Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2537/19.9T8ALM.L1-7
Relator: CARLOS OLIVEIRA
Descritores: CONTRATO DE LOCAÇÃO FINANCEIRA
FIADORA COMO RÉ
MORTE DA RÉ
HABILITAÇÃO DE HERDEIROS
REPÚDIO DA HERANÇA
VALIDADE E EFICÁCIA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/30/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: 1. O propósito do incidente de habilitação de herdeiros não é forçar a declaração de aceitação ou repúdio da herança, mas sim estabelecer uma solução processual que permita o prosseguimento da instância contra as pessoas legítimas em função das regras gerais sucessórias.
2. Nada obsta a que, depois de ser proferida sentença a habilitar os herdeiros da falecida Ré, os mesmos venham a repudiar a herança através de escritura pública que juntam aos autos, já depois de proferido despacho saneador, mas antes de ser proferida sentença final condenatória.
3. A contestação apresentada pelos Réus habilitados no interesse essencial da falecida Ré, pretendendo que esta não respondesse pela dívida peticionada pelo Autor, sem se intitularem como herdeiros e sem aí expressarem a vontade inequívoca de aceitação da herança, trata-se de ato de mera gestão dos interesses da herança, no sentido de não permitir o aumento do passivo, que é reconduzível ao disposto no Art.º 2056.º n.º 3 do C.C., não correspondendo a declaração tácita de aceitação da herança, nos termos do Art.º 2056.º n.º 1 e 2017.º n.º 1 . 2.ª parte, do C.C..
4. O tempo de demora que decorreu entre a citação para o incidente de habilitação de herdeiros e as escrituras de repúdio (no caso: 1 ano, 5 meses e 14 dias), não se trata de tempo suficiente para, sem considerar outros factos relevantes de onde resulte a expressão inequívoca da vontade de querer adquirir a herança, podermos concluir que os Réus aceitaram tacitamente a herança.
5. Não havendo aceitação tácita da herança, os Réus podiam, ainda em tempo, repudiar a mesma, tal como fizeram, sendo essa declaração plenamente válida e eficaz por ter sido outorgada por escritura pública, supondo que a herança pudesse integrar bens para cuja alienação a lei exigisse a observância dessa forma (cfr. Art.ºs 2062.º, 2063.º e 2066.º do C.C.).
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I- RELATÓRIO
Montepio Crédito – Instituição Financeira de Crédito, S.A. veio propor ação de condenação, em processo declarativo comum, contra a AA, pedindo a sua condenação no pagamento da quantia total de €96.211,84, acrescida de juros.
Alegou, para tanto, que celebrou com a sociedade S… - Rent a Car, Lda., em 19/10/2015, um contrato de locação financeira com o nº 14157, mediante o qual deu de locação financeira àquela sociedade o veículo automóvel da marca Ford, modelo Mustang Fastback, com a matrícula ..-QO-.., do qual o A. era proprietário, nele tendo assumido as posições de avalistas e fiadores a R. e LM, com renúncia ao benefício de excussão prévia, de forma a garantir o cumprimento das obrigações do referido contrato de locação financeira.
Como não foram pagas as rendas 9ª à 16ª, o A. resolveu o contrato, peticionando o pagamento de €20.319,58, por carta de 23/02/2017.
Entretanto, a sociedade S… - Rent a Car, Lda., foi declarada insolvente em 10/03/2017, assim como LM, que se apresentou à insolvência em 27/12/2018, após o A. ter dado à execução a livrança subscrita por aquele.
Pretende assim exercer os seus direitos de crédito sobre a R., fiadora, emergente do referido contrato.
Diligenciada pela citação da R., constatou-se o seu óbito e, nessa sequência, o A. requereu, por apenso, a habilitação dos herdeiros da R., identificando como seus sucessores: B e C.
Os Requeridos habilitar foram citados e contestaram, em simultâneo, a ação e o incidente de habilitação de herdeiros, com base nos mesmos fundamentos, tendo sido habilitados como sucessores da R., a fim de prosseguirem na ação no lugar da mesma, por sentença proferida a 2/12/2019 no apenso “A” (cfr. fls. 46 a verso do apenso “A”).
Na contestação que apresentaram no processo principal, alegaram que falecida R. havia cedido em 31/5/2016 a integralidade das suas quotas à sociedade A…, Lda., razão pela qual aquela deixou de ser, nessa data, responsável por quaisquer pagamentos, designadamente quaisquer obrigações relacionadas com o veículo automóvel Ford Mustang, de matrícula ..-QO-.., sendo, por isso, parte ilegítima. Mais alegaram que o A. age com abuso de direito por apenas proceder judicialmente contra a falecida R., três anos após a verificação do incumprimento do mencionado contrato de locação financeira, alegando ainda que o direito do A. se encontra prescrito/caducado, pelos mesmos motivos.
Notificado da contestação, o A. respondeu pugnando pela improcedência das exceções invocadas na contestação. Tendo, nessa sequência, os R.R. requerido o desentranhamento desse articulado da A..
Findos os articulados foi proferido despacho que considerou a resposta à contestação admissível e tempestiva, julgando ainda improcedente a exceção de ilegitimidade ativa dos R.R. habilitados, sendo as partes então notificadas para informarem se algo tinham a opor à dispensa da realização de audiência prévia.
Na sequência, vem a ser proferido despacho saneador, com dispensa de audiência prévia, fixando-se o objeto do litígio e os temas da prova, relegando-se para final o conhecimento das demais questões suscitadas na contestação.
Logo após os R.R. vieram juntar aos autos escrituras de repúdio da herança de AA (R.), outorgadas a 29 de outubro de 2020 (cfr. fls. 113 a 116), sem prejuízo de terem alterado o seu requerimento probatório.
Por despacho de fls. 119, datado de 6 de janeiro de 2021, foram os R.R. notificados para concretizar quais os efeitos processuais que pretendiam retirar com a requerida junção das escrituras de repúdio da herança. O que estes fizeram, por requerimento de 19 de janeiro de 2021 (cfr. fls. 120 a 122), requerendo a extinção da instância, nos termos do Art.º 277.º al. e) do C.P.C., relativamente aos sucessores habilitados que repudiaram a sua condição de herdeiros.
O A. veio deduzir oposição ao requerido, por requerimento de 24 de fevereiro de 2021, considerando que dos termos da contestação resulta a aceitação da herança, que é irrevogável.
Por despacho de fls. 127 a 128 verso, datado de 25 de fevereiro de 2021, foi indeferido ao requerido pelos R.R. e ordenado que os autos prosseguissem os seus termos.
Os R.R. recorreram desse despacho, tendo esse recurso vindo a constituir o apenso “B”, realçando-se aqui que esse recurso veio a ser admitido, mas com subida diferida.
Entretanto foi designada data para audiência final, a qual se realizou com a produção da prova requerida e discussão da causa, findo o que foi proferida sentença que julgou a ação parcialmente procedente por provada, condenando os R.R., B e C, na qualidade de herdeiros de AA, a pagarem ao A., Montepio Crédito – Instituição Financeira de Crédito, S.A. as seguintes quantias:
«1. A quantia total de €63.506,32, sendo:
a) €20.319,58, correspondentes à resolução do contrato, que integram:
i) €9.461,24, atinentes a rendas vencidas e não pagas;
ii) €7.878,83, atinentes à penalidade devida pela rescisão do contrato;
iii) €2.177,10, atinentes a despesas judiciais e extrajudiciais;
iv) €476,41, atinentes a outras despesas havidas com comissões de devolução e impostos cobrados devido ao incumprimento;
v) €326,00, atinentes a juros de mora;
b) €21.493,98, correspondentes à mora na devolução do veículo, de acordo com a cláusula 12ª, alínea f) das Condições Gerais;
c) €44.769,38, correspondentes ao custo da reparação do veículo;
d) €186,74, correspondentes a despesas com a recuperação da viatura;
2. A que acrescem:
a) juros de mora vencidos, contados sobre:
i) as quantias aludidas em 1.a), a partir do dia 10.03.2017, até à presente data, à taxa legal de 4%;
ii) as quantias aludidas em 1.b) a d), a partir do dia 06.02.2019, até à presente data, à taxa legal de 4%;
b) juros de mora vincendos sobre todas as quantias, desde a presente data até efetivo e integral pagamento, à taxa legal».
É dessa sentença que os R.R. vem agora interpor recurso de apelação, apresentando no final das suas alegações as seguintes conclusões:
1. A Ré AA faleceu em 24/01/2017, em data anterior à prática de todos os factos;
2. Os recorrentes AJRA e PJOA, são respetivamente, viúvo e filho da malograda AA, falecida em 24/01/2017,
3. A ação que em processo comum desde 05 de abril de 2019, assume o Proc. n.º 2537/19.9T8ALM, que corre seus termos pelo 3º Juízo Central Cível de Almada, do Tribunal da Comarca de Lisboa;
4. Pede-se a condenação, em execução ordinária, da falecida AA;
5. A Meritíssima Juiz a quo, ordena a competente habilitação de B e C;
6. São, habilitados como sucessores da falecida R. AA; por Douto Despacho Interlocutório proferido a 09/12/2019;
7. A meritíssima juíza a quo, não releva a data do óbito da Ré AA.
8. Em 15/11/2020, os Recorrentes, juntam, tanto no processo principal, bem como no Apenso, a Escritura de Repúdio da Herança;
9. Em 25 de fevereiro de 2021, é proferido o Douto Despacho Interlocutório de que se recorre no qual se lê:
10. “Atendendo, deste modo, a que no caso em apreço, no âmbito do incidente de habilitação de herdeiros, o viúvo e o filho da falecida não impugnaram a sua qualidade de únicos e universais herdeiros da mesma, motivo pelo qual foram declarados habilitados, por decisão transitada em julgado, as declarações de repúdio da herança que emitiram cerca de um ano depois não são eficazes.”
11. Os recorrentes B e C, são efetivamente os únicos e universais herdeiros de AA, por serem respetivamente marido (viúvo) e filho da malograda AA;
12. A habilitação dos mesmos sempre teria que correr para que os mesmos assumirem a posição processual da falecida AA;
13. A Escritura de Habilitação de Herdeiros determina os herdeiros conhecidos do falecida e chama os herdeiros para assumir a posição processual do sucessível;
14. Os Recorrentes por Escritura de Repúdio da Herança afasta-os dessa posição
15. A Escritura de Repúdio da Herança retroage os seus efeitos à data do óbito, que no caso sub judice reporta-se a 24/01/2017;
16. A ação a que são chamados a assumir a posição processual da falecida, dá entrada no Tribunal em 05 de abril de 2019;
17. Retroagindo os efeitos da Escritura de Repúdio da Herança à data do falecimento, a posição dos herdeiros altera-se havendo quanto aos mesmos a extinção da instância por inutilidade superveniente da lide.
