Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
3607/17.3T8BRR.L1-6
Relator: CRISTINA NEVES
Descritores: TESTAMENTO
NULIDADE DE DISPOSIÇÃO TESTAMENTÁRIA
ANULABILIDADE DE DISPOSIÇÃO TESTAMENTÁRIA
DISPOSIÇÃO TESTAMENTÁRIA USURÁRIA
PENSÃO
TESTADOR ADÚLTERO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/28/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: 1- De acordo com o disposto no artº 2196 nº1 do C.C. é nula a disposição testamentária a favor da pessoa com quem o testador casado cometeu adultério, excepcionando-se os casos em que, à data da abertura da sucessão, tenha ocorrido já a dissolução do matrimónio ou separação judicial de pessoas e bens ou de facto, por mais de seis anos, ou os casos em que esta disposição se destine a assegurar alimentos ao beneficiário.
 2- A dissolução do matrimónio, referida na alínea a) do nº 2 artº 2196 do C.C., opera seja por óbito de um dos cônjuges, seja por divórcio, não se exigindo, para efeitos deste artigo, que esta dissolução seja “voluntária”, uma vez que com esta norma, visou-se a protecção do cônjuge sobrevivo, evitando que este concorresse com a concubina do falecido à herança.
3-Não é assim nula a disposição testamentária a favor da pessoa com quem o falecido cometera adultério, se à data da abertura da sucessão este era viúvo.
4- Representando o vício da anulabilidade um “minus” em relação ao pedido de nulidade, e não estando o tribunal vinculado às alegações das partes, no que toca à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito, é lícito enquadrar a factualidade alegada pelas partes no vício da anulabilidade e não da nulidade peticionada pela parte.
5- São aplicáveis às disposições testamentárias, o regime dos negócios usurários, desde que estejam reunidos os requisitos constantes do artº 282 do C.C., mormente a existência de uma situação de inferioridade do declarante; a exploração dessa situação de inferioridade pelo usurário; e a verificação de uma efectiva lesão, ou seja uma promessa ou concessão de benefícios excessivos ou injustificados para o usurário ou para terceiro.
6- A disposição testamentária na qual se instituiu uma pensão vitalícia no montante de € 1700,00 a favor de pessoa, com quem o testador, pessoa idosa e doente, 40 anos mais velho, manteve uma breve relação adúltera, elaborado meses após o início desta relação, mantendo no entanto o testador a vivência com a sua esposa e família, sem qualquer projecto de vida com a beneficiária do testamento, nem vivência comum, tem de se considerar como usurária, constituindo um benefício manifestamente excessivo e um encargo injustificado para a herança.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes na 6ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

