Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
3450/07.8TALRS.L1-9
Relator: ALMEIDA CABRAL
Descritores: DESCAMINHO
CONSUMAÇÃO
BEM JURÍDICO PROTEGIDO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/09/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: 1- No crime de descaminho o Estado pretende tutelar o “bem jurídico da sua autonomia intencional”, visando evitar que seja violado o destino pelo mesmo dado a determinados objectos ou coisas, as quais ficaram sob o seu domínio por serem necessárias a determinada finalidade, que importa assegurar, como seja, no caso, garantir o pagamento da quantia exequenda e respectivas custas.

2 - O crime consuma-se “quando o agente frustra, total ou parcialmente, a finalidade da custódia, através de uma acção directa sobre a coisa, inutilizando-a ou descaminhando-a”.

3 - No tipo de crime em causa não se exige que o visado tenha sido notificado para entregar os bens, pois que não se está perante um crime de desobediência em que se tenha imposto ao fiel depositário uma determinada obrigação, nem que tenha sido advertido de que incorreria em responsabilidade criminal, caso não o fizesse. O crime de descaminho basta-se com a actuação do fiel depositário que, tendo consciência das suas funções, remova os objectos da mão do poder público que os tenha penhorado, isto é, que remova ou retire esses bens da alçada do poder público.

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, os Juízes da 9.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:


1 – No 2.º Juízo Criminal da Comarca de Loures, Processo Comum Singular n.º 3450/07.8TALRS, onde é arguido/recorrente J..., foi este julgado e condenado, como autor de um crime de “descaminho”, p. p. nos termos do art.º 355.º do Cód. Penal, na pena de cinco meses de prisão, substituída por 150 dias de multa, à taxa diária de 5,00 €uros.

Inconformado com a referida decisão, da mesma interpôs o arguido o presente recurso, o qual sustentou no incorrecto julgamento da matéria de facto, com violação do disposto no art.º 127.º do C.P.P., na violação do P.º ne bis in idem, no dever de rejeição da acusação, que considera manifestamente infundada, no não preenchimento dos elementos típicos do art.º 355.º do Cód. Penal e na inexistência de dolo.

Da respectiva motivação extraiu as seguintes conclusões:

“(…)

1) - O presente recurso tem por objecto a violação do disposto no art. 355.º de C. Penal, dos arts. 127.º, do C.P.P., do art. 29.º, n.º 5 da CRP, do disposto no art. 410.º, n.º 2, al. a e c), de C. de Processo Penal e de disposto no art.º 311.º, n.º 3, alínea n) e c) do C.P.P.

2) - O artigo 29.º, n.º 5 da CRP, deve ser interpretada extensivamente no sentido de que o Estado não pode submeter uma pessoa a inquéritos-crime sucessivos pelos mesmos factos se os anteriores resultaram em sucessivos arquivamentos, sem que tenham sido carreados para o processo novas provas que justificassem a reabertura do inquérito.

3) - Existe uma clara violação do princípio ne bis in idem, se os factos em questão já foram apreciados e arquivados em dois processos crime diferentes os quais correram os seus termos nos serviços do Ministério Público do mesmo Tribunal (ainda que em Secções diferentes) sob os n.º 1025/04.2TALRS e 983/09.5TALRS, da 2.ª e 1.ª Secção respectivamente.

4) - Tal terá que ser visto também como um corolário do princípio ne bis in idem ou non bisin, sendo indiferente qual a instância ou a fase processual em que os mesmos são apreciados, se pelo Magistrado do Ministério Público que conclui pela ausência de crime e consequente arquivamento, se pelo Juiz que condena ou absolve.

5) - Consequentemente, no caso sub judice, deveria ter relevado para efeitos de boa decisão da causa, a circunstância de os factos em causa já terem sido objecto de dois arquivamentos sucessivos, já transitados em julgado, devendo proceder a excepção de trânsito em julgado invocada.

6) - Não existe no processo qualquer carta devolvida nem a cópia de alguma carta enviada ao arguido que demonstre de forma inequívoca que este haja sido notificado para proceder à entrega dos bens.

7) Pelo que, não se encontrando o arguido regularmente notificado para entregar os bens, não se encontra preenchido a tipo de crime previsto no art.º 355.º do C.P.

