Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
743/09.3TTALM.L1-4
Relator: SÉRGIO ALMEIDA
Descritores: ACIDENTE IN ITINERE
TRAJETO NORMAL
DESCARACTERIZAÇÃO DE ACIDENTE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/18/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Texto Parcial: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO
Sumário: SUMÁRIO:
I. Nos acidentes in itinere trajeto normal de e para o local de trabalho é aquele que é razoável e racional, de acordo com os critérios de um trabalhador vulgar como o sinistrado, não tendo necessariamente de ser um único nem o mais curto, antes podendo variar designadamente de acordo com as condições meteorológicas, a situação de trânsito, o meio de locomoção utilizado, a situação física ou o estado do próprio trabalhador.
II. Não revela negligência grosseira suscetível de descaraterizar o acidente o facto de o trabalhador, no centro de uma área urbana, atravessar fora da passadeira, ainda para mais nada se provando sobre a existência de alguma passadeira nas imediações.
(Elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Parcial:Acordam os juízes no Tribunal da Relação de Lisboa.
I.
A) Sinistrada (também designado infra por A. de autora): AA;
Responsável civil (também designada por R. de ré) e recorrente: BB - Companhia de Seguros , SA.
A A. alegou ter sofrido um acidente no dia 27.11.2008, quando, sob as ordens, direcção e fiscalização de CC, exercia as funções inerentes à categoria profissional de cozinheira, mediante a remuneração anual de € 8.638,42 ( € 617,03 x 14), que consistiu num violento embate provocado por um autocarro quando se deslocava da sua residência para o seu local de trabalho, em consequência do que  sofreu lesões que lhe afectaram a visão do olho esquerdo e passou a sofrer dores de cabeça insuportáveis e de um grande descontrolo emocional que deu lugar a uma grave depressão nervosa; que o empregador tinha transferido a responsabilidade civil emergente de acidente de trabalho para a Ré, que não obstante tal facto e a circunstância de lhe ter prestado assistência clínica não assumiu a responsabilidade pelo acidente dos autos, afirmando que não se trata de acidente de trabalho porque ocorreu fora do trajecto garantido e, ainda, por haver negligência grosseira da sinistrada. A sinistrada não concordou com a IPP de 16,965% que lhe foi atribuída em exame médico. A posição da ré determinou que a A. tenha vindo a suportar todas as despesas médicas e medicamentosas resultantes das lesões de que é portadora, decorrentes do acidente, tendo despendido, até à data, a quantia de € 728,50 em consultas, medicamentos e deslocações de táxi.
Com estes fundamentos pediu a condenação da Ré a reconhecer que se trata de acidente de trabalho, a pagar-lhe uma pensão no montante que vier a ser fixado, de acordo com o salário auferido à data do acidente e com a incapacidade parcial permanente que lhe vier a ser atribuída pela Junta Médica e todas as despesas já despendidas pela mesma e bem como aquelas que vierem a ser pagas pela A. em resultado das lesões de que é portadora.
A Ré Seguradora contestou alegando que o infortúnio não é laboral,  nomeadamente de trajecto, uma vez que a autora fez um desvio de cerca de 120 metros no percurso, habitualmente, feito da sua residência para o trabalho a fim de tratar de assuntos pessoais; e também porque a autora ao atravessar a via pública fê-lo em total inobservância pelas mais basilares normas de segurança, tendo o acidente verificado sido fruto de negligência grosseira. E pediu a improcedência da ação.
Foram saneados os autos e condensada a matéria de facto, com elaboração de base instrutória.
Afinal foi proferida sentença que, na parte relevante, estribou-se e decidiu desta sorte:
julgo a presente acção parcialmente procedente e, em consequência, condeno a Ré “Companhia de Seguros BB, S.A” a pagar à Autora:
b) a quantia total de € 4.417,59 (quatro mil quatrocentos e dezassete euros e cinquenta e nove cêntimos) a título de indemnização por ITA e ITP, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde o fim da quinzena em que cada parcela deveria ter sido liquidada e até efectivo e integral pagamento. À referida quantia deve ser descontada a quantia já paga pela ré à autora a idêntico título.
c) o capital de remição de uma pensão anual e vitalícia de € 1.025,85 (mil e vinte e cinco euros e oitenta e cinco cêntimos), devida desde 01 de Janeiro de 2010, capital ao qual acrescem juros de mora, à taxa legal, desde esta data até efectivo e integral pagamento.
d) Absolvo a Ré do pedido de pagamento à autora da quantia total de € 728, 50 a título de despesas.
