Lda como associada dos autores e a interveniente acessória Câmara Municipal….

A interveniente acessória Câmara Municipal contestou invocando a incompetência do tribunal e impugnando os factos alegados quer pelos autores, quer pelas rés, alegando que o incêndio foi combatido pela forma adequada.

Concluiu pedindo a procedência da excepção de incompetência do tribunal e, se assim, não se entender, a improcedência da acção em relação à contestante.

A interveniente principal J…., Lda veio apresentar articulado associando-se aos autores e alegando, em síntese, que, como arrendatária dos autores, ocupa um espaço no prédio destes, aí tendo realizado obras no valor de 2 500,00 euros que ficaram inutilizadas com o incêndio, o qual determinou danos não patrimoniais com a paralisação da empresa, quantificados em 2 500,00 euros e causou estragos em material nos valores de 1 740,10 euros e 2 977,96 euros, bem como a perda de lucros cessantes no valor de 1 375,22 euros.

Concluiu pedindo a condenação das rés a pagar-lhe as quantias de 6 093,28 euros, de 2 500,00 euros e de 2 500,00 euros, todas acrescidas de juros de mora à taxa legal até integral pagamento.
A ré E…, Lda veio apresentar articulado, opondo-se à excepção invocada pela chamada Câmara Municipal.

Saneados os autos, foram julgadas improcedentes as excepções de incompetência do tribunal e de ilegitimidade das rés.

Procedeu-se a julgamento, no decurso do qual foi dado conhecimento do falecimento da autora e da identidade dos seus sucessores, que logo juntaram procurações a favor da mandatária dos autores, ratificando todo o processado.

Findo o julgamento, foi proferida sentença em 16/07/2013, que decidiu julgar improcedente a acção intentada pelos autores e com a intervenção principal da chamada J…,Lda e absolver os réus E…, Lda e Companhia de Seguros… do pedido.

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Após a prolação da sentença, em 10/09/2013, a mandatária do autor e dos outros sucessores da falecida autora veio renunciar aos respectivos mandatos, tendo estes e as demais partes sido notificados da renúncia, por carta de 13/09/2013, sendo os mandantes com a cominação de no prazo de vinte dias constituírem mandatário sob pena de se suspender a instância, o que não fizeram.

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Inconformada com a sentença, a interveniente principal J…., Lda interpôs recurso e alegou, formulando as seguintes conclusões:

I-  Na sequência de um incêndio que teve causa acidental, embora não concretamente apurada, a ora recorrente sofreu os danos patrimoniais peticionados na sua PI.
II- Consta de prova documental no processo a existência de Apólice de Seguro Multirriscos que cobre esses danos.
III-  Por via da citada apólice, a 1ª ré, E…, Lda, transferiu a sua responsabilidade para a 2ª ré, Companhia de Seguros….
IV- A Companhia de Seguros…, por sua vez, não só assumiu a responsabilidade pelos danos causados à ora recorrente, perante o Instituto de Seguros de Portugal, conforme documento que consta a fls dos autos, como ainda, em 22.12.2008, pagou à 1ª ré, E…, Lda, a indemnização pelos danos decorrentes do mesmo incêndio.
V- O Tribunal “a quo” dá como facto assente que a 1ª ré, E…, Lda, transferiu a sua responsabilidade para a 2ª ré, Companhia de Seguros….
VI- O Tribunal “a quo” exclui este incêndio concreto do âmbito da apólice de seguro existente, quando essa apólice consta dos autos e, em conformidade com o apurado julgamento e com as provas carreadas para o processo, essa apólice é aplicável ao caso em concreto, uma vez que estamos perante responsabilidade civil por danos causados a terceiros, nos termos do Código Civil.
VII- O Tribunal “a quo” tem, no processo, uma carta do Instituto de Seguros de Portugal onde se pode ler que a Companhia de Seguros… se responsabiliza pelos danos patrimoniais causados à ora recorrente, no entanto decide que a mesma não é responsável.
VIII- O Tribunal “a quo” dá como assente a transferência da responsabilidade da responsabilidade da 1ª ré E…, Lda, para a 2ª ré, Companhia de Seguros… na selecção da matéria de facto a ser levada a julgamento.
IX- O Tribunal “a quo” não inclui nos quesitos qualquer facto atinente ao conteúdo e alcance do contrato de seguro, nem durante todo o julgamento há qualquer referência ao mesmo, mas, em face da decisão baseia-se no mesmo para fazer improceder o pedido da ora recorrente. Pelo que, nos termos do artigo 511º CPC, a selecção da base instrutória, não abarcando nenhum dos fundamentos da decisão, não poderia ter levado à sentença ora recorrida.
X- O que se pretende é o reexame das questões precedentemente resolvidas pelo tribunal a quo, dentro dos mesmos condicionalismos em que aquele tribunal se encontrava quando decidiu.

