Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
72/12.5NJLSB.L1-5
Relator: AGOSTINHO TORRES
Descritores: CRIME MILITAR
ABUSO DE AUTORIDADE MILITAR
NOTIFICAÇÃO DO ARGUIDO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 07/15/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO PARCIALMENTE
Sumário:

I - a expressão do art° 411° n°1, ala b) " O prazo para interposição de recurso é de 30 dias e conta-se ...b) Tratando-se de sentença, do respectivo depósito na secretaria", deve ser interpretada,- salvo situações diferentes expressamente previstas, como seria o caso do julgamento na ausência do arguido e da ala c) do art° 411° n°1- "...leitura de decisão oral reproduzida em acta...") como referindo-se aos casos em que a sentença escrita é lida na presença dos intervenientes .

II - a finalidade de protecção que o tipo legal previsto no art° 144 alinea d) do CP pretende desempenhar vai no sentido de exigir que o perigo seja concreto e não uma mera possibilidade de desenlace fatal ou de exigir que perdure apenas por um curto período de tempo

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: ACORDAM EM AUDIÊNCIA OS JUÍZES NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA - 5ª SECÇÃO (PENAL)
I-RELATÓRIO
1.1 - Por acórdão de 12 de Fevereiro de 2014 proferido no âmbito do processo NUIPC 72-12.5NJLSB.L1 da 2ª VARA CRIMINAL DE LISBOA, foí julgado o arguido JM... com o seguinte resultado
condenatório:
,,(...)
I- RELATÓRIO
Com fundamento na (actualidade descrita de fls. 277 e 278, a Digna Magistrada do Ministério Público veio requerer o julgamento, em processo comum com intervenção do Tribunal Colectivo, de
JM..., filho de (...)  nascido a 14 de Setembro de 1987, solteiro, Oficial do Exército, residente na Rua da Azenha, n° 12, Casais da Serralheira, Como,
Imputando-lhe a prática, "em autoria material e na forma consumada de um crime de Abuso de
Autoridade por Ofensas à Integridade Física, p. e p. pelo art.° 93°, n° 2, ah d), por referência ao n° I do mesmo artigo, do Código de Justiça Militar".
Com base no alegado de fis. 296 a 298 WF... deduziu pedido de indemnização civil contra o arguido, ora demandado, requerendo a final a condenação deste a pagar-lhe "a quantia de 50.000€ (cinquenta mil euros), acrescida dos juros de mora vencidos e vincendos até integral pagamento, a título de indemnização pelos danos causados".
De fls. 316 a 318 está presente o pedido de indemnização civil formulado pelo Hospital das Forças Armadas, Polo de Lisboa (HFARMXL) contra o demandado, arguido. Reclamando o pagamento da assistência médica prestada ao ofendido WF..., aquele demandante solicitou que, na procedência do pedido seja o demandado condenado a pagar-lhe a quantia de € 12.065,46 (doze mil e sessenta e cinco euros e

quarenta e seis cêntimos), acrescida de juros legais.
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II - FUNDAMENTACÃO
II.1. MATÉRIA DE FACTO PROVADA
Efectuada a produção de prova e discutida a causa, resultou apurada a seguinte factualidade: I Da Acusação:
- No dia 04/07/2012, pelas 9h30m, no Centro de Tropas Comandos (CTC), na Carregueira, durante uma instrução de treino físico designada por Ginástica de Aplicação Militar (GAM), o arguido, Alferes que ministrava instrução no solo, dos militares da Companhia de Formação de Comandos, no exercício das funções de Comandante de Grupo, ao ver que o soldado WF.... não efectuara correctamente o exercício de extensões de braços no solo, na iminência do exercício se iniciar e quando este estava colocado na posição de o efectuar, colocou a sua navalha aberta por baixo da região abdominal do ofendido, sem o avisar.
- Quando o ofendido veio com o corpo para baixo, cumprindo a ordem que havia sido dada ao grupo, a navalha furou-lhe o abdómen.
- O ofendido foi hospitalizado, tendo sido operado de urgência com realização de sutura hepática.
- Em consequência da atitude do arguido, sofreu o ofendido, ferida abdominal (...) com hemoperitoneu e ferida hepática de grau 2, no lobo direito do fígado (com cerca de 1,5cms de comprimento) (...), que lhe provocou perigo para a vida e lhe determinou um período de doença fixável em 59 dias, sendo 13 dias com afectação da capacidade para o trabalho geral e 46 dias com afectação da capacidade para o trabalho profissional.
- O arguido, tem o posto de Alferes com o NIM (...).
- O ofendido tem o posto de soldado com o NIM(...).
- O arguido e ofendido estão colocados no Centro de Tropas Comandos.
- O arguido ao pôr a navalha aberta debaixo do abdómen do ofendido, sabia que este podia cair sobre ela perfurando o abdómen, conformando-se com tal resultado, bem sabendo que punha em perigo a vida do ofendido.
O arguido agiu deliberada livre e conscientemente, e, no exercício das suas funções de Comandante de Grupo, abeirou-se do ofendido e colocou a sua navalha aberta debaixo do mesmo, bem sabendo que não estava previsto o uso dessa navalha no programa a ministrar aos formandos e que tais atitudes eram contrárias aos deveres do militar e disciplina militar.
- O arguido agiu da forma supra descrita, deliberada, livre e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
II- Do Pedido de Indemnização Civil formulado por WF...:
- O ofendido esteve internado no hospital e após a operação teve dores.
- Ainda é visível no corpo do ofendido as cicatrizes decorrentes da operação, o que o relembra sempre do que se passou.
- O ofendido não foi chamado para os treinos nem para o curso seguinte.
III Do Pedido de Indemnização Civil deduzido pelo Hospital das Forças Armadas, Polo de Lisboa (HFAR/PL):
- Em consequência da conduta do arguido, o ofendido, soldado WF..., beneficiário da Assistência na Doença aos Militares (ADM) com o n° ER (...), no dia 4 de Julho de 2012 recebeu assistência no Serviço de Urgência do então Hospital Militar Principal (HMP) que, por fusão, passou a integrar o Hospital das Forças Armadas, Polo de Lisboa (HFAR/PL).
- Assistência que se prolongou até ao dia 26 de Setembro de 2012.
- A assistência prestada consistiu em consultas e intervenção cirúrgica, conforme consta de fls. 319 e 320 que aqui se dão por integralmente reproduzidas.

- O custo da sobredita assistência médica foi de € 12.065,46 (doze mil e sessenta e cinco euros e quarenta e seis cêntimos).
- O Estado Português (EP) — Ministério da Defesa Nacional (MDN) — HPAR/PL suportou o custo das despesas com tal assistência médica, no valor acima referido, de € 12.065,46 (doze mil e sessenta e cinco euros e quarenta e seis cêntimos), as quais foram consequência directa, única e necessária da conduta do arguido, ora demandado.
IV Mais se provou:
- Do certificado de registo criminal do arguido nada consta.
- O arguido é Oficial do Exército, actualmente TEN INF, pertence ao Quadro Permanente desde 1 de Outubro de 2010 e presta serviço no Centro de Tropas Comandos, encontrando-se em diligência no Centro de Tropas de Operações Especiais de Lamego a frequentar o Curso de Operações Especiais PP, desde 06JANI4 a 27JUN14. Regista dois louvores, um decorrente da atribuição de prémio de aptidão física e outro decorrente da prestação de serviço no Teatro de Operações do Afeganistão. Tem duas referências elogiosas, uma decorrente da integração na Classe de saltos de mesa alemã e outra decorrente da obtenção de 1° lugar em Campeonato de Pentatlo Militar.
- Admitiu os factos e mostrou-se arrependido.
- WF... ficou sem lesões ou sequelas relacionáveis com o evento, para além das cicatrizes decorrentes da operação, encontrando-se curado, sem aleijão ou deformidade ou incapacidade para o serviço.
11.2. MATÉRIA DE FACTO NÃO PROVADA
De relevo não se provou:
- que foi de imediato hospitalizado;
- que o arguido tivesse visto que faltava as forças nos braços do ofendido obrigando-o a iniciar o exercício;
- que já tivesse acontecido faltar a força nos braços do ofendido;
- que depois do que lhe aconteceu (a WP...) o sonho de seguir a carreira militar caiu por terra.