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B) Inconformada, a R. recorreu, formulando estas conclusões:
(…)
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Foram colhidos os competentes vistos.
A DM do MºPº teve vista, pronunciando-se pela improcedência do recurso.
*
II
A) É sabido e tem sido jurisprudência uniforme a conclusão de que o objecto do recurso se limita em face das conclusões insertas nas alegações do recorrente, pelo que, em princípio, só abrange as questões aí contidas, como resultado aliás do disposto nos artigos 636 e 639, ambos do Novo Código de Processo Civil.
Deste modo o objecto do recurso consiste, verificado antes do mais se merece censura a decisão da matéria de facto, em saber se o infortúnio dos autos constitui acidente in itinere ou não, face ao local em que ocorreu, e a não ser assim, se se mostra descaraterizado por eventual negligencia grosseira da sinistrada ao atravessar fora da passadeira.
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B) Da matéria de facto
(…)
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Ficaram provados, pois, os seguintes factos:
1- A A.  AA  foi admitida ao serviço de CC, no dia 1 de Julho de 1986, para trabalhar sob a sua autoridade, direcção e fiscalização no restaurante de que o mesmo é proprietário, sito na Rua (…), Quinta do Cerrado, Monte da Caparica, para exercer as funções de cozinheira, mediante o salário anual de € 8.638,42 (617,03 x 14).
2- A entidade empregadora da autora, CC, transferiu totalmente, pela retribuição anual de € 8.638,42 (617,03 x 14), a responsabilidade infortunística decorrente de acidentes de trabalho para a Companhia de Seguros “ BB”, através de um contrato de seguro do ramo de “ acidentes de trabalho”, titulado pela apólice nº. (…).
3- No dia 27.11.2008, cerca das 10 horas, na Avenida D. Afonso Henriques, em Almada, a autora sofreu um embate provocado por um autocarro, com a matrícula 00-00-00, conduzido por LMPD, que circulava no sentido Almada/Cacilhas.
4- Na sequência desse acidente resultaram para a sinistrada diversas lesões.
5- A autora foi submetida a exame médico, neste Tribunal, tendo a Srª. perita médica concluído pela verificação das seguintes incapacidades:
- ITA de 27.11.2008 a 31.05.2009;
- ITP de 40 % de 1.06.2009 a 31.08.2009;
- ITP de 20% de 1.09.2009 a 30.12.2009;
- Data da alta: 31.12.2009.
- Coeficiente Global de Incapacidade de 0.16965.
6- O referido em 3) aconteceu quando a autora se deslocava da sua residência sita na Rua (…)  Almada, a fim de se dirigir para o seu local de trabalho, sito Rua (…), Quinta do Cerrado, Monte da Caparica (resposta ao art.º 1º da base instrutória, bi).
7- Tal como se verificava diariamente, nesse dia, a autora deslocava-se a pé pelo passeio pedonal existente na Praça do M.F.A a fim de se dirigir à Av. D. Afonso Henriques, a fim de, aí, apanhar o autocarro que seguia para o Monte da Caparica, localidade onde se situava o seu local de trabalho (art 2º bi).
8- O “Metro de Superfície” foi inaugurado no dia 26 de Novembro de 2008 (4º bi).
9- Facto este que tinha determinado grandes alterações na cidade de Almada, designadamente, no que respeita aos sítios das paragens dos autocarros, estacionamento, circulação pedonal e circulação de veículos pesados e ligeiros (art.º 5º).
10- As paragens mais próximas da residência da autora situam-se na Av. Nuno Alvares Pereira, a cerca de 200 metros de distância e na Av. D. Afonso Henriques a cerca de 250 metros de distância (art.º 12º bi).
11- A autora optou pela paragem sita na Av. D. Afonso Henriques (art.º 13º bi).
12- Tendo o acidente ocorrido em local que dista pelo menos 120 metros daquela paragem, no sentido oposto ao da residência da autora (art.º 14º bi).
13- A autora apesar de não ter horário fixo, habitualmente entrava ao serviço por volta das 10h00 (art.º 18º bi).
14- O embate ocorreu no início da travessia da via e fora da passadeira (art.º 19º bi).
15- A autora iniciou a marcha com vista a atravessar a via pública (20º bi).
16- Na sequência do acidente, foi a autora transportada pelo INEM para o serviço de urgência do Hospital Garcia de Orta, onde lhe veio a ser diagnosticado traumatismo craneano com perda de conhecimento e fractura de costelas (art.º 21º bi).