RELATÓRIO
Lígia … intentou acção declarativa de condenação contra António … e Ana …, na qualidade de herdeiros de Joaquim Manuel ..., em que peticiona que seja proferida sentença que condene os RR.:
a) A reconhecer a validade da pensão instituída por via testamentária;
b) A reconhecerem que, na qualidade de herdeiros são responsáveis pelo cumprimento do legado referido em a):
c) Pagar à autora as pensões já vencidas desde a morte do autor do testamento e até à presente data, no valor de 25.500€ (vinte cinco mil e quinhentos euros) (15 meses);
d) Pagar à autora as pensões que se vencerem na pendência da presente ação;
e) Pagarem à autora mensal e vitaliciamente a pensão de € 1.700,00 (mil e setecentos euros) que lhe foi instituída por via testamentária.”
Para fundamentar o peticionado, alegou que Joaquim Manuel ... outorgou testamento a seu favor em 2012, no qual institui a seu favor uma pensão vitalícia no valor de €1.700,00 mensais, procurando assegurar alimentos à A. após a sua morte, justificada pelo facto de apesar de casado, estar separado da sua esposa há mais de duas décadas, vivendo em união de facto com a Autora desde o início do ano de 2012 até à data da sua morte.
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Citados, ambos os RR. deduziram contestação, o 1º R. impugnando a vivência em união de facto do testador com a A. que foi sua amante, uma vez que até ao óbito de sua esposa o testador sempre viveu com esta, pelo que o testamento é nulo, alegando ainda que que o valor da pensão instituída é excessivo para assegurar alimentos.
Em sede de reconvenção, peticiona a declaração de nulidade do testamento.
A 2.ª Ré apresentou contestação, por excepção invocando a ilegitimidade dos Réus, por impugnação que o testador sempre viveu maritalmente com a sua esposa, não estando, à data do testamento, na plenitude das suas faculdades mentais em virtude de doença, sendo assim o testamento nulo, mais invocando que o valor da pensão é manifestamente elevado para assegurar alimentos, não se sabendo sequer se a herança comporta o valor constante do testamento, por não terem sido feitas partilhas entre os herdeiros.
Requer a condenação da Autora enquanto litigante de má-fé, por deduzir factos que bem sabe serem falsos.
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A Autora apresentou réplica em que pugnou pela improcedência da excepção dilatória de ilegitimidade alegada, e pela ineptidão do pedido reconvencional.
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Em sede de audiência prévia, na mesma foram julgadas improcedentes as excepções dilatórias de ilegitimidade dos Réus e de nulidade por ineptidão da reconvenção, e admitido o pedido reconvencional. Mais procedeu-se à fixação do valor da causa, à identificação do objecto do litígio e à elaboração dos temas de prova.
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Procedeu-se a audiência de julgamento, finda a qual foi proferida a seguinte sentença:
“V. DECISÃO
Pelo exposto:
a) Julga-se a presente acção improcedente e, em consequência, absolvem-se os Réus do peticionado pela Autora;
b) Julga-se o pedido reconvencional formulado pelo 1.º Réu e, em consequência, declara-se nulo o testamento lavrado por Joaquim Manuel ..., em 10/10/2012, a favor da Autora;
c) Condena-se a Autora enquanto litigante de má-fé, em multa processual que se fixa em 4 (quatro) UC’s;
d) Condena-se a Autora nas custas do processo, incluindo do incidente de litigância de má-fé, com taxa de justiça fixada pelo mínimo, sem prejuízo da eventual isenção de pagamento de que goze.
Registe e notifique.”
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Não conformada com esta decisão, impetrou a A. recurso da mesma, formulando, no final das suas alegações, as seguintes conclusões, que se reproduzem:
CONCLUSÕES:
1. Está verificada a exceção da alínea b) do nº 2 do artigo 2196 C. C., pois que o casamento já estava dissolvido à data da abertura da sucessão e, portanto, afastada a nulidade da disposição testamentária;
2. Relativamente à exceção constante da alínea b) do n.º 2 do referido artigo 2196 do CC também a mesmo se encontra preenchida visto que a deixa testamentária se refere a pensão vitalícia, termo que, a não ser que existisse algo no contexto do testamento que afastasse tal interpretação, é comumente entendida como “ alimentos, ou seja o necessário a sustento, alimentação e vestuário.
3. Encontram-se assim cumpridas as duas exceções ao regime regra da nulidade constante do nº 1 do referido artigo 2196 do CC.
4. A litigância de má fé não está enquadrada legalmente, não resulta dos factos e a apelante tinha a sua visão da relação com o testador, que não é afastada pelo tribunal, mas que de modo algum pode ser classificada como atuação tendente a distorcer a realidade dos factos, aliás, até a poderia prejudicar, o que indica que não existiu qualquer dolo.
Termos em que, nos melhores de direito, e sempre com o mui suprimento de vossas excelências, deve a decisão do tribunal de 1º instância ser alterada dando provimento ao pedido da aqui recorrente e improcedente o pedido de declaração de nulidade efetuado pelo 1º réu, bem como revogada a condenação da apelante como litigante de má fé.
Como sempre farão Vossas Excelências serena e objetiva
Justiça”
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Pelo R. António …, foram interpostas contra alegações, constando das suas conclusões o seguinte:
“III- Conclusões:
1 - O que está em causa nos autos?
Saber da validade de uma disposição testamentária feita pelo “de cujos” a favor da sua amante (a relação de concubinato está dada como assente e não foi impugnada), tendo o mesmo falecido dois meses após a morte de sua mulher com quem viveu em comunhão conjugal até esse momento, enlutado, e desde então sem qualquer relacionamento com a A. ora Recorrente.
2- A sentença ora posta em crise invoca que atenta a matéria de facto provada e a ratio do artigo 2196º do C. Civil, para obstar à nulidade do testamento a favor do cúmplice do testador adúltero teria de existir uma dissolução do casamento voluntária e/ou com caracter de permanência. O que não aconteceu no caso dos autos.
3- O casamento do testador adúltero nunca deixou de existir, resultando dos factos assentes que sempre viveu em perfeita harmonia com o seu cônjuge, que mergulhou num luto que o levaria à morte cerca de dois meses depois deste ter falecido, e que nesse hiato de tempo repudiou a A..
4- Mais resulta provado que a A. ora recorrente se terá aproximado do testador por razões puramente de interesse monetário
5- Donde, não poderia ter sido outra a decisão do Tribunal “a quo”, que mais diz, decisão que não é atacada no recurso, que mesmo que o testamento não fosse nulo por força do disposto no artigo 2196º do C. Civil, sempre seria anulável com fundamento no disposto no artigo 282º, nº 1 do C. Civil.
6- Insiste a A. que no caso em apreço também se aplicaria o disposto na alínea b) do art.º 2196º do C. Civil, porquanto a disposição testamentária se limitou a assegurar alimentos.
7- Todavia também aqui outra não poderia ser a decisão do Tribunal “a quo”, porquanto nenhuma prova foi feita nesse sentido; muito pelo contrário, tendo em conta o valor do ordenado mínimo nacional, é caricato poder afirmar-se que uma pensão de €.: 1.700,00 visa assegurar alimentos.
8- Conformada com a circunstância de não ter feito prova de que a pensão visava assegurar alimentos, nem isso resultar do testamento, diz agora a A. que tal resulta no entanto da terminologia usada no testamento “pensão”.
9- Também aqui não lhe assiste razão porquanto de acordo com o dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea – Academia das Ciências de Lisboa, pensão significa “renda anual ou mensal atribuída a alguém segundo um determinado regime jurídico”.
Essa pensão por sua vez pode ser de alimentos, de invalidez, de sobrevivência, de reforma, etc..
10 – Finalmente quanto à litigância de má-fé com o devido respeito nem merece comentários. Aliás, ela seriamente só poderia ser posta em crise através da reapreciação da matéria de facto. O que deliberadamente a A. quis evitar pois tem na memória os factos inacreditáveis que foram proferidos por si e pelas suas testemunhas.
Logo, tendo em conta a factualidade assente, e a fundamentação da decisão, é nossa convicção que a mesma necessariamente não poderá ser alterada.
11- Termos em que deverá ser mantida a decisão proferida, com total acerto jurídico e devidamente fundamentada; aliás, exemplarmente fundamentada, assim se fazendo JUSTIÇA!”

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Por sua vez, pela R. Ana …, foram interpostas contra-alegações, delas constando as seguintes:
III. EM CONCLUSÃO:
a) Andou bem, Tribunal “a quo” ao considerar nula a deixa testamentária em discussão nos autos.
b) O testamento celebrado pelo testador pai da Recorrida é nulo atento o disposto no artigo nº 1 do artigo 2196º, por ter sido feito em favor da pessoa com quem o testador casado cometeu adultério.
c) Não se encontra verificada a excepção prevista no art. 2196, nº2 al. a) do CPC d) Interpretar o art. 2196º do CC como pretende a Recorrente, ofende os princípios ético-morais que este visa defender e preservar.
e) A interpretação da referida norma legal de acordo com os critérios de interpretação definidos no art. 9º do CC e as circunstâncias concretas do caso em apreciação, não permite jamais que a referida deixa testamentária fosse considerada válida, face a à morte da esposa do testador ocorrida dois meses antes da morte do testador.
f) Decorre do espírito do referido preceito legal, que a dissolução a que se faz referência no art. 2196, nº 2 al. a) do CC advém de uma vontade do testador de pôr fim ao casamento, legitimando assim o acto de testar.
g) Entendimento diferente defraudaria os interesses que a norma visa proteger no seu nº 1 do art. 2196º do CC , e constituiria um abuso de direito nos termos do art. 334º do CC:
h) Não é igualmente aplicável ao presente testamento a excepção prevista no art. 2196º, nº 2 al. b) do CC.
i) A pensão mensal e vitalícia em discussão dos autos, não se destinava a alimentos, o que se retira da própria letra do testamento!
j) Sendo que atenta a nulidade do testamento, seria normal até para sanar tal nulidade que o testador aí fizesse constar, que tal pensão assumia a natureza de pensão de alimentos.
k) Podendo e tendo o interesse em fazê-lo, o pai da Recorrida nada disse no testamento sobre qual o fim da disposição testamentária, particularmente se a mesma visava assegurar alimentos (sendo que o legado de alimentos tem um regime próprio previsto no artigo 2273.º do Código Civil).
l) O valor estipulado de 1.700,00€ e o padrão médio de vida, em geral e da Recorrente em particular, é manifestamente excessivo para que se possa concluir que visava o “indispensável ao sustento, habitação e vestuário” (cfr. artigo 2003.º, n.º 1, do Código Civil).
m) O testamento é igualmente nulo, nos termos do disposto no art. 282º do CC constituindo negócio jurídico usurário.
n) A Recorrente mentiu nos autos quanto aos rendimentos que aufere e que lhe permitiriam adquirir uma vantagem processual ao litigar com apoio judiciário!
o) A Recorrente mentiu nos autos ao apresentar-se, não como uma amante pontual, mas sim como companheira de facto, partilhando a mesma casa, mesa e cama, com um projecto comum de vida, privando socialmente com família e amigos e apoiando o testador na doença e velhice.
p) A Recorrente bem sabia que o testador era casado, tinha família e que sempre vivera com a sua esposa, partilhando com a mesma, sim, um projecto comum de mais de cinquenta anos.
q) Pelo que, andou igualmente bem o Tribunal a condenar a Recorrente em litigância de má fé.
r) A Douta Sentença ora recorrida não merece qualquer reparo, muito pelo contrário, constitui um exemplo na defesa da ordem moral e ética que subjaz ao direito e pela qual se deve pautar um Estado de Direito.
NESTES TERMOS E NOS DEMAIS DE DIREITO, E COM O MUI DOUTO SUPRIMENTO DE V. EXAS., DEVE SER NEGADO PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO, CONFIRMANDO-SE A SENTENÇA RECORRIDA NOS SEUS TERMOS E COM A CONSEQUENTE ABSOLVIÇÃO DA RECORRIDA
ASSIM SE FAZENDO SÃ, SERENA E  ACOSTUMADA JUSTIÇA!!!
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QUESTÕES A DECIDIR

