Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
7307/13.5YYLSB-E.L1-2
Relator: PEDRO MARTINS
Descritores: EXECUÇÃO
HABILITAÇÃO DO CESSIONÁRIO
SUSPENSÃO
LITISPENDÊNCIA
QUESTÃO PREJUDICIAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 12/20/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I.– Nos recursos não se pode, por regra, conhecer de questões novas.
II.– Uma questão prejudicial não dá origem a uma litispendência.
III.– O exercício de poder discricionário não é susceptível de recurso.
IV.– A questão de compensação parcial do crédito exequendo com um crédito do executado contra o exequente, discutida numa oposição à execução, não tinha que levar à suspensão do incidente de habilitação do cessionário desse crédito no lugar do exequente.
V.– Também a impugnação pauliana que tenha por objecto essa cessão não tinha que levar a essa suspensão.
VI.– Fundamentos da convicção para a decisão da matéria de facto não produzem caso julgado.

(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo assinados.


Relatório:


1.– A está a executar um crédito seu contra I-Lda.
2.– Em 13/03/2015 cedeu, por contrato celebrado por escrito particular, com assinaturas reconhecidas por advogado, este seu crédito à C-SA.
3.– Eles os dois, cedente e a cessionária, vieram então – a 19/03/2015 - requerer, por apenso à execução, a habilitação da cessionária no lugar do cedente, como exequente.
4.– A executada contestou essa pretensão, alegando que a cessão tem por fim tornar mais difícil a posição da executada neste processo e para impedir o pagamento ou a compensação de um crédito da executada sobre o exequente com o crédito deste sobre a executada, ao retirá-lo, de má fé, do património do exequente que era composto desse único crédito, crédito este que, por seu lado, não tinha satisfeito, porque o exequente não tinha cumprido aquilo que se tinha obrigado, sendo isto que tinha começado por afirmar na oposição à execução.
5.– A requerente respondeu, impugnando os factos alegados e os efeitos de direito que a executada pretende tirar deles.
6.– No despacho saneador, julgou-se o pedido de habilitação procedente e, consequentemente, declarou-se a cessionária habilitada a intervir na execução no lugar do primitivo exequente.

A executada vem recorrer deste saneador-sentença – para que seja revogado e substituído por uma decisão que suspenda os termos do incidente - alegando, em síntese, que:
A)– Neste apenso E alegou a nulidade da cessão do crédito exequendo.
B)– Antes, porém, no apenso A desta mesma acção, esta questão relativa à referida cessão de crédito já havia sido julgada;

C)– O tribunal deu por não provada essa cessão, essencialmente com fundamento na prova produzida pelo exequente que, no seu depoimento de parte, confessou que:       
a)- não celebrou nenhum contrato com a cessionária, nem cedeu os créditos que detinha sobre a I a outra firma ou pessoa;
b)- não recebeu o valor indicado no alegado contrato de cessão de créditos;
c)- desconhece o teor do contrato de cessão (cfr. acta da audiência de discussão e julgamento de 28/09/2015 e gravação do depoimento de parte do exequente (minutos 52.06, 52.50, 59.30, 1.01.48 e 1.02.33).

D)– O exequente interpôs recurso da sentença do apenso A, o qual ainda se encontra pendente.
E)– A Srª juíza, ora titular do processo, decidiu de modo contrário a mesma questão, contra a prova produzida no apenso A e, consequentemente, contra a respectiva sentença, no âmbito do mesmo processo e sem que tenha alegado novos elementos de prova que lhe permitissem decisão diversa.
F)– Esta situação constitui uma causa prejudicial que, em tudo, configura um verdadeiro caso de litispendência a que se referem os arts. 580 e seguintes do CPC, visto que nenhuma das sentenças transitou em caso julgado.
G)– A litispendência constitui uma excepção peremptória, prevista e estatuída nos arts. 576 e segs. do CPC.
H)– No caso em apreço, esta excepção é do conhecimento oficioso do tribunal, porque no âmbito do mesmo processo, o que a Srª juíza não podia desconhecer –art. 579 do CPC;
I)– O tribunal a quo devia ter proferido decisão sobrestando nos termos do apenso E até que transitasse em julgado a sentença que decidiu o apenso A, e depois decidir em conformidade.
J)– Acresce ainda o facto de o tribunal a quo ter também conhecimento da suspensão decretada pela Srª juíza no âmbito da acção pauliana, acima citada [sic], visto constar da execução um oficio daquele tribunal a solicitar informação logo que verificado o trânsito em julgado da sentença do apenso A.
K)– Esta questão assume particular importância para o veredicto que se pretende com o presente recurso, em virtude de se tratar de uma situação paralela à da sentença recorrida.

