Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
9479/2006-2
Relator: EXAGUY MARTINS
Descritores: PROVIDÊNCIA CAUTELAR NÃO ESPECIFICADA
PRODUÇÃO ANTECIPADA DE PROVA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/18/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: I - O procedimento cautelar não especificado, ainda que incidental, visa acautelar um direito, ainda que de forma provisória e precária. A produção antecipada de prova, ao invés, constitui incidente destinado tão só a acautelar a produção de prova.
II - O princípio da legalidade das formas processuais (onde se incluiu as incidentais) inviabiliza a utilização de providência cautelar não especificada para apenas garantir determinado(s) meio (s) de prova irrepetível ou insusceptível de posterior apresentação
Decisão Texto Integral: Acordam na 2ª Secção (cível) deste Tribunal da Relação


I – A, deduziu procedimento cautelar comum contra B, requerendo que, sem audiência prévia daquele, fosse o mesmo, enquanto actual proprietário, da fracção autónoma de prédio em regime de propriedade horizontal que identifica, intimado a abster-se de efectuar naquela obras de alteração, até à realização da perícia colegial requerida nos autos principais pela ali A.
Considerando, a propósito, e em suma, que tais obras colocarão em causa a prova da Requerente na dita acção, e sendo que “os autos principais têm por base as obras clandestinas realizadas na supra mencionada fracção”.

Por despacho de folhas 12, decidiu-se ser na acção de que a providência depende, “que se decidem as posições dos sujeitos processuais em termos de direitos”.
E, nessa conformidade, determinou-se a audição das “requeridas nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 385 n.º 1 do C.P.C.”.

Sendo deduzida oposição pela co-ré na acção principal, C, sustentando não se mostrarem alegados nem verificados os requisitos de decretamento da providência cautelar, e rematando com a improcedência da mesma.

Por requerimento de folhas 31 e 32, reiterou a Requerente – notificada do requerimento da defensora oficiosa da 1ª Ré, referindo desconhecer a nova morada desta e não ser mandatária da 2ª Ré, – a pretensão de decretamento da providência “sem a audição das RR.”.

Sendo subsequentemente proferida decisão, a folhas 36 a 38, que, considerando a inviabilidade da pretensão da Requerente, e não se mostrar a providência ajustada aos fins a que a Requerente a destina, julgou a mesma improcedente.

Inconformada, recorreu a Requerente, formulando, nas suas alegações, as seguintes conclusões:
1 – A providência cautelar que a requerente pretendia ver decretada, acautelaria o seu direito, isto é de saber se efectivamente a requerida mantinha no seu locado, obras não licenciadas, dada a circunstância da cozinha se encontrar na varanda.
2- O decretamento da providência não causaria ao Sr. O B dano maior do que aquele que pretendia a ora recorrente ver acautelado, pois as obras ficariam suspensas apenas até à realização da perícia, para além de que o interveniente nem sequer habitava na fracção em causa. C S
3 – Devendo ser ouvidas as testemunhas arroladas pela requerida, tal como solicitado na providência.
4 – Pois apesar de citada a requerida também não refere que obras efectuou, baseando a sua oposição, em meras considerações, que no nosso entender e salvo o devido, respeito não deveriam ter sido atendidas.
5 – O direito que a requerente pretendia ver acautelado com o decretamento da providência, era o de, e pelo facto de existir na casa da requerida uma cozinha na varanda, o de saber se as canalizações não perigariam a sua fracção.
6 – A requerente solicitou que as obras se suspendessem até à realização da perícia, pois com esta saberia e demonstraria nos autos principais, em que estado se encontrava a fracção.
7 – Assim, pelo facto de a providência não ter sido decretada, continua sem saber a requerente se efectivamente existem ou não obras de carácter clandestino, o que periga o direito que pretende ver acautelado nos autos principais.
8 – Devendo ser decretada a providência cautelar comum, evitando assim, que pelo menos até à data da perícia o actual proprietário efectue na fracção quaisquer outras obras.

Contra-alegou a co-ré nos autos principais, pugnando pela manutenção do julgado.

O senhor juiz a quo manteve a sua decisão.

II – Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
Face às conclusões de recurso, que como é sabido, e no seu reporte à fundamentação da decisão recorrida, definem o objecto daquele – vd. art.ºs 684º, n.º 3, 690º, n.º 3, 660º, n.º 2 e 713º, n.º 2, do Cód. Proc. Civil – é questão proposta à resolução deste Tribunal, a de saber se, no requerimento da providência, foram substanciados os pressupostos do decretamento da mesma.
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Com interesse, emerge dos autos, para além do que se deixou referido em sede de relatório, que:
a) A Requerente, em 2004-03-03, intentou nas varas Cíveis de Lisboa, acção declarativa com processo comum sob a forma ordinária, contra N C E L e N M E L V, pedindo a condenação das ali RR., a:
“1- A permitir a entrada dos Técnicos da Câmara Municipal de Lisboa, para atestarem a situação da casa, no que concerne às obras de carácter clandestino que aí se realizaram.
2- Serem obrigadas a remover as obras de carácter clandestino, e colocar a sua fracção de acordo com o projecto inicialmente aprovado pela Câmara Municipal de Lisboa
3- a indemnizar a A. a título de danos patrimoniais, em valor não inferior a € 10 000 (Dez Mil Euros).
4- a indemnizar a A. a título de danos morais em montante não inferior a € 10 000 (Dez Mil Euros).
5- e ainda no pagamento de juros de mora até integral pagamento das indemnizações, atrás peticionadas, conforme doc. de folhas 65 a 70, que aqui se dá por reproduzido.
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Vejamos:
1. Sob a epígrafe “Âmbito das providências cautelares não especificadas”, dispõe-se, no art.º 381º, n.º 1, do Cód. Proc. Civil: “Sempre que alguém mostre fundado receio de que outrem cause lesão grave e dificilmente reparável ao seu direito, pode requerer a providência conservatória ou antecipatória concretamente adequada a assegurar a efectividade do direito ameaçado”.
Sendo que não é “aplicável” uma tal providência, “quando se pretenda acautelar o risco de lesão especialmente prevenido por alguma das providências tipificadas na secção seguinte”, vd. n.º 3, cit. art.º.
Tendo-se assim, como requisitos gerais dos procedimentos cautelares: a) a probabilidade séria da existência do direito invocado b) o fundado receio de que outrem, antes de a acção ser proposta ou na pendência dela, cause lesão grave e dificilmente reparável a tal direito c) adequação da providência à situação de lesão iminente d) Inexistência de providência específica que acautele aquele direito.
E podendo, como expressamente se consignou no texto da lei, ser a providência requerida do tipo conservatório, ou do tipo antecipatório.
As providências do primeiro tipo, visam acautelar o efeito útil da acção principal, assegurando a permanência da situação existente quando se despoletou o litígio ou aquando da verificação da situação de periculum in mora.
Com as segundas, o tribunal, atenta a urgência da situação carecida de tutela, antecipa a realização do direito que previsivelmente será reconhecido na acção principal e que será objecto de execução.
Excedem a natureza simplesmente cautelar ou de garantia que caracteriza a generalidade das providências, ficando a um passo das que são inseridas em processo de execução para pagamento de quantia certa, entrega de coisa certa ou prestação de facto positivo ou negativo”.(1)
Assegurando, desde logo, e independentemente do resultado a alcançar na acção principal, um determinado efeito que acaba sempre por ter carácter definitivo.(2)

Por outro lado, “O procedimento cautelar é sempre dependência da causa que tenha por fundamento o direito acautelado e pode ser instaurado como preliminar ou como incidente de acção declarativa ou executiva”, vd. art.º 383º, n.º 1, do Código de Processo Civil.
2. Com o presente procedimento, requerido já na pendência da acção respectiva, e assim incidental em relação à mesma, pretende a Requerente, enquanto proprietária de fracção autónoma designada pela letra “I”, sito em Lisboa, obstar a que o actual proprietário da fracção autónoma correspondente ao 2º andar Esq.º Frente do mesmo prédio – assim adquirida às identificadas RR. na acção principal – realize obras de “alteração” da dita fracção.
E isto, tendo em vista preservar a prova de que na mesma fracção, as suas anteriores proprietárias procederam a obras de carácter clandestino, que, na acção, alegou a aqui Requerente e ali A., colocarem em causa a sua vida e o seu património, vd. v.g., o art.º 17º da correspondente p. i.

3. Como decorre do citado art.º 383º, n.º 1, temos que a dependência do procedimento cautelar, se exprime através da identidade entre o direito – ou o interesse – acautelado e aquele que se faz valer na acção (implicando, de resto, que as partes no procedimento sejam normalmente partes na acção).(3)
Mesmo quando se realce não ser o objecto da providência cautelar a situação jurídica acautelada ou tutelada, mas, consoante a sua finalidade, a garantia da situação, a regulação provisória ou a antecipação da tutela que for requerida no respectivo procedimento, teremos sempre o reporte directo dessa garantia, regulação ou tutela, à situação jurídica hipoteseanda ou hipoteseada na acção.
Porém, o que se pretende no presente procedimento é a garantia de direito à prova da situação jurídica que fundamenta os pedidos deduzidos na acção.

Ou seja, não existe correspondência directa entre a garantia requerida e a situação para que peticionada é tutela, na acção principal.
Tratando-se de, com a dita providência, se acautelar a prova, que não o direito.