8) - Consequentemente, não existindo no processo qualquer prova documental de alguma notificação ao arguido para entrega dos bens, resulta evidente a manifesta impossibilidade de lhe ter sido comunicado em algum momento que não o fazendo, incorreria em responsabilidade criminal

9) - É essencial que o destinatário tenha conhecimento da ordem ou mandado a que fica sujeito, através de um processo regular e capaz de transmissão, por forma a que seja sabedor do que lhe é imposto ou exigido.

10). Não identificando a acusação o número de processo de onde foi efectuada a dita penhora de bens, nem identificando em que data e por que modo teve lugar a comunicação do encarregado de venda e/ou Tribunal para que o arguido entregasse os bens e a comunicação em caso de não entrega, nomeadamente qualquer procedimento criminal em caso de incumprimento da ordem, a mesma deveria ter sido rejeitada liminarmente pelo Meritíssimo Juiz, nos termos do art. 311.º, n.º 3, b) do C.P.P.

11) - A simples não entrega dos bens penhorados ao encarregado da venda não integra o crime de descaminho previsto e punido no artigo 355.º do Código Penal, pois resulta daquele dispositivo legal que para o preenchimento daquela tipicidade é essencial que o agente destrua, danifique, inutilize ou subtraia o objecto que se encontrar naquela precisa situação (arrestado, apreendido ou objecto de providência cautelar).

12) - pelo que não tendo sido apurado em sede de inquérito nos presentes autos qual o destino dado aos bens pelo arguido, resulta a impossibilidade de afirmação de que houve destruição, danificação, inutilização ou subtracção, indispensável à afirmação de que se demonstrou o tipo objectivo desse crime.

13) - Consequentemente, não se mostram preenchidos os elementos objectivos do crime de descaminho ou destruição de objectos colocados sob o poder público, da previsão do art. 355.º do Código Penal.

14) - Se num auto de penhora apenas é lavrado que “Dos bens penhorados constituímos fiel depositário o Sr. J..., portador do b.i. n.º 4609798 de 21.10.1996 Lisboa, que é pessoa de abonação suficiente a quem declaramos que os bens ficam à sua guarda e que deve apresentá-los quando isso lhe for exigido”, daí não resulta qualquer cominação legal, nomeadamente a de que o se o arguido não apresentasse os bens o mesmo incorreria num crime de desobediência ou de descaminho.

15) - Omitindo o auto de penhora a notificação prevista no art. 854.º, n.º 2 do C.P.C. Em vigor à data dos factos, tal significa que neles são também omitidas as consequências do incumprimento de um futura ordem de entrega dos bens, nomeadamente em sede criminal.

16) - Para a realização do tipo de crime do art. 355.º do Código Penal exige-se, para além da demonstração de que o arguido foi notificado regularmente para entregar os bens, que ocorra a frustração definitiva da finalidade da custódia da coisa, e que essa frustração seja alcançada através de uma acção directa sobre essa coisa que a destrua, inutilize ou impeça a sua entrega, e ainda o dolo do agente, em qualquer das formas previstas no art. 14.º do Código Penal.

17) - Tendo o arguido agido no convencimento de que o processo executivo já se encontrava extinto, e tendo pago as custas do processo através de depósito autónomo, não resulta desse convencimento, qualquer censurabilidade da conduta do agente, nomeadamente a título de culpa e ou/ dolo.

18) - O descaminho um tipo de crime doloso, é ainda exigível (art. 13.º do Código Penal) que qualquer dessas condutas seja praticada com dolo, cobrindo todos os elementos objectivos do tipo, sob qualquer das formas previstas no art. 14.º do Código Penal.

19) - A matéria de facto provada é insuficiente para permitir a conclusão de que o arguido praticou um crime de descaminho, previsto pelo artigo 355.º do C.P. na medida em que dela não consta como provada a consciência da ilicitude e portanto, todos os elementos do respectivo tipo subjectivo, o que determina a verificação do vício previsto na alínea a), do n.º 1 do art. 410.º do C. Processo Penal.