Nos termos do disposto nos Artigos 635º, nº4 e 639º, nº1, do Código de Processo Civil, as conclusões delimitam a esfera de atuação do tribunal ad quem, exercendo uma função semelhante à do pedido na petição inicial.[1] Esta limitação objetiva da atuação do Tribunal da Relação não ocorre em sede da qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cf. Artigo 5º, nº3, do Código de Processo Civil). Também não pode este Tribunal conhecer de questões novas que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas.[2]
Nestes termos, as questões a decidir que delimitam o objecto deste recurso, consistem em apurar:

a) Se se verifica a excepção ao regime regra de nulidade da disposição testamentária a favor do cúmplice do testador adúltero, por à data da abertura da sucessão se encontrar já dissolvido o matrimónio do testador, por óbito do seu cônjuge;
b) Se, em qualquer caso, esta disposição testamentária se destinou a assegurar alimentos ao beneficiário;
c) Se ocorre outra causa de nulidade ou anulabilidade deste testamento;
d) Se, em face da factualidade assente, se justifica a manutenção da condenação da apelante como litigante de má-fé.

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Corridos que se mostram os vistos aos Srs. Juízes adjuntos, cumpre decidir.
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FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

O tribunal recorrido considerou a seguinte matéria de facto:

A) FACTOS PROVADOS

Com relevância para a decisão da causa, resultaram provados os seguintes factos:

1. Joaquim Manuel ... nasceu em 05/10/1940.

2. Os Réus são os filhos de Joaquim Manuel ..., únicos e legítimos herdeiros por óbito deste.

3. A Autora nasceu em 13/02/1968.

4. Joaquim Manuel ... foi casado com Maria Ivete ... desde 04/10/1967 até à data do falecimento desta última, no regime de comunhão de adquiridos. (data rectificada oficiosamente, por lapso de escrita do tribunal recorrido)

5. Durante o casamento, Joaquim Manuel ... e a sua esposa sempre residiram juntos, com partilha de cama e mesa.

6. Desde data anterior a 2012 até ao seu respectivo falecimento, Joaquim Manuel ... e a sua esposa residiam na Rua D. ..., n.º .., r/c, Santo António da Charneca.

7. Relativamente aos anos de 2012 a 2015, Joaquim Manuel ... apresentou a declaração de rendimentos para efeitos de IRS conjuntamente com a sua esposa.

8. Joaquim Manuel ... tinha um linfoma, sofria de hepatite C e de problemas cardíacos, e tomava medicação diariamente.

9. Joaquim Manuel ... teve uma depressão entre 2007 e 2009, durante a qual fez, pelo menos, uma tentativa de suicídio, não saía de casa, necessitava de auxílio para todas as tarefas diárias, tendo sido foi alvo de tratamento psiquiátrico durante vários anos.

10. A assistência na doença prestada a Joaquim Manuel ... era prestada pela sua esposa, pela sua filha ou por pessoas contratadas para o efeito.

11. Devido à idade e estado de saúde de Joaquim Manuel ... e, posteriormente, da sua esposa, o casal contratou, em 2003, Maria Elizabete … para cuidar deles, o que esta fez até aos respectivos falecimentos.

12. A família de Joaquim Manuel ... reunia-se na morada deste para celebração das datas festivas.

13. Desde data não concretamente apurada do início de 2012, Joaquim Manuel ... e a Autora mantiveram um relacionamento amoroso.

14. A Autora sabia que Joaquim Manuel ... era casado.

15. Em 10/10/2012, Joaquim Manuel ... constituiu, através de testamento, a favor da Autora, uma pensão vitalícia no valor de €1.700,00 mensais.

16. A Autora nunca acompanhou Joaquim Manuel ... ao médico ou diligenciou pela compra e/ou toma de medicação por parte deste.

17. Durante o relacionamento amoroso com a Autora, Joaquim Manuel ... assegurava as despesas mensais correntes da casa da Autora (prestação do crédito bancário para aquisição da sua casa, no valor aproximado de €335,00, electricidade num valor médio de €50,00, gás num valor médio de €20,00, água num valor médio de €20,00 e despesas de supermercado).

18. Maria Ivete ... faleceu em 13/04/2016.

19. Após o falecimento da sua esposa, Joaquim Manuel ... ficou de luto, doente, deixou de sair de casa e deixou de ter contactos com a Autora.

20. Após o falecimento da sua esposa, a Autora tentou visitar Joaquim Manuel ... mas este recusou.

21. Joaquim Manuel ... faleceu em 27/06/2016, na Rua D. ..., n.º .., r/c, Santo António da Charneca.

22. A herança por óbito de Joaquim Manuel ... é constituída, pelo menos, por 26 imóveis, 10 bens móveis, saldos de contas bancárias no valor de €1.690,76, obrigações, acções e participações sociais.

23. Desde 2004 até 2012, Joaquim Manuel ... fez seis testamentos.
24. Durante o casamento, em datas anteriores a 2012, Joaquim Manuel ... manteve relacionamentos amorosos com Cibele ....

25. A Autora aufere o rendimento social de inserção (RSI), faz trabalhos de limpeza esporadicamente, pelos quais aufere um rendimento médio mensal de €200, e trabalha quatro horas por dia (incluindo sábados, domingos e feriados) a cuidar de uma pessoa idosa, pelo que aufere €20,00 diários.