Por tudo o exposto e por mais que V. Exas suprirão, deverá a presente Apelação ser julgada procedente e, em consequência, revogada a sentença que julgou improcedente o pedido da interveniente principal, ora recorrente.  

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Não foram apresentadas contra-alegações.

Foi proferido despacho em 30/10/2013, julgando extinto o mandato da mandatária do autor e dos restantes sucessores da falecida autora e determinando a suspensão da instância com fundamento no falecimento da autora.

Posteriormente, verificando-se que, com a informação sobre o falecimento da autora foi junta a necessária documentação, em 29/01/2015 foi proferida sentença de habilitação de herdeiros da autora.

O recurso da interveniente principal foi admitido como apelação com subida imediata, nos autos e efeito devolutivo. 
 
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As questões a decidir são:

I) Responsabilidade das rés pelos prejuízos sofridos pela apelante com o incêndio.
II)Efeitos do recurso em relação aos restantes lesados não apelantes e prejuízos sofridos por estes.

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FACTOS.

A 1ª instância considerou os seguintes factos provados:

1. Os Autores residem no n°3 sito na R… (A).
2. No dia 10 de Setembro de 2008, durante a madrugada, ocorreu um incêndio na sede da Ré, E…, Lda. No nº5 da Rua… (B).
3. Nesse estabelecimento encontravam-se armazenados pneus (C).
4. O incêndio foi combatido pelo Regimento Bombeiros…, uma unidade do Gabinete de Segurança Protecção e Socorro da Câmara Municipal… (D).
5. O Réu E…, Lda. transferiu a responsabilidade civil pelos sinistros decorrentes da sua actividade para a Segunda Ré Companhia de Seguros…, através da apólice n°53/101389, de 19 de Novembro de 2005, válida à data do sinistro, conforme consta das condições gerais, especiais e particulares exaradas no documento nº1 junto de fls 46 a 72 (E).
6. O Regimento Bombeiros… atacou o incêndio, numa fase inicial, através do lançamento de água (art° 2° da Base Instrutória).
4° A parte a tardoz do imóvel referido em B) caiu (art° 4° da Base Instrutória).
5° O Regimento Bombeiros…, com o objectivo de apagar o incêndio, procedeu ao arrombamento de um portão de acesso ao estabelecimento da R, onde as chamas já haviam invadido todo o espaço (art° 5° da Base Instrutória).
6° Em resultado da abertura da porta a circulação de oxigénio aumentou (art° 6° da Base Instrutória).
8° O incêndio propagou-se ao 1° e 2° andares da casa onde os AA residiam, incendiando o quarto da neta e uma parte da sala (art° 8° da Base Instrutória).
9° A propagação do incêndio à residência dos AA. ocasionou a perda de, pelo menos, os seguintes bens que se encontravam no seu interior: Cama de corpo e meio; Mesa de cabeceira; Colchão de molas; Cómoda; Roupeiro; Estante; Secretária; Armário; Cadeira de secretária; Televisão Grundig; Máquina Fotográfica Nikon; Máquina Fotográfica Sony; Computador Portátil Toshiba; W. XP em pt; Monitor LCD de baixa radiação e alto contraste; Teclado de computador; computador de secretária linha branca; Rato de computador; Impressora HP Deskjet; Web cam; Playstation 3; Máquina Depiladora Braun; Ipod; Painel Frontal de Auto Rádio Pioneer; Teclado de Som Yamaha; Suporte de Televisão; DVD's e CDS de música; Mini aparelhagem; Colunas de som de computador; Microfone de computador; Leitor de DVD Sony; bem como livros e peças de vestuário da neta dos AA., de valor não apurado (art° 9° da Base Instrutória).
10° O Regimento Bombeiros ao mesmo tempo que procedia à evacuação dos habitantes do edifício n°3 contíguo àquele em que o incêndio havia deflagrado, ia combatendo o incêndio com o recurso a agulhetas de águas e espuma (art° 10° da Base Instrutória).
14° Tendo os bombeiros utilizado água com o objectivo de controlar as chamas e baixar a temperatura (art°14° da Base Instrutória).
15° A utilização imediata de água, destina-se a criar condições de operacionalidade para que os bombeiros possam ir avançando dentro do espaço no combate às chamas (art° 15° da Base Instrutória).
16° Os bombeiros não sabiam o conteúdo e a totalidade dos materiais que se encontravam armazenados no espaço (art° 16° da Base Instrutória).
17° Sendo o procedimento referido em 14° e 15° adequado quando o fogo lavra num recinto fechado.
18° Só após actuarem do modo descrito em 14° e 15° é que o muro do armazém a tardoz desmoronou (art° 18° da Base Instrutória).
19° A Sociedade J…, Lda. ocupava, à data do incêndio, o prédio n°3 (art° 19° da Base Instrutória).
22° As paredes, instalação eléctrica e instalações sanitárias ficaram destruídos pelo fogo (art° 22° da Base Instrutória).
23° Os computadores, impressoras, ''plotters'' de corte ficaram molhados (art° 23° da Base Instrutória).
24° Assim como o vinil em stock ficou inaproveitável (art° 24° da Base Instrutória).
25° Tendo a reparação dos ''plotters'' de corte importado em € 1.740,00 (art° 25° da Base Instrutória).
26° Tendo o custo do vinil importado em € 2.977,96 (art° 26° da Base Instrutória).
27° A água utilizada para apagar o incêndio acumulou-se no interior das instalações ocupadas pela Interveniente (art° 27° da Base Instrutória).
28°  Escorrendo pelas paredes (art° 28° da Base Instrutória).
29°  Provocando a abertura de um buraco no chão (art° 29° da Base Instrutória).
30°  E partiu azulejos (art° 30° da Base Instrutória).
31° Por força dos factos enunciados nos art°s 22° a 30° a Interveniente interrompeu a laboração durante duas semanas (art° 31° da Base Instrutória).
32° Deixando de realizar trabalhos em valor não apurado (art° 32° da Base Instrutória).
                                                          