II. 3. MOTIVAÇÃO DA DECISÃO DE FACTO II. 3. 1. INDICAÇÃO DOS MEIOS DE PROVA
Para formar a convicção do tribunal, foram relevantes os seguintes meios de prova, livremente apreciados (art° 127° do Código de Processo Penal):
- as declarações do arguido;
- as declarações do assistente/ofendido:
- o depoimento das testemunhas inquiridas:
- (...)
- Detalhe da Educação Física Militar ao Plano de Formação para o 120° Curso de Comandos — Mês de
Julho, de fls. 18;
- Horário do Plano de Formação para o 120° Curso de Comandos — Semana 1 (02 a 08 JUL12), de fls.
19;
- Extracto do REFE referente à GAM, Fase Preparatória com Arma, GAM 8 e Jogos de fls. 20 a 52;
- Relatório de Observação, Episódio de Urgência, de tls. 59;
- Certificado da folha de matrícula, de fls. 69 e 70;
- Auto de Apreensão, de fls. 166;
- Guia de Entrega de tls. 167;
- Relatório Médico do HFAR, de fls. 222;
- Relatório da Perícia de Avaliação do Dano Corporal em Direito Penal, de tls. 230 a 234;

- Boletim Clínico existente nos arquivos da Unidade Hospitalar da Estrela do Polo de Lisboa do Hospital das Forças Armadas respeitante a WF..., de fls. 252 a 264;
- Descriminação e encargo dos actos médicos realizados ao utente 281771 Sold WF..., de 4 de Julho de 2012 até 26 de Setembro de 2012, de fls. 319 e 320;
- Informação da DGRS, de fls. 347;
- Certificado de Registo Criminal, de fls. 356.
3. 2. EXAME CRÍTICO DA PROVA
Toda a (actualidade apurada teve por base a apreciação critica e concatenada de toda a prova produzida e supra enunciada. Assim, e, especificando:
O arguido confessou que, efectivamente, no dia 4 de Julho de 2012, pelas 9.30h, no Centro de Tropas Comandos, na Carregueira, durante uma instrução de treino físico, designada por Ginástica de Aplicação Militar (GAM), quando ministrava instrução no solo, dos militares da Companhia de Formação de Comandos, colocou a sua navalha aberta (com cerca de oito a dez centímetros de lâmina), que segurou com a mão, debaixo do abdómen do soldado WF..., depois de este não ter realizado bem o exercício de "extensões de braços no solo" e sabendo que estava iminente a realização de nova flexão. Colocou a navalha e não avisou o ofendido.
Começou por dizer que fê-lo por uma espécie de brincadeira, e aleatoriamente, podia ter sido a outro qualquer soldado. Percebe agora que foi um acto irreflectido e que não devia ter feito mediante os riscos que acarretava.
Titubeante referiu que foi sem intenção de magoar WF..., de o ferir e muito menos de matar que colocou a faca aberta (no seu entender não totalmente) debaixo dele. Colocou a faca "porque não queria que ele fosse abaixo, era para descansar em cima", acabou por admitir.
Tudo isto sabendo que estavam a fazer exercício de flexões de braços no solo e que a qualquer momento o soldado WF..., como os restantes elementos do grupo, devia ter que ir abaixo ou porque estava cansado e não aguentava em cima ou porque teria ordem para descer, para flectir os braços, como na realidade veio a acontecer.
Acresce que o arguido colocou a dita faca debaixo do ofendido sem o avisar, não se tendo este apercebido dela, como nos disse. Não se percebe, pois, como é que o arguido trabalharia a componente psicológica do soldado se este não tinha noção da arma debaixo dele...
E convenhamos não será desta forma "que se cria alguma psicologia na mente do soldado que está a ser preparado para um curso de elite", como argumentou o Distinto Advogado do arguido.
O golpe efectuado foi profundo, atingindo cerca de 1,5cms do lobo do fígado, isto depois de ter perfurado a farda (número três, semelhante ao camuflado), penetrado na região abdominal com perfuração das várias camadas de derme e tecidos adiposos. Pese embora não se tenha analisado a faca, a sua lâmina teria que ter vários centímetros, tomando pois verosímil as declarações do arguido quanto a esta parte, quando referiu que a lâmina teria por volta de oito a dez centímetros.
O soldado viria a ser logo suturado pelo enfermeiro de serviço e encaminhado mais tarde, após o almoço, para o Hospital Militar, por insistência do arguido, já que, segundo afirmou, não o teriam encaminhado para o hospital para o protegerem a si.
"O que acontece é que se ele não tivesse sido evacuado para o hospital isto não se sabia e portanto não teria acarretado todos estes procedimentos". Perguntou-se em que é que fundamentava esta sua percepção e respondeu: "houve algumas expressões dentro da Companhia, tanto é que eu fiz pressão para que ele fosse para o hospital para eu ficar com descargo de consciência".
Reiterando que foi um acto irreflectido, acabou por admitir que embora não fosse sua intenção ferir o soldado sabia que tal era possível acontecer, representou como possível isso vir a suceder. Questionado, a propósito, pelo Distinto Mandatário do demandante, Hospital Militar, a resposta foi "claro que sim, sim".
As precisões efectuadas nos factos constantes da acusação e que constam como matéria de facto provada (da acusação) derivaram das próprias declarações do arguido em audiência de

julgamento, designadamente quanto ao momento em que o exercício se iria reiniciar, a altura em que colocou a navalha debaixo do ofendido e o não alerta deste da presença daquela arma.
Ouvido em declarações o soldado WF...confirmou que na altura estavam a fazer aquecimento e extensões de braços no solo com arma e que ele e outros não terão realizado o exercício bem. Por tal motivo, disse-nos, "o Alferes (ora arguido) veio ter comigo, ficou no meu lado esquerdo e segurou uma faca debaixo de mim, eu não vi a faca, estava empranchado."
E continuou: "eu não sabia que estava ali a faca, se soubesse levantava-me, fiz as flexões, senti uma dor na barriga, nunca pensei que fosse uma faca, talvez um tronco ou uma pedra, o que é normal por causa do terreno, e depois começou-me a faltar o ar. Fiquei de joelhos e via a faca espetada; olhei para o lado esquerdo onde estava o Alferes e ele disse que não me tinha espetado; levantei-me a faca ficou espetada no meu abdómen, o Alferes agarrou-me deitou-me, acalmou-me, tirou-me a faca, depois dobrou-me o abdómen e fez pressão na ferida, chamou logo o socorrista. Não deitei sangue, a hemorragia foi interna. Fui para a enfermaria, coseram-me e mandaram-me para o quarto. Deitei-me adormeci, por volta das onze acordei, desmaiava, estava frio e não conseguia respirar bem. Fui depois para o Hospital Militar onde fui operado".
Acrescentou ainda que não tem qualquer motivação para continuar no exército esperando o termo do contrato (que será em 19 de Março de 2015) para sair.
Ficou sem sequelas mas esteve um ano e dois meses sem poder praticar exercício físico, o que o impediu de participar no curso seguinte.
No curso posterior desistiu e nunca foi ao curso de Comandos.
Referiu ainda a vontade de ingressar no quadro da carreira militar pese embora tenha, por enquanto, apenas o 9° ano de escolaridade e ser necessário o 12° ano.
A testemunha (...) não viu o arguido colocar a faca debaixo de WF..., apenas ouviu este queixar-se e viu o corte "um corte limpo", sem sangue. Salientou que o Alferes tinha um "tique de instrutor" e que era "andar sempre a abrir e a fechar a faca".
(...) , também ouvido na qualidade de testemunha, viu o arguido "dar a volta por detrás do WF..., colocar o joelho direito em terra e pôr a faca aberta por baixo dele. O WF...foi abaixo, quando o sargento disse a baixo/a cima, e quando veio a cima colocou-se de joelhos e desmaiou. Não vi sangue". Pensou que quando o Alferes colocou a faca fosse para cortar alguma coisa do cinturão, não o ouviu dizer nada, nem conseguiu avisar WF...porque, embora de frente, ainda estava distante dele.
Por sua vez(...), também presente naquela instrução, viu o Alferes colocar a faca por baixo de WF..., sem lhe dizer nada e depois ouviu o ofendido queixar-se, levantar-se e tombar para trás. Viu sangue e, após terem chamado o socorrista foi, juntamente com os outros instruendos afastado daquele local.
O arguido praticou os factos descritos enquanto ministrava instrução de GAM, durante o exercício das funções de Comandante de Grupo e era e é de posto superior ao ofendido WF....
O arguido utilizou uma navalha, com cerca de oito a dez centímetros de lâmina, cujo emprego não estava previsto no Programa/Horário da Instrução, o que o arguido sabia, colocando-a aberta, e segurando-a com a mão, por baixo do corpo do ofendido, da zona abdominal.
Em consequência do comportamento do arguido resultou por "motivo de ferida penetrante por arma branca na região epigástrica" "na perfuração do fígado, com cerca de 1,5cms de comprimento, com hemoperitoneu", provocando dano no ofendido e colocando em perigo a sua vida.
O soldado WF...foi primeiramente assistido no local e Unidade Militar, pelo arguido, socorrista e enfermeiro do CTC, que o suturou.
Só foi evacuado para o Hospital Militar após o almoço, tendo sido recepcionado no serviço de Urgência pelas 16.30h e, daí, não ter ficado provado que foi imediatamente transportado para a Unidade Hospitalar.

