Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
11932/20.0T8LSB.L1-7
Relator: JOSÉ CAPACETE
Descritores: RESPONSABILIDADE PRÉ-CONTRATUAL
DEVER DE INFORMAÇÃO
ERRO-VÍCIO
ERRO SOBRE O OBJECTO DO NEGÓCIO
ESSENCIALIDADE
INDEMNIZAÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/28/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: 1. Um dos deveres pré-contratuais que para as partes decorre do art.º 227.º CC, concretizador do princípio da boa-fé na formação dos contratos, é o dever de informação, por força do qual estão vinculadas a fornecer à parte com quem negoceiam as informações necessárias ao conhecimento das circunstâncias que possam ser relevantes para a formação do acordo contratual, o que implica o dever de informar a contraparte sobre todas as circunstâncias relevantes relativas ao concreto negócio em causa, e que esta desconheça.
2. Acresce que as informações que devem ser comunicadas são não apenas as referentes às circunstâncias que se conhecem como também aquelas que poderiam conhecer-se se tivesse usado da normal diligência, visto que o art.º 227.º CC se basta com a mera culpa.
3. É função essencial dos deveres de informação criar as condições necessárias para a liberdade de decisão, devendo o indivíduo deve ser colocado numa posição que lhe permita exercer a sua autonomia privada em conformidade com os seus próprios interesses, de forma racional e refletida, que na conclusão do contrato, quer na modelação do seu conteúdo, função que é também a do regime dos vícios da vontade, em particular, do erro e do dolo.
4. No caso dos pressupostos do erro ou do dolo se encontrarem preenchidos, o negócio é anulável sem mais, sendo relevante o facto de, ao mesmo tempo, se ter violado o princípio da boa-fé na formação dos contratos, situação que apenas importará autonomamente para que se possa conceder uma indemnização ao lesado.
5. Por outro lado, os deveres de informação existem sempre que o princípio da boa-fé assim o imponha, independentemente dos pressupostos de aplicação do regime do dolo e do erro se encontrarem preenchidos, deveres esses que conduzirão à aplicação do regime da responsabilidade pré-contratual por si só.
6. O erro-vício, ou erro-motivo, que pode ser total ou parcial, consiste na ignorância (falta de representação exata) ou numa falsa ideia (representação inexata), por parte do declarante, acerca de qualquer circunstância de facto ou de direito que foi decisiva na formação da sua vontade, por tal maneira que se ele conhecesse o verdadeiro estado das coisas não teria querido o negócio, ou pelo menos não o teria querido nos precisos termos em que o concluiu.
7. Anulabilidade nos termos do art.º 247.º significa que os pressupostos do erro vêm do art.º 251.º (e não da 1.ª parte do art.º 247.º, concebido para a divergência entre vontade e declaração), enquanto os requisitos da anulação resultam da 2.ª parte do art.º 247.º, todos do CC, o que significa que o declarante pode anular a sua declaração, mas apenas desde que o declaratário conhecesse ou não devesse ignorar a essencialidade, para o declarante, da pessoa ou do objeto sobre que incidiu o erro determinante da vontade.
8. O erro é essencial se, sem ele, se não celebraria qualquer negócio ou se celebraria um negócio com outro objeto ou de outro tipo ou com outra pessoa, não relevando o erro incidental, isto é, aquele que influiu apenas nos termos do negócio, pois o errante sempre contrataria, embora noutras condições o mesmo negócio, mantendo-se o tipo negocial, o objeto e os sujeitos.
9. O erro sobre o objeto do negócio compreende as hipóteses em que o desconhecimento ou a falsa representação da realidade respeitam ao bem jurídico - seja este uma coisa ou uma prestação a realizar (objeto mediato) -, assim como ao conteúdo negocial, à natureza do negócio e aos efeitos negociais (objeto imediato).
10. O erro sobre o objeto material ou mediato tem de ser delimitado positivamente, aqui se situando os casos em que se desconhece ou se representa erradamente dada coisa ou prestação na sua configuração objetiva, isto é, nas suas qualidades (características físicas ou jurídicas, identidade ou substância (vg., cor, dimensão, localização, finalidade, atributos, entre outros índices).
11. No erro sobre o objeto jurídico ou imediato, o desconhecimento ou a falsa representação da realidade incide sobre a configuração jurídica da coisa ou prestação (v.g., as situações jurídicas – faculdades, direitos, obrigações, ónus eventualmente existentes), bem como os efeitos correspondentes.
12. É sobre aquele que pretende ver anulado o negócio que recai o ónus de alegação e prova:
- quer da essencialidade, para o declarante, do elemento sobre que incidiu o erro;
- quer da circunstância de o declaratário conhecer ou não dever a essencialidade.
13. A ausência de informações ou a transmissão negligente, pelo declaratário, de informações inexatas, preenchentes dos requisitos do erro-vício, confere ao declarante o direito:
- à anulação do negócio jurídico;
- à redução do negócio jurídico – art.º 292.º CC;
- a uma indemnização pelos danos que a conduta negligente do declaratário (devedor da obrigação de informar com verdade e exatidão) lhe causou, posto que:
- o regime do erro-vício dispensa qualquer atitude de consciência do declaratário;
- o instituto da responsabilidade pré-contratual abrange quer as situações de dolo, quer as situações de negligência.
13. Quando uma das partes foi induzida a contratar por meio de dados errados fornecidos negligentemente, a pretensão indemnizatória dirige-se ao interesse negativo ou dano da confiança, ou seja, se ela não teria contratado ou não o teria feito naquelas condições, deve ser colocada no estado em que se encontraria se o negócio não tivesse sido concluído, o que, por via do princípio da restauração natural (art.º 562.º CC), isso pode significar desfazer os efeitos do contrato (desvincular-se) e pedir uma indemnização pelas despesas tornadas inúteis.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 7.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I – RELATÓRIO:
JBA e mulher, MOA, instauraram a presente ação declarativa sob a forma de processo comum, contra NB, S.A.[1], e B, S.A. – Em Liquidação[2], alegando, em suma, que no dia 11 de fevereiro de 2010, mediante escritura pública, o B, S.A. lhes cedeu os créditos que detinha sobre a sociedade R, S.A.[3], assim como as garantias constituídas para assegurar o cumprimento desses créditos, incluindo hipotecas sobre imóveis e livranças.
Naquela mesma data, entre os autores e o B, S.A.[4]. foi celebrada uma escritura pública mediante a qual este emprestou àqueles a quantia de €1.000.000,00, para aquisição dos créditos detidos pelo Banco sobre a R., S.A..
Um desses créditos era garantido por uma hipoteca constituída a favor do B, S.A., tendo por objeto as frações “P” e “Q” do prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de Torres Vedras sob o n.º ____- freguesia de Torres Vedras (São Pedro e Santiago).
Os autores tiveram recentemente conhecimento de que à data da cessão de créditos corria termos no Tribunal de Torres Vedras uma ação executiva tendo como executada a R., S.A., na qual foi penhorada a fração “Q”.
O B, S.A. reclamou créditos nessa ação executiva, os quais foram graduados em primeiro lugar, pelo produto da venda daquela fração.
No entanto, o B, S.A. nunca informou os autores da existência dessa execução, o que lhes causou grave dano.
Os autores não teriam celebrado com o B, S.A. os negócios acima descritos, se este os tivesse informado da pendência da ação executiva e da penhora nela efetuada sobre a fração “Q”.
A conduta do B, S.A., além dos prejuízos que causou aos autores, torna anuláveis os negócios que estes com ele celebraram, por erro sobre os motivos determinantes da vontade com referência ao objeto do negócio.
Transmitiram-se para o NB as responsabilidades decorrentes da conduta do B, S.A. perante os autores.
Os autores concluem assim a petição inicial:
«Nestes termos e nos mais de direito (...), deve a presente ação ser considerada procedente por provada e:
a) Ser declarada a anulação dos negócios jurídicos em causa nomeadamente o contrato de cessão de créditos celebrado em 11/02/2010 e o contrato de financiamento celebrado em 11/02/2010 e, em consequência,
b) Serem as Rés condenadas, solidariamente, por responsabilidade pré-contratual no pagamento de uma indemnização por danos não patrimoniais no montante de € 20.000,00 (vinte mil euros);
Caso assim não se entenda
c) Deve as Rés condenadas, solidariamente, por responsabilidade civil pré-contratual e contratual ao pagamento de uma indemnização a título de danos patrimoniais no montante de €59.520,00 (cinquenta e nove mil, quinhentos e vinte euros) e a título de danos não patrimoniais no montante de €20.000,00 (vinte mil euros), ou seja, €10.000,00 (dez mil euros a cada autor).»
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O B, S.A. - Em Liquidação contestou, começando por invocar a exceção de caducidade do direito dos autores à anulação dos negócios acima identificados.
Acrescenta que, por deliberação do Banco de Portugal datada de 3 de agosto 2014, o B, S.A. foi sujeito à medida de Resolução, tendo sido determinada a constituição do NB, enquanto banco de transição, a transferência, para este Banco, de ativos, passivos, elementos extrapatrimoniais e ativos sob gestão do B, S.A..
Na sequência dessa medida de resolução, os direitos, obrigações e responsabilidades para o B, S.A. decorrentes dos contratos referidos pelos autores na petição inicial, foram transferidos para o NB.
O B, S.A. – Em Liquidação é, pelo exposto, parte ilegítima para os termos da causa, ocorrendo ainda, relativamente a ele, uma situação de inutilidade da lide.
O B, S.A. – Em Liquidação conclui assim a sua contestação:
«Nestes termos e nos mais de Direito aplicáveis, requer-se a V. Exa se digne:
(i) Julgar procedente, por provada, a exceção perentória de caducidade nos termos e para osefeitosdoartigo576.º, n.º 3 do CPC e, por conseguinte, absolver o Réu B, S.A. dos pedidos contra si formulados; Ou, caso assim não se entenda,
(ii) Julgar procedente, por provada, a exceção de ilegitimidade/ impossibilidade, absolvendo-se, consequentemente, o Réu B, S.A., da instância; Ou, caso assim não se entenda,
(iii) Julgar procedente, por provada, a exceção de inutilidade / impossibilidade da lide, absolvendo-se, consequentemente, o Réu B, S.A., da instância e, consequentemente, condenado os Autores em custas, nos termos do disposto no artigo 527.º do CPC;
(iv) Em qualquer caso, julgar improcedente, por não provada, a presente ação absolvendo-se o Réu B, S.A. dos pedidos contra si formulados, e, consequentemente, condenado os Autores em custas, nos termos do disposto no artigo 527.º do CPC;
Tudo com as devidas consequências legais.»
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O NB também contestou, invocando a sua ilegitimidade para os termos da causa.
Além disso, defende-se por impugnação.
Conclui assim a sua contestação:
«Nestes termos, e nos demais de Direito:
a) Deve a excepção da ilegitimidade do Réu NB ser julgada procedente por provada e, em consequência ser o Réu NB absolvido da instância;
b) Se a alegada excepção for julgada improcedente, deverá, ainda assim, a presente acção ser julgada improcedente, por não provada, absolvendo-se o Réu NB, dos pedidos contra ele formulados.»
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Os autores responderam à matéria de exceção invocada pelos réus nas respetivas contestações, pugnando pela sua improcedência.
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No despacho saneador foi declarada extinta a instância quanto ao B, S.A. – Em Liquidação, por inutilidade superveniente da lide, nos termos do art.º 277.º, al. e)[5], e determinado o prosseguimento da ação apenas quanto ao NB.
Ainda no saneador:
- foi julgada improcedente a exceção dilatória arguida pelo NB, com o fundamento de que é substantiva e não processual a ilegitimidade por ele invocada;
- foi identificado o objeto do litígio; e
- foram enunciados os temas da prova.
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Na subsequente tramitação dos autos foi proferida sentença, de cuja parte dispositiva consta o seguinte:
«Destarte, o Tribunal decide julgar a presente acção totalmente improcedente por não provada e consequentemente, absolver o R NB, SA do pedido.»
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Inconformados, os autores interpuseram o presente recurso de apelação, concluindo assim as respetivas alegações:
«1. Vem o presente Recurso de Apelação interposto da Sentença datada de 4 de abril de 2022, que julgou totalmente improcedente a ação de processo comum intentada pelos ali Autores, absolvendo o Réu NB, SA do pagamento aos Autores da quantia de €59.520,00 (cinquenta e nove mil, quinhentos e vinte euros) a título de danos patrimoniais e €20.000,00 (vinte mil euros) a título de compensação por danos não patrimoniais.
II. Considerou o Tribunal a quo, em suma, que não poderá ser determinada a anulabilidade do negócio por erro, porquanto resultou dos autos que a informação acerca da penhora existente sobre uma das frações hipotecadas foi prestada pelo B, S.A., uma vez que constava dos documentos que foram cedidos ao ali Autores, ora Requerentes, aquando do negócio, e que tal ficou provado.
III. Mais entendeu o Tribunal que, por não se verificar demonstrado qualquer erro ou dolo, perde relevância a questão da caducidade do direito dos ora Recorrentes.
IV. E ainda, no que respeita à responsabilidade pré-contratual do B, S.A. com fundamento no disposto no artigo 227.º do Código Civil, é entendimento do Tribunal recorrido que “não tendo sido demonstrada qualquer atuação por parte do B, S.A. e dos seus colaboradores que tenha sido ofensiva da boa fé no âmbito da formação dos contratos celebrados, não existe desde logo um dos pressupostos da responsabilidade civil invocada pelos AA.”
V. Porém, entendem os aqui Recorrentes que andou mal o Tribunal a quo em dar como não provado factos alegados pelos Autores, suportados de prova documental não refutada, e que bem demonstram a conduta das ali Rés desde o início da problemática ora em crise.
