Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
19031/16.2T8LSB.L1-2
Relator: JORGE LEAL
Descritores: INCOMPETÊNCIA EM RAZÃO DA MATÉRIA
RESPONSABILIDADE CIVIL
BANCO DE PORTUGAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/17/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I. No novo ETAF o legislador quis, conforme afirmado e reiterado nas respetivas Exposições de Motivos, consagrar, no âmbito da responsabilidade civil, o princípio da unidade do foro para as pessoas coletivas de direito público, independentemente da natureza pública ou privada das normas de direito substantivo definidoras dessa responsabilidade.

II. O art.º 62.º da Lei Orgânica do Banco de Portugal, que atribui aos tribunais judiciais a competência para o julgamento de todos os litígios em que o Banco seja parte, incluindo as ações para efetivação da responsabilidade civil por atos dos seus órgãos, deve considerar-se revogado pelo novo ETAF, nos termos do n.º 3 do art.º 7.º do Código Civil.

III. O n.º 2 do art.º 4.º do ETAF, introduzido pelo Dec.-Lei n.º 214-G/2015, de 02.10, que atribui à jurisdição administrativa e fiscal “a competência para dirimir os litígios nos quais devam ser conjuntamente demandadas entidades públicas e particulares entre si ligados por vínculos jurídicos de solidariedade, designadamente por terem concorrido em conjunto para a produção dos mesmos danos ou por terem celebrado entre si contrato de seguro de responsabilidade”, não está circunscrito a casos de litisconsórcio necessário, mas abrange também, além do mais, situações de litisconsórcio voluntário, como as decorrentes de situações de responsabilidade solidária entre entidades públicas e privadas pela reparação de danos para cuja produção tenham conjuntamente contribuído.

IV. A exclusividade da competência dos tribunais administrativos para julgar ações que tenham por objeto questões relativas à responsabilidade civil extracontratual de pessoas coletivas de direito público como o Banco de Portugal e a CMVM arrasta, por força do n.º 2 do art.º 4.º do ETAF, para os tribunais administrativos a competência para julgar a concorrente responsabilidade civil de particulares, ou seja, no caso, a responsabilidade do BES, de uma sua funcionária e do Novo Banco (que surge como sucessor do BES), assim como o Fundo de Resolução, na qualidade de único acionista do Novo Banco e garante (pelo menos parcialmente) do que vier a ser devido ao A..

(Sumário elaborado pelo relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os juízes no Tribunal da Relação de Lisboa.


RELATÓRIO:


Em 23.7.2016 António intentou ação declarativa de condenação contra Banco Espírito Santo, S.A., Banco de Portugal, Novo Banco, S.A., Fundo de Resolução, CMVM – Comissão de Mercado de Valores Mobiliários e Lina.

O A. alegou, em síntese, ser cliente do 1.º R. há mais de 20 anos. Durante esse tempo estabeleceu uma sólida relação de confiança com a 6.ª R., funcionária do 1.º R., que era a sua gestora de conta. O A., que trabalhava e reside na África do Sul, confiava à 6.ª R. o encargo de gerir as poupanças que o A. ia depositando na sua conta, sendo certo que o A. sempre exigiu que essas poupanças fossem empregues em produtos sem risco e que lhe proporcionassem a disponibilidade imediata do seu dinheiro. A 6.ª R. foi aplicando tais poupanças em produtos financeiros que, garantia ao A., tinham segurança idêntica à de depósitos a prazo. Porém, a verdade é que, sabe agora o A., a 6.ª R. investiu o dinheiro do A. em produtos financeiros oriundos de entidades pertencentes ao Grupo Espírito Santo – GES -, que envolviam elevado risco, estando atualmente, na carteira do A., instrumentos financeiros, que o A. identifica, em que foi investido o total de € 1 492 518.10. Acresce que para financiar essas aquisições o 1.º R., através da 6.ª R., creditava na conta do A. dinheiro de que o A. não carecia, reclamando agora o 3.º R. (Novo Banco) uma prestação pecuniária mensal por conta desse financiamento que atualmente atingirá um milhão de euros. Com a “resolução” do BES o A. perdeu todas as suas poupanças, pois de acordo com as deliberações do 2.º R. (Banco de Portugal), o dinheiro do A. investido pelo 1.º R. e pela 6.ª R. ficou sob a gestão do 1.º R., enquanto a esmagadora maioria do património do 1.º R. (BES) foi transferido para o 3.º R. (Novo Banco), cujo capital social é detido pelo 4.º R. (o Fundo de Resolução), ficando sob a gestão do BES um conjunto de ativos grandemente desvalorizados, registados com as devidas imparidades. Tudo isto após, dias antes da declaração de resolução, o 2.º R. ter garantido publicamente a solvabilidade do 1.º R.. Entre o A., o 1.º R. e a 6.ª R. foi constituída uma relação bancária geral. No seu âmbito o 1.º R. e a 6.ª R. prestaram ao A., investidor não qualificado, serviços de intermediação financeira, sem que para tal fosse outorgado o necessário contrato escrito. Verifica-se, assim, nulidade, da qual emerge a obrigação daqueles RR. devolverem ao A. os montantes totais depositados e por aqueles ilicitamente utilizados e investidos naqueles produtos financeiros. Acresce que o valor indevidamente mutuado pelo 1.º R. ao A. obrigava à celebração de escritura pública, que inexiste, pelo que devem, em consequência, os 1.º e 6.º RR. serem condenados a restituir ao A. tudo o que por aquele foi prestado no âmbito do contrato de mútuo. Ainda que assim não se entenda, o aludido mútuo bancário é anulável por erro na declaração, nos termos do art.º 247.º do CC, devendo os RR. ser condenados a devolver ao A. os montantes por ele recebidos em virtude daquele contrato de mútuo. Especificamente quanto aos 2.º R. (Banco de Portugal), 5.ª R. (CMVM) e 4.º R. (Fundo de Resolução), o A. exprimiu-se assim: “Ainda neste quadro de actuação ilegal do 1º R. junto dos seus clientes não podemos esquecer os deveres de supervisão que legalmente competem ao 2º R. e à 5ª R., cujo incumprimento deverá resultar na sua co-responsabilidade naquela obrigação de devolução dos montantes investidos, recorrendo, crê-se aos montantes sob tutela do 4º R. (art.º 174.º da p.i., negrito nosso). Realçando ainda, nos artigos 176.º e 177.º da petição inicial, que sobre os 1.º R., 2.º R., 3.º R., 5.º R. e 6.ª R., recaíam deveres de conduta de informação, diligência e lealdade, nos termos conjugados do disposto nos artigos 74.º, 75.º e 77.º do RGICSF e 289.º, 290.º, 293.º e 321.º do CVM, com a consequente obrigação de indemnização prevista no art.º 304.º-A do CVM.