Não restou também provado que tivessem faltado a força nos braços do ofendido, nem que isso já tivesse acontecido, mas sim que aquele, tal como outros instruendos, não realizou correctamente o exercício em curso de extensões de braços no solo, pelo que exercício começou de novo, sendo dada nova ordem de a baixo/ a cima. O arguido sabia disto e que o exercício estava a realizar-se e mesmo assim colocou a navalha debaixo do abdómen de WF...sem que este disso desse conta. Por isto, também não ficou provado que o arguido tivesse obrigado o ofendido a fazer o exercício, mas sabendo, como já o dissemos, que o referido exercício estava iminente.
O ofendido foi operado de urgência com realização de sutura hepática, não tendo tido complicações no pós-operatório. Esteve ausente do serviço por baixa médica/convalescença por um período de um mês.
Do relatório médico consta, designadamente a fls. 234, que do evento resultou, em concreto, perigo para a vida do ofendido, caso atempadamente não tivesse sido socorrido poderia ter outras consequências graves, sendo que na zona afectada se alojam órgãos vitais (hematopoiéticos).

11.4. ASPECTO JURÍDICO DA CAUSA
11.4.1. ENQUADRAMENTO JURÍDICO-PENAL
O circunstancialismo táctico provado é merecedor de censura penal e integra, indubitavelmente, o cometimento pelo arguido do crime de Abuso de Autoridade por Ofensas à Integridade Física, p. e p. pelo art° 93°, n° 2, al. d), por referência ao n° 1 do mesmo artigo do Código de Justiça Militar.
Dispõe o n° 1 do citado artigo que: "o militar que ofender o corpo ou a saúde de algum subordinado no exercício das suas funções e por causa delas é punido com pena de prisão de 2 a 8 anos."
E o n° 2 "se a ofensa for de forma a provocar perigo para a vida (al. d), o agente é punido com pena de prisão de 8 a 16 anos."
Com efeito, os factos considerados assentes subsumem-se ao tipo criminal referido, com preenchimento dos elementos objectivos e subjectivo respectivos.
Como já acima referimos a ofensa provocada pelo arguido no corpo do soldado WF...foi de forma a provocar-lhe perigo para a vida.
O arguido praticou os factos descritos enquanto ministrava instrução de GAM, durante o exercício das funções de Comandante de Grupo e era e é de posto superior ao ofendido WF....
Colocou a navalha debaixo do abdómen de WF..., sem o avisar, nem dando qualquer contra ordem ao Sargento para sobrestar a continuação do exercício que estava em curso e que era flexões de braços no solo. Tal evidencia que se conformou com a iminência da lesão com perfuração do lobo direito do fígado com cerca de 1,5cm de comprimento, com manifesto perigo para a vida.
Uma lâmina de cerca de oito a dez centímetros de comprimento dirigida ao abdómen de uma pessoa que se encontre a fazer flexões no solo é praticamente certo que cause perfuração e inerente o perigo de vida.
O arguido admitiu a possibilidade de WF...se ferir e conformou-se com esse resultado já que nada fez para o obstar.

11.4.2. MEDIDA DA PENA

O ilícito criminal referenciado é punível com pena de prisão de 8 a 16 anos.
Na determinação da medida concreta da pena, tomar-se-ão em conta as circunstâncias norteadoras previstas no n° 2 do art° 71° do Código Penal e no art° 22° do Código de Justiça Militar, partindo-se da culpa do agente e da necessidade de ponderar as exigências de prevenção de futuros

crimes (n° 1 do citado art° 71°).
Estamos perante crime praticado com dolo eventual.
Para além das consequências graves para a pessoa do ofendido, relevantes são também as circunstâncias em que o crime foi perpetrado.
O arguido ministrava uma instrução de treino físico, Ginástica de Aplicação Militar a cerca de trinta homens, que, obviamente, presenciaram o crime (tendo até o Sargento Antunes Afonso tentado, depois do sucedido, "desviar a atenção do remanescente do grupo", como nos disse.
A culpa, entendida como juízo de censura ético-jurídica dirigida ao agente por ter actuado de determinada forma, quando podia e devia ter agido de modo diverso, é elevada. Ao arguido incumbia o especial e acrescido dever de manter uma conduta licita, atenta a posição em que se encontrava e o ser militar de uma "tropa de elite." São igualmente elevadas a ilicitude, aferida pela violência da agressão e suas sequelas e as exigências quer de prevenção geral, quer de prevenção especial. Recordemo-nos que o arguido já havia sido vítima de comportamento idêntico que face à sua não punição levou a que ele próprio o praticasse.
O arguido admitiu os factos, mostrou-se arrependido, insistiu para que o ofendido fosse para o Hospital (menosprezando a "protecção" de que beneficiava), não tem antecedentes criminais, regista dois louvores, um decorrente da atribuição de prémio de aptidão física e outro decorrente da prestação de serviço no Teatro de Operações do Afeganistão e tem duas referências elogiosas, uma derivada da integração na Classe de saltos de mesa alemã e outra advinda da obtenção de I° lugar em Campeonato de Pentatlo Militar. À data dos factos o arguido tinha 24 anos de idade.
Ponderados todos estes factores, mostra-se adequada a imposição de uma pena de 8 anos e 10 meses de prisão.

II..5. PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL.
Aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação — art° 483° do CC, que define o princípio geral da responsabilidade civil por factos ilícitos.
São, pois, os seguintes os pressupostos respectivos: a violação de um direito ou interesse alheio; a ilicitude; o vínculo de imputação do facto ao agente; o dano; e o nexo de causalidade entre o facto e o dano; os quais, no caso, se mostram preenchidos.
WF... reclama € 50.000,00 a título de danos morais.
Quanto aos danos morais, estatui o art° 496°, n° 1, do Código Civil, que na fixação da respectiva indemnização, deve atender-se aos danos não patrimoniais que, "pela sua gravidade", mereçam a tutela do direito.
A "gravidade" mede-se por um padrão objectivo, conquanto a apreciação deva ter em linha as circunstâncias concretas. O dano deve ser de tal modo grave que justifique a concessão da ordem pecuniária ao lesado.
No que ora interessa, provou-se que WF... na sequência da conduta do arguido e por causa dela, esteve internado no hospital, foi operado e teve dores, tem cicatrizes na região abdominal e não foi chamado para os treinos nem para o curso seguinte.
Para além das cicatrizes mencionadas o ofendido não regista quaisquer outras lesões ou sequelas relacionáveis com o evento. Encontra-se curado, sem aleijão ou deformidade ou incapacidade para o serviço.
A desmotivação alegada não restou provada. WF...não fez o terceiro curso porque desistiu. Tudo ponderado entendemos como justo e equilibrado condenar o arguido, aqui demandado a

pagar ao demandante WF..., a quantia de € 6.000,00 a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros contados a partir desta data
Quanto aos danos patrimoniais reclamados, e, porque em consequência da conduta criminosa do arguido o ofendido WF..., no dia 4 de Julho de 2012, recebeu assistência no serviço de Urgência do então Hospital Militar, assistência que se prolongou até 26 de Setembro de 2012, e que consistiu em consultas e intervenção cirúrgica, que tiveram um custo de € 12.065,46. Quantia que o arguido deverá suportar de acordo com as regras da obrigação de indemnização previstas nos art°s 562°, 563° e 564°, n° 1 do Código Civil, acrescida de juros contados desde a data da notificação do respectivo pedido (art° 805°, n° 2, al. b), do Código Civil).
Ao abrigo do disposto nos art°s 109° e 111° do Código Penal, declara-se perdido a favor do Estado o canivete preto de modelo GERBER, apreendido ao arguido (fls. 166/167).

III - DISPOSITIVO
De harmonia com o expendido, o Tribunal Colectivo decide
Condenar o arguido JM..., pela prática de um crime de Abuso de Autoridade por Ofensa por Ofensa à Integridade Física, p. e p. pelo art° 93°, n° 2, al. d), por referência ao n° 1 do mesmo artigo, do Código de Justiça Militar, na pena de 8 (oito) anos e 10 (dez) meses de prisão;
— Condenar o arguido JM..., no equivalente a 2 UC de taxa de justiça e nas demais custas;
Julgar parcialmente procedente o pedido de indemnização civil deduzido por WF...Filipe Silva Peneira e condenar o arguido/demandado JM... a pagar ao aludido demandante a quantia de € 6.000,00 (seis mil euros), acrescida de juros vincendos, calculados à taxa legal, desde a presente data até integral pagamento;
- Julgar totalmente procedente o pedido de indemnização civil formulado pelo Hospital das Forças Armadas, Polo de Lisboa (HFAR/PL) e condenar o arguido/demandado JM... a pagar ao aqui demandante a quantia de € 12.065,46 (doze mil e sessenta e cinco euros e quarenta e seis cêntimos), acrescida de juros vincendos, calculados à taxa legal, desde a data da notificação até integral pagamento;
- Condenar o arguido/demandado JM... e o demandante WF..., nas custas do pedido de indemnização civil na proporção do respectivo decaimento;
- Condenar o arguido/demandado JM... nas custas referentes ao pedido de indemnização civil formulado pelo Hospital das Forças Armadas, Polo de Lisboa (HFAR/PL);
- Declarar perdido a favor do Estado o canivete preto de modelo GERBER, apreendido ao arguido (fls. 166/167). (...)»

