Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
4867/2003-8
Relator: SALAZAR CASANOVA
Descritores: IMPUGNAÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/02/2003
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: REVOGADA A DECISÃO.
Sumário: I- O réu defende-se por impugnação quando contradiz os factos articulados na petição: nessa contradição cabe a negação pura e simples, mas cabe também a negação motivada, indirecta, qualificada ou per relationem que se dá sempre que a versão da realidade apresentada pelo réu, não afectando o círculo dos factos constitutivos do direito do autor, não envolve a alegação de factos impeditivos, modificativos ou extintivos desse direito, antes tem por objectivo obstar a que se produza o efeito jurídico pretendido pelo A. com os factos por si alegados.

     II- Instaurada acção de impugnação pauliana no dia 9-3-1999 ela visa proporcionar ao credor a penhora de um bem que, não fora a impugnação, poderia ser efectivada;  por isso, é admissível a impugnação pauliana não obstante o acto impugnado ter ocorrido ainda na vigência da redacção anterior do artigo 1696º do Código Civil pois o que está em causa não é a validade do acto em si (a compra e venda) mas o reconhecimento da sua ineficácia enquanto acto obstativo da penhora.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:

     1. O Banco (X) propôs acção de impugnação pauliana contra Equiporave-Sociedade de Equipamentos para Pecuária Ldª, (A)e (M) alegando que o imóvel vendido no dia 6-11-1995 pelos RR à Equiporave lhe fez perder a única garantia patrimonial de que dispunha sobre o património dos RR para ressarcimento do seu crédito de 14.126.203$50 respeitante a aval do Réu (A )aposto em livrança vencida em 8-5-1995 havnedo má fé de todos os RR que agiram com perfeito conhecimento e envolvimento no negócio com o objectivo de frustrar a cobrança do crédito do Autor e bem sabendo que tal constituiria consequência inevitável da alienação feita.
     A acção foi julgada procedente no despacho saneador.
     Estão em causa três recursos:
     - Recurso de agravo interposto pelo A da decisão de fls 473/474 em que o tribunal considerou inadmissível a réplica por não se estar face a defesa por excepção.
     - Recurso de apelação da decisão de fls 527/531 que julgou procedente a impugnação pauliana logo no saneador.
     - Recurso de agravo da decisão de fls 614 que deferiu o requerimento do A. de fls 553 em que se requeria, face à fixação de efeito suspensivo ao recurso de apelação, que a recorrente Equiporave prestasse caução.
     2. Recurso de agravo da decisão de fls 473/474
     Considera o recorrente que a defesa da Ré Equiporave constitui uma defesa indirecta porque, não negando os factos de onde o A. pretende ter derivado o seu direito, lhe opõe contrafactos que lhe teriam excluído ou paralizado desde logo a potencialidade jurídica ou posteriormente lhe teriam alterado ou reprimido os efeitos que chegaram a produzir, factos esses que, portanto, impedem, modificam ou extinguem o efeito jurídico dos factos articulados pelo A.
     Apreciando:
      O A. alegou factos visando provar que, não obstante a onerosidade do acto, o Réu e a Equiporave agiram de má fé por terem consciência do prejuízo que a compra e venda causava ao credor.
     A Equiporave negou os factos e por sua vez alegou outros visando provar que a compra e venda tinha toda a justificação, considerados os interesses da Equiporave, deles se devendo concluir o inverso do que o A pretende, ou seja, que não houve má fé da Equiporave por falta de consciência do prejuízo que a compra e venda pudesse causar ao A.
     Introduziu, pois, a Ré factos novos (negação indirecta, qualificada  ou  per positionem) que, em seu entender, obstam à produção do efeito jurídico pretendido: o reconhecimento da má fé da Equiporave.
     Nesta zona de difícil análise que se dá quando estamos face a defesa indirecta, que está abrangida pela letra do artigo 487º/2 do C.P.C. porque a contradição dos factos não é apenas a sua negação pura e simples mas também a sua negação indirecta ou motivada, salta-se para o domínio da excepção sempre que “ a versão da realidade apresentada pelo réu, não afectando o círculo dos factos constitutivos do direito do autor, envolve antes a alegação de factos impeditivos, modificativos ou extintivos desse direito” (Manual de Processo Civil, Antunes varela, 2ª edição, 1985, pág 289).
     Ora, no caso vertente, o objectivo visado pela Ré foi o de, por via da alegação desses novos factos, demonstrar que ela não tinha consciência do prejuízo que poderia a compra e venda causar ao Autor., ou seja, a considerar-se toda a factualidade alegada, não se produz afinal o efeito jurídico pretendido a que se refere o artigo 612º do Código Civil.