O A. terminou formulando o seguinte pedido, que se transcreve:
Nestes termos e nos mais de Direito que v/ Exa. doutamente suprirá deverá a presente acção ser julgada totalmente procedente por provada que ficou:
a)- A responsabilidade civil dos RR., enquanto intermediários financeiros, por violação dos deveres de informação, diligência e lealdade, nos termos do disposto no artigo 304º-A do CVM, devendo em consequência os RR. serem solidariamente condenados a pagar ao A, a quantia de € 1.492.518,10, acrescida de:
i)- € 226.341,00 a título de juros vencidos à taxa legal em vigor, e calculados desde a data de utilização ilícita pelos RR. das quantias monetárias do A.;
ii)- Juros vincendos calculados desde a data da citação até integral pagamento da sentença condenatória;

Caso assim não se entenda:
b)- A nulidade do contrato de intermediação financeira por inobservância de forma nos termos do disposto no artigo 321º do CVM, devendo em consequência serem os RR. solidariamente condenados a restituir ao A. a quantia de € 1.492.518,10, acrescida de :
i)- € 226.341,00 a título de juros vencidos à taxa legal em vigor, e calculados desde a data de utilização ilícita pelos RR. das quantias monetárias do A.;
ii)- Juros vincendos calculados desde a data da citação até integral pagamento da sentença condenatória;

Em qualquer dos casos:
c)- Requer-se ainda:
i)- a declaração de nulidade do contrato de mútuo bancário realizado entre o A. e o 1º R. por inobservância de forma legalmente exigida;
Ou caso assim não se entenda,
ii)- a declaração de anulabilidade do contrato de mutuo bancário realizado entre o A. e o 1º R., por ocorrência de erro na declaração do A.
E devendo, em consequência, e em qualquer dos casos serem os RR. condenados a ressarcir solidariamente o A., no montante correspondente ao valor de todas as quantias por este pagas no âmbito daquele contrato, e apurar em sede de liquidação de sentença, e com recurso aos elementos probatório infra requeridos;
Mais se requer, que sejam ainda os RR. condenados a ressarcir solidariamente ao A. os danos não patrimoniais que lhe foram causados, em valor a ser calculado em sede de liquidação de sentença.”

Os RR. contestaram a ação, pugnando pela sua improcedência, por exceção e por impugnação.

Por exceção, com relevância para esta apelação, os RR. Banco de Portugal, Fundo de Resolução e CMVM arguiram a incompetência material do tribunal, defendendo que a competência para a apreciação deste litígio cabia à jurisdição administrativa.

A convite do tribunal o A. respondeu à matéria das exceções, pugnando pela sua improcedência, entre as quais a da arguida incompetência material.

Em 26.6.2017 foi proferido despacho no qual se julgou o tribunal incompetente quanto à matéria e, consequentemente, se absolveu os RR. da instância.