17-A autora, na sequência do acidente, sofreu lesões que lhe afectaram a visão do olho esquerdo e para além das dores constantes que passou a sentir, ficou, também, com a imagem desfocada (art.º 22º bi).
18- A autora passou a sofrer de dores de cabeça, ao ponto de perder os sentidos, sentindo constantemente fortes tonturas e desequilíbrio e passou a sofrer de descontrolo emocional, que deu lugar a uma depressão nervosa que lhe tem vindo a provocar episódios de pânico (art.º 23º bi).
19- A autora já despendeu com consultas, medicamentos e deslocações de táxi a quantia global de € 728,50 (art.º 24º bi).
20- Por sentença proferida no apenso de fixação da incapacidade para o Trabalho foi fixada à sinistrada uma incapacidade permanente parcial de 0,16965.
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C) De direito
A revolução industrial, com a produção em série que trouxe, estando os trabalhadores confinados nos espaços físicos autónomos que são as fábricas, trouxe um aumento exponencial dos acidentes de trabalho em resultado da utilização da máquina, primeiro a vapor e depois a outras energias, no processo produtivo. Pior, os danos tenderam a tornar-se muito mais graves do que em épocas anteriores[1]. Gerou-se, assim, no séc. XIX, um sério problema social, para cuja resolução se impunha a criação dos remédios jurídicos adequados.
Num primeiro momento a reparação dos danos ficou sujeita à prova da culpa do agente, a cargo do lesado. Embora adequado às necessidades da acumulação de capital, o princípio casum sentit dominus conduziu a resultados infelizes[2], ficando os sinistrados em regra sem qualquer reparação. Efectivamente, era muito difícil a prova da culpa do empregador, não apenas pela diferença de recursos existente entre este e o trabalhador, mas também porque muitas vezes o empregador realmente não tinha qualquer culpa[3]. E também era complexo demonstrar o nexo de causalidade entre a culpa e o dano
Face à inadequação dessa responsabilidade obrigacional clássica (teoria da culpa aquiliana) no final do sec. XIX intentou-se inverter o ónus da prova, mediante o recurso à teoria da responsabilidade contratual[4]. Seria ao empregador que cabia demonstrar que não tivera qualquer culpa na produção do evento, o qual se produzira, em princípio, apenas devido à sua má organização do trabalho. Surgida na sequência das críticas de Sauzet e Sauctelette, e consagrada designadamente na Bélgica e na Suíça, não foi acolhida entre nós, revelando-se, aliás, tão insuficiente como a anterior[5].
Uma perspectiva próxima era a que fazia assentar a responsabilidade patronal numa ideia de responsabilidade extra-contratual por facto ilícito, presumindo-se em termos elidíveis a culpa do empregador, com os mesmos (escassos) resultados.
Com vista a ultrapassar as dificuldades que surgiam para obter o ressarcimento, já que o empregador provava amiúde com facilidade que nenhuma culpa tivera, ficando sem cobertura os acidentes devidos a caso fortuito ou de força maior e a negligência do sinistrado, começa a falar-se em responsabilidade objectiva ou pelo risco. Em lugar da culpa do empregador parte-se de uma relação de causa e efeito entre o acidente e a actividade laboral.
Numa visão inicial defende-se que a responsabilidade emerge do risco inerente ao exercício de toda e qualquer actividade profissional, sendo razoável que quem aufere os benefícios do labor suporte os correspondentes riscos (ubi commoda ibi incommoda; ou ubi emolumentum ibi onus). É a teoria do risco profissional.
Este entendimento foi entre nós adoptado pela Lei 83, de 24.1.1913[6], que pela primeira vez estabeleceu um regime específico de reparação dos desastres no trabalho (na terminologia do diploma). 
Numa segunda perspectiva procurou acautelar-se a protecção de actos preparatórios ou consequentes à prestação do trabalho, mas com ele conexos, e os acidentes ocorridos no caminho para e do local de trabalho – os acidentes in itinere. Designada pelo risco de autoridade ou económico, aparta-se da conexão directa acidente – trabalho para se centrar na noção ampla de autoridade do empregador.  
Esta é a concepção que enformou as leis de acidentes de trabalho subsequentes[7], a saber a n.º 1942, de 27.7.36 e a n.º 2127, de 3.8.65 (quanto às Lei n.º 100/97, de 13.9.97[8], e 98/2009, de 4.9, releva a ideia do risco de trajeto).