20) - A prova produzida em audiência, conjugada com a análise rigorosa dos autos, nomeadamente: dos despachos de arquivamento proferidos nos processos crime n.º 1025/04.2TALRS e n.º 983/09.5 TALRS da 2.ª e 1.ª Secções respectivamente do Ministério Público de Loures, juntos pelo arguido na contestação; do comprovativo do pagamento da quantia exequenda e do remanescente a título custas judiciais, juntos pelo arguido em requerimento próprio de fls.; da analise criteriosa das declarações do arguido e da testemunha de acusação, nomeadamente as passagens da gravação que adiante se enunciarão na fundamentação do recurso e a Análise criteriosa do processado junto aos autos, como seja a constatação de da ausência de qualquer carta e/ou notificação do encarregado de venda ao arguido para que este entregasse os bens, como elemento fundamental para preenchimento do ilicitude criminal, impõe, à luz do já referido art. 127.º de C. de Processo Penal e dos princípios processuais que lhe inerem, uma decisão diversa da que foi tomada.

21) - Existiu erro notório na apreciação da prova, pois a convicção do tribunal não encontra sustentação para dar como provados os factos constantes dos nºs. 3, 4, 5, 6, 7, e 8 da sentença.

22) - Ao fazê-lo, violou o disposto nos arts. do disposto no art. 355.º de C. Penal, dos arts. 127.º, do C.P.P, do art. 29.º, n.º 5 da CRP, do disposto no art. 410.º, n.º 2, al a) e c) do C. de Processo Penal e de disposto no art. 311.º, n.º 3, alínea n) e c) do C.P.P.

Termos em que deve a sentença ser revogada e ser o arguido absolvido. (…)”.

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O recurso foi admitido, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito suspensivo.

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Notificado o Ministério Público do recurso, bem como da respectiva fundamentação, exerceu este o seu direito de “resposta”, concluindo, a final, no sentido da improcedência do mesmo.
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Neste Tribunal o Exm.º Sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu “parecer” no sentido da improcedência do recurso.

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Mantêm-se verificados e válidos todos os pressupostos processuais conducentes ao conhecimento do recurso, o qual, por isso, deve ser admitido, havendo-lhe, também, sido correctamente fixados o efeito e o regime de subida.

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2 - Cumpre apreciar e decidir:

É o objecto do presente recurso o incorrecto julgamento da matéria de facto, com violação do disposto no art.º 127.º do C.P.P., a violação do P.º ne bis in idem, a nulidade do inquérito, o não preenchimento dos elementos típicos do art.º 355.º do Cód. Penal e a inexistência de dolo.

Realizado o julgamento e na parte em que a mesma releva para o conhecimento do objecto do recurso, foi a seguinte a decisão recorrida:

“(…)

II - FUNDAMENTAÇÃO

1. MATÉRIA DE FACTO PROVADA

De relevante para a discussão da causa, resultou provada a seguinte matéria de facto:

1. No âmbito da carta precatória que correu termos junto do 6.º Juízo Cível desta Comarca movido por PT Comunicações contra o arguido, foram penhorados os seguintes bens:

uma fotocopiadora Toshiba;

um fax fotocopiador Olivette;

um computador Compaq;

uma impressora Epson Lx 300;

um computador monitor Samton;

uma impressora HP;

três secretárias;

um gerador de corrente automático;

uma bancada de trabalho extensiva;

quatro mostruários de janelas;

2. No âmbito da diligência de penhora acima mencionada, realizada no dia 22 de Outubro de 2001, o arguido foi nomeado fiel depositário daqueles bens, tendo sido informado, e ficado ciente, de que os mesmos ficavam sujeitos ao poder do tribunal e que tinha a obrigação de os guardar e apresentar quando tal lhe fosse exigido.

3. O arguido foi regularmente notificado para proceder à entrega dos bens penhorados, sob pena de, não o fazendo, ser determinado o arresto em bens próprios e ser-lhe instaurado procedimento criminal.

4. Não obstante tal notificação, o arguido não procedeu à entrega dos bens ao encarregado da venda, nem justificou a sua atitude perante o tribunal.

5. Em 2006 o arguido retirou-se das instalações onde haviam sido penhorados os bens.

6. Apesar de saber que, em consequência da penhora, não podia por qualquer forma dispor dos bens, o arguido deu aos objectos descritos destino não concretamente apurado, circunstância que impediu que fossem entregues ao encarregado da venda e objecto de ulterior venda judicial.

7. O arguido actuou de forma livre e consciente, bem sabendo que ao actuar do modo descrito violava o poder de disposição judicial sobre os bens que haviam sido penhorados, o que quis e conseguiu.