VI. Considerou o Tribunal a quo que não ficou demonstrado, nem assim foi dado como provado, que “os Autores nunca foram informados da existência de tal ação executiva, quer durante as negociações tendentes à celebração dos negócios jurídicos supra referidos – entenda-se o contrato de financiamento e o contrato de cessão de créditos –quer no momento da sua celebração.”
VII. Para tal, o Tribunal desvaloriza as declarações de parte prestadas pelo Recorrente sobre o facto de não ter sido informado da existência de uma penhora sobre uma das frações e que as certidões do registo predial nunca lhe haviam sido facultadas; fundamentou o seu entendimento na convicção profundamente insuficiente de que o ali Autor, ora Recorrente, pela sua experiência, certamente procedeu à análise dos documentos em questão; e ainda decidiu ignorar cabalmente o depoimento prestado pela testemunha DR, quando o mesmo admite não se lembrar de ter conversado sobre a existência de penhora sobre uma das frações com os Recorrentes, assumindo que presume que o Dr. JBA soubesse, em consequência do seu estatuto profissional, e ainda tendo demonstrado incerteza quanto ao facto de que nas certidões constasse tal informação.
VIII. Mas como poderiam os Recorrentes saber, se tal informação nunca lhes foi prestada e se a documentação necessária ao conhecimento de tais factos nunca lhes foi entregue? Se tal factualidade nunca foi referida àqueles que eram, naquela negociação, inevitavelmente, a parte que correria maiores riscos, já que ao contratarem com aquela instituição bancária, colocavam em risco o património adquirido ao longo de uma vida?
IX. Com efeito, não entendem os Recorrentes como pode o Tribunal a quo colocar em causa a obrigatoriedade da Recorrida de informar os Recorrentes das condições sobre os quais eram celebrados aqueles contratos.
X. A comunicação prestada pelo B, S.A. de que havia cedido o crédito foi feita ao Tribunal onde corria o processo executivo, e não aos Recorrentes, pelo que não poderiam estes últimos proceder à necessária habilitação.
XI. O conhecimento de tal factualidade não estava relacionado e nem advém da profissão do Recorrente, da sua experiência profissional, ou de uma maior ou menor facilidade de compreensão da temática, como, de resto, parece ser o entendimento do Tribunal.
XII. O B, S.A., deliberada e intencionalmente, ocultou as informações relativas à existência e conteúdo do processo executivo em causa aos aqui Recorrentes, pelo que deveria ter o Tribunal decidido em sentido contrário ao que veio sentenciado.
XIII. Isto porque, considerando o Tribunal a quo a falta de informação pelo B, S.A., como se impunha, sempre se verificaria o erro sobre uma parte fundamental do objeto do negócio que os Recorrentes não conheciam no momento da celebração.
XIV. Mais entende o Tribunal não se verificar in casu a responsabilidade pré-contratual pelo B, S.A., porquanto não ficou demonstrada “qualquer actuação por parte do B, S.A. e dos seus colaboradores que tenha sido ofensiva da boa fé no âmbito da formação dos contratos celebrados, não existe desde logo um dos pressupostos da responsabilidade civil invocada pelos AA.”.
XV. Aliás, como resulta do depoimento da testemunha DR que afirmou não se recordar de alguma vez ter referido aos Recorrentes a existência do processo executivo.
XVI. Sucede que, pelo facto de estarmos perante um intermediário financeiro, sempre se dirá que se encontra sujeito a especiais deveres de informação, como se encontra estabelecido no artigo 312.º Anexo ao Decreto-Lei 357-A/2007, de 31 de Outubro (in casu, na versão anterior à que atualmente se encontra em vigência), que refere expressamente que o intermediário financeiro deve prestar, relativamente aos serviços que ofereçam que lhe sejam solicitados ou que efetivamente preste, todas as informações necessárias para uma tomada de decisão esclarecida e fundamentada.
XVII. Com efeito, encontram-se preenchidos todos os pressuposto para a verificação de responsabilidade pré-contratual e contratual: o ato ilícito resultante da violação de especiais deveres de informação; o dano, ora traduzido em sérios danos não patrimoniais consequentes da preocupação, insegurança e ansiedade de haverem constituído hipoteca sobre a sua casa de morada de família; e o nexo de causalidade entre o facto ilícito e o dano, já amplamente supra descrito – foi em consequência da ocultação de tão relevantes informações pelo B, S.A. que os aqui Recorrentes celebraram um contrato sobre um objeto do qual já havia uma penhora e assim que tomado o conhecimento não mais recuperaram o sossego e tranquilidade, antes sentiram desconforto, desânimo e desgaste.
XVIII. Certo é que, no âmbito do processo executivo n.º ____/__.1TBTDV, o B., S.A. recuperou um valor de €10.367,35 (dez mil trezentos e sessenta e sete euros e trinta e cinco cêntimos), por conta de uma divida que já não titulava.
XIX. Os Recorrentes viram-se assim impedidos, quer de receber a quantia de €59.520,00 (cinquenta e nove mil, quinhentos e vinte euros), valor pelo qual a fração em causa no processo executivo foi vendida, quer de receber os €10.367,35 (dez mil trezentos e sessenta e sete euros e trinta e cinco cêntimos) que o B, S.A. fez seus.
XX. Pelo que, sempre deveria ter sido dado como provado que, ao contrário do que consta da sentença de que ora se recorre, “o B, S.A. propositada, deliberada e premeditadamente enganou os Autores, obtendo com tal engano diversas vantagens, nomeadamente, pelo facto de ter trocado um “mau” devedor por dois “bons” devedores, por ter visto reforçadas as suas garantias reais (…), além de outro património que os Autores possam ter na sua esfera jurídica e, como jogada final, ainda recuperou uma parte de uma garantia bancária nos autos executivos já indicados.” (sublinhado nosso).
XXI. Tudo visto, resulta da prova produzida nos presentes autos, testemunhal e documental, que a conduta adotada pelo Recorrido é ilícita, violadora de princípios que legalmente se encontravam impostos, e que preenchem os pressupostos da responsabilidade pré contratual e contratual, pelo que deverá a mesma ser condenada no pedido, revogando-se nessa conformidade a sentença recorrida.
Assim decidindo, (...), farão vossas excelências, uma vez mais, inteira e sã justiça.»
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O NB contra-alegou, pugnando pela improcedência do recurso e, consequentemente, pela manutenção da sentença recorrida.
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II – ÂMBITO DO RECURSO:
Como se sabe, sem embargo das questões de que o tribunal “ad quem” possa ou deva conhecer “ex officio”, é pelas conclusões com que o recorrente remata a sua alegação (aí indicando, de forma sintética, os fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão recorrida: art.º 639.º, n.º 1), que se determina o âmbito de intervenção do tribunal de recurso.
Efetivamente, muito embora, na falta de especificação logo no requerimento de interposição, o recurso abranja tudo o que na parte dispositiva da sentença for desfavorável ao recorrente (art.º 635.º, n.º 3), esse objeto, assim delimitado, pode vir a ser restringido (expressa ou tacitamente) nas conclusões da alegação (n.º 4 do mesmo art.º 635.º).
Por isso, todas as questões de mérito que tenham sido objeto de julgamento na sentença recorrida e que não sejam abordadas nas conclusões da alegação do recorrente, mostrando-se objetiva e materialmente excluídas dessas conclusões, têm de se considerar decididas e arrumadas, não podendo delas conhecer o tribunal de recurso, ainda que, eventualmente, hajam sido suscitadas nas alegações propriamente ditas.
Por outro lado, como meio impugnatório de decisões judiciais, o recurso visa tão só suscitar a reapreciação do decidido, não comportando, assim, “ius novarum”, i.e, a criação de decisão sobre matéria nova não submetida à apreciação do tribunal “a quo” (cfr. os art.ºs 627.º, n.º 1, 631.º, n.º 1 e 639.º).
Ademais, também o tribunal de recurso não está adstrito à apreciação de todos os argumentos produzidos em alegação, mas apenas – e com liberdade no respeitante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (art.º 5.º, n.º 3) – de todas as “questões” suscitadas, e que, por respeitarem aos elementos da causa, definidos em função das pretensões e causa de pedir aduzidas, se configurem como relevantes para conhecimento do respetivo objeto, excetuadas as que resultem prejudicadas pela solução dada a outras (art.º 608.º, n.º 2, “ex vi” do art.º 663.º, n.º 2).
À luz destes considerandos, neste recurso importa decidir:
a) se há lugar à alteração da decisão sobre a matéria de facto;
b) caso haja lugar à alteração da decisão sobre a matéria de facto no sentido pretendido pelo recorrente, então, importará decidir:
- se há lugar à anulação dos negócios jurídicos celebrados entre os autores e o B, S.A.;
- se, em consequência da atuação do B, S.A., os autores têm direito a ser indemnizados pelo NB, com base no instituto da responsabilidade pré-contratual.
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III – FUNDAMENTOS:
3.1 – Fundamentação de facto:
3.1.1 – A sentença recorrida considerou provado que:
«a) No dia 11 de Fevereiro de 2010, no Cartório Notarial de PR, foi celebrada uma escritura de cessão de créditos, que consta de fls. 15 dos autos, que teve como intervenientes o “B S.A.”, na qualidade de Cedente e, na qualidade de Cessionários, JBA e MOA.
b) No âmbito da referida escritura, o B, S.A. cedeu aos Autores a titularidade de diversos créditos vencidos perante a sociedade comercial anónima “R, S.A.”, as garantias constituídas para assegurar o seu cumprimento, incluindo as hipotecas e as livranças, bem como todos os documentos representativos e os com eles relacionados.
c) Da escritura resulta também a obrigação a cargo dos aqui Autores de realizar o averbamento registal da cessão de créditos na Conservatória de Registo Predial onde as hipotecas se encontravam registadas, obrigação esta que cumprida a 19.02.2010, conforme consta de fls.19v, cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido.
d) No mesmo dia (11 de Fevereiro de 2010) as partes intervenientes na escritura de cessão de créditos, ou seja, JBA e MOA e o B, S.A. outorgaram uma escritura intitulada “Hipoteca e Mandato” e respectivo contrato de financiamento a esta anexa, com o número ____, no qual aquele Banco mutuava aos Autores a quantia de €1.000.000,00 (um milhão de euros) para e citamos: “Aquisição de Créditos ao B, S.A. referente a financiamentos da empresa R, S.A.”, conforme consta de documento de fls.23, cujo teor se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
e) O contrato de financiamento celebrado, a hipoteca que lhe serviu de garantia e as livranças subscritas apenas foram concretizados em função e em conexão directa com a escritura de cessão de créditos supra referida, ou seja, o B, S.A. cedeu créditos pelo preço de €1.000.000,00 (um milhão de euros) aos Autores, mutuando-lhes exactamente essa mesma quantia.
f) Acontece que um dos créditos cedidos, identificado no número um, alínea d) da escritura referida em a), era garantido por hipoteca sobre as fracções “P” e “Q” do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de ____ sob o número ____ da freguesia de Torres Vedras (S. Pedro e Santiago), pela inscrição AP __/____.
g) No que se reporta à fracção “Q” supra identificada, correu termos no extinto Tribunal Judicial de Torres Vedras, à data da celebração da cessão de créditos e, consequentemente, do contrato de financiamento sub judice, uma acção executiva, com o número de processo ____/__.1TBTVD, cuja autuação data de __/__/___, tendo como Exequente o Condomínio do Prédio ____, em Torres Vedras e Executado a R, S.A, no âmbito do qual foi registada penhora sobre a fracção a 10.03.2008.
h) Foi ainda registada uma outra penhora sobre a mesma fracção a 5.05.2009 no âmbito de execução movida pela Fazenda Nacional contra a R, como resulta de fls.270;
i) Como apenso da acção supra mencionada, correu termos reclamação de créditos, tendo o B, S.A. reclamado créditos com garantia hipotecária no montante de € 1.251.835,39.
j) No âmbito daquele apenso foi então proferida sentença, a __/__/___, graduando o crédito reclamado pelo B, S.A. em primeiro lugar.
k) A __/__/___, veio o B, S.A., através de requerimento ao processo, informar o Tribunal que “(…) o respectivo saldo devedor se encontra, actualmente, reduzido ao crédito emergente de garantia bancária – cfr. Artigos 53.º a 55.º da RC – uma vez que foi, entretanto, pago, das restantes responsabilidades, por via de cessão de créditos ao avalista JBA”, conforme fls.229 dos autos.
l) A __/__/___ o B foi notificado sobre decisão de modalidade da venda do imóvel penhorado nos autos.
m) A __/__/___ o B é notificado da data e hora da abertura de propostas.
n) A __/__/___ o B é notificado da abertura das propostas de cartas fechadas.
o) A __/__/___ o B é notificado informar qual o saldo devido com respectivos juros e o NIB;
p) A __/__/___ foi finalizada a venda judicial pelo montante de €64.500,00 a LC, conforme fls.39v.
q) A __/__/___ foi enviada nota discriminativa pela Senhora Agente de Execução, onde consta que o montante indicado pelo B, S.A. foi de €10.367,35 – fls.40.
(da contestação)
r) O Réu NB, no âmbito do poder de gestão dos seus activos, tomou a decisão de ceder à B DAC os créditos que detinha sobre os Autores.
s) Tal cessão foi notificada pelas partes aos Autores conforme decorre dos documentos que se juntam com os números 6 e 7.
t) os Autores foram informados da existência do processo executivo n.º  ____/__.1TBTDV e consequente penhora (processo movido pelo Condomínio contra a R), que se encontraria registada na fração “Q”.
u) O NB intentou contra os AA execução, com fundamento no incumprimento do contrato de mútuo referido em d) e que corre termos nos Juízos de Execução de Lisboa – Juiz _, sob o n.º ____/__.0T8LSB.