O A. apelou da sentença, tendo apresentado alegações em que formulou as seguintes conclusões:
A) Entende o Apelante que a sentença sub judice padece de nulidade por omissão de pronúncia, nos termos do artigo 615º nº1 alínea d) e nº 4 do CPC;
B) Porquanto, quer no relatório, quer na exposição dos seus fundamentos e ao longo de toda a douta sentença, o Tribunal a quo omite os seus fundamentos e a sua apreciação critica quanto à Ré Lina, indicada como 6ª Ré pelo A. na sua petição inicial e que a decisão olvida;
C) Sendo, aliás, quanto a esta Ré que o Autor esgrime parte da sua alegação naquele articulado inicial;
D) Consequentemente, a absolvição da 6ª Ré da instância padece de qualquer fundamentação, o que gera a sua nulidade, nos termos do referido normativo;
E) Contudo, caso Vossas Excelências assim não venham a entender, sempre será de considerar a sentença nula por não especificar os fundamentos de facto e de direito que conduziram à absolvição da instância da 6ª Ré, de acordo com o artigo 615º nº1 alínea b) do CPC;
F) Pois que, face à factualidade subjacente a cada um dos Réus, os motivos e fundamentos de uns não servem para fundamentar os dos outros, fazendo a própria sentença essa distinção;
G) Entende, ainda, o Apelante que andou mal a apreciação pelo Tribunal a quo da aplicação aos presentes autos do disposto, conjugadamente, nos artigos 67º, 96º a) 99º nº 1 e 278º nº 1 al. a) do CPC, já que não se verifica a incompetência em razão da matéria, quanto aos RR.;
H) A competência material do Tribunal Judicial, por oposição ao Tribunal Administrativo, afere-se pelos termos em que a acção é proposta e pela forma como se estrutura o pedido e os fundamentos da acção pelo Autor.
I) A natureza pública ou privada de cada um dos RR. é irrelevante na medida em que o “thema decidendum” tal como configurado pelo A., não se prende com qualquer questão de domínio administrativo;
J) Na presente acção o A. peticiona pela responsabilização civil dos RR. por violação das regras de intermediação financeira, mormente por via do consagrado no artigo 304º A e 321º do Código dos Valores Mobiliários, isto é, está em causa a apreciação da violação dos deveres de informação, diligência e lealdade que impendem sobre os intermediários financeiros bem assim como a nulidade daquela relação jurídica por inobservância de forma;
K) Como tem amplamente entendido a nossa doutrina o Direito dos Valores Mobiliários é um ramo do Direito Comercial e/ou Financeiro, afastado da concepção de Direito de Finanças Públicas;
L) Na presente ação, o Apelante faz um exercício de co-responsabilização ou responsabilização em cadeia de um conjunto de entidades com quem se relacionou desde 1999 quando se tornou cliente do BES, tal como por si alegado, e alegando ao longo da sua petição factos em escala de relação para consigo e na tutela dos seus valores mobiliários;
M) Não se olvidando que as entidades administrativas também são entidades civilmente responsáveis, podendo ler-se no artigo 62º da Lei Orgânica do Réu Banco de Portugal que: “compete aos tribunais judiciais o julgamento de todos os litígios em que o Banco seja parte, incluindo as ações para efetivação da responsabilidade civil por atos dos seus órgãos, bem como a apreciação da responsabilidade civil dos titulares desses órgãos para com o Banco.”;
N) Factualmente o que sucedeu é que no caso em apreço, como em milhares de outros actualmente entregues aos Tribunais portugueses, o conhecimento do Apelante da violação daqueles deveres coincidiu com a “queda do BES”, mas sendo irrelevante para o caso em apreço, e contrariamente ao vertido na sentença recorrida, o uso ou não das “armas de Estado” por aquelas entidades;
O) Assim, não se discute, nos presentes autos, qualquer acto(s) administrativo(s) assumido(s) pelos RR., mas antes e tão só com o direito a indemnização pelo Apelante, decorrente de actos de direito privado;
P) Pelo que não se verifica a incompetência absoluta em razão da matéria sendo aos tribunais judiciais que caberá declarar o direito indemnizatório do Autor e operar a sua conversão em valor pecuniário;
Q) Decidir como decidiu a sentença ora recorrida é privilegiar a forma sobre o conteúdo e negar ao cidadão o direito legal e constitucionalmente consagrado que este tem de obter uma decisão de fundo que dirima em definitivo o seu litígio, não se limitando a aplicar o direito, mas que também confira Justiça ao caso concreto;
R) Assim não sucedendo, a decisão encontra-se ferida de ilegalidade e inconstitucionalidade, vícios que desde já se invocam, por violação do artigo 2º do CPC e dos artigos 2º, 20º, 202º, n.º 1 e nº 2, todos da Constituição da República.
S) Atento aos factos supra expostos entende o Recorrente que se verifica não só a violação das regras do direito nacional, mas também a violação das regras do direito comunitário, através da violação das normas constantes na Convenção para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais que foi transporta para a ordem jurídica portuguesa.
T) A Convenção estabelece que os Estados são considerados responsáveis pelos actos das suas autoridades, que in casu sempre será o Banco de Portugal.
U) Sendo que tais actos não têm de provocar apenas efeitos prejudiciais dentro do estado nacional mas também fora do seu território, sejam eles praticados dentro ou fora das fronteiras nacionais.
V) Assim, segundo o disposto no artigo 1.º do Protocolo n.º 1, com a denominação “Proteção da propriedade” “Qualquer pessoa singular ou coletiva tem o direito ao respeito dos seus bens (…)”, pelo que o Autor entende também ser legítimo alegar a violação do artigo 1.º do Protocolo n.º 1, na medida em que as decisões contra as quais se insurge se reportam aos seus “bens” no sentido desta disposição.
W) Incluindo-se nesses bens os créditos, por meio dos quais o requerente pode pretender ter, pelo menos, uma “expectativa legítima” de obter o gozo efetivo de um direito de propriedade.
X) Direitos estes que o Recorrente fará valer em sede e momentos próprios, os quais se deixam contudo desde já expostos.
Todos os RR. (à exceção do BES) contra-alegaram, pugnando pela improcedência da apelação e consequente manutenção da decisão recorrida.

Foram colhidos os vistos legais.

FUNDAMENTAÇÃO.
As questões que se suscitam neste recurso são as seguintes: nulidade da decisão recorrida; competência dos tribunais judiciais, quanto à matéria, para julgar o litígio.

Primeira questão (nulidade da decisão)
O apelante defende que a decisão é nula, por omissão de pronúncia (art.º 615.º n.º 1 al. d) do CPC), porque nela não consta qualquer fundamentação ou apreciação crítica quanto à R. Lina (6.ª R.). Subsidiariamente, o apelante entende que a decisão é nula ao abrigo do art.º 615.º n.º 1 al. b) do CPC, por nela não se especificar os fundamentos de facto e de direito que conduziram à absolvição de instância da 6.ª R..

