Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
881/18.1SDLSB.L1-5
Relator: JOSÉ ADRIANO
Descritores: INIMPUTABILIDADE EM RAZÃO DE ANOMALIA PSÍQUICA
PERÍCIA MÉDICO-LEGAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/30/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: – O artigo 20.º, do CP refere-se à inimputabilidade do agente do crime, em razão de anomalia psíquica de que seja portador, sendo inimputável quem, por força daquela anomalia, «for incapaz, no momento da prática do facto, de avaliar a ilicitude deste ou de se determinar de acordo com essa avaliação», referindo o n.º 3 do mesmo preceito que «a comprovada incapacidade do agente para ser influenciado pelas penas pode constituir índice da situação prevista no número anterior», ou seja, daquela situação em que a capacidade para fazer tal avaliação se mostre «sensivelmente diminuída».
– A incapacidade do agente para ser influenciado pelas penas, parcial ou totalmente, só pode ser determinada através de exame médico às correspondentes faculdades mentais, o que implica a realização da correspondente perícia médico-legal, em conformidade com o disposto no artigo 351.º, do CPP.
– Em audiência de julgamento, tal perícia é ordenada por despacho do presidente, oficiosamente ou na sequência de requerimento formulado para o efeito, nomeadamente, pelo próprio arguido, conforme se dispõe no mesmo normativo e no artigo 154.º, do mesmo Código.
– Todavia, a lei não só não prevê qualquer obrigatoriedade de realização de tal perícia, quando requerida, como estabelece o condicionalismo que tem de se verificar para que a mesma tenha lugar - a questão da inimputabilidade tem de ser fundadamente suscitada -, podendo, por isso, a autoridade judiciária (presidente do tribunal) avaliar da consistência dos fundamentos invocados e da necessidade de tal exame para a decisão a proferir no respectivo processo, podendo deferir ou indeferir o respectivo pedido.
– A questão da inimputabilidade ou da imputabilidade diminuída do arguido deve ser suscitada “fundadamente”, isto é, a questão deve ser colocada com base em factos concretos (que são “os fundamentos”) atinentes ao comportamento do arguido que fazem nascer uma dúvida plausível sobre a capacidade de o arguido entender e querer a sua própria conduta», para além de que, «a obrigatoriedade da perícia no primeiro caso (artigo 351.º, n.º 1) não obsta, pois, à necessidade de o tribunal proceder a uma avaliação dos referidos “fundamentos” e, por outro lado, a ordem de realização da perícia no segundo caso (artigo 351.º, n.º 2) depende da justificação da necessidade da perícia para a descoberta da verdade».
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 5.ª Secção (Criminal) da Relação de Lisboa.


I.–RELATÓRIO:


1.– O arguido J. foi submetido a julgamento, em processo sumário, no Juízo Local de Pequena Criminalidade de Lisboa (J2), Comarca de Lisboa.

Aberta a audiência, aquele requereu a realização de perícia às suas faculdades mentais, nos termos que constam do seu requerimento de fls. 70 a 74.

O Tribunal tomou de imediato a seguinte posição:
"Resulta dos elementos já carreados para os autos pela defesa que o arguido, no passado, o mesmo foi acompanhado no âmbito do processo de promoção e protecção que teve naturalmente como objectivo avaliar o comportamento do ora arguido, acompanhamento este que incidiu sobre componentes psicológicas e psiquiátricas.
Destes mesmos elementos trazidos pela defesa consta a menção a folhas 48 que ocorreram consultas psiquiátricos, no Hospital Pulido Valente, realizadas pelo Dr. L.M. , que, então, terá afastado a existência de qualquer patologia do ora arguido.
Face ao disposto no artigo 351 do Código de Processo Penal e aos termos em que é requerida a diligência (por via do requerimento que vai rubricado ser junto aos autos) indefere-se o requerido.
Notifique."