A cessionária contra-alegou, defendendo a improcedência do recurso.
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Questão que importa decidir:
Nos termos do recurso da executada, pareceria que a questão a decidir era a de saber se este incidente devia ter sido suspenso, por estar pendente de recurso uma decisão que julgou não ter havido a cessão do crédito invocada pelo cedente e pela cessionária.
Se fosse assim, o recurso devia ser julgado improcedente sem mais, porque não foi essa a questão decidida no tribunal recorrido – que foi a de saber se a transmissão do crédito tinha sido feita para tornar mais difícil a posição da executada no processo.
Ora, nos recursos não se podem conhecer de questões novas, pois que eles apenas se destinam a saber se as decisões recorridas estão erradas, considerando apenas a base factual disponível no momento em que foram proferidas.
Como diz Ribeiro Mendes, em Portugal, os recursos ordinários são de revisão ou de reponderação da decisão recorrida, não de reexame; o objecto do recurso é constituído por um pedido que tem por objecto a decisão recorrida. A questão ou litígio sobre que recaiu a decisão impugnada não é, ao menos de forma imediata, objecto do recurso). (Recursos em Processo Civil, Coimbra Editora, Abril de 2009, págs. 50 e 81),
Consequência disto, é que “os tribunais de recurso não podem apreciar ou criar soluções sobre ‘matéria nova’” (ainda Ribeiro Mendes, obra citada, pág. 51).
Ou como dizem Lebre de Freitas e Ribeiro Mendes, “[é], por isso, constante a jurisprudência no sentido de que aos tribunais de recurso não cabe conhecer de questões novas (o chamado ius novorum), mas apenas reapreciar a decisão do tribunal a quo,  com vista a confirmá-la  ou  revogá--la.” (CPC, anotado, vol. 3º, 2ª edição, Coimbra Editora, 2008, pág. 8).
Estes autores acrescentam que “[o]s tribunais de recurso podem, porém, conhecer de questões novas que sejam de conhecimento oficioso […]”, mas a questão substancial que a executada agora deduz não tem nada a ver com questões de conhecimento oficioso.
Ou ainda, como diz Miguel Teixeira de Sousa: “No direito português, os recursos ordinários visam a reapreciação da decisão proferida dentro dos mesmos condicionalismos em que se encontrava o tribunal recorrido no momento do seu proferimento. Isto significa que, em regra, o tribunal de recurso não pode ser chamado a pronunciar-se sobre matéria que não foi alegada pelas partes na instância recorrida ou sobre pedidos que nela não foram formulados. Os recursos são meios de impugnação de decisão judiciais e não meios de julgamento de questões novas […]. Excluída está, por isso, a possibilidade de alegações de factos novos (ius novorum; nova) na instância de recurso, embora isso não resulte de qualquer proibição legal, mas antes da ausência de qualquer permissão expressa.” (Estudos sobre o novo processo civil, Lex, 2ª edição, 1997, pág. 395, com um extenso parágrafo com inúmeros acórdãos neste sentido)
Ou, como diz Rui Pinto, Elementos de processo recursal, 2010, págs. 57/58, http://forumprocessual.weebly.com/uploads/2/8/8/7/2887461/elementos_de_processo_recursal_110211.pdf: “[o]s recursos não têm por função criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo da decisão recorrida. Para a formação desta decisão concorreu, por sua vez, apenas a matéria oportunamente alegada nos articulados da acção. Há aqui, pois, uma preclusão temporal.” [em nota, 49, faz uma resenha de inúmera jurisprudência sobre a questão].
Mas, aquela pretensão da suspensão tem na sua base a posição de que o saneador-sentença está errado, por aceitar a existência de uma cessão de créditos, quando, noutro processo, se terá decidido, ainda sem trânsito em julgado, que ela não existia.