8. Agiu de forma livre e voluntária, sabendo que a sua conduta era proibida por lei.

9. O arguido não tem antecedentes criminais.

10. Está desempregado desde 2006 e não recebe qualquer subsídio.

11. É casado e vive com a mulher e um filho de 28 anos já independente.

12. A mulher é reformada e recebe € 1100 mensais.

13. Vive em casa própria e paga 450 euros mensais de amortização do empréstimo que contraiu com a sua aquisição.

14. Possui como habilitações literárias o 11° ano de escolaridade.

MATÉRIA DE FACTO NÃO PROVADA

De relevante para a discussão da causa logrou-se provar toda a matéria de facto.

MOTIVAÇÃO DA DECISÃO DE FACTO

A convicção do Tribunal relativamente aos factos fundou-se na análise crítica da prova.

Assim, o arguido afirmou que não entregou os bens porque já tinha pago a quantia em dívida à Portugal Telecom e nunca foi contactado pelo encarregado de venda; que quando foi notificado pelo tribunal para pagar os 1500 euros pagou tudo em 2004.

Em 2006, a empresa mudou de instalações e em 2008 foi declarada insolvente.

Por seu turno, a testemunha JM..., encarregado da venda, afirmou que enviou uma carta em 2004 para apresentarem os bens e não os apresentaram e em 2007 enviou nova carta que veio devolvida com a informação de que o destinatário se mudou.

Teve-se, ainda em atenção os documentos juntos aos autos (auto de penhora).

Assim, deu-se como assente que o arguido foi nomeado fiel depositário dos bens constantes no auto de penhora, que foi notificado de que os bens ficavam à sua guarda e que devia apresenta-los quando isso lhe fosse exigido, que mudou as suas instalações em 2006, pelo que quando enviada carta pelo encarregado de venda a mesma veio devolvida com a menção que o arguido se havia mudado.

Ao mudar as suas instalações e os bens que lá se encontravam, sem disso informar o tribunal, o arguido retirou os bens do poder público a que estavam sujeitos, o que não podia ignorar, pelo que conjugada os elementos objectivos com as regras de experiência comum deu-se como provados os elementos subjectivos do tipo.

No que respeita aos factos de natureza pessoal relativos ao arguido, estes resultaram das declarações que prestou quando ouvido sobre as suas condições de vida e no certificado de registo criminal junto aos autos. (…)”.

**

Sendo esta, em termos de matéria de facto, a decisão recorrida, com a mesma não se conforma o recorrente, a qual começa por considerar ter sido proferida em violação do P.º ne bis in idem, questão que, assim, se coloca como prévia no conhecimento do objecto do recurso.

Porém, a sem razão do recorrente, nesta parte, é por demais evidente, o que, aliás, já lhe foi demonstrado em decisão anteriormente proferida e o evidencia o Ministério Público na sua bem elaborada resposta ao recurso, a qual se sufraga e aqui se dá por reproduzida.

Efectivamente, o recorrente, valendo-se do arrastamento destes autos, da longa data em que foi lavrado o respectivo auto de penhora e do facto de contra si terem sido instaurados outros processos, designadamente os processos nºs. 1025/04.2TALRS e 983/09.5TALRS, parecendo querer atentar contra a inteligência do julgador, sustenta a sua argumentação na base da “confusão”, dizendo que os factos cuja prática lhe foi aqui imputada foram já objecto de análise, violando-se, assim, o citado P.º ne bis in idem.

Ignora, porém, não o devendo fazer, a decisão judicial proferida a fls. 252 dos autos, já transitada em julgado, onde, pelas razões aí expostas, se reconheceu não ter sido violado o citado Princípio.

Por outro lado, desconsidera o facto de os despachos de arquivamento proferidos nos processos acima referidos terem-no sido pelo Ministério Público, na fase de inquérito, os quais sempre podem ser reabertos, ante novos elementos de prova que infirmem os anteriormente invocados, o que nunca permitirá conduzir, por razões que são óbvias, a uma situação de caso julgado. Este haverá de ter na sua base, necessariamente, uma decisão judicial, transitada em julgado, versando sobre o mesmo objecto do processo.

Não é este, pois, o caso dos autos.

Alega o mesmo recorrente, por outro lado, ser a acusação manifestamente infundada, por esta não indicar o número de processo onde foi feita a penhora dos bens nem referir a data e o modo como foi contactado pelo encarregado de venda ou pelo tribunal para entregar os mesmos bens, do mesmo modo que, diz, também não foi advertido para as consequências da eventual não entrega.

