Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
32148/16.4T8LSB-A.L1-2
Relator: ARLINDO CRUA
Descritores: INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE
PROVA PERICIAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/07/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: – Em acção de investigação de paternidade, memo que o Réu, pretenso pai, conteste por via de excepção, nomeadamente invocando a caducidade da acção, nos termos do artº. 1817º, ex vi do artº. 1873º, ambos do Cód. Civil, justifica-se o recurso aos meios probatórios periciais enunciados no artº. 1801º, do mesmo diploma, pois um dos temas da prova sempre se traduzirá, em regra, em apurar se o/a demandante/autor(a) nasceu da gravidez que sobreveio à progenitora mãe, na sequência de trato sexual mantido com o Réu no período legal de concepção enunciado no artº. 1798º, ainda do mesmo diploma ;
– tal meio probatório deve ser produzido, logicamente, antes da realização da audiência de julgamento ou, pelo menos, até que termine a fase de produção de prova em sede de audiência de discussão e julgamento, não se perfilhando o entendimento de que a determinação de tal realização viole o apelado princípio da proporcionalidade, ou que da sua realização se possa extrair, nesta fase processual, a prática de um acto inútil, legalmente proibido por força do prescrito no artº. 130º do Cód. de Processo Civil ;
– não seria curial postergar a realização do determinado meio probatório, condicionando-o à prévia outorga de uma sentença que julgasse improcedentes a(s) excepção(ões) peremptória(s) invocada(s), após o que se abriria uma nova fase instrutória (muitas vezes de duração incerta, sempre condicionada á colaboração das partes e disponibilidade de agenda das entidades que realizam a perícia) e posteriormente a prolacção de nova sentença que conhecesse acerca do aludido tema da prova ;
– por outro lado, não se justifica alegar que a determinada realização de tal meio pericial probatório viola a liberdade e a integridade física do Réu, pretenso pai, pois, para além do carácter cada vez menos intrusivo de tais exames periciais, que muitas vezes apenas necessitam de uma mera recolha de saliva ou de um fio de cabelo, de forma a determinar o DNA , tal meio probatório, atenta a matéria em equação, mostra-se necessário, proporcional e adequado à finalidade prosseguida com os intentados autos de investigação de paternidade.

Sumário elaborado pelo Relator – cf., nº. 7 do artº. 663º, do Cód. de Processo Civil
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: DECISÃO INTEGRAL:

***


ACORDAM os JUÍZES DESEMBARGADORES da 2ª SECÇÃO da RELAÇÃO de LISBOA o seguinte [1]:

***

              
I–RELATÓRIO


1– Mediante petição inicial apresentada em 29/12/2016, veio MJ... intentar acção de investigação de paternidade contra MF..., pugnando pelo seu reconhecimento como filha biológica deste.

2– Citado o Requerido/Réu, veio apresentar contestação, excepcionando no sentido de:
– Já ter caducado o direito de acção da Autora, nos termos do artº. 1873º, do Cód. Civil, com remissão expressa para o artº. 1817º, do mesmo diploma ;
– Pois já se encontram ultrapassados todos os prazos referidos neste normativo ;
– Caso tal não se entenda, deverá a Autora ser, em qualquer caso, afastada da sucessão do Réu, por abuso de direito, nos termos do artº. 334º, do mesmo diploma ;
– Pois a atribuição de efeitos patrimoniais para a Autora, através de um eventual reconhecimento da paternidade, é o primordial (se não o único) objectivo desta acção.
Apresentou, ainda, defesa por impugnação.

Concluiu, requerendo que:
“(i)- Seja julgada a caducidade do direito de acção da Autora, MJ..., por terem já decorrido os prazos a que alude o artigo 1817.º do Código Civil;
(ii)- Caso não se venha a considerar a alínea a) – o que apenas se concebe por mera cautela de patrocínio sem conceder – deverá julgar-se todo o comportamento da Autora demonstrativo de um claro abuso de direito, de acordo com o disposto no artigo 334.º do Código Civil;
(iii)- Seja julgada totalmente improcedente, por não provada, a acção intentada pela Autora, não se considerando, assim, ser seu Pai o aqui Réu, MF....

Logo neste articulado, pronunciando-se acerca dos meios probatórios, alegou o Réu não aceitar ser “submetido a exames hematológicos”, pois “não se pode, em circunstância alguma, obrigar o pretenso ou indigitado pai a fazer exames de sangue”, pelo que deve “tal meio probatório ser já excluído” – cf., artºs. 88º a 90º.

3– Por despacho de 18/04/2018, foi:
– dispensada a realização de audiência prévia ;
– proferido saneador stricto sensu ;
– fixado o objecto do litígio (reconhecimento judicial da paternidade de MJ..., nascida no dia 13 de Novembro de 1973, no sentido de aferir se é filha de MF...) ;
– fixados os temas da prova (Saber se MJ... nasceu da gravidez que sobreveio à sua mãe, MM..., na sequência de relacionamento sexual havido entre esta e MF..., nos primeiros 120 dias dos 300 que precederam o nascimento de MJ...).
Relativamente à caducidade do direito de acção, foi proferido o seguinte despacho: “mostrando-se controvertida a matéria que subjaz à excepção suscitada pelo Réu, sem descurar que alguns documentos apresentados para prova de tal matéria se mostram impugnados, relega-se a sua apreciação para final”.

E, no que concerne aos requeridos meios probatórios, foi exarado o seguinte despacho:
“Por se revelar relevante para a instrução do processo, ao abrigo do disposto no artigo 467.º, n.º 1 e n.º 3 do Código de Processo Civil, determina-se a realização de exames hematológicos à autora, à mãe da autora e ao réu, a fim de apurar se a autora é ou não filha do réu.
Notifique.

Oportunamente, oficie ao INML de Lisboa, com cópia do presente despacho, solicitando a realização de exames de sangue aos intervenientes indicados”.
4– Por requerimento de 24/04/2018, veio o Requerido/Réu, nos termos do nº. 2, do artº. 596º, do Cód. de Processo Civil, reclamar dos temas da prova fixados, requerendo a sua correcção, devendo passar a constar, “como facto controvertido, o momento em que a Autora teve conhecimento dos factos alegados na petição inicial, com vista ao apuramento quer da caducidade da presente acção, quer do abuso de direito”.