Vejamos.

Quanto à omissão de pronúncia, inexiste. Na sua decisão o tribunal a quo indicou, no respetivo relatório, a pretensão do A. contra a 6.ª R., reproduzindo os fundamentos que o A. alegou para obter a respetiva condenação. Depois, na apreciação da competência do tribunal judicial para a apreciação do litígio, o tribunal a quo concluiu que, atendendo à natureza pública dos 2.º, 4.º e 5.º RR. e dos factos que lhes são imputados, a competência para julgar a responsabilidade dessas entidades perante o A. cabe aos tribunais administrativos. O que, afirmou-se expressamente na decisão, por força do disposto no n.º 2 do art.º 4.º do ETAF acarreta a competência dos tribunais administrativos para julgar o litígio quanto aos demais réus, aí abarcando, necessariamente, a 6.ª R..
Subsidiariamente, o apelante invoca a nulidade prevista na al. b) do n.º 1 do art.º 615.º do CPC. Tal nulidade ocorre quando na sentença “o tribunal não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão.”

A decisão recorrida assentou numa questão de direito, que não carecia, como fundamentação de facto, de mais do que a explicitação do objeto do litígio. E tal foi feito, conforme já supra indicado.
Inexistem, assim, as apontadas nulidades.
Segunda questão (competência material para a apreciação do litígio)
Na versão inicial da Constituição da República Portuguesa a jurisdição administrativa era apresentada como meramente facultativa: no art.º 212.º, após se anunciar a existência obrigatória de tribunais judiciais de primeira instância, de segunda instância e o Supremo Tribunal de Justiça (n.º 1), de tribunais militares e de um Tribunal de Contas (n.º 2), consignava-se que “poderá haver tribunais administrativos e fiscais” (n.º 3).
A Segunda Revisão da Constituição (Lei Constitucional n.º 1/89, de 8 de Julho) consagrou a obrigatoriedade da jurisdição administrativa e fiscal, encimada pelo Supremo Tribunal Administrativo (n.º 1 do art.º 214.º) e cuja competência foi assim descrita (n.º 3 do art.º 214.º):
Compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais.”
Face ao teor do texto constitucional, esboçou-se a tese de que o aludido preceito consagrava uma reserva material absoluta de jurisdição atribuída aos tribunais administrativos, no duplo sentido de que, por um lado, os tribunais administrativos só poderiam julgar questões de direito administrativo, e de que, por outro lado, só eles poderiam julgar tais questões (Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa anotada, 3ª edição, Coimbra Editora, 1993, pág. 814; Rui Machete, “A Constituição, o Tribunal Constitucional e o Processo Administrativo”, in “Legitimidade e legitimação da justiça constitucional”, Colóquio do 10.º aniversário do Tribunal Constitucional, Coimbra Editora, 1995, pág. 160). Porém, prevalece a doutrina que vê no referido preceito uma regra definidora de um modelo típico, suscetível de adaptações ou de desvios em casos especiais, desde que não fique prejudicado o núcleo caracterizador do modelo. O aludido preceito constitucional (que após a 4.ª revisão constitucional – Lei Constitucional n.º 1/97, de 20 de Setembro – passou a integrar o art.º 212.º) explica-se historicamente pela intenção de consagrar a ordem judicial administrativa como uma jurisdição própria, ordinária, e não como uma jurisdição especial ou excecional em face dos tribunais judiciais. O preceito contém a mera definição da “nova” ordem judicial administrativa e fiscal no contexto da organização dos tribunais, sem com isso pretender necessariamente estabelecer uma reserva material absoluta. De contrário ocorreria a inconstitucionalização de leis importantes e de práticas de longa tradição, designadamente em matéria de política judiciária, contraordenações e de expropriações por utilidade pública, consequências que não foram claramente assumidas pela revisão constitucional. O preceito tem o mérito de atribuir aos tribunais administrativos a competência para apreciar questões de natureza administrativa, a título de tribunais “comuns” em matéria administrativa, quando não esteja atribuída expressamente a nenhuma jurisdição (neste sentido, José Carlos Vieira de Andrade, “Direito Administrativo e Fiscal, Lições ao 3.º ano do curso de 1995/96, Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, páginas 10 a 12, citado no acórdão do Tribunal de Conflitos de 14.3.1996, BMJ 455, pág. 238; Freitas do Amaral e Mário Aroso de Almeida, “Grandes linhas da reforma do contencioso administrativo”, 3.ª edição, 2004, Almedina, páginas 25 a 29; Mário Esteves de Oliveira e Rodrigo Esteves de Oliveira, Código de Processo nos Tribunais Administrativos, vol. I, Almedina, 2004, páginas 20 a 24).

Também a jurisprudência constitucional se fixou no sentido de que a injunção constante do art.º 212.º n.º 3 da Constituição não consagra uma reserva material absoluta de jurisdição dos tribunais administrativos (cfr., por todos, acórdão do Tribunal Constitucional nº 302/2008, de 29 de Maio de 2008, in D.R., 2ª série, nº 125, de 01.7.2008, pág. 28838 e seguintes).