Relativamente à primeira das suscitadas questões, decidiu-a já o tribunal “a quo” em sede de “questão prévia” na sentença recorrida e com essa mesma decisão aqui se concorda. Aliás, o recorrente soube bem interpretar o sentido da acusação, de tal modo que até “vislumbrou” o processo executivo que esteve na origem do processo aqui em causa!

Quanto às demais questões, subsumem-se as mesmas na também arguida não verificação dos elementos objectivos do crime de “descaminho”.

Efectivamente, foi pela prática de um crime de “descaminho” que o recorrente foi julgado e condenado, e, não, como repetidamente alega e pretende, por um qualquer crime de desobediência, que nunca foi equacionado nos presentes autos.

   Assim, dispõe o art.º 355.º do Cód. Penal que “quem destruir, danificar ou inutilizar, total ou parcialmente, ou, por qualquer forma, subtrair ao poder público a que está sujeito, documento ou outro objecto móvel, bem como coisa que tiver sido arrestada, apreendida ou objecto de providência cautelar, é punido com pena de prisão até cinco anos (…)”.

Como já diz o Ministério Público na sua resposta ao recurso, no crime em causa pretende o Estado tutelar o “bem jurídico da sua autonomia intencional”, visando evitar que seja violado o destino pelo mesmo dado a determinados objectos ou coisas, as quais ficaram sob o seu domínio por serem necessárias a determinada finalidade, que importa assegurar, como seja, no caso, garantir o pagamento da quantia exequenda e respectivas custas.

Protege-se aqui, como diz Cristina Líbano Monteiro em anotação ao preceito em causa, in “Cometário Conimbricense do Código Penal”, a custódia pública de coisas, só ao Estado competindo decidir sobre o seu eventual retorno à disponibilidade.

Consequentemente, o crime consuma-se “quando o agente frustra, total ou parcialmente, a finalidade da custódia, através de uma acção directa sobre a coisa, inutilizando-a ou descaminhando-a”.     

Assim, o tipo de crime em causa visa punir todo o comportamento que inviabilize a obtenção do fim pretendido com a colocação do objecto sob o poder público, quem quer que seja o seu agente, que bem poderá ser o respectivo proprietário, como se verifica no caso dos autos.

Reportados a estes, temos que o arguido/recorrente, como resulta do Auto de Penhora de fls. 7, sgs., foi nomeado fiel depositário dos bens em causa e advertido de que deveria apresentá-los quando isso lhe fosse exigido.

Sabia o mesmo, pois, que não podia dispor dos bens cuja guarda lhe fora confiada, que os haveria de manter no local da apreensão e que os devia apresentar quando os mesmos lhe fossem solicitados.

Como se diz na obra atrás citada, “a coisa não pode perecer enquanto não tiver cumprido a finalidade que o poder público lhe assinalara”. Contudo, o recorrente, com a sua actuação, tornou os objectos “inúteis” “do ponto de vista do destino que justificava a sua custódia oficial”. Os mesmos, porque não existem, não podem já servir como meio de pagamento das quantias ainda em dívida.

Está preenchido, pois, um dos elementos objectivos do tipo.

Alega o recorrente, por outro lado, que não foi notificado para fazer a entrega dos mesmos bens, como não o foi da correspondente cominação, caso não o fizesse.

Ora, se o local onde os bens estavam depositados e para onde era dirigida a correspondência fora por si encerrado, é óbvio que não poderia ser aí notificado, como não o poderia ter sido em qualquer outro lugar, pois que não o indicou, também.

O recorrente nada fez, assim, para que pudesse vir a ser notificado, informando o encarregado de venda ou o tribunal do encerramento das instalações e do destino dado aos bens, deste modo havendo contrariado aquilo que lhe era imposto fazer, pois que, ao aceitar ser nomeado fiel depositário, assumiu o encargo de guardar aqueles no local onde os mesmos haviam sido penhorados e de os apresentar quando tal lhe fosse exigido.

Assim, é por demais evidente e compreensível que, tendo o recorrente feito uso dos bens, embora apreendidos e promovido o seu total desgaste e inutilização, não tenha tido o mesmo qualquer interesse em ser notificado para “prestar umas contas” que, afinal, já sabia não poder prestar!