No final da produção da prova, sobre a mesma questão foi proferido o seguinte despacho, ora recorrido:
"Resulta das declarações do arguido que o mesmo tem plena consciência do desvalor que representam as condutas de condução sem habilitação legal, impondo-se, por conseguinte responder a apenas uma pergunta, se no momento da prática do facto estava capaz de se determinar de acordo com essa consciência?
Resulta também das declarações do arguido, em resposta às questões colocadas por este Tribunal que o mesmo, quer antes da prática dos factos, quer depois conseguiu controlar o seu alegado "impulso" de condução de veículos automóveis na via pública, afirmando não o ter feito até àquela data, não o ter feito depois e que a 13 de Agosto de 2018 o fez apenas pela necessidade de conduzir o veículo até casa, veículo este que adquiriu aproveitando aquilo que denomina ter sido um bom negócio, aquisição por 350 € de um veículo que no mercado, em função do estado, valeria entre 1000 € a 1500 €.
Assim sendo, resulta das declarações do arguido, o afastamento de qualquer incapacidade de avaliar o desvalor da sua conduta e, bem assim, o afastamento da incapacidade de se determinar de acordo com essa avaliação.
Indefere-se por conseguinte a requerida perícia.
Notifique."

Prosseguiu a audiência de julgamento com as subsequentes alegações orais e últimas declarações do arguido, tendo sido proferida sentença oral, com o seguinte dispositivo, que foi ditado para a acta (transcrição):
«Em face do exposto, declaro procedente a acusação deduzida pelo Ministério Público e, em consequência:
Condeno o arguido J. , pela prática, em 13 de Agosto de 2018, em Lisboa, de 1 (um) crime de condução sem habilitação legal, previsto e punido pelo artigo 3o, n.°s 1 e 2, do Decreto-Lei n.° 2/98, de 03 de Janeiro, com referência ao artigo 121 do Código da Estrada, numa pena de 12 (doze) meses de prisão, suspensa na sua execução, nos termos dos artigos 50, 53 e 54 do Código Penal, pelo período de 12 (doze) meses, mediante regime de prova a elaborar pela D.G.R.S.P, fixando-se no regime de prova a obrigação de frequentar as aulas teóricas e submeter-se a exame teórico na prazo de 4 (quatro) meses comprovando tal facto nos autos e, obtida tal aprovação da prova teórica, frequentar e submeter-se a exame prático nos 4 (quatro) meses subsequentes, comprovando tal nos autos.
A título de custas criminais condena-se o arguido J. em 2 (duas) Unidades de Conta de taxa de justiça, reduzidas a metade atenta a confissão, e demais encargos do processo (artigos 344, 513 e 514 do Código de Processo Penal, artigos 8o e tabela III do Regulamento das Custas Processuais).
...»

2.–O recurso:
2.1.– Não se conformando com o «despacho proferido em sede de audiência de julgamento, na sequência dos requerimentos apresentados no sentido de ser determinada a realização de perícia médico-legal às suas faculdades mentais», o arguido J. veio interpor recurso de tal despacho, formulando as seguintes conclusões:
1– Na sequência da apreciação das questões, suscitadas na motivação deste recurso, a saber:
I)– A nulidade do despacho recorrido, nomeadamente, por não obedecer ao disposto no n.° 1 do art. 351.° do CPP;
II)–Os aspectos de facto que foram incorrectamente considerados e que levam a que se impugne a decisão proferida;
III)–A invalidade da Sentença proferida.