18. A Meritíssima Juiz a quo, ao proferir o Douto Despacho Interlocutório de que se recorre violou os termos da alínea e) do artigo 277.º do Código de Processo Civil.
19. Não havendo transmissão da posição do herdeiro repudiante, que por força da declaração de repúdio, se reporta ao momento da abertura da sucessão, não ocorrerá a modificação subjetiva da instância, verificando-se, contudo, a impossibilidade superveniente da lide relativamente ao sucessor habilitado que repudiou a sua condição de herdeiro que justificava tal habilitação.
20. Na situação sub judice, os sucessores habilitados repudiaram a herança, pelo que ocorre, necessária e relativamente a eles, a impossibilidade superveniente da lide, devendo em consequência extinguir-se a instância, nos termos da alínea e) do artigo 277.º do Código de Processo Civil.
21. impossibilidade superveniente da lide, relativamente ao sucessor habilitado, que repudiou a sua condição de herdeiro que justificava tal habilitação.
22. A Meritíssima Juiz a quo, ao proferir a Douta sentença de que se recorre violou os termos da alínea e) do artigo 277.º do Código de Processo Civil.
23. A Meritíssima Juiz a quo, ao proferir a douta sentença e sic: “Atendendo, deste modo, a que no caso em apreço, no âmbito do incidente de habilitação de herdeiros, o viúvo e o filho da falecida não impugnaram a sua qualidade de únicos e universais herdeiros da mesma, motivo pelo qual foram declarados habilitados, por decisão transitada em julgado, as declarações de repúdio da herança que emitiram cerca de um ano depois não são eficazes.” castra o efeito jurídico da Escritura do Repúdio da Herança.
24. Enferma o Douto Despacho Interlocutório proferido pela Meritíssima Juiz a quo, de nulidade por violação também do disposto nas alíneas c) e d), do n.º 1, do artigo 615º do Código de Processo Civil.
25. A Douta Sentença de que se recorre, enferma, entre outos, de nulidade nos termos do artigo 615º, n.º 1, alíneas b), c) e d), do C.P.C., primeiramente porque considera a Ré interpelada e notificada quando o não foi, não existe para com esta divida, incumprimento e consequente constituição em mora; castra o efeito jurídico da Escritura do Repúdio da Herança, para além de que, os fundamentos explanados, estão em oposição com a decisão por ocorrer ambiguidade tornando, e torna, a decisão ininteligível.
26. Não havendo transmissão da posição do herdeiro repudiante, que por força da declaração de repúdio, se reporta ao momento da abertura da sucessão, não ocorrerá a modificação subjetiva da instância, por impossibilidade superveniente da lide relativamente ao sucessor habilitado que repudiou a sua condição de herdeiro que justificava tal habilitação.
27. a Douta sentença sob recurso merece censura e reparo, sendo que o recurso apresentado deve ser julgado procedente.
28. Os recorrentes beneficiam de apoio judiciário na modalidade de dispensa da taxa de justiça e demais encargos com o processo.
29. Pelo que, igualmente aqui, a Meritíssima Juiz a quo, violou o dispositivo constante da alínea b), c) e d), do n.º 1, do artigo 615.º do C.P.C.
30. A sentença sob recurso merece censura e reparo, sendo que o recurso apresentado deve ser julgado procedente;
31. Os herdeiros habilitados beneficiam de apoio judiciário na modalidade de despensa da taxa de justiça e demais encargos com o processo.
Pedem assim a procedência do recurso e que:
«1. Seja aditado, aos factos dados como Provados - a data (24/01/2017), do óbito da Ré AA, ocorrido antes da primeira interpelação para o pagamento da primeira renda em incumprimento.
«2. Seja aditado aos factos dados como Provados - a data e efeitos o Contrato de Cessão de Quotas da Ré AA, ocorrido antes da primeira renda (9ª) incumprida e da primeira interpelação para o pagamento dessa primeira renda em incumprimento.
«3. Colocou a Ré e os seus herdeiros, em representação desta, numa posição processual de ilegitimidade ou de não Parte.
«Além do mais,
«4. A Meritíssima Juiz a quo violou o disposto no artigo 615º, n.º 1, alínea b) do C.P.C., ao não especificar os fundamentos de facto e de direito quem justificam esta sua decisão, ferindo de nulidade a sentença recorrida.
«5. A Meritíssima Juiz a quo violou o disposto no artigo 615º, n.º 1, alínea c) do C.P.C. quando não considera como relevante, não tecendo qualquer consideração sobre o facto, que é muito importante, que é a data em que ocorre o falecimento da aqui Ré sua decisão, ferindo de nulidade a sentença recorrida.
«6. A Meritíssima Juiz a quo violou o disposto no artigo 615º, n.º 1, alínea d) do C.P.C., ao desconsiderar o repúdio da herança feito pelos dois herdeiros, “cerca de um ano depois” limitando temporalmente o exercício do direito inalienável que assiste aos herdeiros – o Repúdio – quando não existe sustento legal, para tal limitação».
Pedem finalmente que seja dado provimento ao recurso, revogando-se a sentença recorrida, e em consequência, que sejam nela aditados os factos provados supra transcritos, documentalmente comprovados, e deles extraído o competente efeito jurídico, quer quanto à não notificação da Ré AA, quer quanto à cessão de quotas que efetuou, e ainda extraídas as consequências legais decorrentes da declaração de repúdio da herança formulada pelos dois herdeiros da Ré.
No final das alegações de recurso declararam ainda o seguinte:
«Os Réus habilitados em representação da Ré AA declaram que mantêm interesse no Recurso que é de apelação e que sobe a final nos próprios Autos tendo sido admitido por despacho datado de 17/06/2021».
Não foi apresentada resposta ao presente recurso de apelação por parte do Recorrido.
Refira-se ainda que, por decisão do relator, proferida no apenso “B” a 20 de abril de 2023 (autos a que correspondeu o processo com o n.º 2537/19.9T8ALM-B.L2), veio o recurso anteriormente interposto pelos R.R., que indevidamente havia sido admitido com subida diferida, a ser rejeitado por ser intempestivo, por manifesta prematuridade.
O Tribunal a quo, ao admitir o recurso dos presentes autos principais, veio a consignar o seguinte relativamente às alegadas nulidades da sentença recorrida, nos termos do Art.º 617.º n.º 1 do C.P.C.:
«Vieram os RR. arguir a nulidade da sentença, com fundamento em omissão de pronúncia e contradição entre os fundamentos e a decisão.
«Alegam os RR. que o Tribunal não julgou provado que o veículo em causa foi utilizado para participar num crime de furto/roubo, mas foi produzida prova nesse sentido. Mais sustentam que o Tribunal não valorou a cessão de quotas, nem a escritura de repúdio apresentada pelos RR., e que AA não foi interpelada para o pagamento.
«Ora, quanto ao primeiro aspeto, entende-se que a discordância quanto à motivação da decisão de facto constitui uma realidade distinta da omissão de pronúncia, não sendo fonte de nulidade da sentença; quanto ao segundo aspeto, o Tribunal referiu-se à cessão de quotas quer na fundamentação de facto, quer na fundamentação de direito, pelo que de novo se está perante uma discordância relativa à fundamentação da decisão, que não constitui fonte de nulidade da sentença; quanto ao terceiro aspeto, o Tribunal pronunciou-se sobre a sentença de repúdio no despacho proferido a fls. 127 a 128-v, do qual, aliás, se mostra pendente um recurso, com subida a final, pelo que lhe está vedado voltar a pronunciar-se sobre esta matéria; quanto ao último aspeto, o Tribunal abordou a matéria do incumprimento à luz dos respetivos fundamentos invocados na petição inicial e correspondente defesa vertida na contestação».
*
II- QUESTÕES A DECIDIR
Nos termos dos Art.ºs 635º, n.º 4 e 639º, n.º 1 do C.P.C., as conclusões delimitam a esfera de atuação do tribunal ad quem, exercendo uma função semelhante à do pedido na petição inicial (vide: Abrantes Geraldes in “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, Almedina, 2017, pág. 105 a 106). Esta limitação objetiva da atuação do Tribunal da Relação não ocorre em sede da qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cfr. Art.º 5º n.º 3 do Código de Processo Civil). Também não pode este Tribunal conhecer de questões novas que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas (Vide: Abrantes Geraldes, Ob. Loc. Cit., pág. 107).
Assim, em termos sucintos, as questões essenciais a decidir são as seguintes:
a) A nulidade da sentença;
b) A impugnação da decisão sobre a matéria de facto; e
c) A eficácia do repúdio da herança pelos R.R.; e
d) O mérito da ação em face do óbito da primitiva R. e da cessão de quotas.
Corridos que se mostram os vistos, cumpre decidir.
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III- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
A sentença sob recurso considerou como provada a seguinte factualidade:
1. O A. é uma instituição de crédito que se dedica à prossecução da atividade comercial e financeira, concretamente à prática de operações financeiras aos Bancos, com exceção da receção dos depósitos.
2. Por escrito particular denominado “Contrato de Locação Financeira n. º 1457”, datado de 19.10.2015, o A. obrigou-se a comprar o veículo automóvel marca Ford, modelo Mustang Fastback, matrícula ..-QO-.., à sociedade comercial F…-Comércio de Automóveis, S.A., pelo valor de €59.131,59, e a entregá-lo à sociedade S… – Rent a Car, Lda., em 27.11.2015, o que veio a suceder.
3. No âmbito do citado acordo escrito, a sociedade comercial S… – Rent a Car, Lda., declarou obrigar-se a pagar ao A., pelo gozo da viatura ali referida, 48 rendas mensais, sendo a primeira no valor de €10.000,00 e as restantes no valor de €1.198,42 cada, incluindo já o IVA e comissões de processamento, à taxa de juro anual nominal de 7,7594%, vencendo-se as mesmas no dia 27 de cada mês, com início em 27.11.2015 e termo previsto para 27.11.2019, e ficando aquela sociedade com direito à aquisição do referido veículo, em opção de compra, pelo valor residual acordado de €1.182,63.
4. No mencionado escrito ficou estipulado que:
“(…) a primeira renda é devida na data de início do prazo da Locação Financeira devendo ser paga por cheque ou transferência bancária (…) as restantes rendas mensais serão pagas através do denominado Sistema Débitos Diretos SEPA CORE. Para o efeito, o Locatário entrega ao Locador, nesta data, uma autorização de débito direto SEPA (…) devidamente preenchida e assinada.”