26. Desde Dezembro de 2010, a Autora não efectua descontos para a Segurança Social.

27. A Autora encontra-se inscrita no IEFP como desempregada desde 30/05/2012, tendo auferido subsídio de desemprego por 4 anos, no valor de €377,00 mensais.

28. Após terminar o subsídio de desemprego, a Autora requereu a atribuição do Rendimento Social de Inserção, o qual aufere, num valor de €317,00 mensais.

29. Entre 2012 e 2016, a Autora não apresentou declarações de IRS.

30. A Autora é proprietária de um veículo automóvel, ligeiro de passageiros, marca Peugeot, modelo C, de 2014.

31. A Autora detém uma conta bancária, com o saldo de €0,60.

32. A Autora é titular junto da Autoridade Tributária e Aduaneira do imóvel sito na Av. D. …, n.º .., Verderena, Barreiro, com o valor patrimonial de €55.132,75, determinado no ano de 2015.

B) FACTOS NÃO PROVADOS

Com relevância para a decisão da causa, não resultaram provados os seguintes factos:

i. Durante mais de 20 anos, Joaquim Manuel ... e a sua esposa habitaram em casas diferentes e não partilharam cama e mesa.

ii. Joaquim Manuel ... habitou, partilhando cama e mesa, com Cibele ..., na Rua …, bloco A, n.º .., 1.º andar, Alto do Seixalinho, Barreiro.

iii. Entre o início de 2012 e a data da sua morte, Joaquim Manuel ... habitou, partilhando cama, com a Autora, na morada desta, tomando com ela todas as suas refeições.

iv. Joaquim Manuel ... relacionava-se com a família da Autora como se da sua família se tratasse.

v. Com a instituição da pensão, Joaquim Manuel ... pretendeu assegurar alimentos à Autora.

vi. Os Réus conheciam a relação do seu pai com a Autora.

vii. A Autora interpelou os Réus para cumprirem o legado.

viii. Joaquim Manuel ... desenvolvia a sua actividade profissional em conjunto com a sua esposa.

ix. Joaquim Manuel ... não estava consciente da vontade que exprimiu no testamento.

x. Joaquim Manuel ... pretendia revogar o testamento outorgado a favor da Autora.

xi. A Autora sabia que Joaquim Manuel ... vivia com a sua esposa em comunhão de leito, mesa e habitação.”

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Não impugnada a matéria de facto apreciada pelo tribunal recorrido, que assim se tem por assente, cumpre apreciar os fundamentos jurídicos invocados para a procedência do recurso e revogação da decisão recorrida.

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FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
Insurge-se a recorrente contra a decisão que declarou nulo o testamento, alegando que estão verificadas as excepções contidas na alínea a) do nº2 do artº 2196 do CC., encontrando-se o matrimónio do testador dissolvido por óbito do cônjuge mulher e ainda por se encontrar verificada a excepção constante da alínea b) do mesmo preceito legal que determina a excepção do regime de nulidade se a disposição testamentária se destinar a assegurar alimentos ao beneficiário.

Passemos pois a apreciar as questões elencadas pela recorrente, nomeadamente apurando:

a) Se se verifica a excepção ao regime regra de nulidade da disposição testamentária a favor do cúmplice do testador adúltero, por à data da abertura da sucessão se encontrar já dissolvido o matrimónio do testador, por óbito do seu cônjuge;

Decidindo:

A respeito da nulidade deste testamento, considerou o tribunal recorrido que não era aplicável a excepção prevista no nº2 a) do artº 2196 do C.C., uma vez que “Atenta a ratio da norma, de protecção da família e do próprio testador, para obstar à nulidade (regra) tem de existir uma dissolução do casamento voluntária e/ou com carácter de permanência, não bastando uma dissolução involuntária de curta duração.”, referindo-se à dissolução do matrimónio ocorrida por óbito do cônjuge mulher, concluindo assim que “dos factos provados resulta manifesto que a relação emocional e afectiva do testador com a sua cônjuge não cessou nem antes nem sequer depois do falecimento desta última, cessando o casamento formalmente, única e exclusivamente porque esta faleceu, não estando assim verificados os pressupostos da dissolução voluntária e/ou com carácter de permanência exigidos para excepcionar a regra da nulidade do testamento.”