Por isso, numa tentativa de “benefício ao infractor”, diz, como lhe convém, que nenhuma notificação lhe fora feita!

Porém, sufragando-se o entendimento do Ministério Público, “no tipo de crime em causa não se exige que o visado tenha sido notificado para entregar os bens, pois que não se está perante um crime de desobediência em que se tenha imposto ao fiel depositário uma determinada obrigação, nem que tenha sido advertido de que incorreria em responsabilidade criminal, caso não o fizesse. O crime de descaminho basta-se com a actuação do fiel depositário que tendo consciência das suas funções, remova os objectos da mão do poder público que os tenha penhorado, isto é, que remova ou retire esses bens da alçada do poder público (…)”.

Ora, como bem resulta da prova produzida, designadamente das declarações do recorrente, a sua firma “entrou em insolvência em 2006 e a morada onde se encontravam os bens – Travessa ..., n.º 5 – deixou de existir. (…) Em 2006 já lá não existia nada”. Isto é, o recorrente retirou os objectos do local onde haveriam de ter permanecido e tornou-os inúteis do ponto de vista do destino que justificara a sua custódia, preenchendo-se, assim, os elementos objectivos do tipo de crime em causa.

Por outro lado, tudo fez de forma consciente e determinada, isto é, actuou dolosamente, contrariamente ao que também alega!

Efectivamente, como se vem entendendo, o dolo é um elemento de natureza subjectiva que pertence ao foro íntimo de cada pessoa, apenas podendo ser aferido, quando o agente não reconheça e assuma a vontade livre e consciente da sua acção, à luz das regras da experiência, do contexto da mesma acção e dos indícios objectivos concorrentes no caso concreto.

Assim, pertencendo as intenções ao referido foro íntimo, o tribunal só as pode apreender de forma indirecta, “através da submissão de actos de natureza externa, empiricamente observáveis, ao crivo das regras da experiência e da ordem natural das coisas”.

Ora, esse juízo foi feito pelo tribunal “a quo” no caso dos autos, relevando os objectivos elementos de facto disponíveis e concluindo que “O arguido actuou de forma livre e consciente, bem sabendo que ao actuar do modo descrito violava o poder de disposição judicial sobre os bens que haviam sido penhorados, o que quis e conseguiu, sabendo que a sua conduta era proibida por lei”, juízo este que reafirmou em sede de “motivação da decisão de facto”, quando concluiu que “Ao mudar as suas instalações e os bens que lá se encontravam, sem disso informar o tribunal, o arguido retirou os bens do poder público a que estavam sujeitos, o que não podia ignorar, pelo que conjugada os elementos objectivos com as regras de experiência comum deu-se como provados os elementos subjectivos do tipo”.

Assim, aqui, como em relação aos demais factos ponderados, também fez o tribunal “a quo” uso do P.º da livre apreciação da prova, consagrado no art.º 127.º do C.P.P. – diploma onde se integram as disposições legais a seguir citadas sem menção de origem –, nos termos do qual “salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente”. Isto é, as provas são apreciadas livremente pelo tribunal, sem nenhuma escala de hierarquização e de acordo com a convicção que geram no espírito do julgador, o qual deve, todavia, na formação da mesma convicção, obediência àquilo que são os dados colhidos da experiência comum, dos princípios da lógica e dos juízos correntes de probabilidade.

Porém, como o refere Maia Gonçalves, em anotação ao preceito em causa, apreciação livre da prova não se confunde com apreciação arbitrária nem com a mera impressão gerada no espírito do julgador pelos diversos meios de prova, o que, também, não se verificou, manifestamente, no caso em análise, onde o tribunal “a quo” sustentou em razões objectivas, por todos perceptíveis e sindicáveis, a convicção alcançada relativamente à matéria de facto.

Quanto aos também invocados vícios descritos no art.º 410.º, n.º 2, als. a) e c), cujo conhecimento oficioso sempre se impunha a esta instância de recurso, não resultam os mesmos, como é notório, do texto da decisão recorrida.

O recorrente arguiu-os ao acaso e confundiu-os com o poder de livre apreciação da prova que está reconhecido ao tribunal.