5. No acordo referido, AA declarou aceitar constituir-se como principal pagadora de todas as obrigações emergentes do ali estipulado, renunciando expressamente ao benefício da excussão prévia.
6. Consta da cláusula 8.ª do mencionado escrito, denominada “Mora do Locatário”, que:
“Em caso de mora no cumprimento de qualquer Renda, do Valor Residual ou de qualquer outra quantia devida por força do presente contrato, incidirá sobre o montante em dívida e durante o prazo em que a mora se verificar a taxa de juros de 3% ao ano sobre a taxa nominal, sem prejuízo da aplicação de sobretaxa mais elevada consentida por lei, e do direito que cabe ao locador de resolver o contrato ou considerar antecipadamente vencidas todas as obrigações. O Locador suporta ainda uma comissão pela recuperação dos valores em dívida, nos termos da lei.”
7. No mesmo escrito, sob a cláusula 14.ª, denominada “Resolução do Contrato”, ficou estipulado que:
“a) Para além dos demais casos previstos na Lei ou no presente contrato, este poderá ser resolvido por iniciativa do Locador por carta registada com aviso de receção em caso de não cumprimento pelo Locatário das suas obrigações decorrentes da Lei Geral e do presente contrato e em especial por:
1. mora no cumprimento das obrigações pecuniárias; (…)
b) Em caso de resolução, qualquer que seja o fundamento, o Locatário fica obrigado a:
1. restituir o Bem ao Locador em condições idênticas às previstas na alínea d) da Cláusula Décima Segunda, sob pena de aplicação do estabelecido na alínea f) da mesma cláusula;
2. Pagar as Rendas, Comissões, Impostos, Taxas, Prémios de Seguro e outros encargos ou despesas de sua conta, vencidos e não pagos, acrescidos dos respetivos juros de mora calculados à taxa contratual, bem como todos os encargos suportados pelo Locador por força da Resolução;
3. Pagar a título de indemnização por perdas e danos, uma importância igual a vinte por cento da soma das Rendas vincendas e do valor residual acrescida de juros calculados à taxa contratual, bem como todos os encargos suportados pelo Locador por força da Resolução, sempre sem prejuízo, porém, do direito do Locador à reparação integral dos seus prejuízos”.
8. Consta da cláusula 12.ª do mencionado escrito, denominada “Opção de Compra e Termo do Contrato”, que:
“d) O Bem deve ser restituído em bom estado de manutenção e funcionamento, ressalvadas as deteriorações inerentes a uma utilização normal e prudente, dotado de todas as peças e acessórios que o constituem e, bem assim, das que tenham sido acrescentadas pelo Locatário durante a Locação. (…)
f) Caso não proceda à restituição do Bem no Termo da Locação, o Locatário constitui-se na obrigação de pagar ao Locador uma importância igual ao dobro da última Renda vencida por cada mês ou fração em que perdurar a mora, sem prejuízo da obrigação de indemnizar por maior dano e ainda sem prejuízo do exercício, por parte do Locador, do direito de reivindicar a posse física do Bem”.
9. No referido escrito consta da cláusula 10.ª, denominada “Responsabilidade, Risco e Seguro”, que:
“b) (…) O Locatário obriga-se a efetuar, a exclusivas expensas suas e junto de uma Companhia de Seguros reconhecidamente solvente, apólice de seguro que cubra, por um lado, o Bem Locado contra todos os riscos, nomeadamente os de incêndio, roubo, furto, inundação, explosão, raio e destruição, bem como, nos casos aplicáveis, os de choque, colisão e capotamento, pelo seu valor de aquisição.”
10. No mesmo escrito, sob a cláusula 17.ª, denominada “Transmissão do direito do Locatário”, consta que:
“A cessão da posição contratual do Locatário depende de autorização prévia, expressa e escrita do Locador”.
11. A 9.ª renda, no valor de €1.194,11, foi apresentada a pagamento em 27.07.2016, não tendo sido liquidada.
12. Assim como as restantes, até à 16.ª renda.
13. Em 23.02.2017, o A. remeteu à sociedade S… - Rent a Car, Lda., carta registada com aviso de receção, para a morada constante no escrito acima mencionado, com o seguinte teor:
“Assunto: Resolução do contrato por incumprimento Contrato de Locação Financeira n.º 14157
Bem: FORD Mustang Fastback
Matrícula: ..-QO-.. (…)
Na sequência das nossas comunicações anteriores e uma vez que a dívida resultante das obrigações contratuais se mantém, consideramos o contrato acima identificado resolvido por incumprimento.
Consequentemente, nos termos e ao abrigo do disposto nas condições gerais do contrato, solicitamos que proceda de imediato à entrega do bem locado, bem como ao pagamento, no prazo máximo de 8 dias, dos valores em dívida que ascendem ao montante de 20.319,58€, conforme discriminado no extrato de conta no verso.”
14. Em anexo à referida carta consta um documento designado “extrato de conta”, onde se lê “SubTotal Rendas 9.451,24€”; “Subtotal Outras comissões e despesas 476,41€”, “SubTotal Juros mora 326,00€”, “SubTotal Rescisão do contrato 10.055,93€”.
15. A mencionada carta foi devolvida ao A., com a indicação postal de “recusado”, em 01.03.2017.
16. Em 23.02.2017, o A. remeteu a AA carta registada com aviso de receção para a morada constante no escrito acima mencionado, com o seguinte teor:
“Assunto: Resolução do contrato por incumprimento Contrato de Locação Financeira n.º 14157
Bem: FORD Mustang Fastback
Matrícula: ..-QO-..
(…) Serve o presente meio para informar que que o contrato acima identificado celebrado com S… RENT A CAR, LDA, do qual V. Exa. se constituiu avalista, na Livrança por este subscrita, foi resolvido por incumprimento.
Consequentemente, nos termos e ao abrigo do disposto nas condições gerais do contrato, informamos que se encontra em dívida o montante de 20.319,58€, conforme discriminado no extrato de conta no verso.
Assim, solicitamos a V. Exa., na qualidade de avalista, a regularização total da dívida atual, no prazo máximo de 8 dias.”
17. Em anexo à referida carta consta um documento designado “extrato de conta”, onde se lê “SubTotal Rendas 9.451,24€”; “Subtotal Outras comissões e despesas 476,41€”, “SubTotal Juros mora 326,00€”, “SubTotal Rescisão do contrato 10.055,93€”.
18. A mencionada carta foi devolvida ao A., com a indicação postal de “desconhecido”.
19. Em 23.02.2017, o A. remeteu a LM carta registada com aviso de receção para a morada constante no escrito acima mencionado, com o seguinte teor:
“Assunto: Resolução do contrato por incumprimento Contrato de Locação Financeira n.º 14157
Bem: FORD Mustang Fastback
Matrícula: ..-QO-..
(…) Serve o presente meio para informar que que o contrato acima identificado celebrado com S…RENT A CAR, LDA, do qual V. Exa. se constituiu avalista, na Livrança por este subscrita, foi resolvido por incumprimento.
Consequentemente, nos termos e ao abrigo do disposto nas condições gerais do contrato, informamos que se encontra em dívida o montante de 20.319,58€, conforme discriminado no extrato de conta no verso.
Assim, solicitamos a V. Exa., na qualidade de avalista, a regularização total da dívida atual, no prazo máximo de 8 dias.”
20. Em anexo à referida carta consta um documento designado “extrato de conta”, onde se lê “SubTotal Rendas 9.451,24€”; “Subtotal Outras comissões e despesas 476,41€”, “SubTotal Juros mora 326,00€”, “SubTotal Rescisão do contrato 10.055,93€”.
21. A mencionada carta foi devolvida ao A., com a indicação postal “objeto não reclamado”.
22. No Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, Juízo de Comércio de Lisboa – Juiz 1 foi proferida sentença de declaração de insolvência da sociedade S… - Rent a Car, Lda., em 08.03.2017.
23. Em 07.03.2018 foi apresentado requerimento executivo no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa - Almada, em que é exequente o aqui A. e executado LM, sendo apresentado como título executivo uma livrança, no montante de €24.693,14, relativa a um contrato de crédito n.º 283928, tendo a ação executiva corrido termos sob o nº 1854/18.0T8ALM, no Juízo de Execução de Almada - Juiz 2, cuja instância foi declarada suspensa, em janeiro de 2019, por virtude da declaração de insolvência do aí executado.
24. Em 25.01.2019, o A. remeteu a AA carta registada com aviso de receção para a Rua …, Montijo, com o seguinte teor:
“Assunto: Contrato de Locação Financeira n.º 14157
(…) Na sequência do não cumprimento das obrigações estabelecidas no Contrato supra referido, que V. Exa. se constituiu fiadora com renúncia ao benefício da excussão prévia, somos a recordar que, nos termos e ao abrigo do disposto nas respetivas condições gerais, considerámos o mesmo resolvido por incumprimento no passado dia 23-02-2017 pelo montante de €20.319,58.
Acresce que, na presente data, é possível ainda apurar um conjunto de valores que, no dia 23-02-2017, não era, a saber:
• Mora na devolução da entrega da viatura (cláusula 1.ª alínea f) das CG): €21.493,98;
• Recondicionamento da viatura (cláusula 12.ª alínea d) e f) das CG): €52.600,00;
• Despesas com a Recuperação da viatura (cláusula 12.ª alínea c) das CG): €186,74.
Ao valor em dívida, acrescem ainda juros de mora calculados à taxa legal, contabilizados entre o dia 23-02-2017 e a presente data que se cifram em €1.611,54.
Face ao exposto, somos a informar a V. Exa. que a quantia devida a esta instituição, à data de 31/01/2019, ascende a 96.211,84 € (noventa e seis mil, duzentos e onze euros e oitenta e quatro cêntimos), à qual acrescem juros de mora, calculados à taxa legal, até efetivo e integral pagamento.
Caso o montante de €96.211,84 não seja pago no prazo máximo de 8 dias, o Montepio Crédito irá interpor a competente ação judicial para se ver integralmente ressarcido.”
25. A mencionada carta foi devolvida ao A., com a indicação postal “objeto não reclamado”, em 28.01.2019.
26. Por escrito particular denominado “Contrato de cessão de quotas e nomeação de gerente”, datado de 31.05.2016, AA declarou ceder a quota que detinha na sociedade S… – Rent a Car, Lda., com o valor nominal de €49.500,00, a A…, Lda..