Ora, a respeito da excepção ao regime regra da nulidade instituído pelo nº1 deste preceito em relação a disposições testamentárias a favor de pessoa com quem o testador tenha cometido adultério, alegava a A. que o testador se encontrava à data da abertura da sucessão separado de facto da sua esposa por período superior a duas décadas, vivendo em união de facto com a A., beneficiária do testamento, enquadrando assim os factos na excepção constante da parte final desta alínea a) do nº2.
Afastada a tese aqui trazida pela A., de separação de facto do testador de sua esposa por período superior a 20 anos, equacionou a decisão recorrida a aplicabilidade desta norma por dissolução do matrimónio, uma vez que o testador faleceu no estado de viúvo, considerando que não ocorreram os pressupostos da “dissolução voluntária” deste matrimónio, exigida por este preceito legal.
Diga-se desde já que, do teor deste preceito e da ratio do mesmo, não resulta, ao contrário do que considerou a primeira instância, que a excepção ao regime da nulidade constante desta alínea a), apenas se verifique em caso de dissolução do matrimónio por forma voluntária, ou seja por divórcio.
A dissolução do matrimónio, referida na alínea a) do nº2 artº 2196 do C.C., opera quer por óbito de um dos cônjuges, quer por divórcio, não se exigindo que esta dissolução seja “voluntária”.
Com efeito, ao contrário do defendido na decisão recorrida, não visou esta norma a “protecção da família e do próprio testador”, mas antes a protecção do cônjuge sobrevivo, evitando que este concorresse com a concubina do falecido à herança, considerando o legislador que esta protecção carecia de sentido quando, pese embora formalmente existente o matrimónio, a separação judicial de pessoas e bens ou de facto dos cônjuges, por mais de seis anos, afastava esta necessidade de protecção, por na prática se encontrarem dissolvidos os laços do matrimónio e os deveres dele constantes (nomeadamente de fidelidade). 
Repare-se que esta norma teve por antecedente o anterior artº 1771 do C.C. de 1867, no qual se dispunha que “O cônjuge adúltero não pode dispor a favor do seu cúmplice, se o adultério tiver sido provado judicialmente antes da morte do testador.”, destinando-se tal exigência, conforme se refere em anotação ao artº 2196 do C.C. (Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil, Anotado, Vol. VI, págs. 318), a evitar “devassas à honra da família e a impedir que se infamasse a memória de pessoas que já não existiam. (…) a omissão da exigência de que houvesse prova do adultério antes da morte do testador era intencional. Sabendo-se que raras vezes se fazia prova do adultério em vida do testador, a manutenção do requisito significaria que o artigo ficava praticamente sem aplicação.”
Com a aprovação do Código Civil de 1966, manteve-se a nulidade da disposição testamentária a favor do cúmplice do cônjuge adúltero, eliminando-se a exigência de prova do adultério em vida do testador, mas consignando-se como excepções a esta nulidade, a dissolução do matrimónio ou a separação judicial de pessoas e bens, à data da abertura da sucessão.[3]
Conforme resulta dos trabalhos da Comissão Revisora (cfr. BMJ nº 133, 212 e segs.) foram então debatidas três posições distintas:
- a nulidade das disposições testamentárias a favor daquele com quem foi praticado o adultério, eliminando-se a exigência de prova constante do preceito anterior (Galvão Telles);
-a eliminação expressa da proibição de testar a favor do cúmplice do adúltero (Vaz Serra);
-a manutenção da nulidade da disposição, ressalvando no entanto, os casos em que o matrimónio estivesse já dissolvido, ou os cônjuges se encontrassem separados de pessoas e bens, à data da abertura da sucessão (Pires de Lima);
Com efeito, propunha-se no artº 200 do Anteprojecto, elaborado pelo Prof. Galvão Telles, a seguinte redacção “São nulas as disposições a favor daquele, com quem o testador casado cometeu adultério”, sendo então proposto pelo Prof. Vaz Serra a eliminação deste preceito, sujeitando-se a disposição testamentária à regra geral da nulidade, se fosse entendido como acto ilícito (por contrário à moral e bons costumes).
A favor da manutenção deste preceito, se manifestaram os Profs. Pires de Lima e Gomes da Silva, acrescentando o primeiro que “só haverá incapacidade se o casamento se mantiver, isto é, se o testador faleceu no estado de casado com a pessoa ofendida pelo adultério. Se no momento da abertura da sucessão já o casamento havia sido dissolvido por pré-morte do cônjuge ou por divórcio ou se o testador se encontrava judicialmente separado de pessoas e bens, então deve admitir-se a validade da deixa referida neste artigo.”
Por sua vez, defendeu o Prof. Galvão Telles que “o adultério nem sempre funciona como motivo da deixa (pode, por exemplo o testamento ser-lhe anterior). O que se pretende é evitar a imoralidade de à mesma herança concorrerem a viúva do testador e a sua concubina.”
Foi o artigo 200 deste Anteprojecto aprovado com as restrições propostas pelo Prof. Pires de Lima, ou seja “a incapacidade neles referida não funcionará se, antes da morte do testador, o casamento tiver sido dissolvido iou se tiver sido decretada a separação judicial de pessoas e bens.”
A reforma de 1977 (D.L. 496/77 de 25/11), alterou este preceito, deixando de exigir apenas a separação judicial de pessoas e bens, como excepção a este preceito e admitindo-se agora a separação de facto por mais de seis anos (em consonância com o teor do artº 1781 a) do C.C., no que se reporta ao divórcio) e introduzindo uma nova excepção à nulidade destas disposições testamentárias com fundamento no adultério, constante agora do artº 2196 nº2 alínea b), no caso de esta disposição se destinar a assegurar alimentos ao beneficiário.
Volvendo ainda aos dizeres de Pires de Lima e Antunes Varela in ob. citada, neste reforma, desvirtuou-se por completo o alcance ético-jurídico desta norma, que previa evitar a “imoralidade de à mesma herança concorrerem a viúva do testador e a sua concubina.”, citando Galvão Telles nos trabalhos da Comissão Revisora, permitindo-se agora que, no caso de se destinar a alimentos, a viúva(o) do testador(a) (a par dos demais herdeiros se os houver) tenha de os prestar à pessoa que, com o falecido(a), tiver cometido adultério.
Conforme refere Inocêncio Galvão Telles (Sucessão Testamentária, Coimbra Ed., págs. 39), “A Reforma de 1977, como reflexo da degradação moral entretanto ocorrida, ressalvou também a disposição testamentária que “se limitar a assegurar alimentos ao beneficiário, ou seja, ao cúmplice do testador adúltero, desvirtuando inteiramente o sentido ético da norma proibitiva de deixas ao cúmplice desse testador. Como observámos a dado momento no debate ocorrido no seio da Comissão Revisora, a que, a nossa solicitação, foi submetido o nosso Anteprojecto “O que a lei pretendia evitar é a imoralidade de à mesma herança concorrerem a viúva do testador e a sua concubina.”. Pois foi essa imoralidade que a Reforma de 1977, com grande insensibilidade, consagrou.”   
Assim, tendo em conta a evolução desta indisponibilidade relativa (ou incapacidade de receber), constante das sucessivas alterações ao Código Civil, não é defensável, uma interpretação restritiva desta excepção ao regime regra de nulidade, no sentido de que só se verifique nos casos de dissolução voluntária e duradoura do matrimónio.
Não é o que consta do texto literal da norma que se reporta à dissolução do matrimónio à data da abertura da sucessão, sem restringir ou delimitar os casos em que esta dissolução opere, não está sequer de acordo com a ratio ético-jurídica inicial desta norma, que visava efectivamente a protecção do cônjuge sobrevivo, da imoralidade ou humilhação de ter de concorrer à herança e eventualmente cumprir legados, a favor da pessoa com quem o seu falecido marido (ou esposa) cometera adultério, nem é consentânea com as condições específicas do tempo em que é aplicada (em que esta visão moralista do matrimónio se atenuou, cfr. decorre actualmente do regime do divórcio, tendo sido eliminada a culpa e as sanções ao cônjuge culpado, mormente por prática de adultério).
A estes considerandos acresce que, a excepção acrescentada ao nº2 por força da revisão de 1977, desvirtuou ainda mais a ratio inicial deste preceito, pelo que, tendo em conta o preceito instituído pelo artº 9 do C.C. (o pensamento legislativo que deu origem a este preceito, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada), se tem de considerar como não operando esta nulidade aos casos em que à data da abertura de sucessão, o matrimónio se encontrava já dissolvido, ainda que por morte, não existindo pois viúva(o) do testador(a) que concorra à herança com a(o) concubina(o).

Nestes termos procede assim o primeiro fundamento desta apelação, verificando-se a excepção prevista na alínea a) do nº2 artº 2196 do C.C. (dissolução do matrimónio), ao regime de nulidade constante do nº1.