A sentença é de 16/07/2013 e a lei 41/2013 de 26/6 entrou em vigor em 1/09/2013, pelo que ao presente recurso se aplica ainda o regime anterior ao NCPC, por força do artigo 7º da referida lei 41/2013.

Assim, ao abrigo dos artigos 659º nº3 e 713 nº2 do anterior CPC, para além dos factos acima elencados, considera-se ainda provado:

- A morada dos autores é Rua… nº3, 1º Dto (procurações de fls 3 e 4).
- A morada da interveniente principal é Rua… nº3, rés-do-chão (carta de citação de fls 109).
- A apólice referida em 5 é uma apólice “multirriscos – actividades económicas e associativas” e as coberturas aí previstas são a cobertura base edifício e a cobertura base conteúdo.

- Segue o conteúdo de alguns artigos das condições gerais, com relevância para a decisão da causa:

Artigo 1º do título I das condições gerais:

Nº1- O presente contrato confere sempre as seguintes coberturas: a) incêndio (…);
Nº2- A cobertura base de incêndio decorrente ou não da obrigação de segurar é a que consta definida e regulada na Apólice Uniforme de Incêndio que constitui o Título II deste contrato, nos exactos termos da qual se regulam igualmente as coberturas de queda de raio e explosão.
Nº3-As demais coberturas base encontram-se definidas e reguladas no título III deste contrato.  

Artigo 4º do capítulo I do título II das condições gerais:

No âmbito do seguro obrigatório, não ficam cobertos os danos que derivem, directa ou indirectamente de: (...) g) efeitos directos de corrente eléctrica em aparelhos, instalações eléctricas e seus acessórios, nomeadamente sobre tensão e sobre intensidade, incluindo os produzidos pela electricidade atmosférica, tal como a resultante de raio e curto-circuito, ainda que nos mesmos se produza incêndio. 

Art 1º do capítulo IX do título III das condições gerais:

Nº1- Por via desta cobertura ficam garantidas, até ao limite de capital indicado nas condições particulares, de harmonia com a proposta as indemnizações legalmente exigíveis ao segurado relativamente a danos materiais ou pessoais sofridos por terceiros, que decorram de acto praticado no âmbito da exploração da actividade daquele, pelo qual ele, ou qualquer dos que sob a sua direcção exercem uma profissão remunerada, possam ser extracontratualmente responsáveis.  (…).
                                                           
ENQUADRAMENTO JURÍDICO.

I) Responsabilidade civil das rés pelos prejuízos sofridos pela apelante.