3.1.2 – (...) e não provado que:
- os Autores nunca foram informados da existência de tal acção executiva, quer durante as negociações tendentes à celebração dos negócios jurídicos supra referidos – entenda-se o contrato de financiamento e o contrato de cessão de créditos – quer no momento da sua celebração.
- se os aqui Autores tivessem sabido da existência de um litígio onde a garantia que iria transitar no contrato de cessão de créditos que estavam prestes a assinar se encontrava penhorada, jamais teriam celebrado aquele contrato e muito menos nos termos em que foi outorgado.
- o conjunto de garantias reais que transitou com a cessão de créditos sub judice, e em concreto a garantia sobre a fracção “Q” supra identificada, permitiu dar aos Cessionários a segurança fundamental de que iriam receber, com um muito elevado grau de probabilidade, pelo menos uma parte dos créditos de que eram titulares.
- não fosse a existência destas garantias e a omissão de que uma delas estava penhora, nunca os Autores teriam concordado em hipotecar a sua casa de morada de família, como fizeram para realizarem estes negócios, situação que, após terem tomado conhecimento dos factos aqui invocados, lhes tem causado sofrimento psicológico, desânimo, desconforto, abatimento, desgosto e desgaste.
- o B propositada, deliberada e premeditadamente enganou os Autores, obtendo com tal engano diversas vantagens, nomeadamente, pelo facto de ter trocado um “mau” devedor por dois “bons” devedores, por ter visto reforçadas as suas garantias reais (veja-se que a casa morada de família que os Autores hipotecaram tem um valor de cerca de 850.000,00 (oitocentos e cinquenta mil euros), além de outro património que os Autores possam ter na sua esfera jurídica e, como jogada final, ainda recuperou uma parte de uma garantia bancária nos autos executivos já indicados.»[6].
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3.2 – Mérito do recurso:
3.2.1 – Notas prévias:
3.2.1.1 – A elencagem dos factos não provados na sentença:
Não é a melhor técnica processual aquela que foi utilizada pela senhora juíza a quo na elencagem dos enunciados de facto não provados, sem qualquer ordem numéria ou alfabética.
Em caso de impugnação da decisão sobre a matéria de facto, uma tal técnica dificulta, em muito, o labor, quer das partes na identificação dos pontos de facto objeto da impugnação, quer, posteriormente, do Tribunal da Relação na apreciação dessa impugnação.
3.2.1.2 – O relatório da sentença:
A estrutura de uma sentença integra, nos termos definidos nos artigos 607.º, n.º 2 e 3, e 608.º, vários segmentos, o primeiro dos quais, o relatório, no qual devem ser:
- identificadas as partes e o objeto do litígio;
- enunciadas as questões a resolver.
As questões a equacionar versam sobre as pretensões deduzidas, integradas pelo pedido e pela causa de pedir, incluindo a eventual pretensão reconvencional, e as exceções invocadas no terreno da defesa ou de que o juiz deva conhecer oficiosamente, nos termos do art.º 608.º do CPC.
Todavia, no âmbito de tais questões, devem ainda ser enunciados os tópicos específicos que importe identificar como configuração da grelha da análise jurídica a empreender.
Por conseguinte, neste contexto, a linguagem terá de ser, necessariamente, de matriz mais técnica, como umbral que é para o discurso jurídico da fundamentação[7].
Isto para salientar que, no caso concreto, a sentença recorrida não enuncia as questões a resolver, limitando-se a afirmar, sem que se perceba com que finalidade:
«Procedeu-se a audiência prévia.
(...)
Foi fixado o objecto do litígio e enunciados os temas da prova (Saber quais as circunstâncias que presidiram à celebração do negócio; Saber qual o comportamento das partes na realização do mesmo, designadamente do conhecimento por parte dos AA da execução referida nos autos, os termos em que a mesma se desenrolou e a intervenção do B, S.A. nesta e do que o B, S.A. deu a conhecer aos AA relativamente a esse assunto, Saber quais os danos causados aos AA.)»[8].
O objeto do litígio foi assim identificado:
«Da nulidade do negócio por erro doloso e das suas consequências em termos de responsabilidade civil.»
Tratou-se de uma incorreta identificação do objeto do litígio.
Os apelantes alegam na petição inicial que ao negociarem com o B, S.A. nos termos ali descritos, o fizeram numa situação de erro que atingiu os motivos determinantes da sua vontade, com referência ao objeto do negócio, o que, nos termos do invocado art.º 251.º CC, o torna anulável, e não nulo.
Assim, não poderia o objeto do litígio ser identificado nos termos em que o tribunal a quo o identificou, em despacho autónomo subsequente à audiência prévia.
3.2.1.3 – A enunciação factológica:
Tal como sobre as partes recai o dever de alegação de factos essenciais que constituem a causa de pedir e em que se baseiam as exceções invocadas (art.ºs 5.º, n.º 1, 552.º, n.º 1, al. d) e 572.º, al. c), do C.P.C.), a enunciação linear, lógica e cronológica dos factos, tanto dos provados, como dos não provados, dentro dos limites dos temas da prova anteriormente enunciados, deve ater-se igualmente aos factos essenciais alegados no processo por cada uma das partes, de modo a cobrir todas as soluções plausíveis da questão ou questões de direito; ou seja, a enunciação factológica efetuada pelo juiz na sentença deve abarcar necessariamente uma pronúncia (positiva, negativa, restritiva ou explicativa), linear, lógica e cronológica, sobre factos essenciais (nucleares) que foram alegados para sustentar a causa de pedir ou fundar as exceções, e de outros factos, também essenciais, ainda que de natureza complementar que, de acordo com a fattispecie da norma jurídica aplicável, se revelem necessários para a procedência da ação ou da exceção.
Além de que, sendo necessária, deve ainda fazer-se a enunciação dos factos concretizadores, também eles essenciais, da factualidade que se apresente difusa, sendo importante referir que a enunciação dos factos complementares e/ou concretizadores, repete-se, também eles essenciais, deve fazer-se desde que se apresentem como imprescindíveis para a procedência da ação ou da defesa, à luz dos diversos segmentos normativos relevantes para a decisão do caso concreto[9].
Tomé Gomes salienta que «quanto ao critério de seleção dos factos a submeter a juízo probatório, importa reter que o julgamento da matéria de facto controvertida, submetida a instrução e discussão em audiência final, sob a forma de temas de prova, deve ser formulado através de juízos probatórios, tendo por objeto os factos alegados pelas partes nos respetivos articulados ou na audiência prévia, bem como aqueles de que for lícito ao tribunal conhecer nos termos do n.º 2 do artigo 5.º do CPC, mormente os factos complementares ou concretizadores de outros oportunamente alegados e que tenham decorrido da instrução. Mas o tribunal só deve atender aos factos que, tendo sido oportunamente alegados ou licitamente introduzidos durante a instrução, forem relevantes para a resolução do pleito[10], não cabendo pronunciar-se sobre factos que se mostrem inequivocamente desnecessários para tal efeito.
Assim, desde logo, são relevantes:
- os factos essenciais à procedência das pretensões deduzidas, ou seja, aqueles que têm a virtualidade de preencher a previsão normativa (facti species) favorável a tais pretensões, na perspetiva do efeito pretendido, segundo as regras de repartição do ónus da prova;
- os factos essenciais suscetíveis de integrar os fundamentos de exceção perentória deduzida ou que deva ser objeto de conhecimento oficioso.
De entre os factos essenciais, há que destacar os que respeitam a factualismos complexos tendentes a preencher conceitos de direito indeterminados ou cláusulas gerais (culpa, necessidade do locado para habitação, justa causa, abuso de direito, boa fé, alteração normal das circunstâncias, posse, sinais visíveis e permanentes para efeitos de servidão de passagem, etc.).
Nesse tipo de factualidade, o facto essencial não é consubstanciado num núcleo definido e cerrado, mas irradia-se numa multiplicidade de circunstâncias moleculares que, na sua aglutinação, preenchem o conceito indeterminado ou a cláusula genérica da facti species normativa. É sobretudo no âmbito deste tipo de factos complexos que podem ocorrer concretizações ou complementaridades dimanadas da produção da prova em audiência, suscetíveis de levar ao ajustamento do contexto narrativo dos articulados ao contexto histórico do litígio.
Tais concretizações ou complementaridades fácticas podem ser introduzidas no objeto da prova, ao abrigo e nos termos do disposto no artigo 5.º, n.º 2, alínea b), do CPC, mas, pelo menos, têm de encontrar-se respaldadas em factualidade nuclear já alegada, não sendo legítimo que subvertam esta factualidade em termos de contender com os princípio do contraditório e da igualdade substancial das partes.»[11].
Tal como os autores estruturam a petição inicial, o que se impunha ao tribunal a quo era que, na fundamentação de facto da sentença, procedesse à enunciação, tanto dos factos provados, como dos não provados, de modo a nela abarcar, necessariamente, uma pronúncia (positiva, negativa, restritiva ou explicativa), linear, lógica e cronológica, sobre os factos essenciais (nucleares) que foram alegados para sustentar a causa de pedir da ação, e de outros factos, também essenciais, ainda que de natureza complementar que, de acordo com a fattispecie da(s) norma(s) jurídica(s) aplicável(eis), e segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito, se revelassem necessários para a procedência da ação.
E que norma(s) é(são) essa(s)?
As contidas nos art.ºs 251.º e 227.º CC, pois, como claramente resulta da petição inicial é com base na previsão destes normativos que os autores estruturam, a título principal e subsidiário, a causa de pedir que seve de fundamento à ação.
Não foi, no entanto, esse o caminho seguido pelo tribunal a quo, que verteu na fundamentação de facto, tanto no que respeita aos factos provados, como aos não provados, enunciados:
- uns, sem qualquer relevo para a decisão da causa;
- outros, sem qualquer suporte factual, que não configuram factos jurídicos, antes consubstanciando conceitos vagos e juízos meramente valorativos e conclusivos.
Factos, em processo civil, significa factos jurídicos ou juridicamente relevantes atinentes sobretudo, ainda que não em exclusivo, conforme afirma Antunes Varela[12], a ocorrências da vida real, assim como ao estado, à qualidade ou à situação real das pessoas ou das coisas.
Na exemplar definição de Rosenberg, factos jurídicos são os acontecimentos (e circunstâncias) concretos, determinados no espaço e no tempo, passados e presentes, do mundo exterior e da vida anímica humana que o direito objetivo converteu em pressuposto de um efeito jurídico[13].
Para Alberto dos Reis, juridicamente relevantes são os factos que constituem «ocorrências da vida real, isto é, os fenómenos da natureza, ou as manifestações concretas dos seres vivos, nomeadamente os actos e factos humanos (…) vistos à luz das normas e critérios do direito.»[14].
Os termos e condições em que tais factos assumem relevo no processo civil é, como referido, decorrência da tipologia com que são delineados na fatispécie do quadro normativo que serve de fundamento à pretensão deduzida em juízo.
Conforme exemplarmente afirma Tomé Gomes, «a enunciação da matéria de facto traduz-se na exposição descritivo-narrativa tanto da factualidade assente por efeito legal da admissão por acordo ou da eficácia probatória plena de confissão ou de documentos, como dos factos provados ou não provados durante a instrução, devendo ser expurgada de valorações jurídicas, de locuções metafóricas e de excessos de adjetivação.
Os enunciados de facto devem ser expressos numa linguagem natural e exata, de modo a retratar com objetividade a realidade a que respeitam, e devem ser estruturados com correção sintática e propriedade terminológica e semântica. A adequação dos enunciados de facto deve pautar-se pela exigência de evitar que esses enunciados se apresentem obscuros (de sentido vago ou equívoco), contraditórios (integrados por termos ou proposições reciprocamente excludentes) e incompletos (de alcance truncado), vícios estes que figuram como fundamento de anulação da decisão de facto, em sede de recurso de apelação, nos termos do artigo 662.º, n.º 2, alínea c), do CPC.
(...) as partes tendem a adestrar a factualidade pertinente no sentido estrategicamente favorável à posição que sustentam no seu confronto conflitual, daí resultando enunciados, por vezes, deformados, contorcidos ou de pendor mais subjetivo ou até emotivo.
Cumprirá, por sua vez, ao juiz, na formulação dos juízos de prova, expurgar tais deformações, sendo que, como é entendimento jurisprudencial corrente, não se encontra adstrito à forma vocabular e sintática da narrativa das partes, mas sim ao seu alcance semântico. Deve, pois, adotar enunciados que, refletindo os resultados probatórios, sejam portadores de um sentido semântico, o mais consensual possível, de forma a garantir que a controvérsia se desenvolva em sede da sua substância factual e não no plano meramente epidérmico dos seus modos de expressão linguística.
Os enunciados de facto devem também ser expostos numa ordenação sequencial lógica e cronológica que facilite a conjugação dos seus diversos segmentos e a compreensão do conjunto factual pertinente, na perspetiva das questões jurídicas a apreciar. Com efeito, a ordenação sequencial das proposições de facto, bem como a ligação entre elas, é um fator de inteligibilidade da trama factual, na medida em que favorece uma interpretação contextual e sinótica, em detrimento de uma interpretação meramente analítica, de enfoque atomizado ou fragmentário. Por isso mesmo, na sentença, cumpre ao juiz ordenar a matéria de facto - que se encontra, de algum modo parcelada, em virtude dos factos assentes por decorrência da falta de impugnação - na perspetiva do quadro normativo das questões a resolver. De resto, só uma adequada ordenação dos factos provados permite compatibilizar toda a matéria factual adquirida, como se determina no artigo 607.º, n.º 4, parte final, do CPC.