Alegava ainda a recorrente que esta disposição se destinava a prestar-lhe alimentos, enquadrando-se pois na excepção contida na alínea b) do nº2 do artº 2196 do C.C. e com os efeitos no que se reporta ao legado de alimentos, do regime de exigibilidade previsto no artº 2273 do C.C.
Tendo em conta a pronúncia acima emitida, poder-se-ia considerar como prejudicada a apreciação do segundo argumento recursório da recorrente no sentido de constituir esta disposição um legado destinado a alimentos da beneficiária.
No entanto, tendo em conta o disposto no artº 2273 do C.C., não é inócua esta apreciação, pelo que se irá conhecer deste âmbito de recurso.

b) Se esta disposição testamentária se destinou a assegurar alimentos ao beneficiário;
 
A decisão recorrida afastou a consideração desta disposição como destinando-se a alimentos da A., com os seguintes fundamentos: “No que respeita à excepção prevista no transcrito artigo 2196.º, n.º 2, al. b), para se concluir que a disposição testamentária em causa visava assegurar alimentos à Autora, terá a mesma de ser interpretada dentro do seu contexto, conforme impõe o artigo 2187.º do Código Civil:
“1. Na interpretação das disposições testamentárias observar-se-á o que parecer mais ajustado com a vontade do testador, conforme o contexto do testamento.
2. É admitida prova complementar, mas não surtirá qualquer efeito a vontade do testador que não tenha no contexto um mínimo de correspondência, ainda que imperfeitamente expressa.”
Como refere JOSÉ DE OLIVEIRA ASCENSÃO – Direito Civil – Sucessões, Coimbra, 2000, 5.ª ed., p. 43, “o testamento é um acto mortis causa, pois tem a sua causa na morte do testador; e os seus efeitos destinam-se a produzir-se depois da morte. Isso não impede que haja uma constante dialética entre o momento da elaboração do testamento e o momento da abertura da sucessão, pois a consideração de ambos é necessária, embora para fins diversos, para apurar o verdadeiro significado das disposições testamentárias”.
O contexto do testamento é o conjunto de cláusulas do testamento, em contraposição à “prova complementar” (circunstancialismo que o rodeou) - v. ANTÓNIO DE OLIVEIRA ASCENSÃO, ob. cit., p. 295-296.
No caso, podendo e tendo o interesse em fazê-lo, o testador nada disse no testamento sobre qual o fim da disposição testamentária, particularmente se a mesma visava assegurar alimentos (sendo que o legado de alimentos tem um regime próprio previsto no artigo 2273.º do Código Civil). Assim, independentemente de qual fosse a intenção do testador (a intenção, de facto, de providenciar por alimentos resultou como não provada), não há qualquer correspondência no texto do testamento, nenhum ponto de apoio, que permita concluir que era esse o fim da disposição testamentária.
Mesmo que assim não fosse, do circunstancialismo provado que rodeou a elaboração do testamento também não resulta que essa fosse a última vontade do testador, até porque, tendo em consideração o valor da pensão (€1.700,00) e o padrão médio de vida em geral, e da Autora em particular, tal valor é manifestamente excessivo para que se possa concluir que visava o “indispensável ao sustento, habitação e vestuário” (cfr. artigo 2003.º, n.º 1, do Código Civil).”, sendo certo que a regra geral em relação a alimentos é que estes vigoram enquanto o alimentando deles necessitar e de acordo com a sua efectiva carência.
Ora, das alegações de recurso da A. nada, em rigor, resulta, que ponha em causa este entendimento, limitando-se a A. recorrente a discordar do entendimento do tribunal, mas sem alegar qualquer facto não considerado ou erroneamente considerado que impusesse outra solução, uma vez que não recorreu da matéria de facto, nem invocou qualquer norma jurídica que impusesse entendimento diverso do acolhido na sentença sob recurso.
Assim sendo, nada há a alterar à decisão recorrida, sendo certo que resultando como não provado que esta disposição se destinasse a assegurar alimentos à beneficiária, outra conclusão não poderia ser retirada.
Com efeito, era à A. que invocava a destinação da disposição testamentária, nomeadamente que esta se destinava a assegurar-lhe a prestação de alimentos, que incumbia o ónus de alegar e provar que efectivamente se destinava a alimentos (artº 342 nº1 do C.C.).
Não o tendo feito, porque tal matéria resultou não provada e não tendo igualmente deduzido impugnação da matéria de facto, sempre improcederia esta pretensão de consideração da disposição testamentária, como destinando-se a alimentos.

c) Se ocorre outra causa de nulidade ou anulabilidade deste testamento;