4. O que nos leva à consideração da circunstância de, em paralelo com os procedimentos cautelares – destinados a prevenir prejuízos decorrentes da demora na tramitação processual relativa a direitos que, numa summaria cognitio, se julga existirem – o legislador ter previsto um outro tipo de procedimento destinado a evitar que a referida demora impeça ou dificulte a produção de certos meios de prova necessários à defesa dos direitos ou interesses que se discutem no processo.
Referimo-nos às designadas diligências antecipadas de produção de prova.
Que, no nosso ordenamento jurídico, e diversamente do que ocorre, v. g., em França, Bélgica ou Itália,(4) mereceram autonomização relativamente aos procedimentos cautelares, como incidente processual, mostrando-se incluídas nas disposições gerais sobre a “instrução do processo”, vd. art.ºs 520º e 521º do Código de Processo Civil.
Apresentando-se, aquelas e estes, com diversa estrutura e fim.
Pois que, e quanto ao fim, como referido já, a produção antecipada de prova é um incidente destinado a acautelar a produção de prova e não a acautelar o direito. E, uma vez produzida antecipadamente a prova, tem carácter definitivo, ao passo que no procedimento cautelar o fim é a tutela do direito, ainda que de forma provisória e precária.
Sendo, no que à sua estrutura concerne, que a produção antecipada de prova se esgota em si própria, enquanto o procedimento cautelar visa uma decisão; e, como acto preparatório de acção a propor, a prova produzida antecipadamente não caduca pela não proposição da acção respectiva em certo prazo, ao passo que o procedimento cautelar caduca se a acção de que depende não for proposta dentro do prazo fixado no art.º 389º, n.º 1, al. a), do Código de Processo Civil.
Finalmente, a produção antecipada de prova não dispensa o contraditório, ao passo que o procedimento cautelar pode ser decidido sem audiência prévia da parte contrária, cfr. art.ºs 521º, n.º 2, 517º e 385º, n.º 1, do Código de Processo Civil.

O princípio da legalidade das formas processuais – incluídas as formas incidentais – imporá que se não deva requerer providência cautelar não especificada quando se trate de garantir apenas determinados meios de prova irrepetíveis ou insusceptíveis de posterior apresentação ou produção.
Abrantes Geraldes, acolhendo a regra,(5) ressalva porém, do âmbito de operância da mesma, situações em que a necessária interferência do princípio do contraditório na produção das provas, ainda que antecipada, é susceptível de tornar infrutífera a diligência, permitindo que, de forma ilegítima ou não, se esfumem os vestígios ou as coisas sobre que incide a produção de prova.
Sustentando, que em casos que tais, “não deve ser impedido o recurso a uma providência cautelar não especificada, se esta constituir o mecanismo imprescindível à manutenção e posterior aproveitamento das provas”. (6)
Já no Acórdão desta Relação, de 12-10-1995,(7) se entendeu que a “apreciação da adequação do procedimento cautelar não especificado, em alternativa à produção antecipada de prova, depende do que se pretende fazer valer. Se se quer acautelar um direito, é o procedimento cautelar que deve ser usado, mas quando se tem em vista tão só evitar os inconvenientes de uma prova poder vir a tornar-se impossível ou muito difícil, a solução é a produção antecipada de prova”.
E quer-nos parecer tratar-se, aquela, da incontornável boa interpretação da lei, no quadro legal vigente, sob pena de postergação absoluta dos referenciados princípios da legalidade das formas processuais – que sobreleva em quanto não opere o princípio da adequação formal e do aproveitamento processual (cfr. art.ºs 265º-A e 199º, do Código de Processo Civil) como assim é o caso (8) – e do contraditório em matéria de apresentação e produção de provas.
Correspondendo ao que julgamos ser a jurisprudência dominante, vd., ainda, os Acórdãos da Relação de Évora, de 07-06-1990, e da Relação do Porto, de 01-02-2001. (9)
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No caso em apreço, pretende a Requerente, fora de quaisquer dúvidas, garantir a prova…
Para o que é absolutamente inadequado o procedimento cautelar.
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Improcedendo, pelo exposto, e sem necessidade de outras considerações, as alegações de recurso.

III- Nestes termos, acordam em negar provimento ao agravo, confirmando a decisão recorrida.

Custas pela Recorrente.

Lisboa, 2007-01-18
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(Ezagüy Martins)
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(Maria José Mouro)
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(Neto Neves)
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1 Vd. Abrantes Geraldes, in “Temas da Reforma do Processo Civil”, III Volume (2ª Ed.), Almedina, 2000, pág. 92.
2 O que leva Sónia Teixeira, in ROA, Ano 50º, pág. 894, a concluir que essas medidas, de certo modo, consomem o pedido material, embora reconheça que a alteração das coisas não deixa de ser provisória, sujeita ainda a confirmação na decisão da acção principal.
3 Cfr. neste sentido, José Lebre de Freitas. A. Montalvão Machado. Rui Pinto, in “Código de Processo Civil Anotado”, Volume 2º, Coimbra Editora, 2001, pág. 17.
4 Como dão nota José Lebre de Freitas. A. Montalvão Machado. Rui Pinto, in op. cit., pág. 415.
5 In op. cit., pág. 69.
6 In C. J., Ano XX, Tomo IV, págs. 109-112.
7 A Requerente, claramente, não quis percorrer os trilhos do incidente de produção antecipada de prova, requerendo o decretamento da providência sem audiência prévia do Requerido…e deixando, tanto quanto os autos apontam, de requerer, na acção, tal produção antecipada, em via de inspecção, ainda depois de confrontada com o indeferimento da providência.
8 In C.J., Ano XV, Tomo III, págs. 283-285; e proc. 0031761, in www.dgsi.pt/jtrp.nsf.
9 In op. cit., pág. 59.