Conclui-se que:
2–  O ora recorrente demonstrou não ser influenciado pelas penas que lhe são aplicadas, por via da condução de veículos motorizados, na via pública, sem dispor de habilitação legal.
3– Foi requerido que o Tribunal determinasse a realização de perícia-médico-legal às faculdades mentais do ora recorrente, como elemento de prova essencial.
4– O requerimento foi apresentado tempestivamente, em momento processualmente adequado.
5– O requerimento foi devidamente fundamentado, indicando-se todos os factos que deveriam ser apreciados na perícia e os factores sobre os quais esta deveria incidir, para além dos meios adicionais e/ou complementares de que o perito poderia servir-se.
6–  O requerimento mereceu despacho de indeferimento.
7–  O despacho de indeferimento não contém a inderrogável fundamentação, nomeadamente a de direito, e particularmente no que concerne ao disposto no n.° 1 do art. 351.° do C.P.P..
8– Não constitui poder discricionário do Meritíssimo Juiz indeferir liminarmente o requerido, antes constituindo dever vinculativo determinar a realização da perícia médico-legal em questão, como elemento de prova considerado essencial.
9–  Tanto mais que se encontra demonstrado, à saciedade, que o ora recorrente não revela qualquer capacidade para ser influenciado pelas penas aplicadas em consequência de conduzir veículos motorizados na via pública sem habilitação legal.
10– Os motivos que conduzem ao comportamento do ora recorrente carecem de enquadramento médico, pois só os peritos desse ramo do conhecimento se encontram habilitados a proferir parecer fundamentado sobre a origem desses motivos.
11–   Só na posse das conclusões periciais poderá o julgador, à luz do disposto no art. 20.° do Código Penal, decidir sobre a inimputabilidade do ora recorrente, no que respeita aos factos apreciados em sede de julgamento.
12–  Não tendo sido cumprido disposto no n.° 1 do art. 351.° do C.P.P., não foi devidamente aplicado o Direito ao caso, conduzindo à nulidade do Despacho ora colocado em crise.
13– Na sua sequência, não poderia ser proferida sentença enquanto toda a prova não fosse produzida e apreciada.
14–  O Tribunal a quo deveria ter optado por uma decisão diversa da adoptada, não podendo prescindir da prova pericial cuja realização foi devida e correctamente requerida.
15–  Constam do processo e das gravações efectuadas todos os elementos ou meios de prova que serviram de base à decisão de facto.
16–  Está assegurado um efectivo recurso em matéria de facto, através do qual o tribunal superior procede a uma ampla sindicação da actividade decisória do tribunal de l.a instância, por via do reexame ou reapreciação de todas as provas.
17–  Por assim ser, e entendendo o recorrente que este exame implícito do tribunal não é correcto, deverá proceder o recurso da matéria de facto.
18–  O Tribunal a quo extrapolou, em muito, o sentido, o alcance e o conteúdo do princípio da livre apreciação da prova, plasmado no art. 127.° do C.P.P.
19–  O Tribunal recorrido formou a sua convicção com base em meras presunções, assumindo o papel do perito.
20–  Por não ter determinado a realização da perícia médico-legal requerida, o Tribunal recorrido não pôde pronunciar-se sobre a prova que daí resultaria.
Face à matéria ora alegada e verificada a existência, entre outros, dos vícios dos arts. 379.°, n.° 1, al. c), 410.°, n.° 2, al. a) e c) do CPP, deverá o Venerando Tribunal da Relação:
A- Declarar nulo o despacho que indeferiu o requerimento apresentado para que fosse realizada perícia-médico-legal.
B- Determinar que seja realizada a perícia médico-legal requerida, nos exactos termos em que o foi.
C- Anular a sentença proferida por não ter sido apreciada toda a prova, nomeadamente a pericial, requerida pelo ora recorrente.
Assim se fazendo justiça!

2.2.– Admitido o recurso, respondeu o Ministério Público, assim concluindo:
1– Aderindo-se, com a devida vénia, à fundamentação da sentença do Tribunal a quo, afigura-se-nos que o recurso interposto pelo arguido não deverá merecer provimento.
2– A sentença recorrida não padece de qualquer vício, encontrando-se cabalmente fundamentado o despacho judicial que indeferiu a realização de perícia médíco-legal ao arguido.
3–    Como tal, dever-se-á manter a douta decisão recorrida.
***

3.– Subidos os autos sem que tenha havido qualquer despacho ao abrigo do artigo 414.º, n.º 4, do CPP, neste Tribunal da Relação a Sr.ª Procuradora-Geral Adjunta apôs “visto”, ao abrigo do artigo 416.º, do mesmo Código.
4.– Efectuado o exame preliminar - no qual se alterou o efeito do recurso - e colhidos os vistos a que se refere o art. 418.º, n.º 1 do mencionado Código, teve lugar a conferência, cumprindo decidir.
***

II.–FUNDAMENTAÇÃO:

1.– Delimitação do objecto do recurso:
Conforme decorre clara e expressamente do requerimento de interposição, bem como da motivação apresentada, com o presente recurso visa o recorrente impugnar, apenas, o despacho proferido na audiência de julgamento, que indeferiu a realização da perícia médico-legal, por ele requerida na mesma sessão da audiência, despacho que já reproduzimos supra.
Na verdade, apesar de se invocar “invalidade” da sentença, desta não foi interposto recurso.
Consequentemente, tal invalidade só poderá ser a que, ao abrigo dos artigos 120.º, n.º 2, alínea d) e 122.º, n.º 1, do CPP, decorre da eventual procedência do recurso interposto, com a revogação do despacho recorrido, caso se entenda que deve proceder-se à realização da perícia requerida, por ser essencial para a descoberta da verdade. Está, por isso, vedado a este tribunal de recurso conhecer das nulidades de sentença previstas no artigo 379.º, do CPP, na falta do respectivo recurso, apesar de essa norma ter sido invocada pelo recorrente.
Assim, as questões a apreciar, que por este foram suscitadas nas conclusões que formulou e que, como temos repetidamente dito, delimitam e fixam o objecto do recurso, são as seguintes:
- Nulidade do despacho recorrido;
- Impugnação dos aspectos de facto que no mesmo despacho foram incorrectamente considerados;
- Invalidade da sentença proferida (com a limitação que acabámos de referir).
***