O anterior Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF) aprovado pelo Dec.-Lei n.º 129/84, de 27.4. estipulava, no art.º 3.º do ETAF, que “incumbe aos tribunais administrativos e fiscais na administração da justiça, assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos, reprimir a violação da legalidade e dirimir os conflitos de interesses públicos e privados no âmbito das relações jurídicas administrativas e fiscais”. Concretizando o âmbito da competência dos tribunais administrativos, o art.º 51.º do ETAF estabelecia que compete aos tribunais administrativos de círculo conhecer, nomeadamente:
h)- Das acções sobre responsabilidade civil do Estado, dos demais entes públicos e dos titulares dos seus órgãos e agentes por prejuízos decorrentes de actos de gestão pública, incluindo acções de regresso.

Assim, para a delimitação de competência nas ações sobre responsabilidade civil, apelava-se para um critério que conjugava a natureza publicística do responsável com a especial natureza (“acto de gestão pública”) do ato desencadeador dos prejuízos. Para que a competência fosse atribuída aos tribunais administrativos necessário seria que estivessem em causa atos decorrentes do exercício de um poder público, integrando a realização de uma função pública compreendida nas atribuições do ente público, reguladas por normas de direito público, relevando a atividade em que se insere a atuação e não a qualificação de ato isolado integrante da causa de pedir (cfr., v.g., acórdão do STA, de 24.01.2002, in internet, dgsi, processo 048274).

No decurso da oitava legislatura o Governo apresentou à Assembleia da República uma Proposta de Lei (n.º 93/VIII) atinente ao novo Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais de Lisboa (cfr. Diário da Assembleia da República, II série-A, nº 76, 18.7.2001, pág. 47 e seguintes).

Na respetiva exposição de motivos escreveu-se o seguinte:
3— No plano da delicada e complexa matéria da delimitação do âmbito da jurisdição, partiu-se, como não poderia deixar de ser, do quadro constitucional vigente e das imposições que dele decorrem, vinculando o legislador ordinário. Como é bem sabido, desde a revisão constitucional de 1989, e sem que, ao longo destes quase 12 anos, o facto tivesse sido objecto de controvérsia, a jurisdição administrativa e fiscal é uma jurisdição constitucionalmente obrigatória, o que, como tem sido assinalado pela doutrina, significa que o legislador não pode pôr o problema de saber se ela deve ou não deve existir. Existe em Portugal e está hoje consolidada, a exemplo do que sucede na França, na Alemanha ou na Itália, uma ordem jurisdicional administrativa e fiscal, diferente da jurisdição comum, constituída por verdadeiros tribunais, dotados de um estatuto em tudo idêntico àquele que a Constituição estabelece para os restantes tribunais, impondo-se hoje assegurar que as vias de acesso a esses tribunais são aptas, como a Constituição também exige, a dar adequada resposta a todas as questões que, por imperativo constitucional, devam ser submetidas a essa jurisdição.
Neste quadro se inscreve a definição do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal que, como a Constituição determina, se faz assentar num critério substantivo, centrado no conceito de «relações jurídicas administrativas e fiscais». Mas sem erigir esse critério num dogma, uma vez que a Constituição, como tem entendido o Tribunal Constitucional, não estabelece uma reserva material absoluta, impeditiva da atribuição aos tribunais comuns de competências em matéria administrativa ou fiscal ou da atribuição à jurisdição administrativa e fiscal de competências em matérias de direito comum. A existência de um modelo típico e de um núcleo próprio da jurisdição administrativa e fiscal não é incompatível com uma certa liberdade de conformação do legislador, justificada por razões de ordem prática, pelo menos quando estejam em causa domínios de fronteira, tantas vezes de complexa resolução, entre o direito público e o direito privado.
Neste sentido, reservou-se, naturalmente, para a jurisdição administrativa e fiscal a apreciação dos litígios respeitantes ao núcleo essencial do exercício da função administrativa, com especial destaque para a atribuição à jurisdição administrativa dos processos de expropriação por utilidade pública, cuja competência, num momento em que a jurisdição administrativa é constitucionalmente consagrada como uma ordem de verdadeiros tribunais, só por razões tradicionais continua a ser remetida para os tribunais comuns. Por ainda envolver a aplicação de um regime de direito público, respeitante a questões relacionadas com o exercício de poderes públicos, pareceu, entretanto, adequado atribuir à jurisdição administrativa a competência para apreciar as questões de responsabilidade emergentes do exercício da função política e legislativa e da função jurisdicional.
Ao mesmo tempo, e dando resposta a reivindicações antigas, optou-se por ampliar o âmbito da jurisdição dos tribunais administrativos em domínios em que, tradicionalmente, se colocavam maiores dificuldades no traçar da fronteira com o âmbito da jurisdição dos tribunais comuns.
A jurisdição administrativa passa, assim, a ser competente para a apreciação de todas as questões de responsabilidade civil que envolvam pessoas colectivas de direito público, independentemente da questão de saber se tais questões se regem por um regime de direito público ou por um regime de direito privado; já em relação às pessoas colectivas de direito privado, ainda que detidas pelo Estado ou por outras entidades públicas, como a sua actividade se rege fundamentalmente pelo direito privado, entendeu-se dever manter a dicotomia tradicional e apenas submeter à jurisdição administrativa os litígios aos quais, de acordo com a lei substantiva, seja aplicável o regime da responsabilidade das pessoas colectivas de direito público por danos resultantes do exercício da função administrativa” (negrito nosso).

Na sequência do assim explicitado, no texto legal proposto incluía-se, sob a epígrafe “Âmbito da jurisdição”, um artigo 4.º, em cuja alínea g) se atribuía aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto “responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público, incluindo por danos resultantes do exercício das função política, legislativa e jurisdicional.”