Relativamente á determinada realização dos exames hematológicos, alegou o seguinte:
“18.– Por último, a propósito das excepções invocadas, entende o Réu que, mais concretamente quanto ao conhecimento da questão da caducidade (e a prova respectiva), deveria ser ordenada antes de qualquer outra diligência probatória, nomeadamente os agora ordenados exames hematológicos.
19.– É que, bem se sabe, que a realização de tais exames jamais poderá ser “forçada” pelo Tribunal, já que a sua obrigatoriedade, a existir, poderia ser considerada inconstitucional, na medida em que se traduz num meio de prova evasivo, comprometedor da identidade genética e, por isso, violador do disposto no n.º 3 do artigo 26 da Constituição da República Portuguesa.
20.– Não quer com isto dizer-se que, de facto, o Réu vai ou não submeter-se a tais exames, na medida em que jamais é sua intenção deixar de colaborar ou cooperar para a descoberta da verdade,
21.– No entanto, não pôde deixar de se surpreender com a notificação para realização dos referidos exames, nesta data, quando, no decurso do presente processo, se poderia facilmente concluir que a sua realização era inútil, por ter já caducado o direito à acção, bastando, para tanto, que, em primeiro lugar, se conhecesse a excepção invocada.
22.– Aliás, esta situação – ao invés daquela que foi decretada pelo Tribunal – jamais comprometeria a economia processual, na medida em que tais exames apenas seriam ordenados depois de se vir a considerar que, de facto, a Autora ainda estava em tempo para a propositura da presente acção”.

5– Por despacho de 24/07/2018, e conhecendo acerca de tal reclamação, decidiu-se o seguinte:
“Assiste razão ao Réu, pelo que se adita o seguinte Tema de Prova:
2.- Saber se a Autora tomou conhecimento que o réu era seu pai biológico em Agosto de 2014 (ou em data anterior).
Notifique”.

6– A Autora, em 11/09/2018, apresentou o seguinte requerimento:
MJ..., Autora nos autos de processo à margem referenciados, vem, muito respeitosamente requerer a V. Ex.a. que se digne mandar oficiar ao INML a realização dos exames hematológicos à Autora, conforme Douto despacho proferido em 18 de Abril de 2018”.

7– Em resposta, e no exercício do contraditório, o Réu apresentou, em 19/09/2018, o seguinte requerimento:
“1.- Na sequência do despacho de fls., vem a Autora requerer que se mande oficiar o Instituto Nacional de Medicina Legal para realização dos exames hematológicos, o que, salvo melhor opinião, jamais se poderá – por ora - aceitar.
Vejamos:
2.- É que embora corresponda à verdade que a realização de tais exames foi ordenada pelo Tribunal, é também verdade que tal ordenamento ocorreu ainda antes da alteração dos temas da prova, o que, naturalmente, deverá repercutir-se no andamento processual do caso concreto.
3.- Jamais se põe em causa que a realização dos exames hematológicos seria “o próximo passo” do processo se o tema único da prova fosse “Saber se MJ... nasceu da gravidez que sobreveio à sua mãe, MM..., na sequência de relacionamento sexual havido entre esta e MF..., nos primeiros 120 dias dos 300 que precederam o nascimento de MJ...”.
4.- No entanto, bem se sabe que a tal tema da prova foi acrescentado um outro, ou seja, para além do acima referido, importa também “Saber se a Autora tomou conhecimento que o réu era seu pai biológico em Agosto de 2014 (ou em data anterior)”
5.- Questão esta que, nos termos do disposto nos artigos 576.º e ss. do Código de Processo Civil consubstancia uma excepção peremptória.
6.- Ora, nos termos no disposto no número 3 do supra mencionado artigo as excepções peremptórias importam a absolvição total ou parcial do pedido, ou seja, por outras palavras, o seu conhecimento conduz a uma sentença de mérito que pode, ela própria, ser totalmente desfavorável à pretensão da Autora.
7.- Assim, entende o ora Réu que deverá, em primeiro lugar, atender-se à questão de se saber se em 2014 (ou antes disso) a Autora sabia já a identidade daquele que agora vem indicar como sendo o seu Pai biológico,
8.- Realizando-se quanto a esta questão – e só a esta – as diligências probatórias necessárias, nomeadamente a análise de documentos já juntos aos autos, a audição de depoimentos de testemunhas, etc.
9.- É que, caso contrário, estará o Tribunal a impor a realização de um meio de prova – intrusivo, como se sabe e que, independentemente do resultado, poderá trazer consequências para a vida pessoal das partes processuais – que poderá não ter qualquer efeito útil no conhecimento do mérito da acção
10.- (se a excepção peremptória for julgada procedente).
11.- Por outras palavras refira-se que a realização destes exames – a verificar-se nesta fase processual – poderia, mais tarde, vir a considerar-se irrelevante, no caso de se concluir que caducou o direito de acção da Autora,
12.- traduzindo-se, apenas, na prática de actos inúteis, cuja sua realização, como se sabe, é ilícita, nos termos do disposto no artigo 130.º do Código de Processo Civil”.

8– Conhecendo o requerido, em 16/10/2018, foi proferido o seguinte DESPACHO:
“Fls. 169 a 176:
Os temas de prova delimitam a prova a produzir em sede de audiência de julgamento.
Considerando o 1.º Tema de Prova fixado (cfr. fls. 143 dos autos) e uma vez que o exame pericial deverá ser efectuado – e o respectivo relatório pericial junto aos autos – até que termine a produção de prova em sede de audiência de julgamento (com as várias fases legalmente estabelecidas na lei), mantém-se na íntegra o despacho de fls. 143 dos autos – VI.
A excepção de caducidade, ainda que seja uma questão prévia a conhecer, será sempre apreciada em sede de sentença, produzida toda a prova e encerrada que esteja a audiência de julgamento.
Assim, cumpra a secção o determinado a fls. 143 dos autos – VI”.
9– Inconformado com o decidido, o Réu interpôs recurso de apelação, em 06/11/2018, por referência ao despacho prolatado.