(...) os enunciados dos juízos de prova devem nortear-se pela completude, clareza e coerência possíveis, em face dos resultados da prova, de forma a prevenir os vícios formais de deficiência, obscuridade e contradição, que constituem fundamento de anulação do julgamento nos termos do art.º 662.º, n.º 2, alínea c), do CPC. 
(...) a narrativa factológica processual requer especificidades ditadas pelo seu próprio contexto e funcionalidade, em que predominam exigências de objetividade, clareza e, em suma, de suficiente compreensibilidade para os destinatários das decisões judiciais.
Nessa linha, a segmentação dos factos tem de ser ponderada não em função de arquétipos abstratos, porventura de pendor estético, nem de simplismos redutores, mas atentando no concreto contexto do litígio, em especial na intensidade impugnativa que tenha recaído sobre cada ponto de facto e na conjugação com os concretos meios de prova convocados para a sua demonstração e até mesmo em vista das exigências de operacionalidade na articulação do argumentário probatório com os enunciados fácticos nele reportados.
(...).
Se, porventura, se concentrarem num só enunciado factual vários segmentos que mereceram impugnação e produção de prova específica ou diferenciada, tal concentração dificultará, sem dúvida, o reporte a fazer em sede de argumentação probatória, bem como o exercício do ónus de impugnação exigido ao recorrente e ao recorrido pelo artigo 640.º, n.º 1, alíneas a) e b), e n.º 3, do CPC, e, por fim, a identificação e reapreciação dos pontos impugnados por parte do tribunal de recurso.
Em suma, a segmentação dos enunciados de facto deve ter por base a natureza dos factos em causa, a sua estrutura morfológica empírico-normativa, o seu contexto impugnativo e probatório, e ainda as exigências de objetividade e clareza requeridas pela sua conjugação com a respetiva motivação em 1.ª instância e pela impugnação e reapreciação em sede de recurso.»[15].
Na fundamentação de facto da sentença recorrida:
- os enunciados de facto, tanto os provados, como os não provados, não são enunciados de forma linear, lógica e cronológica[16];
- constam enunciados que não são expressos numa linguagem clara, simples, natural e exata, nem se mostram estruturados com correção sintática e propriedade terminológica e semântica[17];
- são enunciados factos sem qualquer relevo para a decisão da causa[18];
- são descritos enunciados que se traduzem em juízos conclusivos e valorativos, sem qualquer suporte factual[19].
3.2.2 – Da impugnação da decisão sobre a matéria de facto:
Dispõe o n.º 1 do art.º 640.º:
«1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.»
Nos termos da al. a) do n.º 2, «no caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes.»
Conforme refere Abrantes Geraldes, «a rejeição total ou parcial do recurso respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto deve verificar-se em algumas das seguintes situações:
a) Falta de conclusão sobre a impugnação da decisão da matéria de facto (art.ºs 635.º, n.º 4, e 641.º, n.º 2, al. b));
b) Falta de especificação, nas conclusões, dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorretamente julgados (art.º 640.º, n.º 1, al. a));
c) Falta de especificação, na motivação, dos concretos meios probatórios constantes do processo ou nele registados (v.g. documentos, relatórios periciais, registo escrito, etc.);
d) Falta de indicação exata, na motivação, das passagens da gravação em que o recorrente se funda;
e) Falta de posição expressa, na motivação, sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação.»[20].
Ainda segundo o mesmo Autor, «as referidas exigências devem ser apreciadas à luz de um critério de rigor. Trata-se, afinal, de uma decorrência do princípio do princípio da autorresponsabilidade das partes, impedindo que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo.»[21].
A necessidade de especificação, nas conclusões, dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorretamente julgados, resulta do estipulado no art.º 639.º, n.º 1, segundo o qual, as conclusões delimitam a área de intervenção do tribunal ad quem, exercendo uma função semelhante à do pedido, na petição inicial, ou à das exceções, na contestação.
Assim, a exigência da especificação, nas conclusões, dos concretos pontos de facto que se pretendem impugnar, visa a delimitação do objeto do recurso sobre a impugnação da decisão de facto.
Por isso, a ausência de especificação, nas conclusões do recurso, dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorretamente julgados não pode ser suprida pela circunstância de, no corpo das alegações, ou seja, na motivação, constarem, eventualmente, os elementos exigidos pelo art.º 640.º.
Vejamos, então, o que ocorre no caso concreto!
No ponto XX. das conclusões afirmam os apelantes: «Pelo que, sempre deveria ter sido dado como provado que, ao contrário do que consta da sentença de que ora se recorre, “o B, S.A. propositada, deliberada e premeditadamente enganou os Autores, obtendo com tal engano diversas vantagens, nomeadamente, pelo facto de ter trocado um “mau” devedor por dois “bons” devedores, por ter visto reforçadas as suas garantias reais (…), além de outro património que os Autores possam ter na sua esfera jurídica e, como jogada final, ainda recuperou uma parte de uma garantia bancária nos autos executivos já indicados.”».
Ou seja, pugnam os apelantes para que o enunciado considerado não provado, descrito em 3.1.2.e), seja considerado não provado.
Já atrás nos referimos a tal enunciado!
Ele não configura um enunciado fático, não representa um facto jurídico, traduzindo-se antes num juízo puramente conclusivo e valorativo, com locuções metafóricas e excesso de adjetivação, insuscetível, como se afirmou, de integrar a fundamentação de facto de uma sentença, seja em sede de factualidade provada, seja em sede de factualidade não provada, não se compreendendo, por isso, o que levou o tribunal a quo a inclui-lo na fundamentação de facto da sentença recorrida, no contexto dos factos não provados.
Mais não é necessário para rejeitar, quanto a este enunciado, a impugnação da decisão sobre a matéria de facto.
Aliás, e para evitar subsequentes eventuais perturbações processuais, há que considerar tal enunciado como não escrito.
Dispunha o n.º 4 do art.º 646.º do CPC/95-96, que «têm-se por não escritas as respostas do tribunal coletivo sobre questões de direito e bem assim as dadas sobre factos que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes».
Trata-se de uma disposição que o legislador processual civil de 2013 não manteve, pelo menos em termos de correspondência direta, na disciplina homóloga do CPC/2013.
Naquela disposição não estava contemplada a circunstância de se tratar de matéria de natureza vaga, genérica e conclusiva.
No entanto, foi-se consolidando na jurisprudência dos tribunais superiores, por se ter admitido que assume feição de recorte jurídico, a operação de escrutinar se determinada proposição de facto tem ou não natureza conclusiva, o entendimento de que apesar de o n.º 4 do art.º 646.º do CPC/95-96, não contemplar, expressamente, a situação de sancionar como não escrito um facto conclusivo, o mesmo era aplicável, analogicamente, a situações em que estivesse em causa um facto de tal natureza, o qual, em retas contas, é reconduzível à formulação de um juízo de valor que se deve extrair de factos concretos objeto de alegação e prova, e desde que a matéria se integrasse no thema decidendum[22].
Na afirmativa, a proposição será conclusiva se exprimir uma valoração jurídico-subsuntiva essencial, devendo, por isso, ser expurgada[23].
Ante a eliminação da norma contida no n.º 4 do art.º 646.º do CPC/1995-96, vem-se entendendo poder manter-se o mesmo entendimento das coisas interpretando, a contrario sensu, o atual n.º 4 do art.º 607.º, do CPC/2013, segundo o qual, «na fundamentação da sentença, o Juiz declara quais os factos que julga provados (...)»[24].
Assim, considera-se não escrito o último enunciado considerado não provado na sentença recorrida.
Além daquele enunciado, os apelantes apenas especificam, nas conclusões, um outro concreto ponto de facto que consideram incorretamente julgado.
Na verdade, depois de no ponto V. das conclusões afirmarem «Porém, entendem os aqui Recorrentes que andou mal o Tribunal a quo em dar como não provado factos alegados pelos Autores, suportados de prova documental não refutada, e que bem demonstram a conduta das ali Rés desde o início da problemática ora em crise», afirmam no ponto VI. que «Considerou o Tribunal a quo que não ficou demonstrado, nem assim foi dado como provado, que os Autores nunca foram informados da existência de tal acção executiva, quer durante as negociações tendentes à celebração dos negócios jurídicos supra referidos – entenda-se o contrato de financiamento e o contrato de cessão de créditos – quer no momento da sua celebração.».
Trata-se do primeiro enunciado que a sentença recorrida considerou não provado e que acima se mostra descrito em 3.1.2.a).
Nenhum outro ponto facto, provado ou não provado, é especificado pelos apelados nas conclusões como tendo sido incorretamente julgado.
Por conseguinte, só em relação àquele concreto ponto de facto, os apelantes cumpriram os ónus impostos pelo art.º 640.º.
É certo que no corpo das alegações os apelantes indicam como incorretamente julgado o enunciado vertido em t) dos factos provados: «os Autores foram informados da existência do processo executivo n.º ____/__.1TBTDV e [por] consequente [da] penhora (processo movido pelo Condomínio contra a R), que se encontraria registada na fração “Q”.»
No entanto, relativamente a ele, os apelantes não cumprem o ónus da sua especificação nas conclusões.
Por isso, rejeita-se a impugnação da decisão sobre a matéria de facto relativamente ao enunciado descrito sob a al. t) dos factos provados.
Consequentemente, a apreciação, pela Relação, da impugnação da decisão sobre a matéria de facto, apenas poderia incidir sobre o ponto os factos não provados, o descrito supra em 2.1.2.a): «os Autores nunca foram informados da existência de tal acção executiva, quer durante as negociações tendentes à celebração dos negócios jurídicos supra referidos – entenda-se o contrato de financiamento e o contrato de cessão de créditos – quer no momento da sua celebração.»
Ora, subsistindo provado que «os Autores foram informados da existência do processo executivo n.º ____/__.1TBTDV e [por] consequente [da] penhora (processo movido pelo Condomínio contra a R), que se encontraria registada na fração “Q”.» (3.1.1.t), prejudicada fica a apreciação da impugnação da decisão sobre o ponto de facto não provado descrito em 3.1.2.a).
Não faria sentido, sendo manifestamente contraditório, considerar provado aquele facto e, ao mesmo tempo, considerar provado que «os Autores nunca foram informados da existência de tal acção executiva, quer durante as negociações tendentes à celebração dos negócios jurídicos supra referidos – entenda-se o contrato de financiamento e o contrato de cessão de créditos – quer no momento da sua celebração.»
Por outro lado, importa deixar bem claros alguns aspetos!
Num caso como o presente, não basta a “simples” circunstância de o co-autor, aqui co-apelante, JBA, ter afirmado, em declarações de parte prestadas na audiência final:
- «nunca fui informado por ninguém» (“que sobre uma das frações havia uma penhora”), «nunca tive acesso a isso» (ou seja “a documentação”, a “certidões da frações”, a “certidões da conservatória”);
- «Repare uma coisa as coisas entre, entre, neste negócio tinham, tinham digamos que uma componente de confiança mútua que não me levavam nunca, nunca me passou pela cabeça que do outro lado alguém ou, ou instituição, é melhor dizer a instituição, est…, ou fizesse qualquer coisa que não estivesse em condições, portanto não, foi questão que não, sinceramente foi questão que nunca se me pôs. Não, não, nunca desconfiei, nunca desconfiei do B, não é?! Neste caso NB, agora.»,
- «Não, que eu me lembre, não», em resposta a uma pergunta se «alguma vez foi notificado de alguma execução»,
para se considerar provado que «os Autores nunca foram informados da existência de tal acção executiva, quer durante as negociações tendentes à celebração dos negócios jurídicos supra referidos – entenda-se o contrato de financiamento e o contrato de cessão de créditos – quer no momento da sua celebração.»
Desde logo, o co-autor e aqui co-apelante, JBA age, procede, alega, argumenta, fundamenta, ao longo do processo, como se fosse o único titular ativo da lide.
No entanto, não é assim, pois, titulares ativos da lide são dois: ele e a sua mulher, MOA.
O co-autor e aqui co-apelante JBA, limita-se a afirmar, em declarações de parte:
- que ele nunca foi informado por ninguém da existência de penhoras sobre as frações “P” e “Q” acima identificadas;
- que ele nunca teve acesso a documentação ou certidões;
- que a ele nunca tal questão foi posta;
- que ele, ao que se lembra, nunca foi notificado de alguma execução.
E quanto à co-autora e aqui co-apelante, MOA?
Também não sabia de nada? Também não foi informada de nada? Nem da pendência da ação executiva? Nem da penhora incidente sobre aquelas frações?
É que, quanto a essas questões, ninguém se lhe referiu!
Nem o seu marido, nem a testemunha DR, em cujo depoimento os apelantes pretendem apoiar-se na impugnação da decisão sobre o ponto de facto não provado descrito em 2.1.2.a).
A propósito do depoimento desta testemunha, ele nada esclarece quanto ao alegado desconhecimento, pelo co-autor e co-apelante JBA – pois apenas e só a ele a testemunha fez referência – da pendência da ação executiva e da realização da penhora.
Por outro lado, e mais importante, a testemunha MA, filho dos autores e aqui apelantes, no depoimento que prestou na audiência final, afirmou que o seu pai era sócio da R e administrador do B, Leasing, e que, por uma questão de preservação da sua reputação, assumiu as dívidas da sociedade «que outro sócio contraiu», dando de garantia a sua casa no empréstimo que contraiu para esse efeito.
Tenha-se ainda presente que a co-autora e aqui co-apelante, MOA, chegou a ser administradora suplente da sociedade R, conforme decorre da certidão permanente da matrícula desta sociedade, junta a estes autos na sequência de despacho do ora relator.