2.– Apreciemos, pois, cada um dos aludidos fundamentos:
2.1.– O arguido J. foi acusado e condenado pela prática de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, conforme decorre do dispositivo da respectiva sentença.
Com o processo ainda na titularidade do MP, o arguido requereu a realização da perícia às suas faculdades mentais, a qual foi indeferida por despacho e fls. 52.
Remetido o processo para julgamento, logo que aberta a respectiva audiência requereu, de novo, tal exame pericial, reforçando o pedido com novo requerimento de idêntico teor e apoiando-se no disposto nos artigos 351.º e 151.º e seguintes do CPP.
Fundamentalmente, a razão do pedido formulado é o facto de o arguido ter sido detido à ordem deste processo, depois de ter sido sujeito a várias outras detenções, noutros processos, desde o ano de 2016, identificando três processos nos quais já houve condenação transitada em julgado, para além de outros ainda pendentes, uns em inquérito, outros já em fase de julgamento, alegando que é notória a uniformidade de actos praticados, sempre tendentes a exercer a condução de veículos motorizados na via pública, sendo os demais crimes apenas um meio adequado a esse fim perseguido, o da condução. Dado o elevado número de situações de condução ilegal, conclui o requerente que “denota, patentemente, uma incapacidade para se determinar de acordo com uma avaliação sobre a ilicitude dos factos praticados, no momento da sua prática» ou, «pelo menos, uma incapacidade diminuída para se determinar de acordo …» com essa avaliação, mostrando-se, também, «transparente, que o arguido demonstra, comprovadamente, uma incapacidade para ser influenciado pelas penas», tendo sido já «atendido e seguido em consultas de psiquiatria e psicologia», razões pelas quais, do seu ponto de vista, os seus actos «devem ser analisados à luz do previsto no artigo 20.º, do Código Penal». Juntou aos autos relatório social, elaborado em 13/11/2017 ao abrigo do art.º 108.º, da Lei de Protecção de Crianças e Jovens, que constitui fls. 43 a 51, cujo teor aqui damos por reproduzido.

Dispõe o citado artigo 351.º, do CPP:
1.– Quando na audiência se suscitar fundadamente a questão da inimputabilidade do arguido, o presidente, oficiosamente ou a requerimento, ordena a comparência de um perito para se pronunciar sobre o estado psíquico daquele.
2.– O tribunal pode também ordenar a comparência do perito quando na audiência se suscitar fundadamente a questão da imputabilidade diminuída do arguido.
3.– Em casos justificados, pode o tribunal requisitar a perícia a estabelecimento especializado.
4.– Se o perito não tiver ainda examinado o arguido ou a perícia for requisitada a estabelecimento especializado, o tribunal, para o efeito, interrompe a audiência ou, se for absolutamente indispensável, adia-a.