1.2 — Desta decisão recorreram quer o M°P°, quer o arguido, dizendo em conclusões da motivação apresentada:

1.2.1- O M°P°:


1.  Por acórdão de 12.02.2014 foi o arguido JP...condenado, pela prática de um crime de Abuso de Autoridade por Ofensa à Integridade Física, p. e p. pelo art. 93.°, n.° 2, al. d), por referência ao n.° 1 do mesmo artigo, do Código de Justiça Militar, na pena de 8 (oito) anos e 10 (dez) meses de prisão.
2. O presente recurso, é interposto no exclusivo interesse do arguido, e é objecto do
mesmo a impugnação da matéria de facto, o
animus com que o arguido agiu e a medida da pena que lhe foi imposta.
3. Analisado o acordão recorrido, nomeadamente os fundamentos da motivação da decisão
de facto que fundamentaram a condenação do arguido constata-se que a prova não foi apreciada de forma racional e globalmente nem foi devidamente conjugada com as regras da lógica e da experiência comum mas sim de forma discricionária, subjectiva e de forma isolada e fragmentada.

4. O Tribunal recorrido justifica a pesada pena imposta ao arguido com o fundamento de
que o mesmo embora reiterando que foi um acto irreflectido, «acabou por admitir que embora não fosse sua intenção ferir o soldado sabia que tal era possível acontecer, representou como possível isso vir a suceder. Questionado, a propósito, pelo Distinto Mandatário do demandante, Hospital Militar, a resposta foi "claro que sim, sim".».

5. Considerou o Tribunal recorrido que o arguido ao pôr a navalha aberta debaixo do
abdómen do ofendido, sabia que este podia cair sobre ela perfurando o abdómen, conformando-se com tal resultado, bem sabendo que punha em perigo a vida do ofendido.

6. A condenação do arguido a dolo eventual ficou a dever-se essencialmente a duas
questões que lhe foram colocadas pelo Distinto Mandatário do demandante Hospital Militar relativamente às quais acaba por admitir como possível a representação do resultado que se veio a verificar.

7. No decurso da audiência de julgamento o arguido esclareceu proficientemente que: - "05:49" «Não avaliei a situação por forma a ver que aquilo poderia decorrer da maneira como decorreu.»
- "05:56" «Não tinha qualquer intenção de ferir o soldado WF....»
- "10:40" «Não, não vejo isto normal, como é óbvio, porque devido à gravidade dos factos percebo que foi um acto perfeitamente irreflectido e que não o deveria ter feito mediante os riscos que acarretava.»
-"10:58" «Só que na altura nunca pensei que aquilo pudesse correr mal.» - "14:17 «Como é evidente eu não tinha intenção nenhuma nem de o ferir e muito menos de o matar, como é óbvio!»
-"14:35" «É sem intenção de o magoar, como é óbvio.»
-"14:39" «Como é óbvio!» - "34:39" «Não. Senão não tinha feito.» - "02:06:33" «Posso só voltar a referir que não tive qualquer intenção de causar nenhum ferimentono soldado WF...  sofro todos os dias o pesar de ter sido eu, num acto irreflectido, quase que causei a morte a uma pessoa.».
8.                 O Distinto Mandatário do demandante Hospital Militar colocou ao arguido as
seguintes perguntas:
"36:10" «O senhor sabia que era possível, teoricamente, acontecer isto, não é?»

"36:15" «Representou como possível, se calhar pouco provável, mas como possível isto vir a suceder?»
9. Tais perguntas são sugestivas porquanto a primeira é feita em termos teóricos e, como
teoricamente o acontecimento era possível, recebeu como resposta um simples «Sim!». (cfr. "36:21")

10. A segunda pergunta é uma extensão da primeira, com expressa referência à menor
probabilidade do acontecimento ocorrer, daí que tenha, mais uma vez, obtido como resposta outro singelo «Sim!». (cfr. "36:14")

11. Tais perguntas são sugestivas porquanto foram formuladas de forma que a resposta
lógica para as mesmas era «Sim!» daí que as mesmas não deveriam ter sido valoradas pelo Colectivo.

12. As razões que levaram o arguido a colocar a navalha por baixo do soldado WF...
prendem-se «com o impacto psicológico que é criada no instruendo.». (Cfr. CD constante da Acta de AJ de 15.01.2014 aos "15:06")

13. Quando se apercebeu que o Soldado WF... se tinha espetado na navalha
agarrou no mesmo, deitou-o no solo, acalmou-o, tirou a navalha, dobrou-lhe o abdómen, fez pressão na ferida e de imediato chamou o socorrista para o encaminhar para a Enfermaria.

14. Resulta claramente da actuação do arguido, após a produção da ferida no soldado
WF..., que o mesmo nunca desejou a produção daquele resultado.

15. O arguido nunca confiou que tal resultado se viesse a verificar uma vez que estava
convencido que o soldado WF... o havia visto com a navalha quando se aproximou do mesmo pelo lado esquerdo e se agachou junto dele.

16. A actuação do arguido apenas se compreende com o convencimento de que o resultado
não se viria a verificar e só com o conhecimento do soldado WF... de que tinha uma navalha por baixo do seu abdómen tal actuação criaria algum impacto psicológico no mesmo.

17. Com a sua conduta o arguido pretendia motivar o soldado WF... a esforçar‑
se por se manter na posição de braços estendidos falhou no entanto ao não tê-lo informado que tinha a navalha debaixo do seu corpo por indevidamente ter acreditado que o mesmo se tinha apercebido da colocação da navalha naquele local.

18. O arguido sabia da perigosidade da navalha, daí a sua utilização para motivação
adicional do instruendo, mas nunca acreditou que o soldado WF... pudesse vir a espetar-se na mesma.

19. O Tribunal recorrido não valorou minimamente as declarações do arguido nem as
conjugou devidamente com a restante prova produzida nomeadamente com as declarações do soldado WF... que deu nota do auxílio que lhe foi prestado pelo arguido e das diligências que este realizou para ser clinicamente assistido.

20. A formação da convicção do Tribunal recorrido não assentou de forma alguma num
processo lógico e racional na apreciação da prova, o que fez com que incorresse,


naturalmente, em erro de julgamento.
21.       Relativamente ao recurso sobre a matéria de facto consideram-se incorrectamente
julgados, nomeadamente, os seguintes factos que foram dados como provados:
- O arguido ao pôr a navalha aberta debaixo do abdómen do ofendido, sabia que este podia cair sobre ela perfurando o abdómen, conformando-se com tal resultado, bem sabendo que punha em perigo a vida do ofendido.
- O arguido agiu deliberada livre e conscientemente, e, no exercício das suas funções de Comandante de Grupo, abeirou-se do ofendido e colocou a sua navalha aberta debaixo do mesmo, bem sabendo que não estava previsto o uso dessa navalha no programa a ministrar aos formandos e que tais atitudes eram contrárias aos deveres do militar e disciplina militar.
22.       Como provas que impõem decisão diversa da recorrida, indicam-se as seguintes
provas:
- As declarações do arguido JM..., gravadas no sistema integrado de gravação digital disponível na aplicação informática em uso neste tribunal, conforme consta da acta de audiência de discussão e julgamento, de 15.01.2014, junta a fls. 372 a 376 dos autos.
- As declarações do assistente/ofendido soldado WF..., gravadas no sistema integrado de gravação digital disponível na aplicação informática em uso neste tribunal, conforme consta da acta de audiência de discussão e julgamento, de 15.01.2014, junta a fls. 372 a 376 dos autos.
23. No que tange às declarações do arguido e do assistente/ofendido, cujo depoimento se encontra gravado no sistema integrado de gravação digital disponível na aplicação informática em uso neste Tribunal, conforme consta da acta de audiência de discussão e julgamento de 15.01.2014, dá-se aqui por reproduzido o que se referiu na motivação de recurso.
24. Tendo em conta que as provas indicadas desde que apreciadas globalmente e aferidas pelas regras da lógica e da experiência comum impõem, a nosso ver, decisão diversa da recorrida, deve haver lugar à modificação da matéria de facto sendo que os factos dados como provados nos parágrafos 8 e 9, supra referidos, devem ser alterados do seguinte modo:
Do parágrafo 8 da matéria de facto dada como provada no ponto II.1.I deverá passar a contar que:
- O arguido ao pôr a navalha aberta debaixo do abdómen do ofendido, sabia que este podia cair sobre ela perfurando o abdómen não tendo no entanto confiado que tal resultado se viesse a verificar uma vez que estava convencido que o soldado WF... o havia visto com a navalha quando se aproximou do mesmo pelo lado esquerdo e se agachou junto dele.
Do parágrafo 9 matéria de facto dada como provada no ponto supra referido deverá somente constar:
- O arguido agiu deliberada, livre e conscientemente, no exercício das suas funções de Comandante de Grupo, sem intenção de ferir o assistente/ofendido soldado WF....
Deverá ser levada à matéria de facto dada como não provada que:
- O arguido abeirou-se do ofendido e colocou a sua navalha aberta debaixo do mesmo, bem sabendo que não estava previsto o uso dessa navalha no programa a ministrar aos