     Estamos, portanto, ainda no domínio da impugnação e não no da defesa por excepção.
     Improcede o recurso.
     Custas pelo Autor.
     3. Recurso de apelação da decisão de fls 527/531
     3.1. A decisão recorrida considerou que estavam verificados todos os requisitos da impugnação pauliana de acto oneroso.
     Quanto ao requisito da má fé argumentou deste modo:  “em contestação negou a ré sociedade o conhecimento da dívida contraída pelo réu (A). Tal negação não é contudo válida uma vez que é contrariada pelo seguinte circunstancialismo: o réu devedor foi gerente da ré adquirente, tendo renunciado à gerência em 6 de Novembro de 1995, data da celebração da escritura pública de transmissão do prédio a favor da ré. Uma vez que a ré era representada até então pelo devedor, (A), impõe-se a afirmação de que a ré tinha conhecimento da dívida contraída por este.
     E, ao conhecê-la, tinha consciência de que o acto impugnado constituiu uma diminuição da garantia patrimonial do crédito, na medida  em que se traduziu na subtração de um bem penhorável ao património do devedor, em sede de pagamento coercivo”
     A recorrente contrapõe a esta argumentação a seguinte:
     - Que a argumentação da decisão recorrida valeria se o Réu (A) fosse o único gerente da Equiporave; mas não era isso o que se passava pois à data da transacção a sociedade era constituída por sete sócios, todos eles também gerentes, sendo necessário para a obrigar a assinatura de três gerentes: ver certidão de fls 65/69 dos autos
     - Que não se pode aceitar que o conhecimento da situação lesiva do credor seja um mero conhecimento funcional, ou seja, assim sendo haveria que aceitar que não só a Equiporave era conhecedora da situação em causa como também cada um dos restantes gerentes da sociedade o que, admita-se, seria um total absurdo
     - Que não é admissível impugnação pauliana relativamente a um contrato de compra e venda de um bem comum do casal pelo credor que apenas dispõe de um título executivo contra um dos cônjuges, não obstante se ter provado que o cônjuge meeiro agiu com a consciênmcia de prejudicar o credor; ora, no caso, a livrança foi avalizada apenas pelo Réu (A) e não pela sua mulher.
      Apreciando:    
     3.2. Uma das questões essenciais à sorte do litígio é a de saber se a Equiporave agiu de má fé (artigo 612º do Código Civil).
     Os autos evidenciam um conjunto de factos alegados e já provados (por documentos ou por confissão) que podem permitir um juízo valorativo positivo; outros factos estão alegados, designadamente pela Ré, que podem permitir um juízo valorativo negativo.
     A decisão recorrida considerou irrelevante a impugnação da Ré de que não tinha conhecimento da dívida contraída pelo réu (A)visto que, sendo ele gerente, se impõe a conclusão de que a sociedade tinha conhecimento da dívida por ele contraída.
     E daí, partindo desse conhecimento, concluiu que ela tinha consciência de que o acto impugnado constituia uma diminuição da garantia patrimonial do crédito.
     Afigra-se-nos, porém, que o facto de um gerente de uma sociedade conhecer determinada situação, que lhe diz respeito pessoalmente (a existência de uma dívida sua para com terceiro) não significa ipso facto que a sociedade tenha conhecimento dessa dívida.
     Existe uma esfera de acção própria da sociedade que não é confundível com a esfera pessoal dos respectivos gerentes.
     Isso não significa, claro está, que determinadas situações pessoais não cheguem ao conhecimento da sociedade inclusive  por meio de um dos seus sócios-gerentes que, para obter vantagens, precisará em princípio de dar explicações.
     A prova desse conhecimento pode resultar de uma forma directa ( acta de deliberação social) ou de uma forma indirecta (actos pelos quais se evidencia à luz das regras da boa lógica e experiência um tal conhecimento).
     Repare-se que muitas vezes se dão situações em que a própria sociedade é vítima de actuações lesivas dos seus próprios gerentes. Pense-se, para não ir mais longe, na proibição de concorrência (artigo 254º do Código das Sociedades Comerciais); por aqui se vê que o conhecimento que um gerente possa ter de uma determinada situação pessoal não implica  o entendimento de que tal conhecimento seja o conhecimento social.
     Também isto não quer dizer que, para se concluir no sentido de que a sociedade tem conhecimento de uma determinada situação  se imponha a demonstração de que esse conhecimento é de todos os sócios; se uma sociedade pratica um acto válido por intermédio de um seu gerente no âmbito dos respectivos poderes, poderá bastar a consciência do alcance desse acto por parte desse ou outros gerentes intervenientes pois, se assim não fosse, a personalidade colectiva seria como que ficcionada protegendo actuações lesivas. Seja como for esta é uma questão em aberto.