27. Está inscrita no registo comercial da sociedade S… – Rent a Car, Lda., pela Menção Dep. 125/2016-06-03, a referida Transmissão de Quota, nos seguintes termos:
“Quota e sujeito ativo:
Quota: 49.500,00 Euros
Titular: A…, Limitada (…)
Sujeito Passivo: (…)
Titular: AA”.
28. Consta da cláusula 9ª do escrito particular referido que “Os cedentes e o gerente da sociedade “S… – Rent a Car, Lda.” declaram não terem conhecimento de que possam existir ou vir a existir quaisquer factos ou circunstâncias, nomeadamente ações judiciais ou extra judiciais, que possam pôr em causa a titularidade do seu direito sobre as identificadas quotas, e por via disso a livre disponibilidade das mesmas por parte dos cessionários, assumindo total e exclusiva responsabilidade por qualquer facto ou circunstância que porventura possa ocorrer, bem como quaisquer notificações que a sociedade venha a receber relativamente a dívidas, dívidas fiscais, execuções, execuções fiscais, penhoras, arrestos, coimas, multas e quaisquer outras ou de quaisquer responsabilidades assumidas pela sociedade e sócios ou resultantes de atos praticados por estes em data anterior à assinatura do presente contrato que serão da inteira e exclusiva responsabilidade dos sócios cessantes e gerente, exceto o veículo automóvel Ford Mustang com a matrícula ..-QO-.. e o veículo automóvel BMW 116D com a matrícula ..-QN-.., não podendo ser responsabilizado o novo sócio nem a nova gerência pelas mesmas.”
29. Em 20.12.2017, o veículo em questão, que se encontrava apreendido à ordem do Processo crime nº 1462/16.0PBSCS, foi entregue ao A., mediante a intervenção do gerente da sociedade locatária, IS, o qual se deslocou à PSP de Cascais para o efeito (16º e 17º p.i.).
30. No dia 06.09.2016, o veículo esteve envolvido num acidente, do qual foi o causador, tendo sofrido danos, impeditivos da sua circulação (21º p.i.).
31. Esses danos implicam uma reparação orçamentada em €44.769,38, não se tratando de uma perda total (25º p.i.).
32. O veículo tem o valor venal de €48.000,00 e o valor venal corrigido de €57.600,00, o salvado tem o valor estimado de €5.000,00 (26º p.i.).
33. O veículo, à data do sinistro, não beneficiava de seguro de responsabilidade civil automóvel (22º p.i.).
*
Foram julgados por não provados os seguintes factos:
a) O veículo foi utilizado para participar num crime de furto/roubo (17º p.i.).
Tudo visto, cumpre apreciar.
*
IV- FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
Fixadas as questões que fazem parte do objeto do presente recurso, iremos então sobre elas nos debruçar, pela sua ordem de precedência lógica, começando inevitavelmente pelas alegadas nulidades da sentença recorrida.
1. Da nulidade da sentença.
Os Recorrentes vieram suscitar a nulidade da sentença recorrida, por alegada violação das al.s b), c) e d) do n.º 1 do Art.º 615.º do C.P.C..
Em primeiro lugar criticam o facto da sentença ter dado por não provado que o veículo a que os autos se reportam, objeto do contrato de locação financeira em menção no presente processo, ter tido interveniência num crime de furto ou roubo, pois ainda que não tenha sido junta sentença crime, o tribunal deveria ter atendido ao depoimento das testemunhas que confirmaram esse facto por referência ao processo-crime com o n.º 1462/16.0PBSCS, nomeadamente a testemunha F… e as declarações de parte do R. PJOA. Ao que acresceria que a fundamentação da sentença sobre esse facto reporta-se ao “desaparecimento do veículo”, o que nada tem a ver com o facto do veículo ter sido utilizado num crime de furto ou roubo, que foi o facto dado por não provado. Em suma, quanto a este facto, considera que a sentença é nula por não especificar os fundamentos de facto e de direito que justificariam a decisão, em violação da al. b) do n.º 1 do Art.º 615.º do C.P.C..
Em segundo lugar, defendem os Recorrentes que existe contradição entre os fundamentos e a decisão, porque na sentença condenam-se os herdeiros da R., quando esta nunca foi interpelada para a alegada dívida e, portanto, essa dívida não se teria vencido e, consequentemente, não existiria o correspondente crédito, muito menos relativamente a juros. Para mais, os herdeiros da R. repudiaram a herança, por escritura publica junta aos autos, o que se mostra omisso nos factos provados, havendo por isso também omissão de pronúncia. Por outro lado, a sentença não deu relevância à data do falecimento da R., que é anterior à data em que ocorreu o alegado incumprimento do contrato firmado com a credora. Pelo que, a sentença teria violado o Art.º 615.º n.º 1 al. c) do C.P.C..
Finalmente, a sentença teria omitido pronúncia, por não ter valorado a escritura de repúdio da herança, voltando os Recorrentes a considerar que houve erro de julgamento no despacho interlocutório que não reconheceu a requerida inutilidade da lide, não tendo assim sido validada a eficácia retroativa dessa declaração de repúdio e, por isso, a sentença violou o Art.º 615.º n.º 1 al. d) do C.P.C..
Como vimos, o Tribunal a quo, oportunamente sustentou a improcedência de qualquer dessas nulidades, por nenhuma das situações invocadas se enquadrar em nenhuma das alíneas do Art.º 615.º do C.P.C..
Apreciando, parece-nos evidente que a apreciação assim feita pelo tribunal recorrido se mostra inteiramente correta.
Efetivamente, nos termos do Art.º 615.º n.º 1 al. b) do C.P.C., a sentença é nula quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão. Mas, como ensinava a este propósito Alberto dos Reis (in “Código de Processo Civil  Anotado”, Vol. V, pág. 140): «Há que distinguir cuidadosamente a falta absoluta de motivação da motivação deficiente, medíocre ou errada. O que a lei considera nulidade é a falta absoluta de motivação; a insuficiência ou mediocridade da motivação é espécie diferente, afeta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade. / Por falta absoluta de motivação deve entender-se a ausência total de fundamentos de direito e de facto».
Esta interpretação está perfeitamente consolidada na doutrina e na jurisprudência, desde há muito, sem qualquer divergência (vide, a propósito: Ac. da T.R.C. de 14/4/1993 – Relator: Ruy Varela, in BMJ n.º 426, pág. 541; Ac. da T.R.P. de 6/1/1994 – Relator: António Velho, in CJ Tomo - I, pág. 197; Ac. da T.R.E. de 22/5/1997 – Relatora: Laura Leonardo, in CJ Tomo -II, pág. 266; e Ac. do S.T.J. de 19/10/2004 – Relator: Oliveira Barros, acessível em www.dgsi.pt/jstj; e ainda Rodrigues Bastos in “Notas ao Código de Processo Civil”, Vol. III, Lebre de Freitas in “Código de Processo Civil  Anotado”, Vol. II, 2001, pág. 669).
Nas palavras de Tomé Gomes (in “Da Sentença Cível”, pág. 39): «a falta de fundamentação de facto ocorre quando, na sentença, se omite ou se mostre de todo ininteligível o quadro factual em que era suposto assentar. Situação diferente é aquela em que os factos especificados são insuficientes para suportar a solução jurídica adotada, ou seja, quando a fundamentação de facto se mostra medíocre e, portanto, passível de um juízo de mérito negativo. / A falta de fundamentação de direito existe quando, não obstante a indicação do universo factual, na sentença, não se revela qualquer enquadramento jurídico ainda que implícito, de forma a deixar, no mínimo, ininteligível os fundamentos da decisão».
Conforme se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26/4/1995 (Relator: Raul Mateus, in CJ Tomo - II, pág. 58): «(...) no caso, no aresto em recurso, alinharam-se, de um lado, os fundamentos de facto, e, de outro lado, os fundamentos de direito, nos quais, e em conjunto se baseou a decisão. Isto é tão evidente que uma mera leitura, ainda que oblíqua, de tal acórdão logo mostra que assim é. Se bons, se maus esses fundamentos, isso é outra questão que nesta sede não tem qualquer espécie de relevância».
Portanto, só a absoluta falta de fundamentação – e não a sua insuficiência, mediocridade, ou erroneidade – integra a previsão da al. b) do n.º 1 do Art.º 615º C.P.C., cabendo o putativo desacerto da decisão no campo do erro de julgamento (cfr. Ac. do S.T.J. de 2/6/2016 – Relatora: Fernanda Isabel Pereira, Proc. n.º 781/11).
Como escrevem Luís Mendonça e Henrique Antunes (in “Dos Recursos”, Quid Juris, pág. 116): «O que a lei considera nulidade é a falta absoluta de motivação; a insuficiência ou mediocridade da motivação é espécie diferente, afeta o valor doutrinal e persuasivo da decisão – mas não produz nulidade.»
A não concordância da parte com a subsunção dos factos às normas jurídicas e/ou com a decisão sobre a matéria de facto de modo algum configuram causa de nulidade da sentença (cfr. Ac. do T.R.L. de 17/5/2012 – Relator: Gilberto Jorge, Proc. n.º 91/09).
Nos termos da al. c) do n.º 1 do Art.º 615.º do C.P.C. a sentença também é nula quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível. No entanto, esta nulidade pressupõe que entre os fundamentos e a decisão não haja contradição lógica, no sentido de que, na fundamentação da sentença, se o julgador segue determinada linha de raciocínio apontando para determinada conclusão e, em vez de a tirar, decide em sentido divergente, ocorre tal oposição (cfr. Ac. do T.R.C. de 11/1/1994 – Relator: Cardoso Albuquerque, in BMJ n.º 433, pág. 633; Ac. do S.T.J. de 13/2/1997 – Relator: Nascimento Costa, in BMJ n.º 464, pág. 524; e Ac. do S.T.J. de 22/6/1999 – Relator: Ferreira Ramos, in CJ Tomo – II, pág. 160).
Realidade distinta desta é o erro na subsunção dos factos à norma jurídica ou erro na interpretação desta, ou seja, quando – embora mal – o juiz entenda que dos factos apurados resulta determinada consequência jurídica e este seu entendimento é expresso na fundamentação ou dela decorre, pois neste caso o que existe é erro de julgamento e não oposição nos termos aludidos (cfr. Lebre de Freitas in “A Ação Declarativa Comum”, 2000, pág. 298). Por outras palavras, se a decisão está certa, ou não, é questão de mérito e não de nulidade da mesma (cfr. Ac. do S.T.J. de 8/3/2001 – Relator: Ferreira Ramos, acessível em www.dgsi.jstj/pt).