Ficou provado que no dia 10 de Setembro de 2008 se verificou um incêndio na sede do estabelecimento da 1ª ré E…, Lda, que se veio a propagar para o prédio dos autores, onde estes residiam, no 1º andar direito e onde a interveniente J…, Lda, ora apelante, tinha o seu estabelecimento, no rés-do-chão.

Invocando a interveniente apelante ter sofrido prejuízos com esta situação e tendo a 1ª ré transferindo a sua responsabilidade pelos danos causados por incêndio a terceiros para a 2ª ré seguradora mediante contrato de seguro, haverá então que apreciar se as rés estão obrigadas a indemnizar os invocados danos.

Entendeu a sentença recorrida que, prevendo a apólice que titula o contrato de seguro só haver obrigação de ressarcimento dos danos de terceiros se o segurado tiver responsabilidade extracontratual, não se provou tal responsabilidade por parte da 1ª ré face ao nº2 do artigo 493º do CC, pelo que nem a 1ª ré, nem, consequentemente, a 2ª ré seguradora estão obrigadas a indemnizar os danos resultantes deste incêndio para terceiros.

Vejamos então.  

Deverá apurar-se primeiro se há ou não responsabilidade civil extracontratual da primeira ré e, depois, aferir da responsabilidade da ré seguradora.

Por força do artigo 483º do CC, a responsabilidade civil extracontratual tem como requisitos, o facto ilícito, a culpa, o dano e o nexo causal.

O ónus de provar estes requisitos, nomeadamente a culpa do agente, cabe ao lesado, nos termos do artigo 342º do CC, mas, nos artigos 491º, 492º e 493º do mesmo código, sob as epígrafes respectivas de “responsabilidade das pessoas obrigadas à vigilância de outrem”, “danos causados por edifícios ou outras obras” e “danos causados por coisas, animais ou actividades”, estão previstos os casos excepcionais em que a lei faz presumir a culpa do agente, cabendo este o ónus de ilidir essa presunção, provando que não tem culpa, ou seja que os factos não lhe são imputáveis.

O artigo 493º tem o seguinte conteúdo:

Nº1- Quem tiver em seu poder coisa móvel ou imóvel, com o dever de a vigiar, e bem assim quem tiver assumido o encargo da vigilância de quaisquer animais, responde pelos danos que a coisa ou os animais causarem, salvo se provar que nenhuma culpa houve da sua parte ou que os danos se teriam igualmente produzido ainda que não houvesse culpa sua.

Nº2- Quem causar danos a outrem no exercício de uma actividade perigosa por sua própria natureza ou pela natureza dos meios utilizados, é obrigado a repará-los, excepto se mostrar que empregou todas as providências exigidas pelas circunstâncias com o fim de os prevenir.  

Ora, no presente caso, embora não se tenham provado muitos factos esclarecedores da actividade da 1ª ré, provou-se que, no local onde deflagrou o incêndio, a ré armazenava pneus, sendo facto notório que estes são altamente inflamáveis e particularmente perigosos relativamente à propagação do fogo, pelo que, ao contrário do que foi entendido na sentença recorrida, tem de se considerar que a actividade da 1ª ré é uma actividade perigosa para os efeitos do nº2 do artigo 493º e, não tendo ficado provada a causa do incêndio, não foi ilidida a presunção de culpa prevista no artigo 493º nº2 do CC (sendo certo também que os factos constantes nos pontos 4 a 18 da matéria fáctica provada são insuficientes para se concluir também que os bombeiros contribuíram para a produção dos danos).

Acresce que, de acordo com o previsto no nº1 do mesmo artigo 493º, a 1ª ré, ao utilizar o prédio onde deflagrou o incêndio, tinha um dever de vigilância para que este imóvel mantivesse a sua integridade e não causasse danos a terceiros, dever esse que se integra na actividade económica exercida no imóvel.

Incorre, assim, a 1ª ré em responsabilidade civil extracontratual perante os danos causados à apelante.

No que diz respeito à ré seguradora, provou-se que foi celebrado entre as duas rés um contrato de seguro “multirriscos actividades económicas e associativas” cobrindo o edifício e o seu conteúdo e prevendo-se ainda a transferência da responsabilidade por danos causados a terceiros.

O contrato de seguro celebrado entre as rés tem a sua previsão nos artigos 425º e seguintes do Código Comercial, na altura em vigor e entretanto revogados e substituídos pelo DL 72/2008 de 16/04, que entrou em vigor em 1 de Janeiro de 2009.