Como é do domínio público, a B, Leasing era uma instituição financeira de crédito pertencente ao Grupo B, S.A..
A questão que agora se coloca é esta: é crível, num caso como o presente, à luz das regras da experiência da vida e da lógica, que os autores/apelantes, ou, pelo menos, o co-autor/co-apelante JBA, desconhecessem a pendência da ação executiva e a existência da penhora aqui em causa?
Por outras palavras, estando provado que:
- «a) No dia 11 de Fevereiro de 2010, no Cartório Notarial de PR, foi celebrada uma escritura de cessão de créditos, que consta de fls. 15 dos autos, que teve como intervenientes o “B S.A.”, na qualidade de Cedente e, na qualidade de Cessionários, JBA e MOA.»;
- «b) No âmbito da referida escritura, o B, S.A. cedeu aos Autores a titularidade de diversos créditos vencidos perante a sociedade comercial anónima “R, S.A.”, as garantias constituídas para assegurar o seu cumprimento, incluindo as hipotecas e as livranças, bem como todos os documentos representativos e os com eles relacionados.»,
fazendo parte dessas garantias as hipotecas incidentes sobre as frações “P” e “Q”, é lógico, é razoável, é conforme com as regras da experiência da vida, que os autores/apelantes (ou pelo menos o co-autor/co-apelante JBA), ao celebrarem, no dia 11 de fevereiro de 2010, com o B, S.A., na qualidade de cessionários, o referido negócio de cessão de créditos de que aquela entidade bancária era titular sobre a R, não estivessem cientes, não estivessem inteirados, com referência àquela data, da situação jurídica das ditas frações, nomeadamente, da fração “Q”, que é aquela que aqui e agora importa?
A resposta não pode deixar de ser a acima enunciada: não é crível que desconhecessem a pendência da execução e a existência da penhora.
Em suma: improcede a impugnação da decisão sobre o primeiro ponto de facto considerado não provado, o acima descrito em 3.1.2.a).
*
3.2.3 – Do enquadramento jurídico:
Os autores/apelantes estribam a sua pretensão:
- no regime do erro sobre o objeto do negócio (art.ºs 251.º e 247.º CC); e, subsidiariamente,
- no instituto da responsabilidade pré-contratual (art.º 227.º CC).
Não obstante o instituto da responsabilidade pré-contratual ser invocado a título subsidiário, no caso concreto, considerando a forma como os autores estruturam a petição inicial, parece-nos, como a seguir melhor se compreenderá, lógico e coerente começar por apreciar a questão da responsabilidade prá-contratual e em seguida a questão da alegada invalidade negocial.
No art.º 227.º CC encontramos a boa-fé em sentido objetivo, como princípio geral de direito, como regra de conduta, um padrão objetivo de comportamento.
Trata-se de um princípio normativo que exige que as partes se comportem de forma honesta, correta, leal[25].
Um dos deveres pré-contratuais que para as partes decorre do citado preceito, concretizador do referido princípio da boa-fé na formação dos contratos, é o dever de informação, por força do qual estão vinculadas a fornecer à parte com quem negoceiam as informações necessárias ao conhecimento das circunstâncias que possam ser relevantes para a formação do acordo contratual; ou seja, o dever de informação implica o dever de informar a contraparte sobre todas as circunstâncias relevantes relativas ao concreto negócio em causa, e que esta desconheça.
De outra forma dito ainda, «mesmo que as partes prossigam interesses opostos, como é normalmente o caso, haverá o dever de esclarecer a contraparte sobre as circunstâncias que podem frustrar o fim do contrato e que, por isso, são de especial significado para a sua decisão, desde que a contraparte possa esperar a sua comunicação, em conformidade com as conceções dominantes do tráfico. Ou seja, em princípio, não existirá um dever pré-contratual geral de informação: só relativamente a determinados elementos e dentro de determinadas circunstâncias. (…) O dever de informação só existirá quando o princípio da boa-fé o impuser.»[26].
As partes negociadoras não podem dar à outra, informações deficientes, «se são relevantes para o contrato a celebrar. Mais do que isso: as partes que negoceiam com vista à celebração de um contrato devem informar a outra sobre todas as questões que revelam para a formação, por partes desta, de um quadro exato sobre a matéria objeto das negociações.»[27].
Acresce que as informações que devem ser comunicadas são não apenas as referentes às circunstâncias que se conhecem como também aquelas que poderiam conhecer-se se tivesse usado da normal diligência, visto que o art.º 227.º CC, tal como art.º 1337 do Código Civil italiano se basta com a mera culpa[28].
Importa também salientar que a parte que presta espontaneamente uma determinada informação incorre em responsabilidade civil pré-contratual se o fizer de forma inexata ou deficiente, ainda que negligentemente, desde que, obviamente, se mostrem preenchidos todos os demais requisitos deste tipo de responsabilidade, pois que, como se viu, decisivo para a obrigação de indemnizar é que um determinado comportamento, seja ele ativo ou omissivo, seja censurável à luz do princípio da boa-fé[29].
Assim, «para que as partes que negoceiam um contrato possam prosseguir os seus interesses, conformar a relação jurídica em causa de forma verdadeiramente livre, a sua vontade negocial não pode encontrar-se viciada. O interesse que determinada pessoa se propõe prosseguir não poderá ser atingido se esta parte de pressupostos errados. Assim, é muito provável que esta pessoa, se tivesse conhecimento da verdade dos factos ou se o seu conhecimento fosse completo, jamais tivesse contratado ou, pelo menos, não o tivesse feito nos termos em que o fez. Portanto, o dever pré-contratual de informação, ao pretender conceder às futuras partes contratuais o conhecimento que lhes permita contratar da forma mais adequada aos seus interesses, estará, obviamente, a proteger a sua autonomia privada.»[30].
Por conseguinte, é «função essencial dos deveres de informação criar as condições necessárias para a liberdade de decisão. (…) o indivíduo deve ser colocado numa posição que lhe permita exercer a sua autonomia privada em conformidade com os seus próprios interesses, de forma racional e refletida, quer na conclusão do contrato, quer na modelação do seu conteúdo.
Evidentemente, esta é também a função do regime dos vícios da vontade, em particular, do erro e do dolo. Proteger a livre formação da vontade negocial das partes para que estas, ao contratar, o façam de acordo com a vontade que possuiriam se conhecessem todas as circunstâncias relevantes. Deste modo, verificamos que tanto o dever pré-contratual de informação como o regime do erro e do dolo asseguram o princípio da autonomia privada ao proteger a liberdade de decisão das partes.
Pode defender-se que o regime dos vícios da vontade e a responsabilidade pré-contratual por violação de deveres de informação em sede de negociações para a conclusão de um contrato têm funções diferentes. Pode dizer-se que o primeiro pretende proteger a livre conformação dos negócios jurídicos, protegendo o processo formativo da vontade, concedendo remédio para um negócio celebrado por uma vontade viciada, permitindo que este se esvaia da realidade jurídica como se nunca tivesse existido. E é evidente que se pode defender, por outro lado, que não é esta a função da responsabilidade pré-contratual: esta, pretendendo ressarcir os danos provocados pela atuação culposa de uma das partes na negociação de um contrato, teria como função, apenas, proteger o património. Por isso, seria necessária a existência de um dano patrimonial, no sentido da teoria da diferença, para que pudesse aplicar-se o regime da c.i.c.[31]. Serão dois instrumentos jurídicos diferentes: um protege a liberdade de decisão, o outro o património; um permite anular contratos, o outro apenas permite conceder indemnizações por danos... Mas, no âmbito da responsabilidade por culpa “in contrahendo”, por que é que o princípio da boa fé fará nascer deveres de informação? Para impedir que a ausência de informações cause danos que, apesar de meramente patrimoniais, não é justo serem suportados pelo lesado. E qual o nexo causal entre a ausência de informações na fase pré-contratual e a criação de danos na esfera patrimonial do lesado? É simples: o lesado sofre danos por crer que a informação de que dispunha era verdadeira e completa, adequada para lhe permitir prosseguir os seus interesses na disputa contratual. Se possuísse mais informação (ou informação diferente) nunca contrataria ou nunca o faria nos mesmos moldes. Onde estava a sua liberdade de decisão? A informação verdadeira, adequada e completa permite às partes negociar de acordo com os seus interesses, poupando-as dos danos provenientes da celebração de um negócio desfavorável. Os danos só surgem porque não houve liberdade de decisão. É certo que a responsabilidade pré-contratual pretende proteger o património, mas não podemos considerar que, igualmente, o faz quanto à liberdade de decisão? Que, também aqui, encontramos uma manifestação (da defesa) do princípio da autonomia privada? E, sendo assim, não poderemos entender que a própria vinculação a um contrato não desejado (celebrado em clara oposição com o princípio da autonomia privada) é, em si, um dano, ainda que não um dano patrimonial, no sentido da teoria da diferença?
Sinde Monteiro considera que a própria celebração de um contrato pode ser vista como um dano, relativamente aos casos em que a contraprestação a realizar ou realizada ao lesado não é utilizável para os seus objetivos individuais, mesmo que lhe corresponda um preço justo. Ou seja, não haverá um dano patrimonial, visto que a prestação e a contraprestação acabam por possuir um valor equivalente. Mas a parte que não foi informada e celebrou o contrato sem o exercício esclarecido da sua vontade, fica vinculada a um contrato que lhe é inútil e, portanto, prejudicial. Parece-nos que esta posição, além de justa, é lógica e coerente com nosso sistema jurídico, entendido nas relações recíprocas entre os seus diversos institutos, nos termos que acabámos de expor.
E esta posição não é isolada. Na verdade, no comentário que faz ao acórdão do BGH de 26 de Setembro de 1997, Grigoleit defende que a própria perturbação do processo de formação da vontade constitui um dano indemnizável. Diz-nos este autor que "[p]or um lado, a formação da vontade sem perturbações (...) constitui um interesse juridicamente reconhecido. Por outro lado, a vinculação a um contrato causada pela perturbação o processo formativo da vontade constitui uma lesão (…) desse interesse". Assim, porque (de acordo com o princípio da autonomia privada, mais propriamente, da liberdade contratual) ninguém é obrigado a concluir um contrato, este autor entende que ninguém deve ficar vinculado a um contrato concluído de uma forma não inteiramente livre, só pelo facto de este não causar danos patrimoniais. A qualificação da vinculação ao contrato como dano constituiria a solução mais coerente com o princípio da autonomia privada e, mais propriamente, com a liberdade de não conclusão do contrato.
(…)
De forma algo semelhante, diz Canaris que, para sua própria surpresa, a liberdade contratual material parece encontrar-se protegida, através do regime da responsabilidade pré-contratual, nos casos de indução negligente em erro.
Parece-nos que, no mesmo sentido, estarão autores como Hörster. Este autor entende que o art.º 227.º "não tem nada a ver com o próprio contrato e o seu cumprimento, uma vez que visa proteger um bem jurídico diverso (...) o próprio processo de formação do contrato em todas as suas fases. Apesar de não o afirmar expressamente, parece lógico deduzir da afirmação precedente que o que está aqui em causa é a proteção do princípio da autonomia privada.»[32].
Em conclusão: «o regime da responsabilidade pré-contratual assegura também, ao menos indiretamente, o princípio da autonomia privada. Igualmente o faz o regime dos vícios da vontade, nomeadamente, o regime do erro e do dolo. Esta primeira ponte entre ambos é inegável.»[33].
No caso dos «pressupostos do erro ou do dolo se encontrarem preenchidos, o negócio é anulável sem mais. Não será relevante o facto de, ao mesmo tempo, se ter violado o princípio da boa-fé na formação dos contratos. Tal relevará, apenas, autonomamente, para que se possa conceder uma indemnização ao lesado. Por outro lado, existirão deveres de informação sempre que o princípio da boa-fé o imponha, independentemente dos pressupostos de aplicação do regime do dolo e do erro se encontrarem preenchidos. Deveres esses que conduzirão à aplicação do regime da responsabilidade pré-contratual por si só. Tal é perfeitamente natural e óbvio, considerando que se trata de institutos jurídicos diferentes.»[34].
Postos estes considerandos, a nosso ver necessários para uma melhor compreensão de tudo quanto a partir daqui se vai discorrer e decidir, é hora de verificar se estão reunidos os pressupostos para que seja decretada «a anulação dos negócios jurídicos em causa nomeadamente o contrato de cessão de créditos celebrado em 11/02/2010 e o contrato de financiamento celebrado em 11/02/2010», nos termos e com os efeitos pretendidos pelo autor.
Como já se viu, os autores fundamentam a sua pretensão anulatória no facto de não terem sido informados pelo B, S.A. de que à data da celebração daqueles negócios pendia uma ação executiva na qual se encontrava penhorada a fração “Q”, e onde veio a ser vendida, chamando à colação a figura do erro-vício, ou erro-motivo como lhe chama a doutrina alemã (Motivirrtum).
Segundo Mota Pinto, «o erro-vício traduz-se numa representação inexata ou na ignorância de uma qualquer circunstância de facto ou de direito que foi determinante na decisão de efetuar o negócio. Se estivesse esclarecido acerca dessa circunstância – se tivesse exato conhecimento da realidade –, o declarante não teria realizado qualquer negócio ou não teria realizado o negócio nos termos em que o celebrou.
Trata-se, pois, de um erro nos motivos determinantes da vontade – daí que os juristas alemães falem de erro-motivo (Motivirrtum) a propósito do erro como vício da vontade.
(...) Erro sobre o objeto do negócio: pode incidir sobre o objecto mediato (sobre a identidade ou sobre as qualidades), ou sobre o objeto imediato (erro sobre a natureza do negócio»[35].