Apresentou, em conformidade, o Recorrente as seguintes CONCLUSÕES:
“A.– Vem o ora Recorrente apresentar o presente recurso do despacho de fls. 177 proferido no âmbito do processo n.º 32148/16.4T8LSB que corre os seus termos no Juiz 3 do Juízo de Família e Menores de Cascais, despacho esse em que o Tribunal a quo mantém o ordenado em fls. 143, isto é, nesta fase do processo – imediatamente a seguir ao despacho saneador e enunciação dos temas da prova – determinou-se a realização dos exames hematológicos (vulgarmente designados como “testes de ADN”) às partes envolvidas, isto é, ao Recorrente, à Recorrida (Autora do processo) e à mãe desta,
B.– opção que, no entender do ora Recorrente, poderá traduzir-se não só numa violação do princípio da proporcionalidade, como, para além disso, poderá igualmente consubstanciar a prática de actos inúteis, cuja realização, como bem se sabe, é ilícita, de acordo com o disposto no artigo 130.º do Código de Processo Civil, o que jamais se poderá aceitar.
C.– É que a realização de tais exames não pode, salvo melhor opinião, ser ordenada sem tomar em consideração as circunstâncias do caso concreto, conforme parece ter ocorrido no processo em causa.
D.– No âmbito dos processos judiciais de averiguação de paternidade, após a apresentação dos articulados e a fase de saneamento do processo, jamais se põe em causa que a realização dos exames hematológicos será “o próximo passo” do processo se o tema único da prova for saber se o/a Autor(a) nasceu da gravidez que sobreveio à sua mãe na sequência de relacionamento sexual havido entre esta e o Réu, nos primeiros 120 dias dos 300 que precederam ao seu nascimento.
E.– A situação do já referido processo n.º 32148/16.4T8LSB não é, porém, a supra descrita, já que foram suscitadas outras questões (e apresentados outros factos) susceptíveis de influir na apreciação do mérito da causa.
F.– É que, neste caso concreto, o ora Recorrente, não só impugnou os factos alegados na petição inicial apresentada pela Recorrida, como, para além do mais, alegou factos que demonstram que caducou o direito de acção por parte da Autora, na medida em que já se encontram largamente ultrapassados os prazos previstos na lei substantiva,
G.– ou seja, para além de impugnação, o ora Recorrente, apresentou a sua defesa alegando, também, factos que consubstanciam uma excepção peremptória.
H.– Na contestação apresentada veio o ali Réu alegar que a Autora teria conhecimento que o ora Recorrente seria (ou poderia ser) seu Pai desde, pelo menos 2007, ou seja, há mais de 10 (dez anos), razão pela qual, no seu entender e de acordo com a lei, nomeadamente com o disposto no artigo 1873.º do Código Civil com remissão expressa para o artigo 1817.º do mesmo diploma, já caducou o direito de acção da Autora.
I.– É que, pese embora o Réu, ora Recorrente, desconheça, com exactidão, em que data é que a Mãe da Autora terá dito à filha, aqui Recorrida, que aquele poderia ser seu Pai, no seu entender e de acordo com a prova documental já junta aos autos – a qual, certamente, jamais será rebatida por prova testemunhal -, pelo menos em 2007 este facto já era do conhecimento daquela, encontrando-se assim já amplamente ultrapassado quer o prazo geral de 10 anos, quer o prazo (excepcional) de três previsto na lei;
J.– Concluindo, o ora Recorrente, pretende demonstrar, no processo a correr termos no Tribunal a quo, que a Recorrida tinha conhecimento, há largos anos dos factos por ela alegados na petição inicial relativos à sua eventual perfilhação / paternidade, tendo, assim, aquele Tribunal que se pronunciar também quanto a tal aspecto (da caducidade), valorando toda a prova junta e produzida nos autos, situação que, aliás, faz parte dos temas da prova;
K.– O decurso do tempo assume, nestas acções, uma extrema importância - já amplamente debatida na jurisprudência - sendo hoje defendido que os prazos actualmente fixados pela lei substantiva (10 e 3 anos), pese embora esteja em causa um direito de personalidade, são prazos razoáveis e proporcionais que em nada limitam o exercício do direito do investigante, permitindo, ao mesmo tempo, a salvaguarda do princípio da confiança e da segurança jurídica do próprio investigado.
L.– Ou seja, o decurso do tempo é uma questão que terá, obrigatoriamente, que ser não só conhecida como valorada pelo Tribunal a quo, mais ainda quando no presente processo foi também alegado o eventual abuso de direito por parte da Autora,
M.– admitindo o ora Recorrente que tal acção foi intentada ao fim de vários anos, tendo em vista, exclusivamente, a sucessão do suposto Pai, por parte do investigante que, desta forma, tendo optado, a partir de certa fase da sua vida, por prescindir do Pai de afectos, não quer prescindir de um Pai sucessório;
N.– Em suma, poderá vir a considerar-se que, de facto, a presente acção é extemporânea, isto é, foi intentada já depois do prazo previsto para tal. E, se assim for, o ora Recorrente, na qualidade de Réu, será absolvido do pedido…
O.– É pois pelos motivos acima invocados que ora Recorrente considera que a realização, nesta fase do processo, dos exames hematológicos, é prematura - ou haverá já, no entendimento do Recorrente, matéria para apreciar já a excepção invocada - não devendo verificar-se não só porque a prática de actos inúteis é, nos termos da lei processual civil, considerada ilícita mas, mais ainda, porque a sua realização importa a restrição de direitos fundamentais.
P.– Bem se sabe que, processualmente, e ao contrário do que se verifica com as excepções dilatórias, o Tribunal não está “vinculado” ao conhecimento das excepções peremptórias em determinada fase do processo, tendo, assim, que aceitar a opção do Tribunal em conhecê-la apenas numa fase posterior do processo.
Q.– No entanto, aquilo que o ora Recorrente não pode aceitar, com todo o respeito, é que, tendo o Tribunal feito a opção acima identificada – isto é, conhecer a caducidade do direito de acção, por parte da Autora, em momento posterior - ordene, neste momento, a realização de prova que pode vir a considerar-se inútil, caso se venha a julgar procedente a excepção invocada,
R.– Tanto mais quando o tipo de prova ordenada – exames hematológicos – traduz-se numa restrição dos direitos dos visados, quer à liberdade, quer à integridade física, ambos considerados direitos fundamentais previstos, respectivamente, nos artigos 27.º e 25.º da Constituição da República Portuguesa, restrição essa que deverá ser admitida apenas quando absolutamente necessária, proporcional e adequada ao fim que se pretende obter.
S.– Neste momento, face aos factos alegados a respeito da caducidade, não é ainda líquido que seja (ainda) concedido à Autora o direito ao reconhecimento da sua identidade biológica, não devendo, por isso, e pelo menos para já, ser ordenada a restrição de direitos fundamentais das partes processuais.
T.– Para além de todo o já exposto, entende também o ora Recorrente que tal restrição dos direitos fundamentais só deverá verificar-se quando, em causa esteja, exclusivamente, o princípio da identidade e da verdade biológica, o que, salvo melhor opinião, não se verifica no caso concreto.
U.– É que, tal como amplamente alegado na contestação apresentada, face às atitudes, quer da Autora (aqui Recorrida), quer da sua Mãe, dúvidas não existem que, no entender do ora Recorrente, o principal (e até mesmo o único) objectivo com a interposição desta acção a correr os seus termos no Tribunal a quo, é a atribuição de efeitos patrimoniais através de um eventual reconhecimento da paternidade, não devendo, assim, para este fim, legitimar-se a já referida limitação dos direitos fundamentais da liberdade e da integridade física.
V.– Concluindo, admitir, nestes casos, a realização dos já referidos exames hematológicos era, por esta via, estar a premiar-se o abuso de direito e a restrição de direitos fundamentais por razões de natureza puramente económica, o que, bem se sabe, jamais foi a intenção do legislador, tendo, aliás sido essa a posição do Tribunal de primeira instância, no caso concreto, no procedimento de produção antecipado de prova requerido pela Recorrida (o qual foi julgado totalmente improcedente);
W.– Ainda a propósito do alegado abuso de direito, importará igualmente tomar em consideração que o presente processo surge na sequência da procedência de uma acção de impugnação da paternidade presumida (marido da Mãe), em que apesar do ora Recorrente não ser parte activa da mesma, tomou conhecimento que tal processo foi intentado contra incertos (como se fosse admissível que a Autora desconhecesse, em absoluto, qualquer familiar daquele que foi o seu Pai durante aproximadamente 40 anos), tendo tal paternidade sido “afastada” apenas com base em prova testemunhal, sem que se tenha, por exemplo, requerido a exumação do corpo do presumido Pai, por forma a garantir-se, pelo menos com maior grau de certeza, se aquele não era, efectivamente, o Pai da Autora.
X.– Tal comportamento é, assim, susceptível de criar no ora Recorrente a ideia de que, de facto, a intenção era afastar-se rapidamente aquele que foi o verdadeiro Pai de afectos, para o substituir por um outro, patrimonialmente mais “apetecível”.
Y.– Por último sempre se refira que, verificar-se, nesta fase processual, a sujeição à realização dos exames hematológicos – independentemente dos resultados dos mesmos - ou até a sua ordenação e recusa, por parte do ora Recorrente, era permitir-se julgamentos antecipados ou em “praça pública” desta causa, atendendo, até, ao impacto social que o resultado de tais exames pode causar na vida pessoal (e até profissional) dos intervenientes, mais ainda quando, no caso concreto, o ora Recorrente tem alguma exposição mediática, não só por força da sua profissão mas também de inúmeras actividades de que faz parte.
Z.– Concluindo, face a todos os argumentos acima invocados, entende o ora Recorrente que o despacho proferido pelo Tribunal a quo deve, assim, ser revogado pelo Tribunal ad quem, devendo a realização dos exames hematológicos ao Réu, à Autora e à Mãe desta ser ordenada apenas se não se vier a considerar que já caducou o direito de acção por parte da Autora ou se a mesma actua numa situação de claro abuso de direito”.