formandos e que tais atitudes eram contrárias aos deveres do militar e disciplina militar.
25. O Acórdão recorrido deve ser substituído por outro que, atendendo ao erro de
julgamento, proceda à modificação da base factual, nos termos indicados, e, consequentemente, deve haver lugar à alteração da qualificação jurídica e o arguido ser condenado, pela prática de um crime de Abuso de Autoridade por Ofensa à Integridade Física, p. e p. pelo art. 93.°, n.°4, com referência aos n.°s 1 e 2, al. d), do Código de Justiça Militar, numa pena de cinco anos de prisão que lhe deverá ser suspensa na sua execução.

26. O acórdão recorrido violou o preceituado nos artigos 127.°, 410.° e 358.°, n.°s 1 e 3 do
C.P.P., arts. 71.°, n.° 2 e 50.°, n.° 1 do C.P. e arts. 22.° e 93.°, n.° 4, com referência aos n.°s 1 e 2, al. d), do Código de Justiça Militar.

27. Termos em que deverá ser dado provimento ao recurso e o acórdão recorrido ser
revogado no sentido proposto. »


1.2.2- O arguido JM...:
«(...)
a) Por douto acórdão de 12 de Fevereiro de 2014, notificado ao arguido, ora
recorrente, em 25 de Fevereiro de 2014, foi JM..., Oficial do Exército, condenado pela prática de um crime de Abuso de Autoridade por Ofensa à Integridade Física, p.p pelo art° 93° n° 2, alínea d), por referência ao n° 1 do mesmo artigo, do Código de Justiça Militar, na pena de 8 (oito) anos e 10 (dez) meses de prisão;

b) Foi, ainda, condenado no pagamento de taxa de justiça,; custas e a pagar ao
demandante WF..., a titulo de indemnização cível, a quantia de 6.000,00 euros (seis mil euros), acrescida de juros desde a data do acórdão até integral pagamento;

c) O ora recorrente foi, outrossim, condenado a pagar ao Hospital das Forças
Armadas a quantia de 12.065,46 euros (doze mil e sessenta e cinco euros e quarenta e seis cêntimos) acrescidos de juros vincendos, à taxa legal até integral pagamento; bem como a pagar as custas dos pedidos de indemnização cível; tendo sido declarado perdido, a favor do Estado o canivete GERBER, apreendido ao arguido.

d) Dissentimos, porém, da pena criminal aplicada, porquanto o arguido não
praticou o crime em que foi condenado já que não se mostra preenchida a qualificativa constante da alínea d) do n° 2 do citado art° 93° do CJM, isto é,
o arguido não provocou perigo para a vida da vítima WF....
e) Com efeito, o douto Tribunal a quo foi induzido em erro pelo Relatório Pericial
elaborado na Delegação de Lisboa do INML /fls. 230 a 234 dos autos), porquanto o juízo da Exma. Perita Médica, plasmado nas conclusões do Relatório (fls. 234) está errado, contendo, aliás, fundamentação contraditória.

f) E foi com base nesse juízo que o douto Tribunal a quo considerou que a lesão
causada pelo ora recorrente resultou
perigo para a vida do WF....

g) Ora, na locução plasmada nas conclusões: "Do evento resultou, em concreto,
perigo para a vida do Examinando, caso atempadamente não tinha sido socorrido, poderia ter outras consequências graves; podendo ainda ser integrada no artigo 144° pela zona afectada, onde se alojam os órgãos vitais (hematopoiéticos)", há uma contradição insanável que afasta liminarmente a aplicação da alínea d) do n° 2 do art° 93° do CJM, norma de igual conteúdo ao art° 144°, alínea d) do Código Penal, pelo que o douto acórdão recorrido deve ser revogado por violação do art° 410° n° 2, alíneas b) e c) do CPP.

h) Como se bordou na motivação e seguindo os ensinamentos de Peritos Médico‑
legais; da Jurisprudência e da Doutrina, quanto à questão do "perigo para a vida", "só existe perigo para a vida apenas quando se verifica, em concreto, e não o simplesmente abstracto ou hipotético", "...um perigo sério, actual, efectivo e não remoto ou meramente presumido, para a vida do lesado" — cfr. Ac. Rel. Lisboa, 9.4.1991, Proc° 1453 — "aqui se compreendendo as situações que correspondem à formulação clínica de um prognóstico reservado" — cfr. Ac. Citado e Ac. Rel. Coimbra, de 11.6.1986, Proc° 12386, citados na Revista de Direito Penal — Ano II, n° 1, 2003 — pág. 75 -.

i) É o que resulta, outrossim, do Estudo publicado na Revista Portuguesa do Dano
Corporal (21), 2010, p.37 — 48, citado na motivação, onde, designadamente, se sublinha "Assim, a simples possibilidade de perigo remoto, ainda que directo, não constitui resultado suficiente para a existência do dano contemplado na alínea d) do art° 144° (norma irmã do art° 93°, n° 2, alínea d) do CJM), nem tão pouco o perigo iminente, mas indirecto o caracteriza.

j) Face ao teor dos Relatórios e Nota de Alta produzidos pelo Cirurgião Principal
do Hospital Militar Principal (Unidade da Estrela), Doutor Pedro Maurício, fls 258 e ss,
maxime, fls. 259 (onde se inscreveu que a cirurgia foi LIMPA) fls. 262, que realizou a cirurgia e acompanhou o paciente (fls.263/4 e 222 — Nota de Alta) não existe qualquer indício de que a vítima tivesse corrido risco de vida, isto é, não há qualquer evento que permita dizer que, em concreto, o evento "provocou perigo para a vida".
k) Aliás, a Exma. Perita Médica no seu juízo conclusivo contraria aquela
agravante ao escrever: "caso atempadamente não tinha sido socorrido,
poderia ter outras consequências graves; podendo ainda ser integrada no art° 144° pela zona afectada..."
l) É do conhecimento generalizado da comunidade médica e de quem procede a exames médico-legais, que a lesão de um "órgão vital" nem sempre implica provocar perigo para a vida, no caso concreto.
m) Importa, por isso, pôr em crise a bondade do Relatório Pericial emitido pela
Delegação de Lisboa do INML, baseado, apenas, na informação prestada pela vítima animando-se , unicamente, na NOTA DA ALTA — cfr. fls. 231 — "DANOS DOCUMENTAIS" - .

n) O Cirurgião Principal Doutor (...), que recebeu a vítima, operou-a e
que a acompanhou até lhe ter dado alta, é testemunha impar para dilucidar a questão do
perigo para a vida.
o)
Destarte, e ao abrigo dos art°s 158°; 340° n° 1 e 430° n° 1 do CPP, roga-se que a
Exma. Perita, Dra. (...), compareça na audiência a fim de prestar esclarecimentos e que seja, outrossim, inquirido o Cirurgião Principal do hoje denominado HOSPITAL DAS


FORÇAS ARMADAS, UNIDADE HOSPITALAR DA ESTRELA, Doutor PEDRO HENRIQUE LIMA MAURÍCIO.
P)                 Ou, se assim não for entendido, que seja realizada nova perícia por órgão
colegial (novos peritos) devendo, para tanto, serem solicitados os elementos clínicos respeitante à intervenção cirúrgica e tratamentos a que foi submetido a vítima, bem como um novo Relatório do Exmo. Cirurgião Doutor P(...), donde conste se o paciente esteve em perigo de vida ou não.
q) Seja como for, e dos elementos carreados para o processo, parece-nos que, in
casu,
não houve perigo para a vida do soldado WF...pelo que o douto acórdão recorrido deve ser substituído por outro onde de se aplique o art° 93° n° 1 do CJM, por haver erro na aplicação da alínea d) do n° 2 do art° 93° do mesmo Código.
r) Considerando que a moldura penal do crime p.p pelo n° 1 do art° 93° do CJM é
de 2 a 8 aos de prisão;

s) Atendendo que o arguido ora recorrente é primário, foi condecorado com a
Medalha de Comportamento Exemplar e recebeu um Louvor pelo seu desempenho no Teatro de Operações no Afeganistão (fls. 69 a 70 — Folha de Matricula) onde comandou um Grupo de Combate;

t)Porque foi "por insistência" do ora recorrente, que à data dos factos tinha 24 anos, que a vítima foi transportada para o Hospital Militar, o que demonstra nobreza de carácter, já que o enfermeiro e outros, a essa diligência se opunham.
u) Atendendo ao estatuído no n° 1 do art° 71° do Código Penal, de acordo com os
art°s 70° e 50° n° 1 do Código Penal, cuidamos justa a aplicação de uma pena de prisão inferior a 3 anos, suspensa por igual período.