Entretanto, a jurisprudência, designadamente em França, interpretou o art.º 1º da Lei (gaulesa) de 9.4.1898 no sentido de, progressivamente, abranger outras situações em que o trabalhador, não estando no local e no tempo de trabalho, se encontrava ainda sob a autoridade patronal, com a necessária manutenção do nexo de subordinação resultante do contrato de trabalho.
Tal era o caso dos trabalhadores enviados em missão e que eram considerados em serviço até a cumprirem integralmente, aceitando-se que nas deslocações necessárias se compreendia o regresso a casa (p. ex. os caixeiros viajantes); dos alojados pelo empregador nos estaleiros onde laboravam, considerando-se que estavam em serviço até entrarem no alojamento atribuído em termos tais que recuperassem a sua plena liberdade.
Mas também se admitiu a responsabilidade do empregador se o acidente ocorria
- nas instalações da empresa,
- num trajecto por ele imposto,
- se para chegar ao local de trabalho o sinistrado tinha de passar por um local perigoso,
- em transporte fornecido pelo empregador (ou até custeado por ele)[9].
 Tudo isto acarretou uma ampliação da noção de acidentes por motivo de trabalho e conduziu à consagração legislativa da modalidade do acidente in itinere.
Entre nós a consagração legislativa ocorreu com a Lei n.º 2127 de 3.8.65, regulamentada pelo Decreto n.º 360/71, de 21.8, cuja Base V, n.º 2, al. b), que dispunha: “considera-se também acidente de trabalho o ocorrido: (b) na ida para o local de trabalho ou no regresso deste, quando for utilizado meio de transporte fornecido pela entidade patronal, ou quando o acidente seja consequência de particular perigo do percurso normal ou de outras circunstâncias que tenham agravado o risco do mesmo percurso”.
Por seu lado, os art.º 10 e 11 do Decreto-Lei n.º 360/71 alargavam a noção aos acidentes ocorridos entre o local de trabalho e a residência habitual ou ocasional e entre qualquer um destes e os locais de pagamento da retribuição e de assistência ou tratamento por virtude de anterior acidente.
Certo é, todavia, que a mesma evolução jurisprudencial prévia à expressa consagração legal se verificou em Portugal[10].
A Lei 2127 veio a ser substituída pela a Lei n.º 100/97, de 13.9.97, regulamentada pelo Decreto-Lei n.º 143/99, de 30 de abril, aplicável ao caso (nos termos dos art.º 187/1 e 188 da Lei 98/09, visto o acidente ter ocorrido antes de 1.1.2010), e esta pela Lei 98/2009, de 4 de Setembro.
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Poder-se-á discutir se a reparação dos danos decorrentes de acidentes in itinere é uma mera opção política, havendo até sistemas jurídicos que desconhecem a reparação dos acidentes laborais enquanto tais[11], e as razões materiais que levaram à consagração desta responsabilidade[12].
Alternativa possível seria diluir a reparação dos acidentes laborais nos esquemas de proteção da circulação automóvel. No entanto, a reparação dos acidentes rodoviários supõe em regra a culpa de um terceiro e a ausência de culpa (ou pelo menos um grau de culpa não elevado) do lesado (art.º 483, 487 e 570 do Código Civil), deixando de fora aqueles que são devidos inteiramente a culpa do lesado; e, por outro, casos há em que nem há intervenção de terceiros, estando mesmo fora do âmbito da circulação estradal ou ferroviário[13]. Ou seja, seria uma alternativa muito insuficiente e inadequada para a proteção dos trabalhadores.
No que aos acidentes in itinere toca ainda se pode discutir se tem alguma especificidade ou, no fundo, não é mais do que um acidente de trabalho como qualquer outro, com a única particularidade de se dar no caminho.
A verdade, porém, é que o acidente in itinere se caracteriza precisamente por ter lugar fora do tempo e do lugar de trabalho que carateriza o acidente de trabalho propriamente dito. Estas diferenças levam-nos a concluir, porém, que são diversas as noções de acidente de trabalho (em sentido estrito[14]) e de acidente in itinere. Tendo em comum a conexão trabalho – lesão[15], não partilham os demais elementos “tempo e local de trabalho”[16] [17]. Em suma: os acidentes in itinere são acidentes de trabalho em sentido amplo[18]: têm conexão com o trabalho e a própria lei os designa como tal[19] [20], traduzindo uma extensão da noção de acidente de trabalho (em sentido estrito, isto é, ocorridos no tempo  e no local de trabalho e relacionados com ele), abrangendo também situações que não estariam formalmente [21], compreendidos no conceito indeterminado do art.º 8, n.º 1, da Lei 98/2009, de 4.9[22]. Deste modo, o acidente no percurso ocorre fora do local e do tempo de trabalho, continuando a ser relevante para o direito infortunístico pela sua relação com o trabalho, já que foi a necessidade de se deslocar por motivos laborais que expôs o trabalhador ao risco do sinistro.