Por sua vez, o artigo 20.º, do CP refere-se à inimputabilidade do agente do crime, em razão de anomalia psíquica de que seja portador, sendo inimputável quem, por força daquela anomalia, «for incapaz, no momento da prática do facto, de avaliar a ilicitude deste ou de se determinar de acordo com essa avaliação». Refere o n.º 3 do mesmo preceito que «a comprovada incapacidade do agente para ser influenciado pelas penas pode constituir índice da situação prevista no número anterior», ou seja, daquela situação em que a capacidade para fazer tal avaliação se mostre «sensivelmente diminuída».
É certo que a aludida incapacidade, parcial ou total, só pode ser determinada através de exame médico às correspondentes faculdades mentais, o que implicaria a realização da correspondente perícia médico-legal, em conformidade com o disposto no artigo 351.º, do CPP.
Também não se põe em causa que, em audiência de julgamento, tal perícia é ordenada por despacho do presidente, oficiosamente ou na sequência de requerimento formulado para o efeito, nomeadamente, pelo próprio arguido, conforme se dispõe no mesmo normativo e no artigo 154.º, do mesmo Código.
Todavia, a lei não só não prevê qualquer obrigatoriedade de realização de tal perícia, quando requerida, como estabelece o condicionalismo que tem de se verificar para que a mesma tenha lugar - a questão da inimputabilidade tem de ser fundadamente suscitada -, podendo, por isso, a autoridade judiciária (presidente do tribunal) avaliar da consistência dos fundamentos invocados e da necessidade de tal exame para a decisão a proferir no respectivo processo, podendo deferir ou indeferir o respectivo pedido.
O tribunal recorrido optou, no presente caso, por indeferir o pedido formulado, pelas razões constantes dos despachos supra transcritos, que aqui damos por reproduzidos.
2.2.– Padecerá tal decisão de nulidade, tal como alegado pelo recorrente?
Entendemos que inexiste a nulidade em causa.
Baseia-se a mesma numa pretensa violação do n.º 1 do artigo 351.º, acima citado.
Ora, se o despacho recorrido afrontasse o aludido normativo, ao negar a realização de um exame que pelo mesmo era imposto sempre que requerido, então haveria erro na aplicação de direito, ao decidir-se contra legem, o que levaria à revogação do despacho e à prolação de decisão em sentido contrário, para que ficasse em conformidade com a norma em causa. Desse modo, seria reposta a legalidade do acto que, até então, era ilegal.
Todavia, porque daquele normativo ( art.º 351º,n.º1 CPP) não resulta qualquer obrigatoriedade de realização da diligência (perícia) sempre que requerida, o juiz não tem necessariamente de deferir o respectivo pedido do arguido nesse sentido, podendo recusá-lo, caso o considere infundado.
Tal como refere Paulo Pinto de Albuquerque (“Comentário do Código de Processo Penal…”, ed. 2008, página 880), «a questão da inimputabilidade ou da imputabilidade diminuída do arguido deve ter sido suscitada “fundadamente”, isto é, a questão deve ser colocada com base em factos concretos (que são “os fundamentos”) atinentes ao comportamento do arguido que fazem nascer uma dúvida plausível sobre a capacidade de o arguido entender e querer a sua própria conduta», para além de que, «a obrigatoriedade da perícia no primeiro caso (artigo 351.º, n.º 1) não obsta, pois, à necessidade de o tribunal proceder a uma avaliação dos referidos “fundamentos”. Por outro lado, a ordem de realização da perícia no segundo caso (artigo 351.º, n.º 2) depende da justificação da necessidade da perícia para a descoberta da verdade».
Obviamente que, a recusa em realizar a perícia não é discricionária, pelo contrário, estamos perante um poder vinculado do juiz, obrigando a que aquela tenha de ser fundamentada, como qualquer outra decisão judicial, para que se possa avaliar da justeza da decisão e da susceptibilidade de dela recorrer o interessado.
Todavia, essas exigências de fundamentação não são iguais às da sentença.
Enquanto esta, sendo uma decisão que conhece, a final, do objecto do processo (do mérito da causa), tem de obedecer aos requisitos do art. 374.º, do CPP, sob pena de nulidade faltando alguns deles - concretamente, os previstos na alínea a) do n.º 1 do artigo 379.º, do mesmo Código -, quanto aos despachos interlocutórios as exigências de fundamentação são substancialmente menores, bastando, na maioria das vezes, que aqueles observem o disposto no artigo 97.º, n.º 5, daquele diploma, ou seja, que especifiquem «os motivos de facto e de direito da decisão».
Por outro lado, vigora em matéria de nulidades, o princípio da legalidade, previsto no artigo 118.º, segundo o qual, só existe nulidade «quando esta for expressamente cominada na lei» para o respectivo acto.
O artigo 97.º - ou qualquer outro dispositivo legal - não comina com a nulidade os despachos que não contenham a fundamentação a que alude aquele artigo, reconduzindo-se a total ausência de fundamentação a uma mera irregularidade, do artigo 123.º, por força do n.º 2 do mesmo artigo 118.º. Assim, se o acto (despacho) contém fundamentação, por mais concisa que ela seja, inexiste qualquer invalidade, ressalvadas aquelas situações em que este vício é expressamente cominado, por faltar algum dos requisitos estabelecidos de modo expresso na lei, como é o caso do despacho a que se refere o artigo 194.º, n.º 6, nomeadamente, quando é aplicada uma medida de coacção, exceptuado o TIR.
No caso em apreço, o tribunal recorrido fundamentou a sua decisão, dando a conhecer as razões pelas quais indeferia a perícia, como se pode constatar do texto respectivo, podendo concluir-se deste que, na perspectiva do tribunal, a perícia é injustificada, não havendo quaisquer fundamentos ou indícios que permitam duvidar da total imputabilidade do arguido. Pelo que, o despacho recorrido não padece de falta de fundamentação.
A existir nulidade processual, seria aquela a que já aludimos supra, ou seja, no próprio procedimento anterior à prolação da decisão final, que se traduziria na nulidade prevista no artigo 120.º, n.º 2, al. d), decorrente da omissão, em fase de julgamento, «de diligências que pudessem reputar-se essenciais para a descoberta da verdade», tendo de demonstrar-se esta essencialidade, no que concerne à perícia requerida, essencialidade que o tribunal recorrido afastou.