10– A Autora apresentou resposta às alegações apresentadas, em 26/11/2018, referenciando, nas CONCLUSÕES apresentadas, o seguinte:
“1)– O presente recurso é manifestamente extemporâneo.
2)– O Recorrente não interpôs recurso do Douto despacho saneador, momento processual em que foi admitida a requerida prova pericial de realização de exames hematológicos.
3)– O prazo para recorrer do despacho que admitiu a realização dos chamados testes de ADN terminou em 9 de Maio de 2018.
4)– Não foi o despacho de fls. 117 que ordenou a realização dos referidos exames, nem resulta da informação de fls. 144 o inverso do que fora feito constar do despacho saneador, como pretende fazer crer o Recorrente.
5)– Nenhum dos despachos proferidos pelo tribunal “a quo” merece ser censurado.
6)– E o despacho ora por em crise não merece qualquer reparo, não violando a Lei nem os princípios gerais do Direito, designadamente o princípio da proporcionalidade.
7)– O Recorrente tenta escudar-se em questões meramente processuais para retardar a tramitação dos presentes autos.
8)– Sendo manifestamente errado alegar a caducidade do direito para interposição da acção de investigação de paternidade, com os fundamentos invocados pelo Recorrente, conforme resulta da jurisprudência assente pelos Tribunais Superiores.
9)– O tribunal “a quo” decidiu relegar o conhecimento da execução de caducidade para a decisão final. Em nossa opinião não poderia, nem deveria, ser outra a sua decisão.
10)– A única intenção da Recorrida é ver reconhecida judicialmente a sua identidade, comprovando-se que a mesma é filha biológica do Recorrente.
11)– À Recorrente pouco importa a alegada fortuna de que o Recorrido se diz possuidor.
12)– Não existe qualquer abuso de Direito na intenção da Recorrente de ver reconhecida a sua verdadeira ascendência.
13)– Pelo ao contrário, pensamos que o Recorrido viola um outro princípio do Direito, no caso o de venire contra factum proprium.
14) E isto porque, resulta à saciedade que o Recorrente desde há longa data que é sabedor de que é o progenitor da Recorrida – conforme resulta da prova documental por si junta aos autos- apesar de tentar vedar-lhe esse reconhecimento judicial através de questões meramente processuais”.

Conclui, no sentido de não ser conhecido o recurso interposto, mantendo-se a decisão do Tribunal a quo de imediata realização dos exames hematológicos.

11– O recurso foi admitido por despacho datado de 08/12/2018, como apelação, a subir em separado e com efeito meramente devolutivo.

12– Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar, valorar, ajuizar e decidir.
***

II–ÂMBITO DO RECURSO DE APELAÇÃO
Prescrevem os nºs. 1 e 2, do artº. 639º do Cód. de Processo Civil [2], estatuindo acerca do ónus de alegar e formular conclusões, que:
“1– o recorrente deve apresentar a sua alegação, na qual conclui, de forma sintética, pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão.

2– Versando o recurso sobre matéria de direito, as conclusões devem indicar:
a)- As normas jurídicas violadas ;
b)- O sentido com que, no entender do recorrente, as normas que constituem fundamento jurídico da decisão deviam ter sido interpretadas e aplicadas ;
c)- Invocando-se erro na determinação da norma aplicável, a norma jurídica que, no entendimento do recorrente, devia ter sido aplicada”.

Por sua vez, na esteira do prescrito no nº. 4 do artº. 635º do mesmo diploma, o qual dispõe que “nas conclusões da alegação, pode o recorrente restringir, expressa ou tacitamente, o objecto inicial do recurso”, é pelas conclusões da alegação do Recorrente Apelante que se define o objecto e se delimita o âmbito do recurso, sem prejuízo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente, apenas estando este tribunal adstrito à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para conhecimento do objecto do recurso.

Pelo que, na ponderação do objecto do recurso interposto pelo Recorrente Réu, alegado progenitor, delimitado pelo teor das conclusões expostas, a apreciação a efectuar na presente sede consubstancia-se em aferir acerca da justificação ou pertinência legal, na presente fase processual, da decretada realização de exames hematológicos à Autora, mãe da Autora e Réu, de forma a apurar se aquela é ou não filha deste.

O que implica, in casu, a análise das seguintes questões:
1)– Da natureza da diligência probatória determinada ;
2)– Da pertinência da sua determinação, tendo em atenção a fase processual em equação e os eventuais princípios colidentes.

Aprioristicamente, por tal ter sido suscitado pela Apelada/Recorrida nas contra-alegações apresentadas, urge aferir acerca da tempestividade do recurso interposto, em virtude da sua rotulagem de extemporâneo.
***

III–FUNDAMENTAÇÃO

A–FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

A factualidade a ponderar é a que decorre do iter processual supra exposto.
***

B–FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO


QUESTÃO PRÉVIA: da (in)tempestividade do recurso
              
Nas contra-alegações apresentadas, invoca a Apelada/Recorrida ser o presente recurso manifestamente extemporâneo, pois a prova pericial foi admitida e determinada aquando da prolacção do despacho saneador – despacho de 18/04/2018 -, pelo que o prazo para recorrer de tal despacho terminou em 09/05/2018.
Acrescenta que não foi o despacho de fls. 117 (existe claro lapso, pois procurará referir-se ao despacho de fls. 177) que ordenou a realização dos referidos exames, nem resulta de posterior informação o inverso do feito constar do despacho saneador.
Notificado do invocado em sede contra-alegacional, o Apelante/Recorrente nada disse.