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Dispõe o art.º 6º, n.º 2, al. a), da LAT aplicável (100/97) que “considera-se também acidente de trabalho o ocorrido no trajecto de ida e de regresso para e do local de trabalho, nos termos em que vier a ser definido em regulamentação posterior”.
A regulamentação veio na forma do Decreto-Lei n.º 143/99 (RLAT), de 30.04, cujo art.º 6º dispôs designadamente:
2 - Na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º da lei estão compreendidos os acidentes que se verifiquem no trajecto normalmente utilizado e durante o período de tempo ininterrupto habitualmente gasto pelo trabalhador:
a) Entre a sua residência habitual ou ocasional, desde a porta de acesso para as áreas comuns do edifício ou para a via pública, até às instalações que constituem o seu local de trabalho;
(...)
3 - Não deixa de se considerar acidente de trabalho o que ocorrer quando o trajecto normal tenha sofrido interrupções ou desvios determinados pela satisfação de necessidades atendíveis do trabalhador, bem como por motivo de força maior ou por caso fortuito. (sublinhado nosso).
No que toca à negligencia grosseira a LAT determina:
Artigo 7.º
Descaracterização do acidente
1 - Não dá direito a reparação o acidente:
(…) b) Que provier exclusivamente de negligência grosseira do sinistrado;
 E o RLAT consagrou:
Artigo 8.º
Descaracterização do acidente
(…) 2 - Entende-se por negligência grosseira o comportamento temerário em alto e relevante grau, que não se consubstancie em acto ou omissão resultante da habitualidade ao perigo do trabalho executado, da confiança na experiência profissional ou dos usos e costumes da profissão.
Importa que nos coloquemos duas questões: o que é o trajeto normal? E quando é que existe negligencia grosseira do sinistrado?
Como já defendemos há muito[23], a normalidade não se define por uma mera habitualidade: não é trajeto normal aquele que o sinistrado segue diariamente, sem se poder desviar nem para a esquerda, usando uma alegoria, como o carreiro que o capuchinho vermelho tomaria impreterivelmente na floresta: é que na sociedade humana existem, muitas vezes, vários caminhos possíveis e razoáveis, e é precisamente na valoração da sua razoabilidade que se encontra a normalidade. Por exemplo, se o trabalhador se desloca a pé, na malha urbana tanto poderá ir pelas vias principais como pelas ruas paralelas, sem que uma opção ou outra se revista de qualquer irracionalidade. É, portanto, expetável que o faça, até para variar, e nem o empregador nem a seguradora têm nada com isso. Se se desloca de automóvel o mais racional é até que o faça sempre que saiba que os trajetos mais comummente utilizados e porventura mais curtos estão por qualquer motivo obstruídos.
Então onde está a normalidade? Está na racionalidade do trajeto, na sua razoabilidade para um trabalhador normal. É que, como diz Júlio Gomes, in O Acidente In Itinere e a Sua Descaraterização, Coimb. Ed., 2013, 171-172, “frequentemente existirão vários trajetos normais. (…) O trajeto normal não será necessariamente o mais curto e poderá variar em função das condições meteorológicas, da situação de trânsito, do meio de locomoção utilizado, da situação física ou do estado do próprio trabalhador”. Portanto o trajeto não é normal quando, à luz da praxis de um trabalhador como o sinistrado, colocado naquela situação concreta, é seguido não pela necessidade de se deslocar de ou para o local de trabalho, mas por outra motivação alheia.
No caso temos que a trabalhadora saiu de casa com o intuito de se dirigir ao local de trabalho (n.º 6 dos factos provados), que havia alterações no tráfego citadino decorrentes da entrada em funcionamento do metro de superfície (8, 9), que optou por uma das duas paragens mais próximas de autocarro, a montante e a jusante, para onde, como de costume, se dirigiu a pé (10, 11, 7) e que o acidente ocorreu a 120 metros da paragem “no sentido oposto ao da residência da A.” (12, 3), merecendo ainda atenção que a A. reside no centro de Almada e o local de trabalho se situa no Monte da Caparica (n.º 1 e 6).