O vício da “insuficiência para a decisão da matéria de facto provada”, previsto no art.º 410.º, n.º 2, al. a), segundo Simas Santos e Leal Henriques, em anotação ao preceito em causa, in Código de Processo Penal (anotado), “refere-se à insuficiência que decorre da omissão de pronúncia, pelo tribunal, sobre factos alegados pela acusação ou defesa ou resultantes da discussão da causa que sejam relevantes para a decisão, ou seja, a que decorre da circunstância de o tribunal não ter dado como provados ou não provados todos aqueles factos que, sendo relevantes para a decisão da causa, tenham sido alegados ou resultado da discussão. (…) Ocorre este vício quando, da factualidade vertida na decisão em recurso, se colhe que faltam elementos que, podendo e devendo ser indagados, são necessários para se poder formular um juízo seguro de condenação ou de absolvição.

(…) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada existe quando os factos provados são insuficientes para justificar a decisão assumida, ou quando o tribunal recorrido, podendo fazê-lo, deixou de investigar toda a matéria de facto relevante, de tal forma que essa matéria da facto não permite, por insuficiência, a aplicação do direito ao caso submetido a apreciação; no cumprimento do dever de descoberta da verdade material, que lhe é imposto pelo normativo do art.º 340.º do C.P.P., o tribunal podia e devia ter ido mais longe; não o tendo feito, ficaram por investigar factos essenciais, cujo apuramento permitiria alcançar a solução legal e justa (…)”.

Ora, no caso dos autos, ao tribunal “a quo” nada mais era dado fazer, ou deixar de considerar, em sede de discussão e julgamento da matéria de facto, para poder ter proferido a decisão de direito que proferiu. Isto é, as provas produzidas foram bastantes para poderem ter sustentado a decisão proferida.

Não houve, pois, qualquer omissão de pronúncia por parte do tribunal “a quo”, relativamente a factos alegados, ou que tivessem resultado da discussão da causa, relevantes para a decisão, a qual, ante o referido circunstancialismo, foi aquela que sempre haveria de ter sido proferida.

Quanto ao “erro notório na apreciação da prova”, previsto no art.º 410.º, n.º 2, al. c), no dizer dos mesmos Simas Santos e Leal Henriques, ob. cit., este só se verifica “quando existe falha grosseira e ostensiva na análise da prova, perceptível pelo cidadão comum, denunciadora de que se deram provados factos inconciliáveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou ou não provou, seja, que foram provados factos incompatíveis entre si ou as conclusões são ilógicas ou inaceitáveis ou que se retirou de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável; (...) quando um homem médio, perante o que consta do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente se dá conta de que o tribunal violou as regras da experiência ou se baseou em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios ou se desrespeitaram regras sobre o valor da prova vinculada ou das leges artis.

Erro notório, no fundo, é a desconformidade com a prova produzida em audiência ou com as regras da experiência (decidiu-se contra o que se provou ou não provou ou deu-se como provado o que não pode ter acontecido).

Deste modo, não poderá incluir-se no erro notório na apreciação da prova a sindicância que os recorrentes possam pretender efectuar à forma como o tribunal recorrido valorou a matéria de facto produzida perante si em audiência, valoração que aquele é livre de fazer, de harmonia com o preceituado no art.º 127.º (…)”.  
Assim sendo, “o erro tem de ser de tal modo crasso que salta aos olhos do leitor médio, sem necessidade de qualquer exercício mental. As provas revelam claramente um sentido e a decisão recorrida extraiu ilação contrária, logicamente impossível, incluindo na matéria fáctica ou excluindo dela algum facto essencial (…)”.
Trata-se aqui, diremos nós, de um erro grosseiro ou ostensivo, perceptível, até, já que se está no campo da matéria de facto, pelo próprio cidadão comum, medianamente esclarecido. 

Ora, também não é este o caso dos autos. Não existe, no texto da decisão recorrida, qualquer erro notório ou grosseiro na apreciação da prova. Aquilo que o recorrente faz, como foi já referido, é, tão só, sindicar o modo como o tribunal “a quo” valorou as provas e firmou a matéria de facto, valoração essa que aquele era livre de fazer.

Não se verificam, assim, os invocados vícios.

Assim, ante tudo o que se expôs, haverá de ser negado total provimento ao recurso.

3 - Nestes termos e com os expostos fundamentos, acordam os mesmos Juízes, em conferência, em negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 5Uc .

Lisboa,  09.10.2014

Almeida Cabral

Rui  Rangel