O texto proposto foi reproduzido, quase na íntegra, no novo ETAF, aprovado pela Lei n.º 13/2002, de 19.02:
Nos termos da alínea g) do n.º 1 do art.º 4.º do ETAF compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham, nomeadamente, por objeto “responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público, incluindo por danos resultantes do exercício da função política e legislativa, nos termos da lei, bem como a resultante do funcionamento da administração da justiça”.

Segundo o novo ETAF compete, assim, à jurisdição administrativa apreciar todas as questões de responsabilidade civil extracontratual da Administração Pública, independentemente da questão de saber se essa responsabilidade emerge de uma atuação de gestão pública ou de uma atuação de gestão privada. Tal distinção será relevante apenas para o efeito de determinação do regime de direito substantivo que a jurisdição administrativa aplicará para dirimir o litígio (neste sentido, cfr. Freitas do Amaral e Mário Aroso de Almeida, Grandes Linhas…, citado, pág. 36; Sérvulo Correia, Direito do Contencioso Administrativo, I, Lex, Lisboa 2005, páginas 713 e 714).
É certo que a redação da referida alínea g) foi alterada pela Lei n.º 107-D/2003, de 31.12, passando a ter o seguinte texto:
Questões em que, nos termos da lei, haja lugar a responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público, incluindo a resultante do exercício da função jurisdicional e da função legislativa.”

Porém, tal modificação visou, conforme se escreve na exposição de motivos da respetiva Proposta de Lei (n.º 102/IX), o propósito de esclarecer “dúvidas pontuais”, “facilmente resolúveis”, ou seja “que o âmbito da jurisdição dos tribunais administrativos se estende à apreciação de todos os litígios respeitantes à questão da responsabilidade extracontratual das pessoas colectivas de direito público”.

O legislador reiterou, assim, porventura sem grande sucesso quanto à forma, o propósito de atribuir à jurisdição administrativa a competência para julgar a responsabilidade civil extracontratual de pessoa coletivas de direito público, independentemente de esta decorrer ou não de atos inseridos na sua atividade de gestão pública (neste sentido cfr. Mário Esteves de Oliveira e Rodrigo Esteves de Oliveira, Código de Processo nos Tribunais Administrativos, citado, pág. 59; relativamente a escritos mais recentes, cfr., v.g., Francisco Pais Marques, “O Contencioso Administrativo e a Responsabilidade Civil do Estado e demais pessoas colectivas públicas”, p. 102, in O Regime da responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entidades públicas: comentários à luz da jurisprudência, AAFDL Editora, 2017, coordenação de Carla Amado Gomes, Ricardo Pedro e Tiago Serrão).

A esta conclusão não se opunha a disposição geral enunciada no art.º 1.º, n.º 1 do ETAF (“Os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”). Entendia-se que o preceito, com esta redação, se limitava a repercutir o teor da cláusula geral do art.º 212.º n.º 3 da Constituição da República Portuguesa, com os efeitos e o sentido já supra analisados (cfr, v.g., Mário Esteves de Oliveira e Rodrigo Esteves de Oliveira, Código de Processo nos Tribunais Administrativos, citado, páginas 20 e 21).

Neste sentido se pronunciava o Tribunal de Conflitos (cfr., v.g., acórdão de 20.02.2008, processo 019/07 e acórdão de 23.01.2008, processo 017/07, publicados na internet, dgsi-itij).

Tal aparente incompatibilidade entre o texto do n.º 1 do art.º 1.º do ETAF e o do art.º 4.º foi resolvida por via da redação introduzida no referido n.º 1 pelo Dec.-Lei n.º 214-G/2015, de 02.10: “Os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios compreendidos pelo âmbito de jurisdição previsto no artigo 4.º deste Estatuto(cfr. acórdão do Tribunal de Conflitos, n.º 049/15, de 12.5.2016).

A alteração introduzida pelo Dec.-Lei n.º 214-G/2015 ao art.º 4.º não interferiu com os dados desta questão. Atente-se na nova redação dos preceitos pertinentes:
1- Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto questões relativas a:
(…)
f)- Responsabilidade civil extracontratual das pessoas coletivas de direito público, incluindo por danos resultantes do exercício das funções política, legislativa e jurisdicional, sem prejuízo do disposto na alínea a) do n.º 4;
(….)
4- Estão igualmente excluídas do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal:
a)- A apreciação das ações de responsabilidade por erro judiciário cometido por tribunais pertencentes a outras ordens de jurisdição, assim como das correspondentes ações de regresso;
…”
Como é sabido, a competência do tribunal quanto à matéria afere-se pelos contornos dados ao litígio pelo demandante, na petição inicial, através da indicação da respetiva causa de pedir e do pedido.
Tais contornos foram descritos no Relatório supra.
O A. pretende responsabilizar os RR. pelos prejuízos sofridos pela perda de investimentos em determinados instrumentos financeiros.
Especificamente em relação aos 2.º e 5.º RR. (Banco de Portugal e CMVM), tal responsabilidade emergeria do incumprimento, por esses RR., das suas obrigações enquanto supervisores, respetivamente, do sistema bancário e do mercado dos instrumentos financeiros (cfr. art.º 174.º da p.i., supra transcrito). Uma vez que não foi invocada a celebração de qualquer negócio jurídico entre o A. e esses RR., a respetiva responsabilidade seria extracontratual. Ou seja, sendo estes RR., como são, entidades de direito público (vide, quanto ao Banco de Portugal, o art.º 1.º da sua Lei Orgânica, aprovada pela Lei n.º 5/98, de 31.01, com as alterações publicitadas; quanto à CMVM, art.º 3.º n.º 3, al. b), da Lei n.º 67/2013, de 28.8 e art.º 1.º dos respetivos Estatutos, aprovados pelo Dec.-Lei n.º 5/2015, de 08.01), o presente litígio cabe na previsão da al. f) do n.º 1 do art.º 4.º do ETAF. Acresce que, embora, como supra exposto, tal seja irrelevante para o efeito, a atuação imputada ao Banco de Portugal e à CMVM necessariamente se enquadra no exercício das suas funções de supervisores, que são funções de direito público (vide a Lei Orgânica do Banco de Portugal e os Estatutos da CMVM). Note-se que, embora o A. a dado passo invoque a violação, pelos 1.º R., 2.º R., 3.º R., 5.º R. e 6.º R., dos deveres de conduta, informação e lealdade previstos nos artigos 74.º, 75.º, 77.º do RGICSF, 289.º, 290.º, 293.º e 291.º do CVM (vide artigos 76.º e 177.º, da p.i, supra mencionados no Relatório), tais preceitos não têm como destinatários os supervisores ou reguladores, mas sim os supervisionados ou regulados. Isto é, não quadra ao Banco de Portugal nem à CMVM o papel de intermediários financeiros, que agora o apelante, no recurso, reforçadamente lhes imputa (vide al. J) das conclusões da apelação). Na petição inicial não se vislumbra a imputação, ao Banco de Portugal ou à CMVM, de um único ato de intermediação financeira respeitante ao A..