Considerando que o Monte da Caparica se situa fora de Almada, a quilómetros da residência da A., que o tráfego citadino se debatia com alterações rodoviárias e pedestres impostas pela criação do metro de superfície, e que o acidente ocorreu a 120 metros da paragem do autocarro, é óbvio e manifesto que a trabalhadora seguia o seu itinerário normal, aquele que a levaria ao local de trabalho. E continuaria a ser assim mesmo que se provasse (apesar de tal não ter sido provado) que foi à pastelaria situada cem metros a baixo (mas porque é que a trabalhadora, que se desloca quilómetros, não havia, numa ideia de razoabilidade, de poder ir à pastelaria, ainda para mais face à ressalva do n.º 3 do art.º 6º da RLAT ??? Claro que pode.).
Sem margem para duvidas: é acidente in itinere.
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Também sem qualquer duvida se conclui que o acidente não é descaraterizado pela conduta da trabalhadora.
A descaraterização do acidente com fundamento na negligencia grosseira, como decidiu, seguindo orientação pacifica, o recente acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7.5.2014, “exige a verificação de dois requisitos: que o acidente provenha de negligência grosseira do sinistrado e que esta sua conduta seja a causa exclusiva do mesmo”.
Ora, a negligencia grosseira é uma violação agravada do dever de cuidado, em que não incorreria uma pessoa vulgar, uma conduta de tal modo destemperada que qualquer um vê que só por sorte não acabará mal. Como diz o mesmo Supremo Tribunal de Justiça, na fundamentação do acórdão de 21.3.13[24], “para que ocorra negligência grosseira, não basta a culpa leve, como negligência, imprudência, distracção, imprevidência ou comportamentos semelhantes, exigindo-se um comportamento temerário, reprovado por um elementar sentido de prudência. (…) A negligência grosseira corresponde a uma negligência particularmente grave, qualificada, atento, designadamente, o elevado grau de inobservância do dever objectivo de cuidado e de previsibilidade da verificação do dano ou do perigo. Trata-se de uma negligência temerária, configurando uma omissão fortemente indesculpável das precauções ou cautelas mais elementares, que deve ser apreciada em concreto, em face das condições da própria vítima e não em função de um padrão geral, abstracto, de conduta”.
É fácil de ver que nada disto se verifica. Em primeiro lugar o que se provou foi que o embate ocorreu no início da travessia da via e fora da passadeira (n.º 14), o que não permite concluir, nem de longe, que foi exclusivamente devido à conduta da A. que o acidente ocorreu (viria o autocarro em excesso de velocidade? O pavimento - que se afigura de pedra calçada - mais ou menos aderente, e restante condições da via, contribuiu de alguma sorte para o infortúnio? E as condições do veiculo e o restante tráfego?).
Por outro lado, também não pode afirmar-se que a A. agiu com negligência grosseira. Em primeiro lugar a argumentação da R. tem subjacente uma censura pelo atravessamento fora da passadeira que suscita reservas, nada se tendo provado e nem se lobrigando, nomeadamente do croquis da PSP, sobre a existência de passadeira nas imediações. Depois, ainda que esta existisse nas proximidades, é manifesto que o ato de atravessar fora da passadeira, num cenário de centralidade urbana como é o caso, está longe de revelar negligência grosseira [convergindo na apreciação veja-se o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18.1.2006, rel. Fernandes Cadilha: “a travessia de uma via, com duas faixas de trânsito no mesmo sentido, fora da passadeira para peões e num momento em que se encontrava aberto o sinal luminoso para o trânsito de veículos, sendo um comportamento citadino relativamente frequente, embora censurável, não corporiza um comportamento temerário em alto e relevante grau para efeito de se considerar descaracterizado o acidente de trabalho que resultou no atropelamento por um veículo automóvel”], sendo vulgar e podendo até revelar-se mais previdente, quando feito cautelosamente, do que o atravessar na passadeira sem as mesmas precauções, porque condutas menos cívicas, notória e infelizmente, como  chapéus, há muitas (e isto não significa que os peões devam deixar de usar sempre as passadeiras, muito pelo contrário). 
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III.
Pelo exposto o Tribunal julga improcedente o recurso e confirma a decisão recorrida.
Custas pela Ré seguradora.