v) Destarte, e com o mui douto suprimento de Vossas Excelências, Venerandos
Desembargadores, roga-se a anulação do douto acórdão recorrido por erro na qualificação jurídica do evento que provocou a lesão ao soldado WF..., devendo lavrar-se acórdão nos termos do qual o ora recorrente seja punido pela prática de crime p.p pelo art° 93°, n° 1 do CJM, com pena inferior a 3 anos de prisão a qual deverá ser suspensa por igual período (50° n° 1 e 5 do C. Penal).

w) Caso no douto entendimento de V.Exas, Venerandos Desembargadores, seja
necessário apurar, se no caso concreto, houve perigo para a vida da vítima, roga-se que a Exma. Perita Médica preste esclarecimentos, já que o seu juízo conclusivo é contraditório e precipitou o erro de julgamento, e que também seja ouvido na audiência o Exmo. Cirurgião Principal Doutor (...), que operou e tratou a vítima (art°s 158°, 340°, n° 1 e 430° n° 1, do CPP). »


1.3 - Em resposta ao recurso do arguido disse o M°P°, em síntese, dever dar‑se-lhe provimento apenas no tocante ao pedido de suspensão da execução da pena e, no demais, apenas como na proposta de alteração da decisão nos termos do recurso do M°P°, no interesse do próprio arguido, com a requalificação jurídica e medida da pena ali mencionadas
1.4- Admitidos os recursos na la instância e remetidos a esta Relação, o M°P° emitiu parecer no sentido da:
a) Extemporaneidade do recurso do arguido por motivo da interposição do mesmo apenas a 25 de Março de 2014, com o argumento de que, apesar de este ter estado ausente na leitura da sentença, fora devidamente representado na mesma por defensor e o depósito na secretaria ter ocorrido na data da sobredita leitura (a 12/Fev).
b) Adesão aos fundamentos do recurso interposto pelo M°P° concordando com a sua procedência.
1.5- O arguido respondeu a esta questão prévia da tempestividade, invocando ter sido notificado pessoalmente pelo tribunal apenas a 25 de Fevereiro e haver interposto o recurso no prazo que lhe foi indicado para o efeito, de 30 dias, a 25 de Março.
1.6- Após exame preliminar e corridos os vistos legais, foram remetidos os autos à audiência, cumprindo agora decidir, Com intervenção também de Sr Juiz militar, dado que o crime em causa é, originariamente, dessa natureza. Por decisão liminar do relator a questão prévia da tempestividade do recurso do arguido seria decidida em colectivo de juízes.


II- CONHECENDO
2.1 - O âmbito dos recursos encontra-se delimitado em função das questões sumariadas pelos recorrentes nas conclusões extraídas da respectiva motivação, sem prejuízo do dever de conhecimento oficioso de certos vícios ou nulidades, designadamente dos vícios indicados no art. 410°, n.°2 do CPP[1].
Tais conclusões visam permitir ou habilitar o tribunal ad quem a conhecer as razões de discordância do recorrente em relação à decisão recorrida[2].
Assim, traçado o quadro legal temos por certo que as questões levantadas no recurso são cognoscíveis no âmbito dos poderes desta Relação.
2.2-Está em discussão para apreciação , em síntese, o seguinte conjunto de questões:
a) A questão prévia da tempestividade do recurso do arguido
b) O erro na apreciação da prova da intencionalidade do arguido e a sua conformação ou não com o resultado.
c) A prova da criação de perigo para a vida.
d) A qualificação jurídica dos factos.
e) A medida da pena.
P A suspensão da execução da pena.

2.3- A POSIÇÃO DESTE TRIBUNAL
2.3.1- A questão prévia da tempestividade do recurso do arguido.
O M°P° invoca, para o efeito, ter o recurso do arguido dado entrada em juízo apenas a 25 de Março de 2014 (vide fls 452/472), fora do prazo legal de 30 dias, por isso devendo ser rejeitado liminarmente, em seu entender, nos termos da ala b), do n°1 do art° 420° do CPP.
Salienta, ainda, que:
a) O depósito do acórdão ocorreu no dia da leitura da decisão (12/2/2014).
b) O arguido não estava presente mas representado pelo seu defensor, tendo ficado exarado em acta de audiência ter sido justificada a sua falta (sem que, contudo, se revele dos autos ter havido qualquer tipo de pedido de justificação ou de despacho a sufragá-la)
c) O arguido esteve presente na sessão anterior e foi notificado do dia designado para a leitura.
d) O arguido foi notificado pessoalmente do acórdão no dia 25 de Fevereiro de 2014, a fls 412 na sequência de ofício expedido, para o efeito, pela secretaria do tribunal, nele se indicando que tinha o prazo de 30 dias para recorrer do acórdão.
e) O recurso só poderia dar entrada até 14 de Março, sem multa, e até 19 de Março, no caso contrário, nos termos do art° 145° do CPC.
Vejamos então se, ao caso, se pode aplicar esta argumentação em que assenta a questão da invocada extemporaneidade.
Desde logo diremos, por facilidade expositiva, que os eventos e datas

processuais anteriores se encontram correctos, cfr decorre de uma leitura atenta dos autos.
É, sobretudo, verdade também, que o arguido não compareceu na audiência designada para o dia de leitura do acórdão, embora tenha estado representado por defensor.
Mas é também verdade que foi notificado por acto originário do tribunal que tinha um prazo de 30 dias para recorrer da decisão, prazo esse que, na presuposição de que seria contável a partir daquela data, cumpriu devidamente.
O problema por-se-ia com acuidade se, ao invés, considerássemos que o prazo se contava a partir da data do depósito do acórdão Nesse caso, estaria irremediavelmente fora de prazo.
Mas, bastaria a presença do seu defensor em audiência de leitura para se considerar notificado, já que o depósito ocorreu na mesma data e logo de seguida àquela? Ou teria de o ser também pessoalmente?
A considerar-se ter havido um erro da secretaria, através da comissão de uma notificação não ordenada pelo juiz e que não fosse necessária e devida, o certo é que, mutatis mutandis (ex vi do art° 4° do CPP), em face das circunstâncias do caso, o arguido nunca poderia ser prejudicado por esse facto, nos termos previstos, aliás, no actual art° 157° n°6 do CPC (ex art° 161, n°6 do CPC revogado):
"Os erros e omissões dos actos praticados pela secretaria judicial não podem, em qualquer caso, prejudicar as partes"
O arguido recebeu uma notificação onde constava, aliás, ter sido determinada por ordem do Juiz.
Ficou, ao menos por aí, por via da aparente legitimidade originária do expediente, com uma expectativa de poder exercer, em boa fé, um direito ao recurso naquele prazo e a uma tutela jurisdicional efectiva.
Dispõe o n.° 10 do art.° 113° do C. P. P. que as sentenças são igualmente notificadas quer ao arguido quer ao seu advogado e que, "nesse caso, o prazo para

a prática do acto processual subsequente conta-se a partir da data da notificação efectuada em último lugar".
O disposto neste número não teria qualquer aplicação se o arguido tivesse estado presente à leitura da sentença, onde se encontrava igualmente o seu então defensor oficioso.
E, não tendo qualquer aplicação, certamente a Secretaria não teria enviado aquela carta/oficio de notificação.
Cfr em sentido idêntico, AC TRG de 11.6.2003
Em nosso entender, a expressão do art° 411° n°1, ala b) " O prazo para interposição de recurso é de 30 dias e conta-se ...b) Tratando-se de sentença, do respectivo depósito na secretaria", deve ser interpretada,- salvo situações diferentes expressamente previstas, como seria o caso do julgamento na ausência do arguido e da ala c) do art° 411° n°1- "...leitura de decisão oral reproduzida em acta...") como referindo-se aos casos em que a sentença escrita é lida na presença dos intervenientes .
Além disso, faltando o arguido à leitura, apesar de notificado, não obstante o disposto quanto à aparente "suficiência" da notificação apenas ao defensor presente nesse acto, nos termos do n° 3 do art° 372° do CPP, da conjugação entre as normas dos ares 332° n°1 e 5, do art° 333° n°2, 1' parte, do CPP (com as devidas adaptações ao caso), devemos concluir que a presença obrigatória do arguido na leitura, embora não dispensada expressamente, foi-o implicitamente (caso contrário, a leitura não teria sido feita) mas equivale a uma leitura na ausência do arguido que imporia sempre uma notificação não somente ao defensor mas também ao arguido, nos termos da norma geral do art° 113° n°10 e da norma especial do art° 333° n°5 do CPP, seguindo-se aqui uma tese não minimalista já sufragada pelo Tribunal Constitucional (vide a este propósito, embora defendendo, parece, o contrário, as anotações n°s 2 a 14 ao art° 372°, in Comentário do CPP, de Albuquerque, Paulo Pinto, 2ª eda, paga 938)