O apelante invoca o teor do art.º 62.º da Lei Orgânica do Banco de Portugal:
Sem prejuízo do disposto no artigo 39.º, compete aos tribunais judiciais o julgamento de todos os litígios em que o Banco seja parte, incluindo as acções para efectivação da responsabilidade civil por actos dos seus órgãos, bem como a apreciação da responsabilidade civil dos titulares desses órgãos para com o Banco.”
Ora, como bem refere o apelado Banco de Portugal, esse preceito, datado de janeiro de 1998, deve considerar-se revogado pelo novo ETAF, nos termos do n.º 3 do art.º 7.º do Código Civil. É que o legislador quis, conforme afirmado e reiterado nas Exposições de Motivos supra transcritas, consagrar, no âmbito da responsabilidade civil, o princípio da unidade do foro para as pessoas coletivas de direito público, assim derrogando normas anteriores que provessem em sentido diverso. Neste sentido tem decidido o Tribunal de Conflitos, relativamente a normas idênticas (cfr., v.g., acórdãos de 23.01.2008, processo 017/07; de 17.6.2010, processo 030/09; de 12.5.2016, processo 049/15).
O Dec.-Lei n.º 214-G/2015 introduziu no art.º 4.º do ETAF um novo n.º 2, com a seguinte redação:
Pertence à jurisdição administrativa e fiscal a competência para dirimir os litígios nos quais devam ser conjuntamente demandadas entidades públicas e particulares entre si ligados por vínculos jurídicos de solidariedade, designadamente por terem concorrido em conjunto para a produção dos mesmos danos ou por terem celebrado entre si contrato de seguro de responsabilidade.”
Conforme se pondera no acórdão do Tribunal de Conflitos de 22.3.2018, processo 056/17, “a competência da jurisdição administrativa emergente desta norma tem como pressuposto as situações de responsabilidade solidária entre entidades públicas e privadas pela reparação de danos para cuja produção tenham conjuntamente contribuído, ou que tenham assumido contratualmente a obrigação de reparação desses danos” (negrito nosso).
Albino Aroso, citado no aludido acórdão do Tribunal de Conflitos (de 22.3.2018), escreve que “esta regra visa dar resposta a dificuldades que se vinham suscitando na jurisprudência administrativa, quanto à competência dos tribunais administrativos para conhecer de ações de responsabilidade civil quando se verifique o chamamento ao processo de sujeitos privados que se encontrem envolvidos com a Administração ou com outros particulares numa relação jurídica administrativa ou no âmbito de uma relação conexa com a relação principal que constitui objeto do litígio». Segundo este autor, «a situação paradigmática de corresponsabilidade ou de responsabilidade concorrente em consequência de uma entidade pública e um particular terem contribuído para a produção do mesmo dano é aquela em que se configure a concorrência de culpas entre o ente público, enquanto dono da obra, e um concessionário ou empreiteiro, em relação a danos resultantes da execução de obras públicas” (Manual de Processo Administrativo, Almedina, 2017, 3ª Edição, pp. 253 e 254.) – negritos nossos.

Ora, a situação trazida a juízo pelo A. é, precisamente, a de concorrência de entidades públicas e particulares na produção de danos cujo ressarcimento o A. visa. Segundo o A., o Banco de Portugal e a CMVM, por incumprimento dos seus deveres de supervisão (art.º 174.º da p.i.), contribuíram para que o BES e a 6.ª R., por sua vez, violando os deveres que tinham para com o A., enquanto cliente bancário e investidor não qualificado, tivessem aplicado as poupanças do A. em produtos financeiros de alto risco, com as consequentes perdas. Trata-se de uma questão de concausalidade entre condutas de entidades reguladoras/supervisoras e entidades reguladas, na produção de danos a terceiros, situação que, conforme apontam Nuno Cunha Rodrigues e Rui Guerra da Fonseca (“A responsabilidade civil extracontratual das entidades reguladoras e do Estado no sector financeiro”, in Responsabilidade Civil dos poderes públicos, e-book do CEJ, coleção Formação Contínua, abril 2018, pp. 100-103), cabe na previsão do n.º 4 do art.º 10.º do Regime da Responsabilidade Civil do Estado e demais Entidades Públicas, aprovado pela Lei nº 67/2007, de 31.12 (“Quando haja pluralidade de responsáveis, é aplicável o disposto no artigo 497.º do Código Civil”), a qual remete para o regime de solidariedade previsto no art.º 497.º do CC.