     Assim como será uma questão a tratar a de saber se, admitindo-se a prova de que uma determinada transacção teve por escopo causar prejuízo ao credor do interveniente, ainda assim se impõe a prova de que o terceiro conhecia a identidade do credor lesado ou se basta a mera consciência de que tal acto é lesivo do credor do interveniente seja qual for a identidade deste.
     3.3. Um outro ponto suscitado pela recorrente foi o de que a impugnação pauliana não é admissível tratando-se de um bem comum do casal.
     De facto pretendendo-se com a impugnação pauliana abrir-se a possibilidade da penhora de um bem que integrava o  património comum do casal é bom de ver que se a penhora não for possível a pauliana não pode proceder: ver Ac. do S.T.J. de 29-9-1993 (Zeferino Faria) C.J.,3, pág 35.
     No entanto a partir do momento em que foi revogada (ver artigo 4º do Decreto-Lei nº 392-A/95, de 12 de Dezembro) a moratória constante do artigo 1696º/1 do Código Civil segundo a qual o cumprimento de dívida da exclusiva responsabilidade de um dos conjuges, no que respeita aos bens comuns, só é exigível depois de dissolvido, declarado nulo ou anulado o casamento ou depois de decretada a separação judicial de pessoas e bens ou a simples separação judicial de bens, o credor passou a poder impugnar o acto praticado pelos dois cônjuges que tenha por objecto bem comum do casal: ver Ac. do S.T.J. de 10-1-2002 (Sousa Inês), revista nº 3865/01-7ª.
     A nova redacção introduzida pelo artigo 1696º do Código Civil passou a ser aplicável às causas pendentes à data de entrada em vigor do DL 329-A/95, de 12 de Dezembro o que aconteceu no dia 1-1-1997 (artigo 16º do Decreto-Lei nº 180/96, de 25 de Setembro).
     Instaurada a presente acção no dia 9-3-1999 ela visa proporcionar ao credor a penhora de um bem que, não fora a impugnação pauliana, poderia ser efectivada;  por isso, é admissível a impugnação pauliana não obstante o acto impugnado ter ocorrido ainda na vigência da redacção anterior do artigo 1696º do Código Civil pois o que está em causa não é a validade do acto em si (a compra e venda) mas o reconhecimento da sua ineficácia enquanto acto obstativo da penhora. Veja-se o Ac. do S.T.J. de 21-1-2003 (Afonso Correia), revista nº 4258/2002-6ª secção quando salienta o seguinte:
     I- Com a redacção dada pelo artigo 4º do Decreto-lei nº 329-A/95, de 12 de dezembro, ao artigo 1696º do Código Civil, e pelo artigo 1º do 825º do C.P.C., o credor pode fazer penhorar imediatamente bens comuns, ainda que só subsidiariamente responsáveis pelo pagamento da dívida
     II-Se tais bens forem transmitidos a terceiro, para que seja possível penhorá-los é necessário, primeiramente, impugnar essa transmissão (artigo 818º do Código Civil), abrangendo a impugnação pauliana todos os bens concretos e susceptíveis de penhora, ainda que integrados na comunhão conjugal, e não apenas o direito à meação do obrigado, como antes acontecia.   
     3.4. Vejamos então a matéria de facto provada e a controvertida:     
     A) Provada por acordo, confissão ou documentos:        
     1- O Réu (A)avalizou livrança vencida em 8-5-1995 de que o Banco (X) é portador
     2- O Réu (A) foi interpelado para pagar por carta c/av. de recepção de 3-7-1995
     3- No dia 10-10-1995 foi instaurada execução contra o Réu (A) e outros para pagamento da livrança (fls 130) nela se gorando todas as tentativas de penhora não se conhecendo aos executados bens susceptíveis de serem penhorados.
     4- A sociedade Cosdal-Comércio de Materiais de Construção e Obras Ldª foi declarada falida por decisão de 11-7-1996 transitada em 23-9-1996 (fls 21)
     5- No dia 6-11-1995 os RR (A) e mulher venderam à ora Ré Equiporave-Sociedade de Equipamentos para Pecuária Ldª a fracção autónoma dos RR (A e M ) id. nos autos
     6- O imóvel foi vendido com o respectivo recheio
     7- A venda foi efectuada sen cancelamento do encargo hipotecário incidente sobre a fracção constituído a fasvor da C.G.D.
     8- O preço da venda foi de 9.400.000$00.