Lisboa, 18 de Junho de 2014

Sérgio Almeida
Jerónimo Freitas
Francisca Mendes

[1] Sugestivamente, Elias Gonzalez-Posada Martinez, em “El Accidente de Trabajo: Evolucion Normativa y Tratamiento Jurídico Comparado” (acessível in http//www.der.uva.es/trabajo.acci2.html) afirma que “o risco, a proximidade de um dano, é o trágico companheiro de viagem de todo o trabalhador”. 
[2] Sobre esta matéria vide Luís Leitão, “Acidentes de Trabalho e Responsabilidade Civil (A Natureza Jurídica da Reparação de Danos Emergentes de Acidentes de Trabalho e a Distinção entre as Responsabilidades Obrigacional e Delitual)”, in ROA, 778.
[3] Christian Fabry, Les Accidents de Trajet – La Couverture de ce Risque en Droit Francais et en Droit Comparé, Paris, 1970, pag. 10, refere que apenas  ¼ dos acidentes se deviam a culpa do empregador.
[4] A mera existência do vínculo contratual acarretaria, à luz desta perspectiva, a existência de uma cláusula tácita de segurança. A ser assim, porém, nada impediria que o trabalhador renunciasse a ela, ou que fossem acordadas outras limitações. Cfr. Elias Gonzalez-Posada Martinez, El Accidente de Trabajo: Evolucion Normativa y Tratamiento Jurídico Comparado”..
[5] Cfr. Noções Elementares de Acidentes de Trabalho e Jurisprudência, CEJ, Jurisdição Laboral, lições ao XVI Curso Normal de Formação de Magistrados.
[6] Inspirando-se na Lei francesa de 9 de Abril de 1898, cujo art.º 1º adoptou a conhecida definição de acidente de trabalho como “les accidents survenus par le fait du travail ou à lóccasion du travail”. Esta, por sua vez, foi influenciada pela legislação de Bismark, que pela primeira vez consagrou o princípio da responsabilidade pelo risco profissional.
[7] Sem prejuízo das alterações ao regime inicial da Lei 83, designadamente operadas pelo Decreto n.º 5637 de 10.5.1919, que passou a abranger as doenças profissionais. 
[8] O Código do Trabalho contém no Livro I, Título II o Capítulo V que regula a matéria dos acidentes de trabalho; e o Capítulo VI  que rege as doenças profissionais. Inspirados ainda na teoria do risco de autoridade, não se encontram em vigor por falta da regulamentação  a que alude o art.º 21, n.º 2, al. g) da Lei 99/03, de 27.8, aprovou o Código do Trabalho. Por este motivo centraremos a nossa análise no regime da Lei n.º 100/97.  
[9] Sobre o exposto cfr. Christian Fabry, op. cit., 12 e ss. 
[10] Podem-se mencionar-se várias decisões, por todas Acórdãos do STA  em pleno, de 10.7.58, 20.4.59, 13.4.67, antes de existir lei em vigor sobre os acidentes in itinere, citados por Cruz de Carvalho, Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais, 2ª ed., Petrony, 1983, pag. 33. Por seu lado Feliciano Tomás de Resende, Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais, 2ª ed., Almedina, 1988, pag. 20, afirma, referindo-se aos acidentes in itinere, que “a jurisprudência e a doutrina muito discutiram se seriam ou não abrangidos, e na hipótese afirmativa, em que termos, pela Lei n.º 1942, não obstante a ausência de disposição legal expressa”. Dessa discussão já Veiga Rodrigues, in Acidentes de Trabalho – Anotações à Lei n.º 1942, a folhas 20-21 dava conta, citando também ele diversos acórdãos. Por todos menciona-se o Acórdão de 21.10.47: “se é em obediência ao seu contrato individual de trabalho que o trabalhador se dirige da sua casa para o local de execução do trabalho e se no caminho sofre algum acidente este caracteriza-se de acidente de trabalho, porque é por ele sofrido como trabalhador e quando subordinado à empresa e, portanto, sob a autoridade desta”.
[11] Será porventura o caso da Holanda, onde não há cobertura específica para estes acidentes, havendo, todavia, mecanismos de segurança que permitem integrar o ressarcimento das incapacidades temporárias e das permanentes resultantes de acidentes de trabalho em esquemas de reparação mais vastos que abrangem qualquer tipo de acidentes, laborais ou não. Sobre isto cfr. “A Protecção nos Acidentes de Trabalho nos Países da União Europeia”, in www.global.pt.