Apreciando:

Conforme resulta do iter processual supra descrito, o despacho que determinou a realização dos exames hematológicos foi proferido em 18/04/2018.
Pelo que, sem rebuços, caso seja de computar o prazo para apresentação de recurso a contar da data de notificação de tal decisão, não poderá deixar de concluir-se pela sua extemporaneidade, sendo de 15 dias o prazo legalmente previsto para a sua interposição – cf., artºs. 638º, nº. 1 e 644º, nº. 2, alín. d), ambos do Cód. de Processo Civil.
Todavia, mediante requerimento de 24/04/2018, o Réu, ora Apelante, veio apresentar reclamação dos temas da prova fixados, pugnando pela sua correcção, devendo passar a constar, “como facto controvertido, o momento em que a Autora teve conhecimento dos factos alegados na petição inicial, com vista ao apuramento quer da caducidade da presente acção, quer do abuso de direito”.
E, desde logo em tal sede, no pressuposto de deferimento da reclamação apresentada, e acrescento do tema de prova reportado ao conhecimento das excepções de caducidade e de abuso de direito, pugna pela realização dos determinados exames hematológicos apenas após o conhecimento de tais excepções. Ou seja, logo naquela sede o Apelante questiona, com base no aditamento requerido aos temas da prova, a pertinência e utilidade da realização, naquela fase processual, dos determinados exames periciais.
Ora, aquela reclamação veio a obter procedência no juízo exposto no despacho de 24/07/2018, que determinou o aditamento aos temas da prova de um nº. 2, no sentido de “saber se a Autora tomou conhecimento que o Réu era seu pai biológico em Agosto de 2014 (ou em data anterior)”. E, nada foi na mesma referenciado relativamente à determinada realização dos exames periciais.
Assim tal questão só volta a surgir com o requerimento da Autora, ora Apelada, de 11/09/2018, no sentido de que se mandasse oficiar ao INML a realização dos determinados exames periciais, ao qual o Réu veio responder em 19/09/2018.
Neste requerimento, e nos termos supra expostos, o Réu alega que aquela realização foi determinada ainda antes da alteração dos temas da prova, “o que, naturalmente, deverá repercutir-se no andamento processual do caso concreto”. Pelo que a pretensão apresentada passa pela sua eventual, e putativa, realização em fase posterior, após o conhecimento das invocadas excepções peremptórias, e apenas no caso destas serem julgadas improcedentes, pois, de outro modo, estará o Tribunal a impor a realização de um meio de prova intrusivo, que poderá não ter qualquer efeito útil no conhecimento do mérito da acção.
Ora, foi esta pretensão que foi desatendida pelo despacho apelado, de 16/10/2018 (de fls. 177 dos autos principais), que manteve a determinação da realização dos exames periciais, na consideração do 1º tema da prova e da necessidade de terminar a produção probatória em sede de audiência de julgamento até ao encerramento desta.
Pelo exposto, fundando-se esta decisão, que reafirma a determinação de realização dos exames periciais, em diferenciados pressupostos, nomeadamente na apreciação da argumentação inovatória aduzida pelo Réu, decorrente do aditamento aos temas da prova, é a partir da notificação da mesma que deverá ser computado o prazo de recurso, pois não estamos perante um mero decalque da situação já antecedente, determinante do despacho de 18/04/2018.
Deste modo, mesma na admissão de que o despacho de 16/10/2018 foi notificado às partes na data imediata, resulta claro que o recurso foi tempestivamente interposto (sendo, nos termos expostos, de 15 dias o prazo legalmente previsto para a sua interposição – cf., artºs. 638º, nº. 1 e 644º, nº. 2, alín. d), ambos do Cód. de Processo Civil) e, como tal, deve merecer o devido conhecimento por parte deste Tribunal. 
O que determina claro indeferimento da suscitada extemporaneidade do recurso em apreciação.

–Da natureza do determinado exame pericial

No caso sub júdice o despacho Recorrido/Apelado defende, no essencial, que, atendendo ao 1º tema da prova - saber se MJ... nasceu da gravidez que sobreveio à sua mãe, MM..., na sequência de relacionamento sexual havido entre esta e MF..., nos primeiros 120 dias dos 300 que precederam o nascimento de MJ... - o exame pericial deverá ser efectuado até que termine a fase de produção de prova em sede de audiência de julgamento.

Pelo que, como a excepção de caducidade, ainda que seja uma questão prévia a conhecer, apenas o será em sede de sentença, depois de produzida toda a prova e encerrada que seja a audiência de julgamento, mantém a decisão de realização do exame pericial na fase processual prévia à de designação de data para a audiência final.

Por sua vez, o juízo do Apelante, reconduz-se, basicamente, no seguinte:
–Não se justifica, na presente fase processual, a realização dos determinados exames hematológicos ou igualmente designados “testes de ADN” ;
–Efectivamente, estando invocadas, em sede de contestação, duas excepções peremptórias - caducidade da acção e abuso de direito -, que podem conduzir à absolvição do pedido, viola o princípio da proporcionalidade a determinada realização de tal prova pericial, pois esta implica necessariamente a restrição de direitos fundamentais ;
–Nomeadamente, a liberdade e integridade física dos visados, ambos direitos fundamentais consagrados nos artigos 27º e 25º da Constituição da República Portuguesa, sendo que tal restrição apenas deverá ser admitida quando for absolutamente necessária, proporcional e adequada ao fim visado ;
–Ademais, tal restrição só deve ainda ser admitida quando está em causa o princípio da identidade e da verdade biológica, o que não se verifica in casu, pois estar-se-ia a restringir direitos fundamentais apenas por razões de natureza puramente económica ;
–Por outro lado, a realização de tais exames, atento o exposto, pode vir a revelar-se a prática de actos inúteis, o que é legalmente vedado pelo artº. 130º, do Cód. de Processo Civil ;
–Por fim, tal realização nesta fase processual, independentemente dos seus resultados e da eventual recusa do Recorrente a submeter-se aos mesmos, seria permitir julgamentos antecipados ou em “praça pública”, podendo o seu resultado ter impacto social na vida dos intervenientes, o que é potenciado pela exposição mediática do Apelante.

Assim, conclui, a pretensão do Apelante não se traduz na não realização, em termos absolutos, dos determinados exames periciais, mas antes que a mesma apenas deve ser concretizada caso não se venha a considerar que já caducou o direito de acção por parte da Autora, ou que a esta actuou em situação de claro abuso de direito.

Analisemos.

Prevendo acerca do objecto da instrução, prescreve o artº. 410º, que “a instrução tem por objeto os temas da prova enunciados ou, quando não tenha de haver lugar a esta enunciação, os factos necessitados de prova”.