     9- Declarou-se na escritura que o referido preço se acha já liquidado através do cheque da quantia de 3.733.934$00, emitido nesse dia 6-11-1995 a favor da sociedade compradora, encontrando-se a parte restante, no montante de 5.666.066$00 também já liquidada através da compensação da dívida de igual montante que a sociedade Granja Avícola do Vale de Lagoa Ldª, da qual (A)é sócio-gerente, tinha para com a Equiporave, dívida que o casal (A e M )assumiu pagar”
     10- A compra foi registada a favor da Equiporave pela Ap. 52 de 13-11-1995.
     11- A dita fracção destinava-se à habitação não lhe podendo ser dado outro destino.
     12- A Ré sociedade tem por objecto social a comercialização de produtos agro-pecuários.
     13- O Réu (A) renunciou à gerência com cessação de funções em 6-11-1995
     14- O Réu (A) foi sócio da referida sociedade até 13-11-1995
     15- No dia 6-11-1995 Equiporave arrendou a (C ), filha dos RR, o referido andar com efeitos a contar de 1-12-1995, com todo o seu recheio, pelo prazo de um ano renovável por iguais períodos de tempo mediante o pagamento da renda correspondente a todo o período de duração do contrato de 700.000$00
     16- Os RR (A e M )continuam a residir na referida habitação.
     17- O crédito do A. em 22-2-1999 ascendia a 14.126.203$50.
     18- Equiporave-Sociedade de Equipamentos para Pecuária Ldª está matriculada na CRC de Vila Franca de Xira com o nº 00964/800328 constituída por sete sócios, todos gerentes, mostrando-se averbado a renúncia à gerência em 6-11-1995 por parte de um dos gerentes, o ora réu (A)
     B) Vejamos a matéria de facto controvertida:
          19- A Ré Equiporave desconhecia a existência da dívida, que o Banco autor é credor, contraída pelo Réu ao avalizar a livrança referenciada?
     20- A Ré Equiporave desconhecia que o Autor. fosse credor da firma Cosdal-Comércio de Materiais de Construção de Obras Ldª?
     21- A Ré Equiporave jamais teve quaisquer contactos ou negócios com a firma Cosdal?
     22-  O Réu (A) continuou a exercer de facto a sua actividade na Equiporave depois de ter deixado de ser sócio?
     23- A Equiporave era credora da Granja Avícola do Vale da Lagoa pela quantia de 5.666.066$00 respeitante a fornecimentos de artigos e materiais para a pecuária cujo saldo se foi acumulando ao longo de meses?
     24- A certa altura foi verificada a situação pela contabilidade da Equiporave tendo os restantes sócios desta firma considerado abusiva a atitude daquele sócio, (A), na medida em que se servia da posição que mantinha na Granja Avícola para beneficiar esta firma?
     25- Foi-lhe proposto que abandonasse a Equiporave deixando de ser dela sócio e também gerente já mesmo para evitar ter que lhe ser imputado qualquer procedimento abusivo das suas funções enquanto gerente, actuando isoladamente?
     26- E foi-lhe proposto ainda que solucionasse o débito em causa através da venda à Equiporave do único bem de que poderia para tanto dispor naquela altura, a fracção referenciada nos autos?
     27 - Na ocasião da venda o débito hipotecário incidente sobre a fracção era de 479.830$00?
     28 - A dita Granja Avícola encontrava-se em situação de pré-falência?
     29 - A Equiporave, para que a venda se realizasse nos termos assinalados, teve de concordar em que a filha dos RR (A e M) continuasse a residir na fracção  pelo espaço de um ano mediante arrendamento?
     30 - Interessava à Equiporave poder dispor rapidamente da casa e vendê-la para assim poder obter dinheiro para os seus negócios?
     31 - Os RR (A e M)continuam a residir na referida habitação?
     32 - A Equiporave desconhece o facto referido em 13?
     33 -  A Equiporave sabe que os RR Gomens têm vivido ultimamente para os lados da Abrigada?
     Face ao exposto afigura-se-nos que os autos devem prosseguir para apreciação da matéria controvertida tendo em conta as várias soluções plausíveis da questão de direito.
     3.5. A decisão de prosseguimento dos autos retira interesse ao provimento do recurso de agravo interposto pela Ré da decisão de fls 614 (artigo 710º/2 do C.P.C.)     
     Decisão: concede-se provimento ao recurso da Ré determinando-se, assim,o prosseguimento da presente acção com elaboração do questionário a fim de averiguar a matéria controvertida acima indicada.
     Custas pela parte a final vencida que incluem as do 2º agravo não apreciado por inutilidade face à decisão de prosseguimento da acção; custas pelo A. quanto ao 1º agravo como referido supra.    
     Lisboa, 2/10/03
     (Salazar Casanova)
     (Silva Santos)
     (Bruto da Costa)