[12] Se a evolução tecnológica expôs os trabalhadores a riscos acrescidos, quer no local de trabalho quer nas deslocações, as dificuldades da prova e a necessidade de ultrapassar a culpa como fundamento da responsabilidade explicam cabalmente a existência deste instituto jurídico. Fosse esta uma opção puramente arbitrária e poder-se-ia equiparar a um ressarcimento universal dos danos ocorridos no dia em que o cidadão comemora o seu aniversário ou se casa; é, porém, evidente que neste exemplo, como noutros possíveis, não existem motivos que os tornem compreensíveis e necessários, ao contrário do que ocorre em sede laboral.
[13] É o caso, por. ex., do trabalhador que carece de se deslocar de helicóptero para o local de trabalho (uma plataforma petrolífera – apreciado pelo Tribunal Supremo espanhol, por sentença de 20.04.81, cit. por Cristina Sanchez-Rodas Navarro, “El Accidente in Itinere”, Editorial Comares, 1998, pag. 66); ou o do trabalhador que para o mesmo efeito atravessa frequentemente um rio a nado (julgado por um Tribunal de S. Paulo, Brasil: “não sendo a travessia do rio a nado, para se dirigir à sua casa, uma atitude esporádica do trabalhador, considera-se acidente in itinere o afogamento de que foi vítima - Ap. c/ Rev. 310.710, 7ª Câm., Rel. Juiz Ary Casagrande, j. 31-3-1992 – cfr. www.estacio.br/graduacao).
[14] Cumpre distinguir entre um sentido amplo de acidentes de trabalho, que engloba os acidentes in itinere e as próprias doenças profissionais, de um sentido estrito, que não abrange estes dois últimos.
[15] A propósito dos eventos provocados pelo próprio trabalhador, quando o resultado é previsto, e querido por ele, refere Juan Jimenez García que “a conexão trabalho – lesão rompe-se, com excepção das lesões e suicídios em que a vontade deliberada e consciente do trabalhador tenha sido alterada devido a uma doença ou lesão prévia decorrente do próprio trabalho” – La Imprudência Temeraria del Trabajador Accidentado como causa de Exoneración de la Responsabilidad Empresarial, pag.9, apud. Cristina Sanchez-Rodas Navarro, 99.
[16] A distinção entre acidentes de trabalho em sentido estrito e acidentes in itinere é comum designadamente na doutrina francesa, que em termos expositivos adopta habitualmente uma classificação tripartida.
[17] Não são estas as únicas diferenças. Com efeito, o nexo de causalidade entre o trabalho e o evento é muito claro nos acidentes de trabalho, enquanto que nos acidentes in itinere há “uma ampliação do conceito etiológico ou causal” na expressão da sentença do Tribunal de Julgado Social n.º 20 de Madrid, citado por Cristina Navarro, op.cit., 47.
[18] Neste sentido cfr. também António Martin Valverde e Joaquin Garcia Murcia, Tratado Prático de Derecho del Trabajo y Seguridad Social, Aranzadi Ed., 2002, folhas 4636: “o acidente de trabalho é um acidente de trabalho impróprio, que deriva de circunstâncias concorrentes com a actividade laboral, como são as correspondentes à deslocação que deve realizar o trabalhador para cumprir a sua prestação de serviços”. 
Carlos Alegre, Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais – Regime Jurídico Anotado, Almedina, 2ª ed., 48, defende que o acidente in itinere é uma das formas possíveis do acidente de trabalho. 
[19] Este facto é relevante designadamente para a sua interpretação.
[20] Em sentido contrario Cristina Navarro, op. cit., 48, para quem, apesar dos pontos em comum, não se pode qualificar um como género e outro como espécie, sendo os acidentes in itinere “uma figura plenamente autónoma, dotada de perfis próprios”
[21] Dizemos não estariam porque, como é sabido, a noção de acidente in itinere foi segregada pela jurisprudência a partir exactamente da noção de acidente de trabalho, vindo mais tarde a ter consagração formal no texto da lei.
[22] Neste sentido cfr., na doutrina, Noções Elementares de Acidentes de Trabalho e Jurisprudência, CEJ, já citado, e Silvia Payon Marques, op. cit., pag. 7.  Na jurisprudência veja-se p.ex. o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20.101999, in Colectânea de Jurisprudência, S-III: “o acidente de trabalho in itinere é uma extensão do acidente de trabalho”.
[23] In Reflexões sobre a Noção de Acidentes in itinere, Boletim da Assoc. Sind. Juízes Portugueses, 2006.
[24] Os acórdãos citados sem menção da fonte estão disponíveis em www.dgsi.pt.

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