Manuel de Andrade define assim o chamado erro-vício: «O erro-vício consiste na ignorância (falta de representação exata) ou numa falsa ideia (representação inexata), por parte do declarante, acerca de qualquer circunstância de facto ou de direito que foi decisiva na formação da sua vontade, por tal maneira que se ele conhecesse o verdadeiro estado das coisas não teria querido o negócio, ou pelo menos não o teria querido nos precisos termos em que o concluiu.»[36].
Assim, estamos perante um vício de vontade quando «o processo de formação da vontade negocial sofreu qualquer desvio em confronto com o modo julgado normal e são.»[37].
Castro Mendes afirma que «a ordem jurídica exige que a vontade se haja formado de um modo julgado normal e são, ou seja, livre, esclarecida e ponderadamente. À liberdade de formação da vontade opõe-se o medo, provocado pela coação moral; ao esclarecimento opõe-se o erro; à ponderação, a incapacidade acidental. Erro, medo e incapacidade acidental são os principais tipos de vícios na formação da vontade.»[38].
Pedro Pais de Vasconcelos refere que «a vontade negocial, quando exista, pode estar viciada na sua formação, no processo de volição e de decisão, por deficiência de esclarecimento ou de liberdade. Assim sucede quando o esclarecimento ou a liberdade do seu autor tenham sido perturbados de tal modo que os negócios jurídicos assim celebrados fiquem enfraquecidos ou fragilizados.
(…)
A parte cuja vontade negocial tenha sido perturbada no seu discernimento e liberdade pode, se assim o desejar, libertar-se do negócio viciado, procedendo à sua anulação.»[39].
Heinrich Ewald Hörster/Eva Sónia Moreira da Silva escrevem que «o negócio jurídico apenas pode desempenhar as suas funções quando a vontade, que se manifesta através da declaração negocial, se formou de uma maneira esclarecida, assente em bases corretas, e livre, sem deformações provindas de influências exteriores. Se a vontade não se formou esclarecida e livremente, ela está viciada. Na sequência do vício, que fere a vontade, também a declaração negocial em que esta se manifesta fica viciada.
Tendo ocorrido um vício, está em causa o lado interno da declaração. O problema não reside numa divergência entre declaração e vontade ou na falta desta última, mas na deformação da vontade durante o seu processo formativo. A vontade viciada diverge da vontade que o declarante teria tido sem a deformação (= vontade conjetural ou hipotética). O vício afeta a génese da vontade e repercute-se numa declaração negocial coincidente com ela.»[40].
Mafalda Miranda Barbosa dilucida que «considera-se suscetível de gerar a desvinculação negocial qualquer erro de facto ou de direito, independentemente do elemento sobre que ele incida. Ao contrário do que sucede ao nível do erro na declaração, relativamente ao qual não há qualquer delimitação dos elementos sobre os quais pode recair, o erro-vício só é relevante se atingir os motivos determinantes da vontade que se referiram à pessoa do declaratário, ou ao objeto ou aos motivos.»[41].
Ana Filipa Morais Antunes esclarece que «o erro-vício é um vício na formação da vontade, contemporâneo da celebração do negócio e consiste no desconhecimento ou falsa representação de uma circunstância, de facto ou de direito, passada ou presente relativamente ao momento da emissão da declaração negocial e que determinou a celebração do negócio ou, pelo menos, a celebração naqueles termos. A vontade real e a declarada são coincidentes, mas a vontade é mal formada atendendo ao erro. Numa palavra, a vontade não se formou em termos esclarecidos. Há uma divergência entre a vontade real (o que se quis, a vontade efetivamente formada e exteriorizada pelo declarante) e a vontade conjetural ou hipotética (aquela que teria sido manifestada se não fosse a interferência do erro no processo de formação da vontade). O erro-vício está previsto nos artigos 251.º a 254.º (...).
O erro-vício pode respeitar a circunstâncias de facto, assim como a circunstâncias de direito, e ser total ou parcial, em função da respetiva extensão.
(...)
O erro-vício pode ser classificado em duas categorias, em função do critério da autoria do erro: o erro simples (no sentido de espontâneo e que se funda na conduta do próprio declarante) e o erro qualificado por dolo (enquanto provocado ou dissimulado pelo declaratário ou por terceiro).
O erro simples está regulado nos artigos 251.º a 252.º. Aqui se compreendem quatro modalidades, de acordo com o critério do elemento do negócio afetado pelo erro: i) o erro sobre a pessoa do declaratário (cf. o artigo 251.º); ii) o erro sobre o objeto negocial (cf. artigo 251.º); iii) o erro sobre os motivos (cf. artigo 252.º, n.º 1); iv) o erro sobre a base do negócio.»[42].
O vício da vontade negocial que se traduza ou envolva uma deficiência de discernimento do seu autor constitui, assim, erro que corresponde à ignorância ou falsa representação de uma realidade (a ignorância do que se ignora) que poderia ter intervindo ou interveio entre os motivos da declaração negocial[43].
A declaração «é uma decisão volitiva, precedida, no plano psicológico de uma deliberação, rápida ou demorada, em que o possível autor se representa o possível negócio e o seu circunstancialismo. Ora, nesta representação podem faltar elementos, ou pode haver elementos que não correspondam à realidade, Num e noutro caso fala-se de erro; o erro em direito, abrange pois a ignorância.
O erro situa-se na formação do negócio jurídico, portanto em momento pelo menos logicamente anterior a este. E deve notar-se desde já que só existe erro quando falta um elemento, ou a realidade mental está em desacordo com um elemento, da realidade existente no momento da formação do negócio jurídico.»[44].
O erro, particularmente no quadro dos desvalores de um negócio jurídico, equivale, assim, sempre à ignorância de algo e implica, em geral, «uma avaliação falsa da realidade: seja por carência de elementos, seja por má apreciação destes.»[45].
Fala-se a este respeito «no desconhecimento ou na falsa representação da realidade que determinou ou podia ter determinado a celebração do negócio. Esta realidade pode consistir numa circunstância de facto ou de direito.»[46].
Em qualquer uma das modalidades de erro-vício acima elencadas, ele só terá relevância se verificado, desde logo, o requisito da essencialidade do erro.
Segundo o art.º 251.º CC, o erro que atinja os motivos determinantes da vontade, quando se refira ao objeto do negócio, torna este anulável, nos termos do art. 247.º do mesmo código, o qual dispõe que «quando, em virtude de erro, a vontade declarada não corresponda à vontade real do autor, a declaração negocial é anulável, desde que o declaratário conhecesse ou não devesse ignorar a essencialidade, para o declarante, do elemento sobre que incidiu o erro.»
Heinrich Ewald Hörster/Eva Sónia Moreira da Silva esclarecem que «anulabilidade nos termos do art.º 247.º significa que os pressupostos do erro vêm do artigo 251.º (e não da 1.ª parte do artigo 247.º, concebido para a divergência entre vontade e declaração), enquanto os requisitos da anulação resultam da 2.ª parte do art.º 247.º. Quer dizer, o declarante pode anular a sua declaração, mas apenas desde que o declaratário conhecesse ou não devesse ignorar a essencialidade, para o declarante, da pessoa ou do objecto sobre que incidiu o erro determinante da vontade.»[47].
Sobre o requisito da essencialidade do erro referem:
- Mota Pinto: «É corrente na doutrina a firmação de que só é relevante o erro essencial, isto é, aquele que levou o errante a concluir o negócio em si mesmo e não apenas nos ternos em que foi concluído. O erro foi causa (é indiferente tratar-se de uma situação de causalidade única ou de concausalidade) da celebração do negócio e não apenas dos seus termos. O erro é essencial se, sem ele, se não celebraria qualquer negócio ou se celebraria um negócio com outro objecto ou de outro tipo ou com outra pessoa. (...).
Já não relevaria o erro incidental, isto é, aquele que influiu apenas nos termos do negócio, pois o errante sempre contrataria, embora noutras condições. O erro é incidental se, sem ele, o errante, embora noutros termos, sempre contrataria o mesmo negócio (manter-se-ia o tipo negocial, o objecto, os sujeitos).
(...).
Deverá, porém, o erro exercer uma intervenção essencial no processo formativo da vontade ou bastará uma intervenção incidental, nos termos que ficam definidos? Parece que que só o erro essencial produzirá, desde logo, uma vez presentes os restantes requisitos gerais e especiais, a anulabilidade do negócio. O erro incidental não será, todavia, irrelevante: o negócio deverá fazer-se valer nos termos em que teria sido concluído sem o erro.
Deverá, porém, ter lugar a anulabilidade quando se não possa ajuizar desses termos com segurança, ou, pelo menos, com bastante probabilidade e, ainda, quando se prove que a outra parte os não teria acolhido (...).»[48].
Heinrich Ewald Hörster/Eva Sónia Moreira da Silva: «Tendo ocorrido um erro sobre a pessoa ou sobre o objecto do negócio, o alcance da anulabilidade depende do alcance do erro relevante para o efeito. O erro pode abranger o negócio todo (sem a sua ocorrência o negócio não teria sido concluído); o erro pode respeitar a uma parte ou a um aspecto do negócio (sem ele o negócio não teria sido concluído nos precisos termos em que o foi; aqui estamos perante um erro indicidental).
O erro incidental não diz respeito à declaração em si mesma (esta sempre teria sido feita), mas apenas aos termos em que ela o foi (sem o erro a declaração teria sido feita, mas noutros moldes). Deste modo, o erro incidental não acarreta a declaração na sua totalidade.
Significa isto que o alcance da anulação varia em consonância com o alcance do erro. Se este recair sobre o negócio em si, a anulação atinge todo o negócio; se recair apenas sobre certos aspectos do negócio, a anulação abrange somente estes. Na verdade, a anulação não pode ir mais longe do que o alcance do erro. Apenas se pode anular na medida em que a vontade está viciada, Doutro modo, a outra parte, contra a qual a anulação se dirige, ficaria prejudicada na sua expectativa quanto à estabilidade do negócio (além das vantagens injustificadas que o declarante poderia obter ao “desligar-se” de um negócio que, entretanto, talvez se tenha tornado incómodo.»[49].
- Mafalda Miranda Barbosa: «Para que um negócio possa ser anulado com base no erro, é necessário que se verifiquem, antes de mais, dois requisitos gerais de relevância.
Em primeiro lugar, o erro tem de ser essencial, isto é, tem de ser determinante da vontade de celebrar o negócio, ao ponto de se poder afirmar que, sem o erro, o sujeito não teria emitido a declaração negocial, o que mostra que o parâmetro de determinação da essencialidade é subjetivo: é o sujeito que determina o que é que, efetivamente, o levou a contratar ou não.»[50].
Ana Filipa Morais Antunes: «O erro-vício é juridicamente relevante na medida em que seja causal ou essencial à celebração do negócio, isto é, determinante para a decisão de negociar: é este o sentido da referência aos “motivos determinantes da vontade” contida nos artigos 251.º e 252.º, n.º 1. Numa palavra, se não tivesse havido uma deficiente ou falsa representação da realidade passada ou presente, o negócio não teria sido celebrado (essencialidade absoluta) ou, a sê-lo, teria sido celebrado em termos diversos (...).
(...).
O erro sobre o objeto do negócio compreende as hipóteses em que o desconhecimento ou a falsa representação da realidade respeitam ao bem jurídico – seja este uma coisa ou uma prestação a realizar (objeto mediato) -, assim como ao conteúdo negocial, à natureza do negócio e aos efeitos negociais (objeto imediato).
O erro sobre o objeto material ou mediato tem de ser delimitado positivamente: aqui se situam os casos em que se desconhece ou se representa erradamente dada coisa ou prestação na sua configuração objetiva, isto é, nas suas qualidades (características físicas ou jurídicas, identidade ou substância - vg., cor, dimensão, localização, finalidade, atributos, entre outros índices). Numa palavra, o desconhecimento ou a falsa representação da realidade incide sobre elementos que influenciam o destino a dar ao objeto ou que interferem no valor do objeto em si mesmo, designadamente atentas as possibilidades de utilização projetadas (...).
No erro sobre o objeto jurídico ou imediato, o desconhecimento ou a falsa representação da realidade incide sobre a configuração jurídica da coisa ou prestação (v.g., as situações jurídicas – faculdades, direitos, obrigações, ónus eventualmente existentes -, bem como os efeitos correspondentes.»[51].
Em suma, o erro é essencial quando, sem ele, o declarante não teria sido celebrado aquele o negócio, ou não o teria celebrado com aquele conteúdo.
Apesar de necessária, a essencialidade não é, todavia, suficiente para fazer desencadear o efeito anulatório do negócio jurídico.
No caso do erro sobre o objeto do negócio, tal como resulta das disposições conjugadas dos art.ºs 251º e 247º, para além da essencialidade é também necessário que o declaratário conhecesse ou não devesse ignorar a essencialidade, para o declarante, do elemento sobre que incidiu o erro.
Assim, nesta modalidade de erro, a anulabilidade do negócio, além do requisito da essencialidade, depende ainda da circunstância do declaratário conhecer ou não devesse ignorar a referida essencialidade; ou seja, está dependente do declaratário saber ou dever saber que sem o erro-vício o declarante não teria celebrado o negócio, ou teria concretizado negócio essencialmente diferente, importando salientar que este conhecimento ou cognoscibilidade respeita à essencialidade e não ao erro, pois é indiferente que o declaratário conheça ou não o erro[52], sendo certo que à luz do nosso ordenamento jurídico não é sequer exigível que o erro em que incorre o declarante seja desculpável.