Deste modo, admitindo porém algum risco hermenêutico e até não majoritário, podemos concluir com uma elevado grau de razoabilidade interpretativa que seria muito controversa, senão mesmo inconstitucional, uma opção defensora de que o arguido devesse ter sido considerado notificado apenas através do defensor e que, sobretudo, em face da notificação pessoal de que foi beneficiário por acto da secretaria, tivesse que ver defraudada a expectativa de prazo que lhe foi criada.
Por isso, discordando, salvo o devido respeito, da perspectiva do M°P°, entende-se que o recurso interposto pelo arguido se mostra tempestivo, ao menos pela razão da expectativa de acesso jurisdicional recursivo que com a menção daquele prazo lhe foi criada com a notificação de 25 de Fevereiro.

2.3.2- Do alegado erro na apreciação da prova da intencionalidade do arguido e da questão da sua conformação ou não com o resultado.
Da prova gravada percebe-se que o arguido afirma que, embora teoricamente fosse possível acontecer uma lesão com a navalha (ainda que não com a gravidade que veio a revelar-se entretanto) nunca teve intenção de magoar o soldado ofendido e que agiu irreflectidamente, sendo porém certo que julgava que ele o tinha visto com o objecto e a colocar-se junto a ele por forma a fazer o exercício e a sentir-se pressionado psicologicamente a " descansar", maxime, em cima dela durante o exercício de flexões.
O ofendido diz que não se apercebeu que o arguido tinha consigo a navalha e a colocara por baixo de si, caso em que, se assim fosse, ter-se-ia desviado ou levantado e apenas se baixou à ordem de comando de outro militar para início do exercício.
Das circunstâncias do caso e, nomeadamente, da acção de apoio imediato do arguido ao ofendido, tudo aponta para que aquele tenha desejado apenas, na

pressuposição, embora errada, de que o ofendido o vira com a navalha, a criar maior resistência de corpo e psicológica. Ou, por outras palavras, seria como se lhe dissesse: ou fazes bem o exercício e aguentas ou arriscas-te a ser picado, ferido, magoado.
Esta é a única conclusão possível a retirar das circunstâncias concretas do caso e das regras da experiência e que a verdadeira intencionalidade do arguido seria a de uma possível lesão superficial, mínima, menos grave, ainda que remota, não obstante a sua negação.
O arguido devia ter-se apercebido e ter tido o cuidado de verificar se o ofendido o tinha realmente visto com a navalha debaixo do abdómen deste, e assegurar-se que o mesmo, a executar então o exercício, não se picava com gravidade ou ainda que superficialmente mas, não obstante, admitiu como possível essa eventualidade. Aqui, a perguntas feitas pelo mandatário do demandante Hospital Militar, não se entende nem aceita que ele não tenha percebido suficientemente o alcance daquelas ou que tenha admitido a possibilidade de uma ofensa por mera sugestividade eventualmente implicada naquelas questões.
O arguido revelou nas respostas dadas que sabia "teoricamente" dessa possibilidade de ofensa mas não que admitia que seriam propriamente as verificadas e com eventual perigo de vida. O que se percebe, antes, dessa postura declarativa é apenas que essa admissibilidade seria remota, muito pouco provável, pois até confiava que a navalha se fechasse sob pressão pois não estaria de todo com a lâmina aberta.
O problema é que, ainda assim, não deixa de se alcançar das circunstâncias do caso concreto que o ofendido, mesmo que soubesse da existência da faca e ainda assim fizesse o exercício, tal como o arguido diz que pressupunha, pudesse não deixar de se magoar (imagine-se que fazia mal o exercício, avaliava mal a distância de tronco ao solo ou pura e simplesmente a

força o iria abandonando)
Ou seja, as circunstâncias do caso, tendo em conta todos os dados analisados, apontam certeiramente para um dolo eventual de ofensa corporal, mas apenas simples, em abuso de funções de autoridade ( é pacífico que aquele exercício de GAM não supunha o uso da arma branca debaixo de abdómen), tendo o arguido representado essa possibilidade de ofensa simples, ainda que remotamente, mas conformando-se com o resultado ( da ofensa simples)
Posto isto, esta conclusão ao nível da intencionalidade que consideramos apenas demonstrada e em conjugação com o que adiante se dirá sobre o perigo para a vida terá sérias implicações ao nível da qualificação jurídica e da medida da pena.

2.3.3- A prova da criação de perigo para a vida.
                   Invoca a defesa do arguido que este:
" (...) não praticou o crime em que foi condenado já que não se mostra preenchida a qualificativa constante da alínea d) do n° 2 do citado art° 93° do CJM, isto é, o arguido não provocou perigo para a vida da vítima WF.... Para tanto, o Tribunal a alto terá sido induzido em erro pelo Relatório Pericial elaborado na Delegação de Lisboa do INML /fls. 230 a 234 dos autos), porquanto o juízo da Exma. Perita Médica, plasmado nas conclusões do Relatório (fls. 234) está errado, contendo, aliás, fundamentação contraditória. "
Ainda, mais considerou que foi com base nesse juízo que o Tribunal a guta entendeu que da lesão causada pelo ora recorrente resultou perigo para a vida, em face da locução plasmada nas conclusões desse relatório:
"Do evento resultou, em concreto, perigo para a vida do Examinando, caso atempadamente não tinha sido socorrido, poderia ter outras consequências graves; podendo ainda ser integrada no artigo 144° pela zona afectada, onde se alojam os órgãos vitais (hematopoiéticos)"
Defende pois o arguido que:
"(...) se revela aqui uma contradição insanável que afastará liminarmente a aplicação da alínea d) do n° 2 do art° 93° do CJM, norma de igual conteúdo ao art° 144°, alínea d) do Código Penal, pelo que o douto acórdão recorrido deve ser revogado por violação do art° 410° n° 2, alíneas b) e c) do CPP."
Vejamos então:
Face ao teor dos Relatórios e Nota de Alta produzidos pelo Cirurgião Principal do Hospital Militar Principal (Unidade da Estrela), Doutor (...), fls 258 e ss, maxime, fls. 259 (onde se inscreveu que a cirurgia foi LIMPA) fls. 262, que realizou a cirurgia e acompanhou o paciente (fls.263/4 e 222 — Nota de Alta) não existe qualquer afirmação ou referência da qual se possa retirar que a vítima correu risco de vida nem que o evento "provocou perigo para a vida".
Apenas daquele relatório do IML se alcança aquela conclusão, embora sem fundamentação expressiva, mas condicionando o perigo à eventualidade de não ter sido assistido.
Da decisão recorrida e da prova gravada reouvida não existem dúvidas nenhumas em como o arguido teve um papel fundamental para o socorro da vítima. Providenciou pelo estancamento da perfuração até ser levada de ambulância e providenciou cuidados para que fosse levado ao hospital ao aperceber-se, das visitas que foi fazendo ao soldado WF...já depois de regressado e em descanso na caserna (como resulta da gravação das suas declarações e que ninguém contestou), que a avaliação clínica e tratamento de sutura da enfermaria não correspondia e ficava muito aquém do que era exigível no caso concreto.
Por outro lado, não se revela daquela documentação que tenha havido um perigo concreto, mas apenas que, caso não fosse assistido como foi, esse perigo poderia ter existido.
Consequentemente, o arguido agiu adequadamente e procurou actuar de forma a que os danos acusados fossem mínimos ou rapidamente reparados.
A questão da criação do perigo para a vida era vital para a qualificação do crime e o relatório médico-legal apenas assenta aquela conclusão num factor condicionante que, aliás, acabou por não se verificar: o não socorro e apoio à vítima, sendo certo que o comportamento do arguido foi decisivo para que o ofendido fosse devidamente assistido, apesar de não lhe caber duvidar tecnicamente da avaliação clínica (que veio a revelar-se errada) feita pelo enfermeiro de serviço, avaliação essa que passou apenas pela suturação da ferida e regresso do ofendido à caserna para descanso.
A sua conduta acabou por ser a mais importante para afastamento de perigo de vida e é revelador de, nessa parte, tendo em conta as circunstâncias do caso, afastar da parte do arguido a possibilidade de haver admitido como possível que esse perigo pudesse verificar-se .
O seu dolo, na previsão e intencionalidade da consequência "perigo de vida", seria pois muito difícil de consolidar e demonstrar.
Ademais, o tribunal não explica a adesão incondicional e mimética ao relatório pericial do IML Em todo o caso, como adiante se verá, o assinalado perigo de vida, mesmo que existisse incontroverso de facto, não lhe seria nem objectiva nem subjectivamente imputável mas tão somente, quando muito, aos serviços clínicos da unidade militar onde o ofendido foi assistido.
De todo o modo, à semelhança de idêntica disposição prevista no art° 144 alínea d) do CP, convém referir que se contemplam aqui todas aquelas situações em que a lesão da integridade física ( e que em concreto poderá não se revelar particularmente grave) gera um perigo para a vida, mas pode colocar-se o problema de saber se o legislador exige que esse perigo seja concreto ou se basta a ocorrência de um perigo abstracto, considerando, nomeadamente, suficiente que, segundo a apreciação das circunstâncias do caso, se torne possível deduzir um perigo para a vida (mesmo que em concreto ele não se verifique) ou se é necessária a sua verificação in concreto para desencadear a punição agravada
que o tipo legal envolve.
Ora, tendo em conta a finalidade de protecção que o tipo legal pretende desempenhar alinhamos pela posição doutrinária que vai no sentido de exigir que o perigo seja concreto e não uma mera possibilidade de desenlace fatal ou de exigir que perdure apenas por um curto período de tempo- (cfr, por todos, Faria, Paula Ribeiro, in Comentário Conimbricense ao CP, Tomo I., paga 231 § 21.
Podemos, assim, concluir que a leitura daquela afirmação no relatório pericial (aliás com semântica e construção verbal parcialmente mal formulada e até algo confusa) não pode conduzir à afirmação e convicção , sem mais, de prova de perigo concreto mas, antes, de que esse perigo existiria apenas se não houvesse assistência " atempadamente" ao ofendido no hospital militar.
Por último, ao arguido nunca por nunca poderia ser imputada uma ofensa corporal com um perigo de vida que não foi ele que criou, mesmo que se admitisse teoricamente ter (o perigo) existido (e, como se viu, não se admite) mas sim a imprevidente actuação dos serviços clínicos de enfermaria militar.
O arguido fez tudo para reparar o dano da ofensa, sendo na altura apenas perceptível ter havido ferida superficial ( vulgo "limpa").
Visitou-o na caserna várias vezes depois de regressar da enfermaria (desde cerca das 9 30 até à hora do almoço) e, logo que se apercebeu que algo não
estava bem ( o ofendido queixou-se a dada altura de dormência...) solicitou a sua imediata transferência para o hospital militar. Caso assim não tivesse
acontecido, era muito provável que ocorresse posteriormente algo lesivo consequencialmente mais grave.
Concluindo, não obstante o relatório pericial afirmar o dito perigo concreto, não se considera suficientemente demonstrado que, em concreto, esse perigo tenha existido, devendo ser eliminada a expressão " ... que lhe criou perigo para a vida..." constante do facto n°4 provado ( da acusação) a fls 384 dos autos e fls 3 do acórdão recorrido.
Em consequência, o pedido de esclarecimento em nova audiência, por parte dos peritos médicos, tornava-se completamente desnecessário.