No contrato são previstas exclusões da responsabilidade, nomeadamente no caso de incêndio (artigo 4 g) do capítulo I, título II das condições gerais), mas não foi feita a prova de que as mesmas se verificaram, prova cujo ónus cabia à ré seguradora, por força do artigo 342º nº2 do CC.

E, quanto à transferência da responsabilidade por danos causados a terceiros, decorrendo a mesma da actividade da 1ª ré e prevendo-se como condição de cobertura dos danos causados a terceiros que o sinistro faça incorrer a segurada em responsabilidade extracontratual (artigo 1º do capítulo IX, título III das condições gerais), tal condição está preenchida, já que, como acima se expôs, a 1ª ré incorre em responsabilidade extracontratual pelos danos causados a terceiros com o incêndio por via da actividade exercida no local.

Está, portanto, também a 2ª ré obrigada a indemnizar os prejuízos sofridos pela apelante.

O pedido de indemnização da interveniente apelante inclui uma verba de 2 500,00 euros por obras que realizou para adequação do espaço à sua actividade e que ficaram inutilizadas com o incêndio, 2 500,00 euros por danos não patrimoniais com a paralisação da empresa, 1 375,22 euros por perda de lucros cessantes e 1 740,10 euros e 2 977,96 euros com perda de material.

Provou-se que a apelante teve de suportar os custos de reparação de material em valores de 1 740,00 euros e 2 977,96 euros (pontos 23 a 26 dos factos provados), ou seja, o valor de 4717,96 euros, pelo qual as rés são responsáveis com juros a contar da citação (neste caso da notificação do pedido formulado no articulado da chamada) nos termos do artigo 805º do CC.

Provou-se também que a interveniente teve de interromper a laboração por duas semanas, como consequência dos estragos causados pelo incêndio, deixando de auferir rendimentos em montante não apurado (pontos 31 e 32 dos factos provados).

Provou-se ainda que o incêndio provocou diversos estragos nas instalações da interveniente (pontos 22, 27, 28, 29 e 30 dos factos provados) e, embora o pedido formulado se refira às obras realizadas que terão ficado inutilizadas, retira-se do alegado que terão de ser efectuadas de novo as obras para reparação destes estragos, a que se refere a verba peticionada de 2 500,00 euros, mas não se tendo apurado este valor.

Deverão, assim, as rés ser condenadas pelos danos relativos aos lucros cessantes e à reparação das instalações, em valores a liquidar em execução de sentença, sem prejuízo dos limites impostos pelo valor do pedido e pelo valor da cobertura da apólice.

Finalmente, reclamou também a interveniente a indemnização de 2 500,00 euros a título de danos não patrimoniais, mas não alegou factos para o efeito, para além da paralisação da empresa, cujo prejuízo já está considerado no pedido de perda de lucros cessantes, razão pela qual não estão reunidos os requisitos para a atribuição desta indemnização ao abrigo do artigo 496º do CC.  

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III) Efeitos do recurso em relação aos lesados não apelantes e prejuízos sofridos por estes.

Tendo sido interposto recurso apenas pela interveniente, levanta-se a questão de saber se o mesmo aproveita aos restantes lesados.

Quanto ao interveniente F…, que, apesar de citado para intervir não interveio, não existindo qualquer pedido por si formulado, o recurso não lhe aproveita, tendo a sentença recorrida o valor fixado no artigo 328º do CPC.

Quanto aos autores, renunciando a mandatária do autor e dos restantes sucessores da autora ao mandato e sendo este um processo de patrocínio obrigatório, a renúncia só produziu efeitos depois de decorrido o prazo de 20 dias previsto no artigo 39º nº3 (actual 47º nº3) do CPC, mantendo-se o mandato até ao fim deste prazo.

Tal prazo terminou já depois de esgotado o prazo de recurso, razão pela qual se tem de concluir que precludiu o direito dos autores de recorrer. 

Esta conclusão impõe-se não só relativamente ao autor, mas também relativamente aos restantes herdeiros da autora, apesar de estes só terem sido formalmente julgados habilitados muito depois, em Janeiro de 2015, uma vez que tinham procuração outorgada à mandatária que intervinha nos autos, tendo ratificado o processado anterior e não tendo sido violado o seu direito ao contraditório depois da sua intervenção no processo, que se manteve através das procurações outorgadas à sua mandatária.

Precludido o direito de os autores interporem recurso, importa então apreciar se beneficiam dos efeitos daquele que foi interposto pela interveniente.