No que concretamente tange à obscuridade conducente à ininteligibilidade da decisão, Alberto dos Reis (in “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. V, pág. 151) escreveu o seguinte: «A sentença é obscura quando contém algum passo cujo sentido é ininteligível; é ambígua quando alguma passagem se preste a interpretações diferentes. Num caso não se sabe o que o juiz quis dizer; no outro hesita-se entre dois sentidos diferentes e porventura opostos. É evidente que, em última análise, a ambiguidade é uma forma especial de obscuridade. Se determinado passo da sentença é suscetível de duas interpretações diversas, não se sabe, ao certo, qual o pensamento do juiz». Em todo o caso, a ininteligibilidade da decisão não se reporta ao conteúdo ou mérito, mas à exteriorização formal do discurso “quo tale”, perfilando-se, nesta perspetiva, situações de ambiguidade expositiva, de obscuridade, de excessivo gongorismo impeditivo da univocidade ou, no limite, de meros lapsos de escrita (cfr. Ac. do S.T.J. de 28/9/2006 – Relator: Sebastião Póvoas, acessível em www.dgsi.pt/jstj).
Finalmente, nos termos da al. d) do n.º 1 do Art.º 615.º do C.P.C. a sentença é ainda nula quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar. Esta nulidade está diretamente relacionada com o Art.º 608.º n.º 2 do C.P.C., segundo o qual: «O juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; (…)»
Mas há que distinguir entre questões a apreciar e razões ou argumentos aduzidos pelas partes. Conforme já ensinava Alberto dos Reis (in “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. V, pág. 143): «São, na verdade, coisas diferentes: deixar de conhecer de questão de que devia conhecer-se, e deixar de apreciar qualquer consideração, argumento ou razão produzida pela parte. Quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se, a cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer o seu ponto de vista; o que importa é que o tribunal decida a questão posta; não lhe incumbe apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar a sua pretensão».
A omissão de pronúncia circunscreve-se às questões/pretensões formuladas de que o tribunal tenha o dever de conhecer para a decisão da causa e de que não haja conhecido, realidade distinta da invocação de um facto ou invocação de um argumento pela parte sobre os quais o tribunal não se tenha pronunciado (cfr. Ac. do S.T.J. de 7/7/1994 – Relator: Miranda Gusmão, in BMJ n.º 439, pág. 526; Ac. do S.T.J. de 22/6/1999 – Relator: Ferreira Ramos, in CJ Tomo – II, pág. 161; Ac. do T.R.L. de 10/2/2004 – Relatora: Ana Grácio, in CJ Tomo – I, pág. 105; Ac. do T.R.L. de 4/10/2007 – Relatora: Fernanda Isabel Pereira; e Ac. T.R.L. de 6/3/2012 – Relatora: Ana Resende, Proc. n.º 6509/05, acessíveis em www.dgsi.pt/jtrl).
Esta nulidade só ocorre quando não haja pronúncia sobre pontos fáctico-jurídicos estruturantes da posição dos pleiteantes, nomeadamente os que se prendem com a causa de pedir pedido e exceções e não quando tão só ocorre mera ausência de discussão das “razões” ou dos “argumentos” invocados pelas partes para concluir sobre as questões suscitadas ( cfr. Ac.s do S.T.J. de 21/12/2005 – Relator: Pereira da Silva, de 20/11/2014 – Relator: Álvaro Rodrigues, Proc. n.º 810/04). 
O conhecimento de uma questão pode fazer-se tomando posição direta sobre ela, ou resultar da ponderação ou decisão de outra conexa que a envolve ou a exclui (cfr. Ac. do S.T.J. de 8/3/2001 – Relator: Ferreira Ramos, acessível em www.dgsi.jstj/pt).
Não ocorre nulidade da sentença por omissão de pronúncia quando nela não se conhece de questão cuja decisão se mostra prejudicada pela solução dada anteriormente a outra (cfr. Ac. do S.T.J. de 3/10/2002 – Relator: Araújo de Barros, acessível em www.dgsi.pt/jstj).
Também não ocorre essa nulidade quando em causa está uma alegada omissão na factualidade provada (ou não provada) cujo vício pode ser sanado através do mero cumprimento do ónus de impugnação da decisão sobre a matéria de facto, nos termos do Art.º 640.º n.º 1 e n.º 2 do C.P.C., ou cuja correção do vício passe necessariamente pela apreciação oficiosa pelo Tribunal da Relação de Lisboa de insuficiência da prova, nos termos do Art.º 662.º n.º 2 e 3 do C.P.C., pois nesse caso o enquadramento jurídico-processual é diverso do estabelecido no Art.º 615.º do C.P.C..
Feitas estas considerações gerais, vejamos a sua pertinência no caso concreto.
Em primeiro lugar, é evidente que não houve falta de especificação dos fundamentos de facto ou de direito, no sentido de ausência absoluta de fundamentação, como atrás explicitado.
Mesmo no que se refere ao facto não provado na alínea a), não só existe facto (não provado, é certo), como existe fundamentação sobre a convicção do julgador sobre o julgamento desse facto. O que se passa é que os Recorrentes põem em causa a correção desse julgamento. Mas esse vício nada tem a ver com a nulidade prevista no Art.º 615.º n.º 1 al. b) do C.P.C.. O “erro de julgamento” só pode conduzir à revogação dessa decisão de facto e nunca à nulidade da sentença.
O mesmo se deverá dizer relativamente à alegada contradição entre os fundamentos e a decisão, porque subjacente à sentença existe uma lógica interna entre os factos e o direito com base nos quais aí se sustenta a decisão de condenação dos R.R., que passa pela coerência com a decisão interlocutória anterior, onde se entendeu que o repúdio da herança já seria ineficaz, porque havia uma aceitação da herança, tácita e irrevogável (cfr. Art.ºs 2050.º, 2056.º n.º 1 e 2061.º do C.C.), que inevitavelmente prejudicava a posterior manifestação de vontade em sentido contrário.
Também quanto à questão da interpelação da devedora, não há contradição entre os fundamentos e a decisão. Quando muito existirá erro de julgamento na aplicação ao caso da interpretação resultante do Art.º 224.º n.º 1 do C.C. quanto à culpa pela não receção da carta de interpelação, que veio devolvida com menção a “objeto não reclamado”. Mas, repita-se, os erros de julgamento não caem sob a alçada das nulidades previstas no Art.º 615.º do C.P.C..
Finalmente, longe está esta sentença de enfermar de nulidade por omissão de pronúncia quanto à questão da relevância das escrituras de repúdio da herança pelos R.R., aqui Recorrentes, porque essa questão já havia sido apreciada nos autos, por despacho de que os R.R. tiveram conhecimento oportuno e do qual até interpuseram recurso, ainda que intempestivo, por não caber na previsão de nenhuma das alíneas do n.º 2 do Art.º 644.º do C.P.C., tal como decidido no apenso “B”.
A sentença está assim em absoluta coerência com essa decisão anterior, que evidentemente prejudica a necessidade de repetição da mesma apreciação de fundo sobre essa questão. Nestas condições, não faria sentido renovar o seu julgamento em sede de sentença.
Veja-se que, essa primeira decisão já se encontrava devidamente fundamentada e sustenta-se em pressupostos que tornam inútil a repetição das mesmas considerações aí já produzidas.
Pode-se discordar do aí decidido, mas daí não resulta certamente a nulidade da sentença.
Quanto aos factos alegadamente omissos, como vimos o enquadramento jurídico-processual adequado ao suprimento dessa situação encontra-se no quadro legal dos Art.ºs 640.º e 662.º do C.P.C., não constituindo nulidade da sentença, nos termos previstos no Art.º 615.º do C.P.C..
Em suma, só nos resta julgar improcedentes todas as conclusões que sustentam a nulidade da sentença por violação do Art.º 615.º n.º 1 al.s b), c) e d) do C.P.C..
2. Da impugnação da matéria de facto.
Os Recorrentes, no final das suas alegações pedem que sejam aditados 3 “factos”, tudo com base na prova documental junta aos autos.
É certo que, no quadro na invocação da nulidade da sentença, vieram invocar omissões de pronúncia relativamente a factos alegadamente omissos e apontaram ainda uma contradição entre a fundamentação da sentença e o julgamento relativo ao facto não provado na alínea a), invocando que haveria prova testemunhal que confirmaria o mesmo. No entanto, apesar de identificarem uma testemunha e umas declarações de parte, que alegadamente teriam confirmado o facto dado por não provado, não cumpriram minimamente o disposto no Art.º 640.º n.º 2 al. a) do C.P.C., o que conduz inevitavelmente a rejeição do recurso nessa parte, não podendo o Tribunal da Relação reapreciar a prova gravada com base numa impugnação genérica e imprecisa, tal como a apresentada nesses termos.
Dito isto, a impugnação da decisão sobre a matéria de facto está assim restrita aos concretos factos pretendidos aditar, que os Recorrentes explicitamente, no final das suas alegações de recurso, indicam como omissos, porque relevantes para o conhecimento do mérito da causa.
Apesar das “redações” arrevesadas, que misturam fundamentos da impugnação com factos, tudo resumido reduz-se aos seguintes factos alegadamente omissos na seleção dos factos provados:
1- A data do óbito da R. - 24/01/2017 - (considerando que é anterior à primeira interpelação (em 23/02/2017) para cumprimento da 1.ª renda vencida e não paga (em 27/07/2016)).
2- A data do contrato de cessão de quotas da R. - 31/06/2016 - (considerando que é anterior à data da 1.ª renda vencida e não paga (em 27/07/2016) e à data da primeira interpelação para pagamento dessa renda (em 23/02/2017)).
3- As escrituras de repúdio da herança (considerando que colocou a R. e os herdeiros como partes em representação daquela).
Todos esses factos estão documentados nos autos, não foram sequer postos em causa e, uns mais que outros, têm a sua relevância para o conhecimento do mérito da causa.
Assim, quanto à data de óbito da R. AA, ela resulta demonstrada logo no decurso das tentativas de citação da mesma (cfr. “Fax” de 11-04-2019 – Ref.ª n.º 22532120 – p.e.), tendo então sido junto o assento de óbito n.º … do ano de 2017 da Conservatória de Registo Civil do Montijo, donde consta que a R. faleceu no dia 24 de janeiro de 2017, no estado de casada com AJRA.
Por outro lado, na sentença proferida a 2 de dezembro de 2019 no apenso “A” de habilitação de herdeiros, ficou logo aí provado, com base em certidões de fls. 4 a 6 verso, que AA faleceu no dia 24 de janeiro de 2017, no estado de casada com AJRA, sendo PJOA filho de ambos. Por isso, foram os dois habilitados como herdeiros daquela.