O artº. 417º, estipulando a propósito do dever de cooperação para a descoberta da verdade, aduz que:
 “1– Todas as pessoas, sejam ou não partes na causa, têm o dever de prestar a sua colaboração para a descoberta da verdade, respondendo ao que lhes for perguntado, submetendo-se às inspeções necessárias, facultando o que for requisitado e praticando os atos que forem determinados.
2– Aqueles que recusem a colaboração devida são condenados em multa, sem prejuízo dos meios coercitivos que forem possíveis; se o recusante for parte, o tribunal aprecia livremente o valor da recusa para efeitos probatórios, sem prejuízo da inversão do ónus da prova decorrente do preceituado no n.º 2 do artigo 344.º do Código Civil.

3– A recusa é, porém, legítima se a obediência importar:
a)- Violação da integridade física ou moral das pessoas;
b)- Intromissão na vida privada ou familiar, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações;
c)- Violação do sigilo profissional ou de funcionários públicos, ou do segredo de Estado, sem prejuízo do disposto no n.º 4.

4– Deduzida escusa com fundamento na alínea c) do número anterior, é aplicável, com as adaptações impostas pela natureza dos interesses em causa, o disposto no processo penal acerca da verificação da legitimidade da escusa e da dispensa do dever de sigilo invocado”.

O princípio da cooperação encontra-se previsto no artº. 7º, prescrevendo este que:
“1–Na condução e intervenção no processo, devem os magistrados, os mandatários judiciais e as próprias partes cooperar entre si, concorrendo para se obter, com brevidade e eficácia, a justa composição do litígio.
2–O juiz pode, em qualquer altura do processo, ouvir as partes, seus representantes ou mandatários judiciais, convidando-os a fornecer os esclarecimentos sobre a matéria de facto ou de direito que se afigurem pertinentes e dando-se conhecimento à outra parte dos resultados da diligência.
3–As pessoas referidas no número anterior são obrigadas a comparecer sempre que para isso forem notificadas e a prestar os esclarecimentos que lhes forem pedidos, sem prejuízo do disposto no n.º 3 do artigo 417.º.
4–Sempre que alguma das partes alegue justificadamente dificuldade séria em obter documento ou informação que condicione o eficaz exercício de faculdade ou o cumprimento de ónus ou dever processual, deve o juiz, sempre que possível, providenciar pela remoção do obstáculo”.

Refere José Lebre de Freitas [3] que o nº. 1 do artº. 417º, e o dever de cooperação em equação (cooperação em sentido material), “colocado em sede de instrução do processo, faz recair sobre as partes – e também sobre terceiros, para tanto solicitados pelo tribunal – o dever de prestarem a sua colaboração para a descoberta da verdade, facultando objectos que constituam meios de prova (documentos ou monumentos: arts. 428 a 431 e 416 (…), submetendo-se elas próprias à inspecção judicial (cf., art. 490-1) e ao exame pericial (…)”, existindo apenas dois limites a considerar: “o respeito pelos direitos fundamentais (nomeadamente, o direito à integridade pessoal, o direito à reserva da vida privada e familiar e o direito à inviolabilidade do domicílio, da correspondência e dos outros meios de comunicação privada: arts. 25-1, 26-1 e 34-1 da Constituição da República) e o respeito pelo direito ou dever de sigilo (sigilo profissional ou dos funcionários públicos, ou segredo de Estado)” (sublinhado nosso).
Assim, enquanto o transcrito artº. 7º consagra um dever geral de cooperação, o artº. 417º traduz a sua emanação no campo da instrução da causa, sendo que tal “dever de colaboração na descoberta da verdade não atinge somente as partes, embora a elas se dirija em primeira linha ; estende-se também a terceiros, atento o interesse público da boa administração da justiça, que necessita da exacta reconstituição da situação de facto a julgar” [4].  

Apreciando o conteúdo do dever de cooperação, já referenciava Alberto dos Reis [5] (a propósito do artº. 524º do Cód. de Processo Civil de 1939, na origem do actual artº. 417º) que “na vigência do Cód. de 76 discutiu-se se era admissível, em acção de investigação de paternidade ilegítima, exame judicial na pessoa do pretenso pai, tendente a averiguar se ele tinha, na planta do pé direito, um sinal preto semelhante ao que tinha o investigante. A questão de saber se a diligência era admissível traduzia-se realmente nisto: decidir se o pretenso pai tinha o dever de se submeter ao exame ou se o tribunal tinha o poder de lho impor”, o que veio a resolver-se,”não sem hesitações, no sentido afirmativo”, por Acórdão do STJ de 09/02/1906.

Acrescenta que, perante o então vigente artº. 524º, tais dúvidas não teriam razão de ser, por ser “evidente que o pretenso pai tem de submeter-se a inspecção ou exame na sua pessoa, desde que seja ordenado, por se considerar necessário ou útil para a descoberta da verdade, quer o exame haja de recair somente sobre a fisionomia ou parte descoberta do corpo, quer sobre parte recôndita”.

Assim, independentemente do objectivo da acção, “a parte tem de submeter-se às inspecções que forem determinadas. A regra do art. 524º só tem como limite o interesse da averiguação da verdade ; e este interesse está traduzido na fórmula «que forem julgadas necessárias». Desde que o tribunal repute necessária a inspecção e a ordene, a parte tem de sujeitar-se a ela”, pelo que “(…) não basta que a diligência se considere útil. A inspecção só pode impor-se à parte ou a terceiro com o fundamento de necessidade, conforme explicámos ; não é suficiente o critério da utilidade”.

Por fim, no que concerne ao incumprimento de tal dever de cooperação pelas partes na acção, o legal sancionamento para o recusante estava expressamente previsto, traduzindo-se em “considerarem-se provados os factos que se pretendiam averiguar”.

A propósito do artº. 519º do Cód. de Processo Civil de 1961, reproduzido no actual artº. 417º, refere Lopes do Rego [6] prever o nº. 2 de tal normativo a regulação dos efeitos ou sanções “decorrentes de recusa de colaboração devida, prevendo sucessivamente a condenação em multa, a realização por via coactiva da diligência, a inversão do ónus probatório e a livre apreciação do valor, em termos probatórios, da recusa – sendo evidente que estes dois últimos efeitos pressupõem necessariamente que o recusante seja parte”.

Todavia, devendo os meios coercitivos que forem possíveis conciliar-se com os direitos e garantias fundamentais, “em certos casos, a execução específica e coactiva do comportamento devido pela parte ou por terceiro poderá revelar-se incompatível com aqueles direitos fundamentais, pelo que não poderá ter lugar a realização pela força da diligência instrutória pretendida”.

Tal não traduz, contudo, “que a parte ou o terceiro não estivesse efectivamente obrigado a cooperar com o tribunal, nos termos que lhe foram legitimamente determinados: o que se não configura como possível ou exigível é, perante a recusa em acatar espontaneamente o comportamento determinado, ocorrer realização coerciva da diligência instrutória tida por necessária – incorrendo consequentemente a parte nas outras sanções previstas na lei: multa (eventualmente por litigância de má-fé, se o comportamento da parte reveste suficiente gravidade), inversão do ónus da prova, se o meio probatório em causa for absolutamente essencial, de modo a que a recusa da parte tenha acabado por tornar impossível a prova à contraparte, livre apreciação da recusa pelo tribunal, nos restantes casos”.