O artigo 683º do CPC estabelece que os efeitos do recurso estendem-se aos não recorrentes no caso de litisconsórcio necessário (nº1) e, não havendo litisconsórcio necessário, no caso de os não recorrentes darem a sua adesão ao recurso na parte em que houver um interesse comum, no caso de terem um interesse que dependa do interesse o recorrente, ou no caso de terem sido condenados como devedores solidários (nº 2, alíneas a), b) e c)).
 
Não se verificando as situações das alíneas b) e c) do nº 2 do artigo 683º, também não houve adesão dos autores ao recurso da interveniente nos termos da alínea a) da mesma disposição legal.

Resta saber se existe litisconsórcio necessário, tal como vem definido no artigo 28º do CPC, ou seja, se a lei, o negócio (nº1), ou a natureza da relação jurídica torne necessária a intervenção de todos os interessados para obter o efeito útil normal (nº2).

E não pode deixar de se concluir que existe litisconsórcio necessário por via da natureza da relação jurídica, no que diz respeito ao pedido formulado contra a ré seguradora.

Com efeito, relativamente ao pedido formulado contra a 1ª ré, o litisconsórcio é voluntário, não se verificando nenhuma das situações previstas no artigo 28º.

Mas, em relação ao pedido formulado contra a 2ª ré, havendo um limite para a cobertura dos danos, é necessária a intervenção de todos os lesados para que, de acordo com o artigo 28º nº2, a sentença “possa regular definitivamente a situação concreta das partes relativamente ao pedido formulado”.

Sendo assim, a presente apelação aproveita aos autores, mas só relativamente ao pedido formulado contra a 2ª ré e não para o pedido contra a 1ª ré, formando-se caso julgado quanto a este último.

Os autores pedem uma indemnização pelo recheio da casa que ficou danificado, no valor de 51 386,00 euros, discriminado no documento nº1 da petição inicial e ainda uma indemnização por danos não patrimoniais no montante de 5 000,00 euros.

Provou-se que o incêndio, na habitação dos autores, propagou-se ao quarto da neta e a parte da sala e destruiu os bens elencados no ponto 9 dos factos provados, não se apurando o respectivo valor (pontos 8 e 9 dos factos provados).

Deverá, portanto, a 2ª ré ser condenada a pagar o valor desses bens a liquidar em execução de sentença, sem prejuízo dos limites impostos pelos valores pedidos na petição inicial e pelo valor global da cobertura da apólice.

Por outro lado, apesar de não se ter provado que a casa ficou destruída, ignorando-se a extensão do estrago causado nas divisões afectadas e de não se ter provado também que os autores tiveram de ir viver para outro local, o susto que necessariamente sofreram e os transtornos que forçosamente enfrentaram têm dignidade suficiente para merecer a tutela do direito ao abrigo do artigo 496º do CC, entendendo-se neste momento adequada a reclamada indemnização de 5 000,00 euros, ponderadas as circunstâncias que resultaram provadas, acrescendo os juros de mora vincendos, de harmonia com o fixado no AUJ 4/2022 do STJ de 9/05/2002.
                                                         
DECISÃO.

Pelo exposto se decide:

a) Julgar parcialmente procedente a apelação e o pedido da interveniente apelante e condenar as duas rés a pagar-lhe a quantia de 4 717.96 euros (quatro mil setecentos e dezassete euros e noventa e seis cêntimos) acrescida de juros às taxas legais desde a citação (notificação do pedido) e as quantias a liquidar em execução de sentença a título de indemnização pela perda de lucros cessantes e pela reparação dos estragos nas instalações, sem prejuízo dos limites impostos pelo valor do pedido e pelo valor da cobertura da apólice, relativamente à ré seguradora. 
b) Estender os efeitos da apelação ao pedido dos autores contra a ré seguradora e condená-la a pagar aos autores a quantia de 5 000,00 (cinco mil euros) a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora vincendos à taxa legal e a quantia a liquidar em execução de sentença a título de indemnização pela perda dos bens discriminados no ponto 9 dos factos provados, sem prejuízo dos limites impostos pelo valor do pedido e pelo valor da cobertura da apólice.
c) Manter a sentença recorrida na parte que absolveu a primeira ré do pedido formulado pelos autores, por ter transitado em julgado nessa parte. 
                                                          
Custas em ambas as instâncias pelos autores, interveniente apelante e pelas rés, na proporção dos respectivos vencimentos.      
               
                                            
Lisboa, 2015-11-12


Maria Teresa Pardal
Carlos Marinho 
Anabela Calafate                                                                        
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