Não enfermando de nulidade esta disposição testamentária feita ao cúmplice do adúltero, por via da excepção contida no nº2 a) 1ª parte deste artigo 2196 do C.C., equacionou a sentença a sua anulabilidade, por via de negócio usurário, sendo que, no entanto, pese embora considerasse ser esta disposição usurária, não concluiu pela anulabilidade, por entender operante a nulidade constante do nº1 do citado preceito legal.
Considerou assim o tribunal recorrido que “o Tribunal não está vinculado à argumentação jurídica das partes e que a existência de normas especiais não afasta necessariamente as regras gerais relativas à falta e vícios da vontade do testador (v., nesse sentido, PIRES DE LIMA E ANTUNES VARELA – Código Civil Anotado, vol. VI, Coimbra, 1998, p. 323), o que nos parece é que são tais factos suficientes para se concluir pela verificação um negócio jurídico usurário.
*
Nos termos do disposto no artigo 282.º, n.º 1, do Código Civil, “é anulável, por usura, o negócio jurídico, quando alguém, explorando a situação de necessidade, inexperiência, ligeireza, dependência, estado mental ou fraqueza de carácter de outrem, obtiver deste, para si ou para terceiro, a promessa ou a concessão de benefícios excessivos ou injustificados”.
Quanto à aplicação do regime jurídico da usura ao testamento, v. acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 08/07/2015 e do Supremo Tribunal de Justiça de 23/06/2016, ambos no processo NUIPC 1579/14.5TBVNG e disponíveis em www.dgsi.pt.
Trata-se de um instituto jurídico autónomo, verificando-se como seus requisitos:
a) Exploração da situação de vulnerabilidade pelo usurário, exploração que pode ser objectiva, ou seja, não implicar o conhecimento da fraqueza da contraparte (v. ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO – Tratado de Direito Civil Português, Parte Geral, I, Coimbra, 2000, 2.ª ed., p. 458);
b) Existência de um factor relevante para a ignorância ou falta de informação - necessidade, inexperiência, ligeireza, dependência, estado mental ou fraqueza de carácter;
c) Excessividade ou falta de justificação do benefício.
Reportando-nos ao caso concreto, resulta dos factos provados que o testador era um homem de 72 anos de idade (à data do testamento), doente (doenças físicas e, principalmente, depressão com anteriores tentativas de suicídio), enquanto a Autora tinha 44 anos de idade à data do testamento e não trabalhava, deixando que o testador pagasse todas as suas despesas correntes. Tais factos, cada um por si, isoladamente, poderiam não ser suficientes para se concluir pela existência de uma situação de exploração, mas todos conjugados permitem concluir que, não obstante não estar incapacitado intelectualmente, o testador era manifestamente uma pessoa vulnerável, fraca e dependente emocionalmente, a qual foi explorada pela Autora tendo em vista a satisfação dos seus interesses patrimoniais. Por outro lado, a atribuição de uma pensão vitalícia de €1.600,00 (e consequente o enriquecimento da Autora, a qual, pelo menos desde 2010, vivia com um padrão de vida financeiro muito mais baixo) a uma pessoa com a qual se tem um relacionamento amoroso extraconjugal com apenas alguns meses de duração, sem união de facto, projectos de vida em comum ou sequer apoio na doença, parece-nos manifestamente excessivo, principalmente quando o testador mantinha o seu casamento e as suas relações familiares estáveis, nada justificando um empobrecimento da herança que caberia aos seus sucessores (cônjuge, ainda viva à data do testamento, e filhos) a este nível.
Pelo que, mesmo que não se concluísse pela nulidade do testamento em causa por força do disposto no artigo 2196.º do Código Civil, sempre o mesmo seria anulável com fundamento no disposto no artigo 282.º, n.º 1, do Código Civil (com efeitos jurídicos semelhantes – cfr. artigo 289.º, n.º 1, do Código Civil).”
Não foi esta questão suscitada a nível de recurso, nem o poderia ser (mormente pelos recorridos, pois que não vencidos) nem sobre ela se formou caso julgado, pois que a decisão proferida de nulidade não teve por base esta causa, mas antes a verificação da regra contida no artº 2196 nº1 do C.P.C., entendendo o tribunal recorrido que não se verificavam as excepções a esta regra, constantes do nº2 deste preceito legal.
Apesar de não suscitada tal questão, não está vedado a este tribunal, sendo invocada a nulidade desta disposição pelos herdeiros, aqui RR., considerar tal disposição não nula, mas anulável com base noutro enquadramento legal.
Com efeito, conforme resulta do disposto no artº 5º nº3 do C.P.C., o juiz “não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito.”
A respeito da sentença em primeira instância, refere ainda Manuel Tomé Gomes, Da Sentença Cível, pp. 43-44, o seguinte “A solução desta questão pressupõe, antes de mais, a interpretação do pedido e o entendimento de que este consiste no efeito prático-jurídico pretendido e não tanto na coloração jurídico que lhe é dada pelo autor. Na verdade, é unânime a doutrina de que o tribunal não está adstrito à qualificação jurídica dada pelas partes, já que, à luz do disposto no artigo 5º, nº3, do Código de Processo Civil, o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito.
Assim sendo, se a situação se reconduzir a um mero erro de qualificação jurídica na formulação do pedido, aferido em função do contexto da pretensão, parece que nada obsta a que o tribunal decrete o efeito prático pretendido, ainda que com fundamento em base jurídica diversa. Quando muito, importará ouvir previamente as partes sobre a solução divergente, na medida em que tal se mostre necessário a evitar uma decisão-surpresa, nos termos do nº3 do artigo 3º do Código de Processo Civil.»
Não estando o tribunal limitado pelas alegações das partes no domínio da indagação, interpretação e aplicação das normas jurídicas, está cfr. refere José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, em Anotação ao Código de Processo Civil, págs. 41, “dependente da introdução na causa dos factos aos quais o tribunal a aplica, devendo sempre distinguir-se o plano dos factos, em que vigora, mesmo em matéria de direito processual, o princípio do dispositivo, e o plano do direito, em que a soberania pertence ao juiz, sem prejuízo ainda, no que ao direito material se refere, de o conhecimento oficioso se circunscrever no domínio definido pelo objecto do processo.”
Representando o vício da anulabilidade um “minus” em relação ao pedido de nulidade, nada impedia o tribunal recorrido, nem impede este tribunal em sede de recurso, de  enquadrar a factualidade alegada pelas partes no vício da anulabilidade e não da nulidade peticionada pela parte.
Posto isto, a Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça tem admitido em termos gerais a aplicabilidade do regime dos negócios usurários aos testamentos[4], bem como parte da nossa doutrina[5], considerando que “as especificidades da falta e vícios da vontade do testador, a que acresce a expressa previsão da aplicabilidade da figura da coacção (art. 2001º do CC) por simples remissão para o regime dos arts. 255º e 256º do CC. O facto de não existir norma remissiva equivalente quanto à usura não permite concluir que o legislador pretendeu o seu afastamento, na medida em que o regime da usura se inclui na regulamentação do objecto do negócio jurídico da Secção II do Capítulo do Negócio Jurídico, possuindo, porém, afinidade com os vícios da vontade, regulados na Secção I do mesmo capítulo, relativa à declaração de vontade” (Ac. do STJ de 23/06/16)
Necessário é que estejam reunidos os requisitos constantes do artº 282 do C.C., mormente a existência de uma situação de inferioridade do declarante; a exploração dessa situação de inferioridade pelo usurário; e a verificação de uma efectiva lesão, ou seja uma promessa ou concessão de benefícios excessivos ou injustificados para o usurário ou para terceiro.
Transpondo tal normativo para o testamento, verificam-se estes requisitos quando alguém pelo seu estado de saúde, idade ou pelo seu estado psíquico (diminuído por força da doença ou da própria idade), esteja numa situação de inferioridade ou dependência do usurário (quer porque se encontra a ser por ele cuidado ou tratado, fora dos casos previstos nos artºs 2192 e 2194 do C.C., quer no âmbito de uma relação amorosa, em que a pessoa mais jovem assume ascendente sobre a pessoa mais idosa) e seja concedido por via testamentária um benefício excessivo (tendo em conta a natureza desta relação, o período de tempo em que decorreu, se existia um projecto de vida comum, etc…).
Ora, em relação a este requisito, a possibilidade de aplicação do regime do art. 282º, do CC, não coloca dificuldades quanto à verificação dos requisitos subjectivos, “mas já as suscita quanto à verificação do requisito objectivo. Na verdade, da própria natureza dos negócios gratuitos resulta que as vantagens atribuídas ao beneficiário podem ser “excessivas” e não ter, total ou parcialmente, justificação.”, pelo que este regime da usura “Apenas se poderá afirmar em circunstâncias muito excepcionais – como parecem ser as dos autos – em que esses negócios jurídicos se insiram num contexto mais alargado, no qual a factualidade provada imponha uma diferente valoração. Diferente valoração associada ao recurso à concepção de “sistema móvel”, desenvolvida por Wilburg (na obra Elementen des Schadensrecht de 1941) a respeito do preenchimento dos pressupostos da responsabilidade civil, aceite pela doutrina nacional e igualmente válida para o instituto da usura (cfr. Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, I – Parte Geral, I, 2005, pág. 651), permitindo considerar que, se for particularmente intensa a prova de factos que revelam um dos pressupostos do art. 282º, nº 1, do CC, será aceitável um menor grau de exigência na verificação de um outro pressuposto.” (ac. do STJ de 23/06/16 acima citado)
No caso em apreço, estamos perante pessoa idosa e doente, com 72 anos, que sofreu de depressão, com ideias de suicídio, o qual desenvolveu uma relação amorosa e adúltera com pessoa 30 anos mais jovem, passando a pagar todas as despesas desta, que pouco tempo (meses) decorridos do início desta relação elabora testamento (o sexto num curto espaço de tempo) em que constitui como legado, uma pensão vitalícia de € 1700,00 mensais a favor da pessoa com quem mantém relação amorosa e adúltera, mas passageira, sem nunca ter deixado o lar conjugal ou cessado as relações de afecto com a sua esposa e família, sem nunca ter estabelecido qualquer projecto de vida, ou união de facto, ou relação amorosa duradoura com a beneficiária do testamento, que de alguma forma justificasse a concessão de uma pensão vitalícia no montante de €1700,00.
Não pode deixar de ser entendido como excessivo e injustificado (e imoral), a imposição de um encargo vitalício à herança, a favor do cúmplice do cônjuge adúltero, neste montante e nestas circunstâncias, constituindo um benefício excessivo, pelo que se entende que, efectivamente é este testamento anulável, por usurário. 