Como é evidente, em qualquer uma das acima quatro modalidades de erro-vício, é sobre aquele que pretende ver anulado o negócio jurídico que recai o ónus de alegação e prova dos factos demonstrativos da verificação dos requisitos atinentes a qualquer uma daquelas modalidades, conforme decorre do art.º 342º, nº 1 CC.
Ou seja, para que houvesse lugar à anulação dos negócios referidos em 3.1.1.a) e d), necessária seria, a alegação e prova:
a) de que caso os autores/apelantes tivessem conhecimento, à data em que celebraram aqueles negócios, da pendência da ação executiva na qual estava penhorada a fração “Q”, e em cujo âmbito veio a ser vendida, não os teriam celebrado, ou tê-los-iam celebrado com um conteúdo diferente;
b) da essencialidade para os autores/apelantes da inexistência da ação executiva e da penhora sobre a fração “Q”;
c) de que o B, S.A., à data da celebração dos negócios, conhecia ou devia conhecer tal essencialidade, ou seja, de que sabia ou devia saber que caso os autores/apelantes tivessem conhecimento da ação executiva e da penhora, não teriam celebrado aqueles negócios, ou tê-los-iam celebrado com um conteúdo diferente.
Vista a matéria de facto provada, logo se constata que os apelantes não lograram fazer tal prova, estando, por isso, votada ao insucesso a sua pretensão de verem anulados os negócios acima referidos por erro sobre o respetivo objeto.
Como se afirmou, era sobre os autores/apelantes que recaia o ónus da respetiva alegação e prova, nos termos dos art.ºs 342.º, n.º 1, 251.º e 247.º CC.
Revisitando tudo quanto acima se explanou acerca do instituto da responsabilidade pré-contratual, nomeadamente no que tange ao dever de informação, e da sua relação como o regime do erro-vício, facilmente se compreende que chamemos novamente à colação aquele primeiro instituto, também ele, como se viu, invocado pelo autor na petição inicial.
A ausência de informações ou a transmissão negligente, pelo declaratário, de informações inexatas, preenchentes dos requisitos do erro-vício, confere ao declarante o direito:
- à anulação do negócio jurídico;
- à redução do negócio jurídico – art.º 292º;
- a uma indemnização pelos danos que a conduta negligente do declaratário (devedor da obrigação de informar com verdade e exatidão) lhe causou,
posto que:
- o regime do erro-vício dispensa qualquer atitude de consciência do declaratário;
- o instituto da responsabilidade pré-contratual abrange quer as situações de dolo, quer as situações de negligência.
Uma questão importa desde já colocar: o que fazer quando a conduta negligente do declaratário, apesar de ter influenciado determinantemente a vontade do declarante, não incidiu sobre um elemento cuja essencialidade para o este, aquele conhecia ou devia conhecer? Ou seja: e se o erro negligentemente provocado pelo declaratário não é fundamento de vício de vontade à luz do nosso ordenamento jurídico?[53]
Num caso desses, «desde logo, o declarante encontrar-se-á protegido pelo regime da responsabilidade pré-contratual, que gera, para o devedor da informação de informar, o dever de reparar os danos causados com a sua conduta culposa.»[54].
Aqui chegados, é hora de verificar se, no caso concreto:
- o B, S.A. violou negligentemente, em sede de responsabilidade pré-contratual, o dever de informação, não informando os autores/apelantes da pendência da ação executiva e da penhora sofre a fração “Q”; em caso afirmativo,
- se a conduta negligente do B, S.A. influenciou, de forma determinante, a vontade dos autores/apelantes enquanto declarantes, na celebração dos negócios identificados em 3.1.1.a) e d), induzindo-os negligentemente em erro, ainda que não incidindo sobre um elemento cuja essencialidade para estes, aquele conhecia ou devia conhecer.
Está provado que «os Autores foram informados da existência do processo executivo n.º ____/__.1TBTDV e consequente penhora (processo movido pelo Condomínio contra a R), que se encontraria registada na fração “Q”.».
No entanto, ainda que assim não fosse, nada há nos autos que permita concluir que uma eventual falta de informação do B, S.A. aos autores quanto à pendência da ação executiva e à incidência da penhora sobre a fração “Q” tivesse influenciado de forma determinante os autores a contratarem nos termos em que o fizeram no dia 11 de fevereiro de 2010 e que ficaram descritos em 3.1.1.a) e d).
Por outro lado, não é razoavelmente crível, escapando àquilo que são as regras da experiência da vida, do que é normal acontecer em casos semelhantes, que os autores/apelantes tivessem celebrado negócios com a importância económica dos descritos em 3.1.1.a) e d), sem primeiro se inteirarem, nomeadamente em termos de registo predial, acerca da situação jurídica das garantias que acompanhavam os créditos que o B, S.A. lhes cedeu, nomeadamente, as hipotecas referidas em 3.1.1.d), não bastando afirmar, como o faz co-autor e aqui co-apelante, JBA, em declarações de parte, que existia uma relação de confiança entre ele e o B, S.A..
Aliás, tendo a testemunha MA, filho dos autores, afirmado, no depoimento que prestou na audiência final, que o seu pai era sócio da R e administrador do B, Leasing, e que, por uma questão de preservação da sua reputação, assumiu as dívidas da sociedade “que outro sócio contraiu”, dando de garantia a sua casa no empréstimo que contraiu para esse efeito, não é sequer crível que JBA desconhecesse, de antemão, a pendência da execução e a incidência da penhora sobra a fração ”Q”.
É que a ação executiva foi instaurada contra a R em 20.10.2005!
E os negócios em causa foram celebrados no dia 11 de fevereiro de 2010!
Está provado que «da escritura [de cessão de créditos] resulta também a obrigação a cargo dos aqui Autores de realizar o averbamento registal da cessão de créditos na Conservatória de Registo Predial onde as hipotecas se encontravam registadas, obrigação esta que [foi] cumprida a 19.02.2010».
Nem nessa ocasião os autores se aperceberam que a fração “Q” se encontrava penhorada?
Não é crível, não é razoavelmente aceitável, que nem nessa ocasião os autores se tivessem apercebido da penhora incidente sobre a fração “Q” no âmbito daquela ação executiva.
Dá-se ainda o caso de sobre a fração “Q” não incidir apenas a penhora efetuada no âmbito da ação executiva instaurada contra a R pelo condomínio do prédio onde a mesma se integra, o prédio sito na Avenida ____, em Torres Vedras!
Conforme se encontra provado em 3.1.1.h), no dia 5 de maio de 2009, portanto, vários meses antes da celebração dos negócios referidos em 3.1.1.a) e d), foi registada uma outra penhora sobre a fração “Q”, no âmbito de outra ação executiva instaurada contra a R, desta vez pela Fazenda Nacional.
Insiste-se na pergunta: é crível que os autores tivessem celebrado com o B, S.A. os negócios com a dimensão dos descritos em 3.1.1.a) e d), sem terem noção da incidência, sobre a fração “Q” (sobre a qual recaia hipoteca a favor do B, S.A. e que constituía uma das garantias dos créditos cedidos), de duas penhoras constituídas no âmbito de duas ações executivas instauradas contra a R, uma pelo condomínio do prédio onde a mesma se situa, e outra pela Fazenda Nacional?
Não é crível!
Isto, reitera-se, encontrando-se provado que «os Autores foram informados da existência do processo executivo n.º  ____/__.1TBTDV e consequente penhora (processo movido pelo Condomínio contra a R), que se encontraria registada na fração “Q”.»
Sabendo da pendência dessa ação executiva, que fizeram os apelados no sentido de se substituírem ao B, S.A., quer na execução, quer no processo de reclamação, verificação e graduação de créditos que correu termos por apenso à mesma?
Que conste, nada!
Mais diligente foi, neste contexto, o próprio B, S.A., que após a prolação, em 5 de maio de 2010, da sentença de verificação e graduação de créditos, no dia 24 de maio de 2010 informou o processo executivo que “(…) o respectivo saldo devedor se encontra, actualmente, reduzido ao crédito emergente de garantia bancária (...) uma vez que foi, entretanto, pago, das restantes responsabilidades, por via de cessão de créditos ao avalista JBA” (...).»
Tenha-se ainda presente, que vários meses depois da celebração dos negócios referidos em 3.1.1.a) e d):
- «A __/__/___ o B foi notificado sobre decisão de modalidade da venda do imóvel penhorado nos autos.» - 3.1.1.l);
- «A __/__/___ o B é notificado da data e hora da abertura de propostas.» - 3.1.1.m);
- «A __/__/___ o B é notificado da abertura das propostas de cartas fechadas.» - 3.1.1.n);
- «A __/__/___ o B é notificado [para] informar qual o saldo devido com respectivos juros e o NIB» - 3.1.1.o)
- «A __/__/___ foi finalizada a venda judicial pelo montante de 64.500,00 a LC (...).» - 3.1.1.p).
Os autores tiverem, portanto, tempo mais do que suficiente para, habilitando-se na qualidade de cessionários, se substituírem processualmente ao B, S.A. no contexto da ação executiva e respetivo apenso de reclamação, verificação e graduação de créditos.
Significa tudo isto que, ainda que o B, S.A. de nada tivesse informado os apelantes quanto à pendência da ação executiva movida pelo Condomínio contra a R e à penhora no âmbito da mesma realizada sobre a fração “Q”, ou seja, ainda que estivesse demonstrada a conduta ilícita do B, S.A., por violação do dever de informação:
- daí não poderia concluir-se, sem mais, ter sido essa omissão determinante da vontade dos autores/apelantes, enquanto declarantes, celebrarem os negócios identificados em 3.1.1.a) e d);
- sempre teríamos de concluir que o prejuízo para eles, autores/apelantes, resultante dessa omissão, apenas à sua descrita atitude descuidada, negligente, poderia ser imputado.
Mas, indo mais longe, importa agora questionar se o regime da responsabilidade pré-contratual seria suscetível de dar acolhimento às pretensões dos autores/apelantes.
Por um lado, como já se deixou referido, existe uma estreita relação entre o instituto da responsabilidade pré-contratual e o regime do erro-vício.
Por outro lado, numa situação em que o declarante foi induzido em erro pelo declaratário, numa situação em que o declarante formou a sua vontade de contratar, determinado por falta de informação ou por uma prestação de informação deficiente e incompleta, negligentemente prestada pelo declaratário, e não logrou fazer prova do requisito da cognoscibilidade por parte deste, acerca da essencialidade do elemento sobre que recaiu o erro, ficaria por resolver uma lacuna existente na ordem jurídica portuguesa, criadora de insuportáveis injustiças[55].
Quanto ao primeiro aspeto, já se deixou expresso que «o ponto de vista da atuação da responsabilidade pré-contratual é distinto do ponto de vista da atuação dos vícios de vontade: enquanto estes assentam na proteção da vítima (através do regime da invalidade contratual), aquela assenta no sancionamento do comportamento do devedor (através do dever de reparação dos danos causados).»[56].
No entanto, «é possível reconduzir estes dois institutos a um fundamento teleológico comum: a salvaguarda da autonomia privada, através da formação de vontades livres, conscientes e esclarecidas, no tráfico jurídico.»[57].
Daqui a entender-se que a relação entre os dois institutos (da responsabilidade pré-contratual e do erro-vício) «pode ir, frutuosamente, mais além, é apenas mais um passo.
A jurisprudência alemã, desde um caso decidido pelo Supremo Tribunal Federal Alemão (BGH) em 1962, aceita a possibilidade de desvinculação do contrato com fundamento nas regras da “culpa in contrahendo”, especialmente no princípio da reconstituição natural do § 249 do BGB»[58].
Assim, em conformidade com esta argumentação, «o instituto da “culpa in contrahendo” tem como pressuposto a existência de danos causados pela conduta negligente do devedor [da informação]. Porém, adotando um conceito de património que abrange a liberdade de disposição patrimonial, existe dano pelo simples facto de se ficar vinculado a um contrato que não se deseja (…).
Ora, sabendo que as regras gerais ordenam a prioridade da indemnização por restauração natural, a forma lógica de tornar indemne um lesado, cujo dano se traduziu na vinculação a um contrato sem verdadeira “liberdade de decisão”, é precisamente a desvinculação do lesado desse contrato.»[59].
Por isso, concluiu o BGH «ser possível, por intermédio da “culpa in contrahendo”, a destruição ou adaptação de um contrato concluído pelo lesado em erro, causado negligentemente pelo obrigado à informação.»[60].
A lei portuguesa «não estabelece um regime específico para a responsabilidade pré-contratual. Limita-se a determinar, nos termos do art.º 227º, que quem violar culposamente os deveres nascidos da regra da boa-fé, no processo de formação de um contrato, responde pelos danos causados à outra parte. A forma como deve responder não está determinada em especial, pelo que temos de recorrer ao regime geral dos arts. 562º e seguintes. O princípio geral é precisamente o desta norma: “Quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação”. Esta norma assemelha-se ao § 249 do BGB. E não é difícil, postas todas as considerações apresentadas, constatar que a reconstituição natural de um dano como a celebração de um contrato desvantajoso não será nada mais nada menos que a sua “destratação”.