Acrescenta, então, o mesmo Ilustre Autor, dever ser á luz destas considerações a análise a efectuar acerca da “problemática dos exames hematológicos em acções de reconhecimento da paternidade”, dispondo o artº. 1801º, do Cód. Civil, acerca dos exames de sangue e outros métodos científicos, que “nas acções relativas à filiação são admitidos como meios de prova os exames de sangue e quaisquer outros métodos cientificamente comprovados”.

Deste modo, deve ser rotulado de legítima “a decisão que determina dever o interessado submeter-se a exame hematológico no IML, por ser manifesto que a realização deste não contende com a «dignidade humana», nem com o direito à integridade física e moral daquele” (sublinhado nosso).

Todavia, não deve ser considerada “viável a execução coercitiva do exame, no caso de recusa, já que a execução forçada deste já poderia pôr em causa tais direitos (…)”.

Ora, perante a posição do recusante, “se o exame se configurava como absolutamente essencial á determinação da filiação biológica – implicando, consequentemente, a recusa do pretenso pai a verdadeira impossibilidade de o autor fazer prova da invocada filiação biológica (por exemplo, em consequência de, no caso concreto, inexistirem meios probatórios que a possam demonstrar indirectamente) deverá aplicar-se o preceituado no nº. 2 do art. 344º do CC, presumindo-se a paternidade e passando a incumbir ao recusante o ónus de criar «dúvidas sérias» sobre ela”.

Adrede, acrescenta-se, ainda, no que concerne aos limites ao dever de cooperação inscritos nas alíneas do nº. 3 do artº. 519º (actualmente, artº. 417º), dever adoptar-se uma posição de cautela e ponderação “na densificação e concretização das cláusulas gerais constantes desta norma”. Cita, então, o Acórdão do Tribunal Constitucional nº. 263/97 (DR, II, 01/07/1997, pág. 2567), onde se exarou que “o direito a proteger, pois que relacionado com a dignidade da pessoa humana, tem ele mesmo de ser exercido com dignidade, pois todas as liberdades, todos os direitos, sofrem as restrições impostas pelo respeito da liberdade e dos direitos dos outros. Ou, se se preferir, a autonomia dos direitos fundamentais é limitada na medida dos deveres de solidariedade para com os outros homens e para com a sociedade pois o seu titular vive em comunidade e, como tal, obriga-se a suportar as restrições e as compressões indispensáveis à acomodação dos direitos comunitários, ordenados ao bem comum de todos”.

Pelo que, nestes termos, impõe-se “uma apreciação ponderada dos interesses em causa, no pressuposto de que a protecção concedida aos direitos em questão não pode limitar intoleravelmente outros direitos: a salvaguarda de outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos há-de obedecer ao princípio da proporcionalidade em sentido amplo, proibindo o excesso, devendo, por isso, as restrições serem necessárias, adequadas, e proporcionais (cfr. art. 18º da Constituição, segunda parte do seu nº. 2)” [7].

José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre [8] defendem, na esteira do exposto, que, no âmbito do artº. 417º, que é norma de direito probatório material, o comportamento do recusante que seja parte na causa está “sujeito à livre apreciação do julgador para efeitos probatórios, confrontando-se assim com o resultado da produção dos outros meios de prova livre no processo de formação da convicção judicial sobre a verificação da matéria de facto”. E, inclusive, o mesmo comportamento, de forma mais drástica, pode “determinar, quando verificado o condicionalismo do art. 344-2 CC, a inversão do ónus da prova”, o que acontece “quando a recusa impossibilita a prova do facto a provar, a cargo da contraparte, por não ser possível consegui-la com outros meios de prova, já por a lei o impedir (…), já por concretamente não bastarem para tanto os outros meios produzidos (…)”.

No âmbito do mesmo normativo, possui o enunciado dever de cooperação para a descoberta da verdade de dois limites: “o respeito pelos direitos fundamentais, imposto pela Constituição e referido nas alíneas a) e b) do nº. 3 (cf., arts. 25-1 CP, 26-1 CP e 34-1 CP) ; o respeito pelo direito ou dever de sigilo, a que se refere a alínea c) do nº. 3”.

Traduz o primeiro limite “que a ninguém é exigida a cooperação quando tal implique violação de direitos fundamentais e, ainda – apesar de esta consequência não decorrer do nº. 3 do preceito anotado, mas, mais propriamente, do art. 32-8 CR, aplicável ao processo civil, e do art. 195 -, que não podem ser utilizadas em processo as provas obtidas mediante violação de direitos fundamentais ou cuja produção em juízo implique a violação destes direitos”.

Aduzem os mesmos anotadores [9] que, na ponderação deste dever de cooperação ou colaboração, “não é legítima a recusa à realização dos exames hematológicos em ação relativa à filiação (art. 1801 CC); mas, tida em conta a tutela dos direitos de personalidade, não é admissível a execução coerciva desses exames (…), sem prejuízo de a recusa dever ser valorada em termos de prova, podendo mesmo, designadamente quando implique a impossibilidade de o autor fazer prova da filiação biológica, dar lugar á inversão do ónus da prova” [10] (sublinhado nosso). 

– Da pertinência da sua determinação, tendo em atenção a fase processual em equação e os eventuais princípios colidentes.

Já supra apreciámos acerca do legal acolhimento dos exames de sangue e quaisquer outros métodos cientificamente comprovados como meio probatórios nas acções respeitantes à filiação – cf., artº. 1801º, do Cód. Civil.

E, in casu, reitera-se, o Apelante, pretenso progenitor, também não questiona a pertinência ou legal cabimento na realização de tal prova pericial. Antes questiona a sua necessidade ou utilidade na presente fase processual, tendo em atenção as excepções peremptórias invocadas, cujo eventual juízo de procedência, provocará a absoluta inutilidade de tal meio probatório.

Ora, também se nos afigura inquestionável que o momento processual adequado para a produção do determinado meio probatório é o da fase de instrução, previamente à designação de data para a audiência final. O que é realçado pelo juízo de excepção exposto no artº. 600º do Cód. de Processo Civil.

Assim, perante as duas evidências legais consignadas, justifica-se diferenciada solução no caso concreto em apreciação ?

Não o cremos. Decididamente.

Efectivamente, tendo em atenção o ponto 1 dos temas da prova - saber se MJ... nasceu da gravidez que sobreveio à sua mãe, MM..., na sequência de relacionamento sexual havido entre esta e MF..., nos primeiros 120 dias dos 300 que precederam o nascimento de MJ... – a realização do determinado exame pericial configura-se, sem equívocos, como manifestamente pertinente.

E, caso as deduzidas excepções peremptórias venham a conhecer juízo de improcedência, tal meio probatório revelar-se-á, logicamente, de singular utilidade, na apreciação daquele tema de prova e consequente conhecimento do objecto da acção [11].