Ora esta questão já é admissível e é dela, por isso, que deve tratar o recurso, não havendo inconveniente em tratar da questão sob o ponto de vista da suspensão do incidente.
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Os factos que interessam à decisão da questão a resolver são os que constam dos 6 pontos do relatório que antecede.
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A executada veio entretanto, a 29/11/2017, apresentar certidão, com nota de trânsito, do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa que recaiu no apenso A, sem dizer ter notificado o requerimento ao mandatário da outra parte.
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Apreciação do recurso.
A executada diz que existe uma litispendência e quer a suspensão porque existe uma questão prejudicial.
Ora, estas duas afirmações são contraditórias: uma questão prejudicial (art. 272 e 92/2, a contrario, todos do CPC) não pode, logicamente, dar origem a uma situação de litispendência (arts. 580 e 581, ambos do CPC). Ela é prejudicial porque tem por objecto uma questão da qual o julgamento de outra questão depende. Tratando-se de outra questão, não pode ser a mesma, logo não há litispendência.
De resto, se houvesse litispendência, a solução nunca seria a suspensão do incidente, mas a absolvição da instância (arts. 576/2 e 577, ambos do CPC).
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Não havendo litispendência, mas sim uma eventual questão prejudicial, a suspensão nunca seria obrigatória: o art. 272/1 do CPC diz que nesse caso o juiz pode ordenar a suspensão. Se ‘pode’ ordenar – o que se compreende porque o tribunal tem competência para a decisão da questão: art. 92/2, a contrario, do CPC - trata-se de um poder discricionário e como tal não susceptível de recurso (arts. 620 e 630/1 do CPC). Logo, também por aqui, o recurso nem sequer seria admissível se fosse realmente a questão da suspensão o objecto do processo.
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Para apurar se isto pode, de algum modo, prejudicar a executada, veja-se: se a oposição à execução tivesse sido julgada procedente – tendo em conta o momento inicial, em que apenas parecia estar em causa a excepção de não cumprimento do contrato que estava na base do crédito exequendo (ou, nos termos da executada, a mora do credor/exequente) -, julgando-se extinta a execução, a executada deixava de o ser e para tal seria indiferente quem estivesse colocado no lugar do exequente: o primitivo, cedente, ou a cessionária. Logo, não haveria prejuízo para a executada.
No entanto, depois de um articulado superveniente introduzido na oposição pela executada (como decorre do acórdão do TRL entretanto junto pela executada) e depois da sentença aí proferida, o que estava em causa era só se o crédito exequendo devia ser ou não compensado com um crédito da executada sobre o exequente.
Se fosse julgado procedente o recurso do exequente, ficava decidido que o crédito não devia ter sido compensado e a execução devia prosseguir por todo o valor do crédito original, não importando, então, que no lugar do exequente estivesse a cessionária em vez do cedente.
Se o recurso fosse julgado improcedente – como foi –, o crédito do exequente ficava reduzido devido à compensação com o contracrédito e a execução devia prosseguir – como deve –, pelo crédito reduzido, não importando que no lugar do cedente esteja a cessionária.
Logo, o resultado da oposição à execução é indiferente.
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No entanto, complicando a questão, vem a executada dizer (na conclusão b do seu recurso) que houve uma decisão nesse apenso de oposição à execução, que teria julgado a questão da nulidade da cessão de créditos.