É certo que a sentença não deu por provados esses factos, mas pressupôs que os mesmos estavam assentes, porque a sentença de habilitação de herdeiros transitou em julgado e a mesma assentava precisamente nessa factualidade.
Sem prejuízo, deverá ser aditado aos factos provados um ponto 15-A com a seguinte redação: «15-A - AA faleceu no dia 24 de janeiro de 2017, no estado de casada com AJRA, sendo PJOA filho de ambos».
Quanto ao contrato de cessão de quotas e nomeação de gerente, esses factos não estão omissos na seleção dos factos provados, porque constam dos pontos 26 e 27, nada mais havendo de relevante a acrescentar aos mesmos.
Quanto às escrituras de repúdio, elas efetivamente não constam da sentença recorrida como factos provados, mas essa questão já havia sido apreciada no despacho de 25 de fevereiro de 2021 (cfr. fls. 127 a 128 verso – Ref.ª n.º 403227384 - p.e.), onde foi dado por assente que: «No Cartório Notarial de Maria José Catarino Castanho, em Alcochete, no dia 29.10.2020, compareceram os RR. AJRA, que foi casado com a falecida, em primeiras núpcias de ambos, sob o regime da comunhão de adquiridos, e PJOA, solteiro, maior, filho da falecida, os quais declararam repudiar a herança de AA, cujo decesso ocorreu em 24.01.2017 (fls. 114 a 116-v)».
Portanto, não haveria qualquer necessidade de repetir a mesma factualidade na sentença recorrida, considerando que esses factos já haviam sido objeto de apreciação oportuna pelo Tribunal a quo e, para efeitos do conhecimento do mérito da causa, já se havia esgotado o interesse da sua apreciação na sentença final, ainda que o despacho de 25 de fevereiro de 2021 pudesse ainda então não ter transitado em julgado.
Em suma, julgamos julgar a impugnação de facto apenas parcialmente procedente, aditando um ponto 15-A com a redação supra exposta, mantendo-se no mais os factos provados e não provados.
3. Da eficácia do repúdio da herança.
A questão central da presente apelação tem a ver com a circunstância dos R.R. terem sido habilitados como herdeiros da R. inicial, AA, sendo que posteriormente vieram a repudiar a herança por escrituras públicas que juntaram aos autos, considerando assim que, não só a instância não poderia prosseguir contra os R.R.-habilitados, como não poderiam os mesmos ser condenados no pedido, tal como veio a ser decidido pela sentença ora recorrida.
Relembre-se que o A. veio intentar a presente ação condenação contra AA, pedindo que esta fosse condenada no pagamento da quantia total de €96.211,84, acrescida de juros, porquanto havia celebrado com a sociedade “S… - Rent a Car, Lda.” um contrato de locação financeira, que tinha por objeto um veículo automóvel, sendo que esse contrato foi resolvido por incumprimento da locatária e a R. era um dos avalistas e fiadores nesse contrato, tendo pessoalmente garantido  cumprimento das obrigações emergentes do mesmo, com renúncia ao benefício de excussão prévia.
Sucede que a R. já havia falecido em 24/1/2017 (cfr. doc. de fls. 57 e facto provado 15-A), antes mesmo da presente ação ter sido instaurada (em 5/4/2019 – cfr. fls. 2) ou sequer de a A. ter chegado a resolver o contrato de locação financeira por incumprimento da locatária (em 23/2/2017 – cfr. facto provado 13).
Foi o R. AJRA (então ainda não habilitado) que assinou o aviso de receção que era destinado à citação da R. AA (cfr. fls. 58), tendo os sucessores legais desta decidido logo contestar a ação, mesmo não tendo sequer ainda sido habilitados (cfr. fls. 62 e ss.).
Ao longo dessa contestação, apresentada em 24/5/2019 (cfr. fls. 62 e ss.) não se intitulam “herdeiros” da R., embora refiram recorrentemente que foram “habilitados nos autos” (por exemplo, logo no cabeçalho a fls. 62 verso da contestação) e no artigo 31.º digam que. «Os habilitados na qualidade de herdeiros da requerida AA, falecida 24 de janeiro de 2017, nada devem à requerente».
Efetivamente, toda a defesa aí apresentada é feita principalmente no interesse da R. AA, sustentando que a mesma não é devedora do crédito reclamado, sendo nesse pressuposto que invocam a ilegitimidade da R. primitiva (artigos 1.º a 15.º e 36.º a 44.º da contestação), o abuso de direito (artigos 16.º a 31.º) e impugnam o crédito reclamado pelo A. (artigos 33.º a 35.º).
Em todo o caso, deduzido pelo A. o incidente de habilitação de herdeiros, os chamados a intervir como sucessores legais da falecida R., vieram efetivamente a ser habilitados por sentença proferida no apenso “A”, que se mostra datada em 3/12/2019 (cfr. fls. 46 a 46 verso do apenso “A”).
No entanto, já depois de finda a fase dos articulados, de dispensada a audiência prévia e feito o saneamento dos autos, os R.R. habilitados vieram juntar escrituras de repúdio da herança de AA (cfr. fls. 113 a 116), esclarecendo que com isso pretendiam que a instância fosse declarada extinta por inutilidade da lide, nos termos do Art.º 277.º al. e) do C.P.C. (cfr. fls. 120 a 122). O que veio a ser indeferido por despacho de fls. 127 a 128 verso, por se entender que a falta de repúdio da herança pelos sucessores, quando citados para o incidente de habilitação de herdeiros, implicava a aceitação tácita da herança, a qual é irrevogável, ordenando-se assim o prosseguimento dos autos.
É contra este entendimento que os R.R. se colocam, não se conformando com o mesmo.
Apreciando, temos de ter em consideração que a aceitação é um ato jurídico pelo qual se traduz a expressão da vontade do herdeiro sucessível de adquirir a herança, tendo uma função essencialmente confirmativa. Nas palavras de Gomes da Silva (in “Direito das Sucessões” – AAFDL – pág. 281 a 282): «se o sucessível quer confirmar a aquisição da herança, verificada ipso jure, aceita; se quer destruir a aquisição, repudia» (sublinhado nosso).
Pires de Lima e Antunes Varela (in “Código Civil Anotado”, vol. VI, pág. 79), referindo-se à aceitação descrevem-na do nos seguintes termos: «Trata-se de um verdadeiro negócio jurídico unilateral, consubstanciado numa declaração de vontade destinada à aquisição da herança, conforme a intenção do declarante» (sublinhado nosso).
Em suma, a aceitação e o repúdio são as duas únicas opções que se colocam ao herdeiro sucessível, mas ambas dependem da exteriorização da vontade deste em adquirir, ou não querer adquirir, a herança.
A doutrina identifica em ambos esses atos naturezas jurídicas e características comuns. Assim, ambos são negócios jurídicos unilaterais, não-recetícios, singulares e pessoais, insuscetíveis de oposição de condição ou termo, indivisíveis e irrevogáveis (vide: Pereira Coelho in “Direito das Sucessões” – Parte I – Coimbra – lições ao curso de 1973-1974, pág. 155 a 160; Oliveira Ascensão in “Direito Civil – Sucessões” – 1987, Coimbra Editora, pág.s 395 a 399; Gomes da Silva in “Direito das Sucessões” . AAFDL, pág.s 283 a 288; Carlos Pamplona Corte-Real in “Curso de Direito das Sucessões”. Vol. II, 1985, pág. 169 a 173; e Diogo Leite Campos in “Lições de Direito da Família e das Sucessões”, 2.ª Ed., Almedina, pág. 577).
Realce-se, com particular relevância para o caso, que ambas essas declarações negociais são irrevogáveis (cfr. Art.º 2061.º e 2066.º do C.C.), sendo que a eficácia de qualquer uma delas retroage sempre à data da abertura da sucessão (cfr. Art.º 2055.º n.º 2 e 2062.º do C.C.). O que tem como consequência que, uma vez estabelecida em definitivo a vontade do sucessor, no sentido da aceitação ou do repúdio, já não há arrependimento possível.
Tratam-se, portanto, de atos incompatíveis entre si, pois uma vez aceite a herança já não pode haver repúdio (cfr. Ac. T.R.E. de 21/6/2007 – Proc. n.º 1049/07-2 – Relator: Bernardo Domingos; Ac. TRG de 14/3/2019 – Proc. n.º 2059/17.2.T8VCT.G1 – Relatora: Maria Purificação Carvalho; Ac. TRP de 16/5/2007 – Proc. n.º 0752002 – Relator: Caimoto Jácome, disponíveis em www.dgsi.pt). Assenta-se assim no velho brocado latino: “semel heres, sempre heres”.
O problema é que, enquanto o repúdio é sempre um ato formal, sujeito à forma exigida por lei para a alienação da herança (cfr. Art.º 2063.º), a aceitação é um ato informal, podendo ser feita de forma expressa ou até tácita (cfr. Art.º 2056.º do C.C.) – (vide: Carlos Pamplona Corte-Real in Ob. Loc. Cit., pág. 174). E é nesta diferença que muitas vezes se colocam situações de indefinição que tornam mais complexo saber quando é que há uma aceitação consolidada, sem qualquer possibilidade de repúdio posterior da herança.
No quadro do Código Civil de 1867, no Art.º 2027.º §1.º, definia-se por aceitação expressa aquela em que o herdeiro tomava esse título ou qualificação em ato público ou privado. Já a aceitação tácita, nos termos do §2.º do mesmo preceito, resultava da prática de facto pelo herdeiro de que necessariamente se deduzisse a intenção de aceitar, ou quando o facto assumisse natureza tal que ele não poderia praticá-lo senão na qualidade de herdeiro.
No Código Civil vigente, define-se a aceitação expressa, no Art.º 2056.º n.º 2, como aquela que conste de documento escrito, no qual o sucessível chamado à herança, declara aceitá-la «ou assume o título de herdeiro com intenção de a adquirir». Mas não se dá qualquer noção de aceitação tácita, parecendo assim remeter-se para o conceito estabelecido no Art.º 217.º n.º 1 do C.C., onde se refere que a declaração tácita é aquela que «se deduz de factos que, com toda a probabilidade, a revelem».