Claro, isto se entendermos que a celebração de um contrato, formalmente válido, pode ser considerado um dano. É certo que, se não fosse a indução negligente em erro, a parte não teria celebrado o contrato, ou não o teria feito nos mesmos termos. Ainda que tal possa não constituir um dano no sentido da teoria da diferença por, por exemplo, a contraprestação prestada pela contraparte ter um valor objetivamente justo, pode a celebração do contrato ser vista como um dano quando a contraprestação não é utilizável pelo lesado para os fins individuais. (…). Se é certo que, na nossa ordem jurídica, não existe uma norma que conceda expressamente proteção aos interesses das partes nas negociações, o certo é que o princípio da autonomia privada é um dos seus princípios basilares e não pode ser visto formalmente. Como entende Canaris, a liberdade contratual deve ser entendida de forma material, como liberdade efetiva. Assim, a materialização da liberdade contratual consiste na instituição das condições necessárias para o exercício de uma liberdade contratual efetiva. Ora, na prática, as partes só poderão exercer de forma verdadeiramente livre a sua faculdade de celebrar os contratos que bem entenderem, de acordo com os seus interesses, se se encontrarem informados corretamente. Neste sentido, defendemos, atrás, que os deveres pré-contratuais de informação eram um meio e garantir a autonomia privada. E, a “posteriori”, a lei deve garantir às mesmas partes proteção contra os negócios que sejam celebrados no desrespeito da sua liberdade contratual, da sua autonomia privada, se quisermos ser mais abrangentes. Se a lei não pode fazê-lo através do regime dos vícios da vontade, pode fazê-lo através do regime da responsabilidade pré-contratual, por via da restauração natural: a parte deve ser colocada na situação em que se encontraria se o negócio não tivesse sido concluído, o que poderemos chamar de “destratação” do contrato.»[61].
Segundo Sinde Monteiro, «quando uma das partes foi induzida a contratar por meio de dados errados fornecidos negligentemente, a pretensão indemnizatória dirige-se ao interesse negativo ou dano da confiança. Se ela não teria contratado ou não o teria feito naquelas condições, deve ser colocada no estado em que se encontraria se o negócio não tivesse sido concluído. Por via do princípio da restauração natural (entre nós, art.º 562), isso pode significar desfazer os efeitos do contrato (desvincular-se)[62] e pedir uma indemnização pelas despesas tornadas inúteis.»[63].
À luz destes considerandos e recordando todo o restante (e extenso) excurso que antecede, facilmente se conclui que nunca haveria lugar, “in casu”, e nos termos conjugados dos art.ºs 227.º e 562.º CC, à “destratação” dos contratos identificados em 3.1.1.a) e d).
Uma breve palavra final ainda, sobre as pretensões indemnizatórias dos autores / apelantes, a título de danos patrimoniais e não patrimoniais, com fundamento no instituto da responsabilidade pré-contratual.
Como já ficou referido, aos casos de responsabilidade civil pré-contratual aplica-se o regime consagrado nos art.ºs 562.º ss. CC, tanto mais que a nossa lei não distingue entre a obrigação de indemnização proveniente da responsabilidade extracontratual e a obrigação de indemnização proveniente da responsabilidade contratual, aplicando aquele preceito a ambos os tipos de responsabilidades.
Assim, nos termos do art.º 566.º, n.º 1, «a indemnização é fixada em dinheiro, sempre que a reconstituição natural não seja possível, não repare integralmente os danos ou seja excessivamente onerosa para o devedor.»
Além de nada se ter provado quanto a danos não patrimoniais sofridos pelos autores/apelantes, num caso como o presente, em que não houve sequer qualquer rutura de negociações, a determinação da forma de cálculo da obrigação de indemnização não poderia deixar de se reportar apenas ao dano negativo ou de confiança, o mesmo é dizer, ao ressarcimento do interesse contratual negativo, ou seja, a uma indemnização que colocasse os autores/apelantes na situação em que estariam se não tivessem sequer celebrado os contratos identificados em 3.1.1.a) e d).
Por outras palavras, e para finalizar, nunca os autores teriam direito a serem indemnizados em dinheiro nos termos peticionados nesta ação.
***
IV – DECISÃO:
Por todo exposto, acordam os juízes que integram esta 7.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, em julgar a apelação improcedente, mantendo, em consequência, a decisão recorrida.
Custas da apelação, na vertente de custas de parte, a cargo dos apelantes (art.ºs 527.º, n.ºs 1 e 2, 607.º, n.º 6 e 663.º, n.º 2).

Lisboa, 28 de fevereiro de 2023
José Capacete
Carlos Oliveira
Diogo Ravara
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[1] Doravante referido apenas por “NB”.
[2] Doravante referido apenas por “B – Em Liquidação”.
[3] Doravante referida apenas por “R, S.A.”.
[4] Doravante referido apenas por “B, S.A.”.
[5] A situação é efetivamente de inutilidade da lide, não superveniente, mas originária.
[6] Adiante será considerado não escrito.
[7] Tomé Gomes, Da Sentença Cível, Centro de Estudos Judiciários, Lisboa, janeiro de 2014, pp. 10-11.
[8] Não se compreende, na verdade, qual a necessidade de voltar a enunciar, em sede de sentença, os temas da prova já enunciados na fase intermédia do processo.
[9] Cfr. Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, 3.ª Edição, Almedina, 2022, pp. 770-771.
[10] O destaque a negrito é da nossa autoria.
[11] Da Sentença Cível, Centro de Estudos Judiciários, Lisboa, janeiro de 2014, p. 13.
[12] Cfr. Antunes Varela/Miguel Bezerra/Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2ª Ed., Coimbra Editora, 1985, pp. 406-407, e RLJ, Ano 122º, nº 3784, p. 219, a quem pertencem os exemplos indicados nas notas seguintes.
[13] Tratado de Derecho Procesal Civil, tomo II, tradução espanhola de Angela Romera Vera, 1995, apud Montalvão Machado, O Dispositivo e os Poderes do Tribunal À Luz do Novo Código de Processo Civil, 2ª Edição, Coimbra, Almedina, 2001, p. 113, nota 210.
[14] Código de Processo Civil Anotado, Vol. III, 4ª Ed., 1985, p. 209.
[15] Da Sentença Cível…, cit, pp. 18-24.
[16] Não contribui para uma enunciação linear, lógica e cronológica dos factos, provados e não provados, a sua descrição autonomizada em função da fonte de que emergem – no caso, petição inicial e contestação.
[17] Por exemplo:
- 3.1.1.f) – Melhor seria que o tribunal a quo concretizasse exatamente o respetivo crédito, nomeadamente, no que tange ao seu valor;
- 3.1.1.g) – Que se tenha conhecimento, o Tribunal Judicial de Torres Vedras não foi extinto (são as consequências da incorreta técnica que infelizmente, com frequência continuamos a ver adotada na prática judiciária portuguesa, consistente no puro decalque acrítico, qual exercício de simples copy paste, sem qualquer filtro ou critério, de artigos dos articulados produzidos pelas partes, no caso, da petição inicial – cfr. o art.º 9.º da petição inicial);
- 3.1.1.s) – É impróprio figurar numa sentença judicial o seguinte enunciado: «s) Tal cessão foi notificada [em que data, não se saber] pelas partes aos Autores conforme decorre dos documentos que se juntam com os números 6 e 7.». O segmento (...) conforme decorre dos documentos que se juntam com os números 6 e 7» é o exemplo acabado de um puro exercício acrítico, sem qualquer preocupação de rigor, de copy paste, neste caso, do art.º 79.º da contestação;
[18] É o caso, por exemplo, dos enunciados vertidos em 3.1.1.r) e u).
[19] Por exemplo:
- são conclusivos os enunciados vertidos em 3.1.1.e) e 2.1.2.e) – além de que não se compreende como pode considerar-se não provado que «o conjunto de garantias reais que transitou com a cessão de créditos sub judice, e em concreto a garantia sobre a fracção “Q” supra identificada, permitiu dar aos Cessionários a segurança fundamental de que iriam receber, com um muito elevado grau de probabilidade, pelo menos uma parte dos créditos de que eram titulares.» Então uma hipoteca sobre um imóvel não permite ao seu beneficiário essa segurança e esse grau de probabilidade?
- não pode deixar de impressionar que se enuncie na fundamentação de facto de uma sentença judicial, um enunciado, no caso, não provado, como o vertido em 3.1.2.e), que aqui se recorda: «o B, S.A. propositada, deliberada e premeditadamente enganou os Autores, obtendo com tal engano diversas vantagens, nomeadamente, pelo facto de ter trocado um “mau” devedor por dois “bons” devedores, por ter visto reforçadas as suas garantias reais (veja-se que a casa morada de família que os Autores hipotecaram tem um valor de cerca de 850.000,00 (oitocentos e cinquenta mil euros), além de outro património que os Autores possam ter na sua esfera jurídica e, como jogada final, ainda recuperou uma parte de uma garantia bancária nos autos executivos já indicados.» É evidente que um tal enunciado, jamais poderia constar da fundamentação de facto de uma sentença, quer entre a factualidade provada, quer entre a não provada. Ainda assim, na impugnação que fazem da decisão sobre a matéria de facto, os apelantes pugnam para que tal enunciado seja considerado provado.
[20] Recursos em Processo Civil, 7ª Ed., Almedina, 2022, pp. 200-201.
[21] Recursos cit., pp. 201-202.
[22] Cfr., por todos, o Ac. do S.T.J. de 23.09.2008, Proc. nº 238/06.7TTBGR.S1 (Bravo Serra), in www.dgsi.pt.
[23] Cfr. Ac. do S.T.J. de 29.04.2015, Proc. nº 306/12.6TTCVL.C1.S1 (Fernandes da Silva), in www.dgsi.pt.
[24] Cfr. o Aresto do S.T.J. citado na nota anterior.
[25] Cfr. Eva Sónia Moreira da Silva, As Relações entre a Responsabilidade Pré-Contratual por Informações e os Vícios da Vontade (Erro e Dolo), O Caso da Indução Negligente em Erro, Coleção Teses, Almedina, 2010, p. 23.
[26] Cfr. Eva Sónia Moreira da Silva, Da Responsabilidade Pré-Contratual por Violação dos Deveres de Informação, Almedina, 2003, p. 79.
[27] Cfr. Eva Sónia Moreira da Silva, Da Responsabilidade cit., pp. 80-81.
[28] Cfr. Francesco Benatti, A Responsabilidade pré-contratual (trad. de Adriano Vera Jardim e Miguel Caeiro), Coimbra, Almedina, 1970, p. 183, apud Eva Sónia Moreira da Silva, Da Responsabilidade cit., p. 83.
[29] Cfr. Eva Sónia Moreira da Silva, Da Responsabilidade cit., pp. 73 e 76.
[30] Cfr. Eva Sónia Moreira da Silva, Da Responsabilidade cit., p. 86.
[31] Culpa “in contrahendo”.
[32] Eva Sónia Moreira da Silva, Da Responsabilidade cit., pp. 86-89.
[33] Eva Sónia Moreira da Silva, Da Responsabilidade cit., p. 89.
[34] Eva Sónia Moreira da Silva, Da Responsabilidade cit., p. 90.
[35] Teoria Geral do Direito Civil, 4ª Edição por Pinto Monteiro e Paulo Mota Pinto, Coimbra Editora, 2005, pp. 504-506.
[36] Teoria Geral da Relação Jurídica, Vol. II, 7ª Reimpressão, Coimbra, Almedina, p. 233.
[37] Teoria Geral cit., pp. 227-228.
[38] Direito Civil-Teoria Geral, Volume III, Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa, 1979, p. 157.
[39] Teoria Geral do Direito Civil, 3.ª Edição, Almedina, 2005, pp. 496-497.
[40] A Parte Geral do Código Civil Português, Teoria Geral do Direito Civil, 2.ª Edição, Almedina, 2019, p. 632.
[41] Lições de Teoria Geral do Direito Civil, 2.ª Edição, Gestlegal, 2022, pp. 724-725.
[42] Comentário ao Código Civil – Parte Geral -, Universidade Católica Editora, 2104, pp. 592-594.
[43] Cfr. Castro Mendes, Direito Civil cit., p. 160.
[44] Cfr. Castro Mendes, Direito Civil cit., p. 160.
[45] Cfr. António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, I, Parte Geral, Tomo I, 3ª ed., Coimbra, 2005, p. 807.
[46] Cfr. Luís A. Carvalho Fernandes, Teoria Geral do Direito Civil, II, 4ª ed., Lisboa, 2007, p. 199.
[47] A Parte Geral cit., p. 637.
[48] Teoria Geral cit., pp. 507-508.
[49] A Parte Geral cit., p. 640.
[50] Lições cit., p. 751.
[51] Código cit., pp. 594-596.
[52] Carvalho Fernandes, Teoria Geral cit., p. 338.
[53] Cfr. Mariana Fontes da Costa, O Dever Pré-Contratual de Informação, p. 388, acessível na internet no sítio http://repositorio-aberto.up.pt/bitstream/10216/23890/2/2361.pdf
[54] Cfr. Mariana Fontes da Costa, O Dever cit., p. 388.
[55] Cfr. Eva Sónia Moreira da Siva, Da Responsabilidade cit., p. 228-229.
[56] Cfr. Sinde Monteiro, Responsabilidade por Conselhos, Recomendações ou Informações, Coimbra, Almedina, 1989, p. 376, apud Mariana Fontes da Costa, O Dever cit., p. 388.
[57] Cfr. Mariana Fontes da Costa, O Dever cit., p. 388. No mesmo sentido, cfr. Eva Sónia Moreira da Siva, Da Responsabilidade cit., pp. 85-113 e 230.
[58] Cfr. Eva Sónia Moreira da Siva, Da Responsabilidade cit., p. 230.
[59] Cfr. Mariana Fontes da Costa, O Dever cit., p. 389.
[60] Cfr. Mariana Fontes da Costa, O Dever cit., p. 389.
[61] Cfr. Eva Sónia Moreira da Siva, Da Responsabilidade cit., pp. 236 e 237.
[62] Responsabilidade cit., p. 370, nota 100: «A celebração de um contrato pode ser vista como um dano quando a contraprestação prometida ou efetuada ao lesado não é utilizável para os seus objetivos individuais, mesmo que lhe corresponda um preço justo.»
[63] Responsabilidade cit., pp. 369-370.