Mas, desde logo, não apresentou qualquer prova disso: estando em causa dois apensos distintos, que sobem em recursos separados, os elementos de prova existentes num deles não são elementos de prova existentes noutro. E, para além de não apresentar prova, o que ela diz é suficiente para se saber que não existe essa prova. É que a executada transcreve aquilo que teria sido escrito na sentença de oposição e logo se vê que se trata apenas de um extracto da fundamentação da decisão da matéria de facto incluída na sentença proferida na oposição à execução: ou seja, é uma frase de justificação para se dizer porque é que não se deu como provada uma cessão de créditos. Ou seja, a executada confunde um fundamento da decisão da matéria de facto com a parte decisória da sentença. Ora, o facto de, numa decisão da matéria de facto não se ter dado como provada uma cessão de créditos, nunca poderia ter o efeito de impor, numa sentença proferida num outro apenso, que não se pudesse dar como provada essa cessão. É que, naquela outra decisão, não se decidiu que não havia cessão, decidiu-se só que ela não estava provada.
Mas mais, não corresponde também à verdade que na oposição à execução estivesse em causa a nulidade da cessão de créditos, nem esta é, aliás, a questão destes autos (ao contrário do que se diz na conclusão a do recurso). Nestes, quando muito, pode entender-se que está em causa, como possível questão prejudicial, uma possível ineficácia da cessão de créditos, não a sua nulidade.
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Quanto à impugnação pauliana:
Nela discute-se se a cessão de créditos deve ser considerada ineficaz, isto é, não oponível à executada.
Se for decidido que ela é ineficaz (ou seja, se a impugnação for procedente), então é como se o crédito continuasse a ser do cedente e a compensação dos créditos podia operar, como operou e foi decidido na oposição à execução, pelo que o resultado pretendido pela executada tinha sido conseguido e ela deixava de se poder opor à cessão de créditos para efeitos de habilitação na parte não compensada.
Aliás, o trânsito em julgado da decisão da oposição à execução, que compensou o crédito do exequente com o contracrédito do executado, vai tirar a razão de ser à impugnação pauliana, pois que a partir daí a executada não vai ter razão para impugnar a cessão (se já se operou a compensação, não há o perigo de não se vir a compensar…). É certo que este argumento parte de um dado de facto que não existia no incidente de habilitação na data em que foi proferido o saneador-sentença, mas com este argumento só se está a dar mais um, que assim é desnecessário por si, para demonstrar que não há qualquer razão para suspender este incidente à espera da impugnação pauliana. E tal resulta de um elemento que foi apresentado pela própria executada e, como a sua consideração, aqui, não prejudica o cedente e a cessionária, nem sequer importa que eles não tenham sido dele notificados pela executada.
Se não for decidido que a cessão de créditos é ineficaz (ou seja, se a impugnação pauliana for improcedente), deixa de ter sentido discutir se a cessionária pode ou não, com base na cessão, ser habilitada no lugar do cedente.
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Em suma: não se prova que a cessão de créditos – que existiu e de que a executada não arguia a nulidade – possa prejudicar a posição da executada na execução, pelo que não havia razão para não admitir a habilitação (nem para a suspender), pelo que a decisão recorrida está correcta.

Reconhece-se que existe uma contradição com o decidido nestes autos e a fundamentação da convicção para a decisão da matéria de facto proferida num outro processo quanto à existência da cessão de créditos, mas, por um lado, essa contradição é irrelevante; por outro lado, a existência da cessão, nestes autos, é evidente e nem sequer foi impugnada pela executada; e, por fim, a executada em nada ficou prejudicada com essa contradição. 
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Pelo exposto, julga-se o recurso improcedente.
Custas pela executada.
Ao notificar este acórdão, notifique também à cessionária o requerimento da executada a juntar o acórdão do TRL de 06/07/2017, com cópia tirada à custa da executada.



Lisboa, 20/12/2017



Pedro Martins
Arlindo Crua
António Moreira