Densificando este conceito, Mota Pinto (in Teoria Geral do Direito Civil”, 3.ª Ed., pág. 425) escrevia que o Art.º 217.º n.º 1 do C.C. «não exige que a dedução, no sentido da autorregulação tacitamente expresso, seja forçosa ou necessária, bastando que, conforme os usos do ambiente social, essa possa ter lugar com toda a probabilidade». Já Rui Alarcão (in “Confirmação dos negócios anuláveis”, Vol. I, pág. 192) sustenta que: «há que buscar um grau de probabilidade da vida da pessoa comum, de os factos serem praticados com determinado significado negocial, ainda que não seja afastada a possibilidade de outro propósito». Manuel Andrade (in Teoria Geral da Relação Jurídica”, 1953, pág. 81) apela ao «grau de probabilidade que baste na prática para as pessoas sensatas tomarem as suas decisões».
Ainda assim, Oliveira Ascensão (in “Direito Civil – Sucessões”, 1987, pág. 404) chama a atença para o facto de: «alguns elementos denunciam o cuidado da lei em que a manifestação de vontade seja inequívoca. É assim que o artigo 2056.º-3 nos elucida que os meros atos de administração não implicam aceitação tácita».
Por isso, no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 29/9/2022 (Proc. n.º 151/14.4JASTB-B.L1-2 – Relator: António Moreira, disponível em www.dgsi.pt) se decidiu que: «1- Só na medida em que os herdeiros do falecido tiverem praticado atos (expressos ou tácitos) de aceitação da herança deste é que se pode afirmar ter-lhes sido transmitido o direito de aceitar ou repudiar herança (aberta anteriormente) a que foi chamado este falecido, e que não o exerceu».
Também por isso, o Supremo Tribunal de Justiça vem entendendo que: «quer os atos de administração, quer o cumprimento de obrigações fiscais em sede de impostos sucessório, não implicam aceitação», mas «a declaração do cabeça de casal num inventário em que se elenca como herdeiro traduz uma aceitação expressa ou, pelo menos, permite concluir com tal probabilidade o propósito de adquirir a herança, o que representa aceitação tácita» (cfr. Ac. STJ de 18/4/2006 – Proc. n.º 06A719 – Relator: Sebastião Póvoa - disponível para consulta no mesmo sítio (www.dgsi.pt), tal como os restantes que de seguida citaremos).
Na mesma linha de raciocínio vem ainda o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19/3/2019 (Proc. n.º 384/17.1T8GMR-A.G1.S1 – Relatora: Graça Amaral), de cujo sumário se realça: «II - O atual Código Civil, ao invés do que acontecia no Código de 1867, escusou-se a definir aceitação tácita da herança, pelo que se tem como aplicável o critério consignado no artigo 217.º, do Código Civil, devendo entender-se como aceitação tácita da herança a manifestação de vontade que se deduz de simples factos que, com toda a probabilidade, a revelam. II – Resulta do disposto nos artigos 2065.º, n.º 2 e 2047.º, ambos do Código Civil, a exigência legal de interpretar os atos de onde se deduza a vontade de aceitar a herança tendo subjacente a necessidade de destrinçar, na atuação do sucessível, a prática de meras providências de cariz de gestão, dos atos que indiquem, inequivocamente ou, pelo menos, que revelem com grande probabilidade, que a administração dos bens traduz uma aceitação da herança. III – A intervenção processual das filhas da falecida executada, julgadas habilitadas nos autos para assumirem o lugar daquela, consubstanciada em requerer, através de mandatário judicial investido de poderes especiais, a suspensão da instância para viabilização de eventual acordo tendente à aquisição de imóvel pertencente à Exequente, aliada a outras circunstâncias como sejam a de deduzir oposição à execução, extravasa o âmbito da mera administração da herança, evidenciando a definição de uma posição perante a mesma para além da de mera investidura processual decorrente da procedência do incidente de habilitação, permitindo, por isso, concluir no sentido da aceitação (tácita) da herança».
Releva também para o caso que, enquanto não há aceitação ou repúdio, existe um período de relativa indefinição jurídica, que a lei trata como “Herança Jacente”.
Conforme se estabelece no Art.º 2046.º n.º 1 do C.C.: «Diz-se jacente a herança aberta, mas ainda não aceita nem declarada vaga para o Estado». Durante esse período de tempo, os sucessíveis legais, mesmo que não tenham aceitado ou repudiado a herança, podem providenciar pela administração dos bens (cfr. Art.º 2047.º n.º 1 do C.C.), sendo certo que, nos termos da lei, os atos de administração praticados pelo sucessível não implicam aceitação tácita da herança (cfr. Art.º 2056.º n.º 3 do C.C.). O que se compreende, porque os herdeiros podem ter necessidade de praticar esses atos sem pretenderem comprometer-se no sentido da aceitação da herança (vide, a propósito: Pereira Coelho in “Direito das Sucessões” Parte I, Lições ao curso de 1973-1974 – Coimbra, pág. 156).
Dito isto, o Art.º 2049.º do C.C. vem estabelecer uma solução legal que compele o herdeiro à decisão, superando definitivamente a situação de indefinição em que a situação de “herança jacente” se traduz na prática.
Decorre desse preceito que: «1- Se o sucessível chamado à herança, sendo conhecido, a não aceitar nem repudiar dentro dos quinze dias seguintes, pode o tribunal, a requerimento do Ministério Público ou de qualquer interessado, mandá-lo notificar para. No prazo que lhe for fixado, declarar se aceita ou repudia. 2- Na falta de declaração de aceitação, ou não sendo apresentado documento legal de repúdio dentro do prazo legal fixado, a herança tem-se por aceite. 3- (…)».
A questão que se tem colocado é a de saber se o incidente de habilitação de herdeiros, no âmbito duma ação declarativa, pode ter o propósito previsto no n.º 1 do Art.º 2049.º do C.C. e o efeito cominatório estabelecido no n.º 2 do mesmo preceito.
Claro está que se o incidente de habilitação de herdeiros tivesse sido suscitado pelos próprios herdeiros, não haveria a mínima dúvida sobre a existência dum ato de declaração de aceitação da herança (neste sentido: Ac. TRE de 13/2/2020 – Proc. n.º 607/14.9T8SLV-Le1 – Relatora: Conceição Ferreira, disponível em www.dgsi.pt).
O problema coloca-se mais quando o incidente de habilitação de herdeiros é deduzido pela outra parte na ação, como sucedeu no caso dos presentes autos.
O Supremo Tribunal de Justiça, no acórdão de 8/7/1975 (Proc. n.º 065465 – Relator Bruto da Costa, disponível em www.dgsi.pt), já decidia que: «A habilitação, tomada isoladamente, não é índice, só por si, seguro da aceitação da herança – isto, porque, tendo a aceitação tácita de traduzir-se por atos inequívocos, a habilitação significa apenas que o individuo é investido na qualidade de herdeiro, não definindo a sua posição relativamente à herança».
O mesmo Supremo Tribunal, no Acórdão de 9/11/2000 (Proc. n.º 01A455 – Relator: Aragão Seia, disponível no mesmo sítio), na esteira doutros já citados, também defendia que a declaração de óbito para efeitos de imposto sucessório e o pedido de prorrogação de prazo para apresentar relação de bens não traduzem a intenção de aceitação da herança, mas apenas o cumprimento de disposições legais fiscais destinadas a evitar as correspondentes sanções.
Na mesma senda, no acórdão de 28/4/2016 do Tribunal da Relação de Lisboa (Proc. n.º 7981/09.7T2SNT-B.L1-2 – Relator: Jorge Vilaça) foi decidido que a habilitação de herdeiros para efeitos fiscais, tendo em vista a mulher poder receber a pensão de alimentos por morte do marido, não tem por efeito a aceitação tácita da herança que impeça o posterior repúdio da mesma.
Mas, no acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 14/7/2004 (Proc. n.º 535/04-1 – Relator: Pereira Batista, disponível em www.dgsi.pt) assumiu-se mais claramente que: «II- A simples habilitação de herdeiros, considerada isoladamente, ou a apresentação de declaração para efeitos de imposto sucessório, enquanto mero cumprimento de obrigação fiscal, não conduzem, sem mais, à manifestação de vontade no sentido da aceitação da herança». No mesmo sentido, o mesmo Tribunal decidiu que: «A habilitação de sucessor da parte falecida na pendência da causa não pressupõe que o primeiro tenha aceitado a herança da segunda» (Ac. TRE de 27/5/2021 – Proc. n.º 1748/14.8T8LLE-D.E1 – Relator: Sequinho dos Santos).
Assim ainda o Ac. TRL de 3/12/2020 (Proc. n.º 11020/13.5YYLSB-A.L1-8 – Relator: António Valente), onde se defendeu que: «Tendo tido lugar habilitação de herdeiros com sentença que julgou procedente a habilitação, nada impede que, posteriormente venham os ditos herdeiros renunciar à herança. Junta aos autos a escritura pública de renúncia à herança, deverá a instância ser extinta por impossibilidade superveniente da lide, quanto aos sucessíveis que renunciaram à herança». Ou no acórdão de 2/12/2021, também do Tribunal da Relação de Lisboa (Proc. n.º 1872/18.8.T8LRS-B.L1-2 – Relator: Jorge Leal), quando aí se diz: «A habilitação incidental, sem oposição pelos habilitados, apenas terá relevância demonstrativa de aceitação se for acompanhada de outras atuações que revelem, com toda a probabilidade, a aceitação da herança».
No acórdão de 9/6/2005 do Tribunal da Relação de Évora (Proc. n.º 1371/05-2 – Relator: Bernardo Domingos, disponível no mesmo sítio), ficou-se no meio termo, colocando a questão noutra perspetiva, resultando do seu sumário que: «I- Para a dedução do incidente de habilitação basta a alegação da qualidade de sucessores, haja ou não bens e tenha ou não sido indicada prova testemunhal para prova de que os nomeados são os únicos herdeiros; II- A questão da aceitação ou melhor da falta de aceitação, é matéria de exceção e não de causa de pedir no incidente de habilitação; III- Em caso algum é necessário alegar que os sucessores requeridos aceitaram a herança».
Nos acórdãos do TRP de 18/11/2019 (Proc. n.º 8760/05.6TBVNG-A.P1) e de 23/3/2020 (Proc. n.º 4307/16.7T8LOU-B.P1), ambos relatados por Carlos Querido, defendeu-se que: «Tendo um sucessor habilitado repudiado a herança, sem que tenha em momento anterior praticado qualquer ato que se consubstancie em declaração expressa ou tácita de aceitação, ocorre necessariamente, relativamente a ele, a impossibilidade superveniente da lide, devendo em consequência extinguir-se a instância (quanto apenas a ele), nos termos da alínea e) do artigo 277.º do Código de Processo Civil».