2.3.4- A qualificação jurídica dos factos
Tendo em atenção o que se analisou e concluiu nos pontos anteriores, é agora altura de considerar a sua implicação na subsunção jurídica.
Afastada a prova, por inconcludência, do perigo concreto para a vida e assinalado apenas o dolo eventual da ofensividade simples, temos então que integrar a factualidade no ponto 1 do art° 93° do CJM e que prevê a punição por abuso de autoridade por ofensa à integridade física:
"1 - O militar que ofender o corpo ou a saúde de algum subordinado no exercício das suas funções e por causa delas é punido com pena de prisão de 2 a 8 anos."
Será apenas a partir desta tipificação legal que a conduta do arguido terá de ser subsumida.
Consequentemente, a base moldural punitiva nunca seria a de 8 anos de prisão no seu mínimo, mas apenas a de dois anos de prisão.
Nestes termos, embora por razões não totalmente coincidentes, os recursos procedem em parte.

2.3.5- A medida da pena
Na fixação dos critérios de punibilidade não vemos, no essencial, que estejam beliscados os parâmetros enunciados na sentença recorrida e que aqui se
dão por reproduzidos. Porém, devem ser corrigidos em função da nova moldura penal alcançada, tendo em conta o patamar mínimo de 2 anos de prisão e as restantes circunstâncias do caso ao nível do grau de culpa, de ilicitude e do "ambiente de exigibilidade de fortaleza psicológica" que uma tropa de elite como o é a dos comandos militares pressupõe dos agentes nele envolvidos, sejam instrutores, sejam instruendos.
Assim, considera-se que a pena deve ser fixada muito perto daquele mínimo, tendo em atenção o comportamento do arguido tido para com o ofendido na ajuda que prestou e desenvolveu. O arguido tem excelente comportamento militar, com louvores e revelou arrependimento relevante.
Na verdade, o arguido ainda é Oficial do Exército, actualmente TEN INF, pertence ao Quadro Permanente desde 1 de Outubro de 2010 e presta serviço no Centro de Tropas Comandos, encontrando-se em diligência no Centro de Tropas de Operações Especiais de Lamego a frequentar o Curso de Operações Especiais QP, desde 06JAN14 a 27JUN14.
Regista dois louvores, um deles decorrente da atribuição de prémio de aptidão física e outro decorrente da prestação de serviço no Teatro de Operações do Afeganistão. Tem duas referências elogiosas, uma decorrente da integração na Classe de saltos de mesa alemã e outra decorrente da obtenção de 1° lugar em Campeonato de Pentatlo Militar.
Militam no caso e, sobretudo, exigências de censura do acto, mas mitigadas pelo arrependimento sincero do arguido e as de prevenção geral. Mitigadamente, as de prevenção especial ainda são relevantes, já que o arguido ainda é militar.
Do seu certificado de registo criminal do arguido nada consta .
O ofendido WF... ficou sem lesões ou sequelas relacionáveis com o evento, para além das cicatrizes decorrentes da operação, encontrando-se curado, sem aleijão ou deformidade ou incapacidade para o serviço.
Os pressupostos de indemnização civil mantêm-se intocáveis e correctamente formulados na ponderação "a quo".
Nestes termos, mostra-se justa e adequada uma pena de prisão situada em concreto em dois anos e 6 meses.

2.3.6- A suspensão da execução da pena
Tendo em conta a primariedade criminal do arguido e o seu arrependimento bem como os serviços e louvores como militar, denotando um comportamento que só não é de todo indiscutivelmente exemplar apenas pela circunstância do caso dos autos, considera-se completamente desnecessária e, por ora, injustificada a efectividade da prisão.
O instituto da suspensão da sua execução nos termos do art° 50° do CP afigura-se plenamente aplicável, por igual período, tanto bastando para configurar uma elevada segurança de futuro comportamento sem prática de quaisquer ilícitos e assegurar as finalidades da punição.

III- DECISÃO
Pelo exposto, julgam-se os recursos apenas parcialmente procedentes, tendo em conta a alteração parcial da matéria de facto e, em sede de direito, o arguido vai apenas condenado como autor material de um crime consumado previsto no n° 1 do art° 93 do CJM, em 2 (dois) anos 6 (seis) meses de prisão, que ficarão suspensos na sua execução por igual período.
Em tudo o mais, mantêm-se a decisão recorrida.


Lisboa, 15 de Julho de 2014
Os Juízes Desembargadores e Juiz Militar
(texto elaborado em suporte informático , revisto e rubricado pelo relator — (ad° 94° do CPP)

Nuno Gomes (presidente)
Agostinho Torres - relator
Francisco Junceiro - Contra Almirante, 1.º adjunto

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[1] vide Ac. STJ para fixação de jurisprudência de 19.10.1995 publicado no DR, 1-A Serie de 28.12.95
[2] vide ,entre outros, o Ac STJ de 19.06.96, BMJ 458, pág° 98 e o Ac STJ de 13.03.91, proc° 416794, V sec., tb cita em anot. ao art° 412° do CPP de Maia Gonçalves 12ª ed; e Germano Marques da Silva, Curso Proc° Penal ,111, 2° ed., pág° 335; e ainda jurisprudência uniforme do STJ (cfr. Acs. do STJ de 16-11-95, in BMJ 451/279 e de 31-01-96, in BMJ 453/338) e Ac. STJ de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, p. 196 e jurisprudência ali citada), bem como Sirvas Santos / Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 5° ed., p. 74 c decisões ali referenciadas.