Pelo que, devendo o mesmo ser produzido, logicamente, antes da realização da audiência de julgamento ou, pelo menos, até que termine a fase de produção de prova em sede de audiência de discussão e julgamento, não descortinamos que a determinação de tal realização viole o apelado princípio da proporcionalidade, ou que da sua realização se possa extrair, nesta fase processual, a prática de um acto inútil, legalmente proibido por força do prescrito no artº. 130º.

Com efeito, a entender-se assim o conceito de (in)utilidade, em termos de juízo tão redutor, muitos actos processuais praticados teriam necessariamente tal rotulagem, ainda que injustificada, pois bem se sabe que o processo não se constitui apenas mediante a prática de actos todos eles aproveitáveis em pleno, mas antes sendo condicionados pela marcha processual, entendimentos jurídicos perfilhados e opções, quer do julgador, quer das partes, que inviabilizam a superveniente pertinência ou necessidade de determinados actos, sem que no momento da sua prática tivesse que operar um necessário juízo de prognose de inutilidade (exemplificativamente, basta pensar na convocação de uma testemunha posteriormente prescindida pela parte que a arrolou, mesmo que já tenha comparecido em Tribunal).

Efectivamente, não seria curial postergar a realização do determinado meio probatório, condicionando-o à prévia outorga de uma sentença que julgasse improcedentes as excepções peremptórias invocadas, após o que se abriria uma nova fase instrutória (muitas vezes de duração incerta, sempre condicionada á colaboração das partes e disponibilidade de agenda das entidades que realizam a perícia) e posteriormente a prolacção de nova sentença que conhecesse acerca do mencionado primeiro tema da prova.

E, nem se diga, conforme refere o Apelante, que a determinada realização viola a liberdade e a integridade física do Apelante, apenas admissível quando absolutamente necessária, proporcional e adequada ao fim visado.

Com efeito, para além do carácter cada vez menos intrusivo de tais exames periciais, que muitas vezes apenas necessitam de uma mera recolha de saliva ou de um fio de cabelo, de forma a determinar o DNA , tal meio probatório, atenta a matéria em equação, mostra-se necessário, proporcional e adequado à finalidade prosseguida com os intentados autos de investigação de paternidade.

Ademais, conforme refere Estrela Chaby [12], “a enorme fiabilidade dos testes científicos hoje disponíveis, e o facto de esta fiabilidade ser cada vez mais do conhecimento público, têm consequências a vários níveis, no que toca ao objecto da norma em análise, ou seja, a prova das relações de filiação. Assim, por um lado, a prova científica ganhou foros de quase exclusividade, ficando as demais provas relegadas para casos excepcionais, em que aquela não seja possível”.

Por fim, contrariamente ao aduzido pelo Recorrente, não se vislumbra nem se entende que a sua sujeição aos determinados exames periciais, nesta fase processual e independentemente do resultado dos mesmos, ou mesmo a sua determinação e recusa da sua parte, venha a ser causa de julgamentos públicos antecipados, com impacto na vida social dos intervenientes. 

Efectivamente, a existir tal avançado impacto, o mesmo resulta da própria existência da acção e petitório nesta deduzido, e não da realização de um meio probatório pericial. A que acresce, na parte da aludida e eventual recusa na sua realização por parte do Apelante, que tal só ao mesmo seria imputável, independentemente das leituras que tal recusa pudesse proporcionar.

Pelo que, urge concluir, foi acertadamente determinada a realização dos competentes exames periciais, nada havendo, assim, a apontar ao despacho apelado que, nessa conformidade, deverá manter-se, num juízo de total improcedência da presente apelação.
***

Nos quadros do artº. 527º, nºs. 1 e 2, do Cód. de Processo Civil, tendo o Apelante decaído no recurso interposto, suporta o pagamento das custas devidas.
***

IV.–DECISÃO

Destarte e por todo o exposto, acordam os Juízes desta 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa em:
a)- Julgar improcedente o recurso de apelação interposto pelo Réu MF...., na presente acção de investigação de paternidade em que figura como Autora MJ... ;
b)- Em consequência, mantém-se, na íntegra, o despacho recorrido/apelado.
c)- Nos quadros do artº. 527º, nºs. 1 e 2, do Cód. de Processo Civil, tendo o Apelante decaído no recurso interposto, suporta o pagamento das custas devidas.
***


Lisboa, 07 de Março de 2019


 
Arlindo Crua–Relator   
António Moreira – 1º Adjunto
Magda Geraldes – 2ª Adjunta
(em substituição)



[1]A presente decisão é elaborada conforme a grafia anterior ao Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, salvaguardando-se, nas transcrições efectuadas, a grafia do texto original.
[2]Todas as referências legais infra, salvo expressa menção em contrário, reportam-se ao presente diploma.
[3]Introdução ao Processo Civil Conceito e Princípios Gerais à Luz do Novo Código, 4ª Edição, Gestlegal, pág. 188 e 189.
[4]Cf., Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2ª Edição, Coimbra Editora, pág. 478.
[5]Código de Processo Civil Anotado, Vol. III, 4ª Edição, Coimbra Editora, pág. 320 a 323.
[6]Comentários ao Código de Processo Civil, Vol. I, 2ª Edição, 2004, Almedina, pág. 453 e 454.
[7]Idem, pág. 455 e 456.
[8]Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2º, 3ª Edição, Almedina, pág. 222 e 223.
[9]Idem, pág. 225 e 226.
[10]Cf., ainda, as indicações doutrinárias e jurisprudenciais aí indicadas, quer as defensoras apenas de imposição de multa, da livre apreciação da conduta do progenitor recusante para efeitos probatórios, bem como a conformidade constitucional ínsita a tal valoração da recusa.
[11]Especificamente no que concerne à excepção peremptória de caducidade, sempre a mesma teria ainda que vencer o juízo de inconstitucionalidade que parte da jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça vem defendendo existir no prazo previsto nº. 1 do artº. 1817º, do Cód. Civil.
Exemplificativamente, por todos, o recente douto aresto de 15/02/2018 – Relatora: Graça Amaral, Processo nº. 2344/15.8T8BCL.G1.S2, in www.dgsi.pt – defendeu que “qualquer limitação temporal neste âmbito, ainda que se considere de prazo razoável, constitui uma compressão da revelação da verdade biológica, que é o princípio alicerçante do regime da filiação.
Consequentemente, a limitação temporal ínsita no n.º1 do artigo 1817.º do CC, viola, de forma desproporcionada, os direitos fundamentais à identidade pessoal e ao desenvolvimento da personalidade e, nessa medida, mostra-se materialmente inconstitucional (violando, entre outros, dos arts.16.º, n.º1, 18.º, n.º 2 e 26.º, n.º 1, da CRP)”. 
[12]Código Civil Anotado, Vol. II, Coordenação de Ana Prata,
2017, Almedina, pág. 722.