No acórdão de 1/3/2018 do Tribunal da Relação de Guimarães (Proc. n.º 384/17.1.T8GMR-A-G1 – Relatora: Sandra Melo) também se decidiu que: «1. Existindo declaração de aceitação de uma herança, mesmo que tácita, prévia à declaração de repúdio, esta segunda é ineficaz, por força da irrevogabilidade de que goza a declaração de aceitação da herança. 2. Existe aceitação tácita da herança quando o sucessível tem comportamentos que criam uma situação da qual se conclua que com toda a probabilidade aceitou a herança (artigo 217.º do Código Civil), sendo esta aferida com padrões que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, pudesse deduzir do comportamento daquele (artigo 236.º do Código Civil). 3. A simples não oposição ao incidente de habilitação de herdeiros (tão curto é o prazo para a sua oposição, menor que a concedida no processo próprio para a declaração de aceitação concedido pelo artigo 2049.º do Código Civil, aplicável no procedimento a que se refere o artigo 1039.º do Código de Processo Civil) não pode desde logo fazer presumir pela aceitação da herança. 4. No entanto, a intervenção ativa em diversos atos processuais na qualidade de herdeiro, a que não é totalmente alheio o tempo decorrido em que nada faz para afastar a posição jurídica que lhe foi atribuída, por diversas vezes chamado nessa qualidade, traduzem para qualquer declaratário normal e de boa-fé a firme convicção que o sucessível aceitou a herança em causa, agindo como titular da mesma».
Na mesma linha deste último aresto vem o Ac. TRP de 26/5/2009 (Proc. n.º 4593/03.2TBSTS-C.P1 – Relator: Mário Serrano, disponível no mesmo sítio), quando aí se decidiu que: «A circunstância de o habilitado não ter contestado o requerimento de habilitação, permitindo que se produzisse o respetivo efeito cominatório (confissão do facto a qualidade de herdeiro) e de, posteriormente, ter intervindo no processo de execução como herdeiro do executado, durante mais de 3 anos desde a decisão de habilitação, sem expressar qualquer “repúdio da herança” cujo documento, só foi apresentado mais de 7 anos após a sua morte, afigura-se claramente reveladora de uma aceitação tácita da herança».
A questão temporal também foi decisiva no Ac. do TRL de 1/3/1978 (Proc. n.º 0017817 – Relator: Santos Silveira), onde se defende que: «I- A aceitação tácita da herança tem de se traduzir por atos inequívocos, sendo suficiente um comportamento que, interpretado segundo a boa-fé, com referência aos usos sociais, deixe entender a vontade de reter a herança. II- Não é decisivo, neste sentido, o facto do sucessível ter participado o falecimento do autor da herança para a instauração do processo de liquidação do imposto sucessório. III- Mas traduz aceitação o facto de o filho, após falecimento do pai, ter continuado a utilizar o automóvel deste e a viver no andar que o falecido comprara, só tendo repudiado a herança passado um ano e depois de citado para a habilitação. IV- Com a aceitação da herança, perde-se o direito de repúdio, pelo que este será ineficaz».
Tomando posição sobre esta questão, diremos que o Art.º 2049.º n.º 1 e n.º 2 do C.C. não pode ser chamado à colação para efeitos da consideração do incidente de habilitação de herdeiros, regulado nos Art.ºs 351.º e ss. do C.P.C., porquanto essa norma está prevista funcionar no quadro específico do processo especial estabelecido nos Art.ºs 1039.º e ss. do C.P.C. relativamente à herança jacente, em que pode existir um interesse público do Estado no sentido da declaração da herança como vaga a seu favor.
O propósito do incidente de habilitação de herdeiros é completamente diferente, visando apenas chamar ao processo aqueles que, nos termos da lei substantiva, possam assumir a posição de herdeiros duma parte falecida.
Com refere Salvador da Costa (in “Os Incidentes da Instância”, 9.ª Ed. Pág. 192): «A habilitação de herdeiros visa o prosseguimento da lide com os habilitados, e não conferir-lhes a titularidade da relação material controvertida em causa, ou seja não determina o âmbito da responsabilidade dos herdeiros habilitados relativamente ao objeto da ação reportada».
Em suma, o propósito deste incidente de intervenção de terceiros por habilitação não é forçar a declaração de aceitação ou repúdio da herança, mas sim estabelecer uma solução processual que permita o prosseguimento da instância contra pessoas com personalidade e capacidade judiciária, legítimas em função das regras gerais sucessórias.
Da não oposição, ou da não apresentação de repúdio da herança, no curto prazo de 10 dias estabelecido para a resposta ao incidente de habilitação de herdeiros (cfr. Art.º 293.º n.º 1 do C.P.C.)  não se pode concluir, sem mais, pela existência duma declaração (tácita) de aceitação da herança, porque não é esse o propósito desse procedimento incidental.
Por isso há sempre que procurar outros factos indiciários de onde resulte a declaração inequívoca de aceitação da herança, pois meros atos de administração não implicam a aceitação (cfr. Oliveira Ascensão in “Direito Civil – Sucessões”, pág. 404).
No caso, só temos dois factos relevantes a ponderar:
1.º Os termos da contestação à ação apresentada pelos R.R. habilitados e a forma como intervieram no processo; e
2.º O tempo que demorou entre a citação para o incidente de habitação (15/5/2019 – cfr. fls. 13 do apenso “A”), considerando que a sentença de habilitação se mostra datada de 2/12/2019 (cfr. fls. 46 do apenso “A”), e a data das escrituras de renúncia à herança (29/10/2020 – cfr. doc.s de fls. 114 a 116) e a sua apresentação em juízo (15/11/2020 – cfr. fls. 113).
Quanto ao primeiro facto indiciário, como vimos, é inconclusivo, porque não existe a uma manifestação expressa, por parte dos R.R. habilitados, no sentido de pretenderem “adquirir os bens da herança” – relembrando-se que deve ser esse o sentido da declaração negocial da aceitação.
A contestação apresentada foi no interesse essencial da falecida R., pretendendo por ela que esta não respondesse pela dívida peticionada pelo A.. Todos os atos posteriormente praticados pelos R.R., habilitados, resumem-se a um pedido de desentranhamento da resposta à contestação e a promoverem pedidos de apoio judiciário. Tratam-se, portanto, de atos de mera gestão dos interesses da herança, no sentido de não permitir o aumento do passivo, o que é reconduzível ao disposto no Art.º 2056.º n.º 3 do C.C..
Quanto ao segundo facto indiciário, relacionado com a relevância do tempo, temos que entre a citação para o incidente de habilitação e as escrituras de renúncia demorou 1 ano, 5 meses e 14 dias, sendo certo que a iniciativa de repudiar a herança é imediatamente posterior à prolação do despacho saneador (Cfr. “Despacho Saneador” de 02-11-2020 – Ref.ª n.º 400124677 -p.e.) e muito anterior à sentença final aqui recorrida, datada de 16 de junho de 2022.
Não estamos perante o decurso do prazo de 10 anos de caducidade do direito de aceitar, tal como estabelecido no Art.º 2059.º n.º 1 do C.C.. Mas também não se trata de tempo suficiente para, sem considerar outros factos relevantes de onde resulte a expressão inequívoca da vontade de querer adquirir a herança, podermos dizer que os R.R. aceitaram tacitamente a herança.
Em suma, não havendo aceitação tácita da herança, os R.R. podiam, ainda em tempo, repudiar a mesma, tal como fizeram, sendo essa declaração plenamente válida e eficaz, por ter sido outorgada por escritura pública, supondo que a herança pudesse integrar bens para cuja alienação a lei exigisse a observância dessa forma (cfr. Art.ºs 2062.º, 2063.º e 2066.º do C.C.).
Por força do repúdio da herança, cujos efeitos retroagem à data da abertura da sucessão (cfr. Art.º 2062.º do C.C.), é inevitável a conclusão de que os R.R. não poderiam ser condenados no pedido, tal como o foram, na qualidade de herdeiros da falecida primitiva R.. O que implica a necessária revogação da sentença recorrida, pois os R.R. só poderiam ser absolvidos do pedido que, por força da alteração subjetiva da instância decorrente da procedência do incidente de habilitação de herdeiros, passou a dirigir-se diretamente a eles, na qualidade de sucessores legais da falecida R..
Não nos parece que a questão seja de inutilidade superveniente da lide, nos termos do Art.º 277.º al. e) do C.P.C.), porque o repúdio, apesar de formalmente posterior à interposição da ação, tem eficácia retroativa ao momento da abertura da herança (cfr. Art.º 2062.º do C.C.). Por isso, a questão é de falta de legitimidade substantiva dos R.R. habilitados para responderem pessoalmente por esse crédito. Pelo que, a consequência jurídica só pode ser a pura absolvição do pedido.
4. Das demais questões de mérito relacionadas com a data do óbito da primitiva R. e o contrato de cessão de quotas.
Considerando que por força da habilitação de herdeiros os únicos sujeitos passivos da instância passaram a ser os sucessores habilitados, sendo contra eles que operariam os pedidos de condenação formulados nesta ação, em consequência do acabado de expor no ponto 3 do presente acórdão inevitável é a conclusão de que ficam prejudicadas todas as demais questões suscitadas na apelação pelos Recorrentes que se relacionam com a inexistência do crédito da A. sobre a primitiva R. (cfr. Art.º 608.º n.º 2, 2.ª parte, “ex vi” Art.º 663.º n.º 2 do C.P.C.), pois trata-se de matéria que já não lhes diz diretamente respeito, por não serem o sujeito passivo dessa obrigação, de que devem ser absolvidos.
Em suma, procedem as conclusões apresentadas em conformidade com o exposto, devendo a sentença ser revogada e a decisão aí proferida ser substituída pela de absolvição dos R.R. de todos os pedidos contra si formulados.
As custas recursivas são da responsabilidade do Recorrido (cfr. Art.º 527.º n.º 1 do C.P.C.), o que, por força da revogação da sentença recorrida, arrastará consigo a responsabilidade tributária final aí decidida.
*
V- DECISÃO
Pelo exposto, acorda-se em julgar a apelação procedente, por provada, revogando a sentença recorrida, substituindo a parte dispositiva da mesma pela decisão de absolver os R.R., B e C, de todos os pedidos contra si formulados na qualidade de herdeiros da primitiva R. AA, considerando que repudiaram essa herança.
- Custas pelo Apelado (Art.º 527º n.º 1 do C.P.C.).
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Lisboa, 30 de maio de 2023
Carlos Oliveira
Diogo Ravara
Ana Rodrigues da Silva