2.3.– Alega ainda o arguido que há aspectos de facto que no despacho recorrido foram incorrectamente considerados, impugnando-os.
Esses “aspectos de facto” não foram concretamente identificados.
O que está em causa neste recurso é apenas uma divergência do recorrente, relativamente às conclusões retiradas, pelo tribunal, dos elementos constantes dos autos e do teor das declarações proferidas pelo arguido em audiência de julgamento.
Segundo tais elementos, o arguido é capaz, ou não é capaz, de avaliar a ilicitude dos seus actos?
O arguido tem o 9.º ano de escolaridade e exerce a actividade profissional de consultor imobiliário. O seu discurso é perfeitamente normal, compreende com toda a plenitude que os actos de condução de veículos que leva a cabo, sem ser titular da respectiva licença de condução, constituem crime, e as anteriores consultas de psiquiatria em que foi avaliado afastaram a hipótese de ele padecer de qualquer patologia que o impeça de avaliar a ilicitude dos seus actos.
Por outro lado, não são invocados pelo recorrente quaisquer outros argumentos, factos ou circunstâncias que façam duvidar daquela capacidade do arguido, que foi afirmada pelo tribunal recorrido, para este se determinar de acordo com uma avaliação correcta da ilicitude dos seus actos, para além da sua própria “reincidência”.
Todavia, esta circunstância - ter cometido vários crimes sucessivos da mesma espécie, a maior parte deles, aliás, ainda não julgados, como parece resultar da motivação do recurso - está longe de poder indiciar, muito menos comprovar, qualquer «incapacidade do arguido para ser influenciado pelas penas», tanto mais que, nos autos não existe qualquer indicação de que tenha sido anteriormente condenado em qualquer pena privativa da liberdade, tendo-lhe sido sempre aplicada, nos processos que constam no seu CRC, pena de multa. Mesmo neste processo, a execução da prisão ficou suspensa.
Isso apenas revela que as (duas?) penas de natureza pecuniária anteriormente aplicadas não tiveram no arguido o efeito dissuasor pretendido, exigindo-se a aplicação de penas de outro tipo, com uma maior capacidade de produzir aquele efeito - tal como terá entendido o tribunal recorrido, neste caso -, não estando minimamente indiciado que o arguido revele qualquer «incapacidade para ser influenciado pelas penas».
Realça-se de novo que a diligência em causa só é indispensável ou essencial à boa decisão da causa, impondo-se ao tribunal a realização da mesma, quando a questão da inimputabilidade do arguido for fundadamente suscitada. Diversamente, se os fundamentos invocados pelo requerente não tiverem razão de ser, porque nada de objectivo existe que dê suporte à alegada inimputabilidade, o pedido não é fundado, logo, não tem de ser deferido.
Consequentemente, concordando-se com o juízo feito pelo tribunal recorrido no que concerne à ausência de fundamento para determinar a realização da perícia requerida, o indeferimento do pedido formulado nesse sentido pelo arguido não traduz qualquer nulidade, nada afectando, por isso, a validade da sentença proferida, pelo que, o recurso tem de improceder, subsistindo o despacho recorrido e todos os actos processuais subsequentes. 

III.–DECISÃO:  
Em conformidade com o exposto, julga-se improcedente o presente recurso do arguido J. , confirmando-se o despacho recorrido.
Custas a cargo do recorrente, fixando-se a taxa de justiça em três (3) UC.
Notifique.



Lisboa,30/10/2018 


José Adriano 
 (Elaborado em computador e revisto pelo relator).
Vieira Lamim