Discordamos, pois, de alguma jurisprudência, que vê na utilização do verbo “dever” no n.º 2 do art.º 4.º do ETAF (“Pertence à jurisdição administrativa e fiscal a competência para dirimir os litígios nos quais devam ser conjuntamente demandadas entidades públicas e particulares entre si ligados por vínculos jurídicos de solidariedade, designadamente por terem concorrido em conjunto para a produção dos mesmos danos ou por terem celebrado entre si contrato de seguro de responsabilidade”) sinal de que o legislador visou, com este preceito, tão só situações de litisconsórcio necessário (cfr., v.g., acórdãos da Relação de Guimarães, de 29.6.2017, processo 4143/16.0T8GMR.G1 e de 16.11.2017, processo 1447/16.6T8CHV.G1). Com efeito, tal interpretação restritiva, além de reduzir drasticamente o efeito útil da norma, é contrariada pelos termos do preceito, na medida em que a respetiva previsão, ao apontar expressamente situações de solidariedade, indica situações que constituem casos clássicos de litisconsórcio voluntário.

O imperativo contido no verbo dever bem pode residir, em certos casos, nomeadamente de litisconsórcio voluntário, na vontade do lesado demandante.

Temos, pois, que a exclusividade da competência dos tribunais administrativos para julgar ações que tenham por objeto questões relativas à responsabilidade civil extracontratual de pessoas coletivas de direito público arrasta, por força do n.º 2 do art.º 4.º do ETAF, para os tribunais administrativos a competência para julgar a concorrente responsabilidade civil de particulares, ou seja, no caso, a responsabilidade do BES, da sua funcionária (6.ª R.) e do Novo Banco (que surge como sucessor do BES).

No que concerne ao Fundo de Resolução, também ele é uma pessoa coletiva de direito público (cfr. art.º 153.º-B, n.º 1, do RGICSF), que “tem por objeto prestar apoio financeiro à aplicação de medidas de resolução adotadas pelo Banco de Portugal, (…), e desempenhar todas as demais funções que lhe sejam conferidas pela lei no âmbito da execução de tais medidas” (art.º 153.º-C do RGICSF).

Embora as Relações, nomeadamente a de Lisboa, propendam a negar a competência dos tribunais judiciais para julgarem litígios em que o Fundo de Resolução seja demandado, o Tribunal de Conflitos tem entendido que, em ações instauradas por particulares contra o BES, o Novo Banco e o Fundo de Resolução (e não também contra outras entidades públicas), em que este é demandado tão só na qualidade de único acionista do Novo Banco, sem que seja alegada qualquer atuação, por parte do Fundo de Resolução, contributiva para os invocados danos, a competência para a apreciação do litígio caberá tão só aos tribunais judiciais, incluindo quanto ao Fundo de Resolução (cfr. acórdãos do Tribunal de Conflitos, ambos de 22.3.2018, processos 050/17 e 056/17).

No caso destes autos, embora o Fundo de Resolução tenha sido demandado na sua qualidade de único acionista do Novo Banco e de garante (parcial) do que for devido ao A., naturalmente que a já supra referida competência dos tribunais administrativos para apreciarem a invocada corresponsabilidade do Banco de Portugal e da CMVM pelos danos que o A. alegadamente sofreu, também arrasta para a jurisdição administrativa a demanda deduzida contra o Fundo de Resolução.

Concorda-se, assim, com a decisão do tribunal recorrido, que encontra arrimo, por exemplo, em jurisprudência desta Relação, nomeadamente a contida no acórdão de 08.02.2018, processo 4136/17.0T8LSB.L1-8 (todos os acórdãos citados são consultáveis na base de dados do ITIJ).

O apelante argumenta que a solução propugnada pela decisão impugnada atenta contra os basilares princípios de um Estado Democrático, designadamente o direito constitucionalmente consagrado de obter, com força de caso julgado, uma decisão judicial que aprecie de mérito a sua pretensão. Ora, como se expôs, se o A. pretende responsabilizar simultaneamente pessoas coletivas de direito público e entidades particulares pelas perdas patrimoniais por si sofridas, sendo-o aquelas no âmbito de responsabilidade extracontratual, deverá recorrer aos tribunais administrativos, a quem cabem, no âmbito da divisão de causas empreendida na organização do sistema de justiça e tendo em vista a efetivação de tais direitos e garantias, julgar tais pleitos.

Não ocorre, pois, a violação dos invocados artigos 2.º, 20.º, 202.º n.º 1 e n.º 2, da CRP, e 2.º do CPC.

Também não se vislumbra que a decisão recorrida, ora mantida, de alguma forma comprometa o respeito pela Convenção Europeia dos Direitos Humanos ou o respetivo Protocolo n.º 1.

DECISÃO.
Pelo exposto, julga-se a apelação improcedente e, consequentemente, mantém-se a decisão recorrida.
As custas da apelação são a cargo do apelante, que nelas decaiu (art.º 527.º n.ºs 1 e 2 do CPC).



Lisboa, 17.5.2018



Jorge Leal
Ondina Carmo Alves
Pedro Martins