d) Se, em face da factualidade assente, se justifica a manutenção da condenação da apelante como litigante de má-fé.

Alega ainda a recorrente que, em face da factualidade assente não se justificava a sua condenação como litigante de má fé.
A respeito da litigância de má fé, dispõe o artº 542 nº2 do C.P.C. que litiga de má fé quem, com dolo ou negligência grave:
-tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não podia ignorar;
-tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a boa decisão da causa;
-tiver praticado omissão grave do dever de cooperação;
-tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objectivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a acção da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.
Com a redacção deste preceito, cujo nº2 se manteve inalterado (com a mesma redacção introduzida pelo D.L. 329-A/95 ao nº2 do artº 456 do C.P.C.), visa-se sancionar, não só a litigância dolosa, mas igualmente a litigância temerária, consagrando-se expressamente o dever de boa fé processual e com o intuito de atingir uma maior responsabilização das partes na lide (cfr. decorre do preâmbulo do D.L. 329-A/95)
Com efeito, têm as partes o dever geral, imposto pelo artº 8 do C.P.C. de agir de boa fé, observando os deveres de cooperação (descriminados no artº 7º) de forma a obter a justa composição do litígio.  
Tendo em conta estes deveres de boa-fé e de cooperação, deve ter-se por admissível a condenação por má fé de qualquer das partes (quer a vencedora quer a vencida) que, com dolo ou negligência grave, tenha violado algum dos deveres ínsitos no nº 2 deste preceito legal.
Ora, viola o dever de verdade previsto na alínea d) do nº2 deste preceito legal, a parte que, conscientemente, articula factos falsos com vista a atingir, ou melhor atingir, o seu dissídio.
Denote-se que, a este respeito, alegou a A. que o falecido se encontrava separado de facto da sua esposa há mais de vinte anos (artºs 2 e 3 da sua p.i), e que vivia em união de facto desde 2012 até à data do óbito do testador ocorrido em 27/06/2016 (artº 5 a 7 da p.i.) o que, dado o seu relacionamento com o falecido, não podia ignorar ser absolutamente falso.
Visou com estes factos procurar enquadrar a situação sub judice na alínea a) do nº2 do artº 2196, quer pela dissolução do matrimónio ocorrida por morte, quer pela separação de facto do testador, por mais de seis anos.
Procurou ainda justificar uma disposição testamentária manifestamente excessiva, alegando a sua união de facto com o testador, o que sabia ser falso.
Esta violação do dever de verdade, decorre amplamente dos factos que se deram como provados nos pontos 5 a 7 e 12 e 13, em que se provou versão contrária à alegada pela recorrente.
Está assim demonstrado que a A. alegou factos que bem sabia serem falsos, violando de forma flagrante o dever contido na alínea b) do nº2 do artº 452 do C.P.C. e pretendendo, por esta via, obstar a eventual declaração de nulidade ou anulabilidade do testamento em apreço.
Assim sendo, mantém-se a condenação por litigante de má fé aplicada na primeira instância, sendo a sanção aplicada perfeitamente adequada ao caso em apreço.
Improcede assim a apelação interposta pela recorrente.
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DECISÃO
Pelo exposto, acordam os Juízes desta relação em julgar improcedente a apelação, alterando, no entanto, a alínea b) da decisão recorrida para o seguinte:
“b) Julga-se o pedido reconvencional formulado pelo 1.º Réu e, em consequência, declara-se anulado por usura, o testamento lavrado por Joaquim Manuel ..., em 10/10/2012, a favor da Autora;”
Custas pela apelante, por se entender ter decaído na totalidade do recurso, sem prejuízo do apoio judiciário de que goza.

Lisboa 28/02/19

Cristina Neves
Manuel Rodrigues
Ana Paula A.A. Carvalho

[1] Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2013, pp. 84-85.
[2] Abrantes Geraldes, Op. Cit., p. 87.
Conforme se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7.7.2016, Gonçalves Rocha, 156/12, «Efetivamente, e como é entendimento pacífico e consolidado na doutrina e na Jurisprudência, não é lícito invocar nos recursos questões que não tenham sido objeto de apreciação da decisão recorrida, pois os recursos são meros meios de impugnação das decisões judiciais pelos quais se visa a sua reapreciação e consequente alteração e/ou revogação». No mesmo sentido, cf. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 4.10.2007, Simas Santos, 07P2433, de 9.4.2015, Silva Miguel, 353/13.
[3] regia este preceito aprovado pelo DL n.º 47344/66, de 25 de Novembro que “É nula a disposição a favor da pessoa com quem o testador casado cometeu adultério, salvo se o casamento já estava dissolvido ou os cônjuges estavam separados judicialmente de pessoas e bens à data da abertura da sucessão.”
[4] Vidé a este respeito Ac. do S.T.J. de 23/06/16, relatora Graça Trigo, proc. nº 1579/14.5TBVNG.P1.S1, que cita Acs. do STJ de 12/09/2006, relator Afonso Correia, proc. nº 06A1988, de 12/01/2012, proc. nº 79/2001.S1, 22/05/2003, proc. nº 03B1300; 13/05/2004, proc. nº 1452/04, todos disponíveis in www.dgsi.pt
[5] Capelo de Sousa, Lições de Direito das Sucessões, I, 2000, pág. 185; Duarte Pinheiro, O Direito das Sucessões Contemporâneo, 2013, pág. 135