Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
345/21.6YRLSB-2
Relator: ANTÓNIO MOREIRA
Descritores: ESCRITURA PÚBLICA DE UNIÃO ESTÁVEL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/25/2021
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: NÃO CONCEDIDA A REVISÃO
Sumário: A escritura de união estável prevista no ordenamento jurídico brasileiro não corresponde a um acto decisório necessitado de revisão e confirmação, através do processo especial de revisão de sentença estrangeira.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo assinados:

Os requerentes propõem a presente acção especial, pedindo a revisão e confirmação da “escritura pública de união estável do Serviço Notarial do 2º Ofício de Notas da cidade de Taubaté, Estado de São Paulo, Brasil, a qual declarou e reconheceu juridicamente a união dos requerentes”.
Juntam certidão da escritura pública que pretendem ver revista e confirmada.
O Exmo. Procurador‑Geral Adjunto emitiu parecer desfavorável ao pedido.
Nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 656º do Código de Processo Civil foi proferida decisão singular, aí tendo sido julgada improcedente a pretensão dos requerentes.
Os requerentes vêm requerer que recaia acórdão sobre a matéria da decisão singular, apresentando para tanto as seguintes conclusões, que aqui se reproduzem na íntegra:
20. Ante o exposto, a união de facto entre os requerentes foi decretada por meio de escritura pública, conforme determina a legislação brasileira;
21. O facto de a lei brasileira consagrar a possibilidade da formalização da união de facto por meio de escritura pública não afasta a aplicação dos art.º 978º e seguintes do Código de Processo Civil, pois o conceito de “decisão” não pode ser cristalizado apenas às decisões que emanam dos tribunais, conforme já decidido tanto pelo Tribunal da Relação de Lisboa como pelo STJ; e
22. É a própria escritura pública, como acto administrativo, dotada de efeitos erga omnes conferidos pela legislação brasileira, que outorga força/caução à manifestação das partes no acto notarial.
23. Sendo assim, é a presente reclamação para requerer a substituição da decisão singular sob enfoque por acórdão que acolha o pedido inicial de revisão e confirmação da escritura pública de união de facto registada no 2º Ofício de Notas da cidade de Taubaté, Estado de São Paulo, Brasil, no Livro 1149, páginas 351/352, a qual homologou a união de facto de Larissa R. e José P., para que esta produza seus efeitos em Portugal.
Tendo presente o disposto no art.º 652º, nº 3, do Código de Processo Civil, cumpre apreciar e decidir.
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Face ao teor da certidão que corresponde ao documento 2 junto com a P.I. encontra‑se documentalmente provado nos autos que:
1. Com data de 21/12/2018, no cartório do 2º Tabelião de Notas da cidade e Comarca de Taubaté, Estado de São Paulo, Brasil, os requerentes outorgaram escritura onde declararam, para além do mais, manterem relacionamento não eventual, configurado pela convivência sob o mesmo tecto, de forma pública, contínua e duradoura, há 7 anos, constituindo entidade familiar, mais declarando que instituíam e reconheciam a união estável, e declarando ainda optarem pelo regime da comunhão parcial de bens.
2. Consta ainda certificado nessa escritura que “os declarantes são responsáveis (…) pelos dados fornecidos para a presente escritura e por todas as declarações e informações aqui prestadas”, mais constando que “a pedido das partes lavro esta escritura no livro de notas” e que “depois de lida a escritura, em voz alta, as pessoas comparecentes, verificando a sua conformidade, a outorgam, aceitam e assinam, do que dou fé”.
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Direito aplicável
Nos termos do art.º 980º do Código de Processo Civil, para que uma decisão proferida no estrangeiro seja confirmada torna-se necessário:
a) Que não haja dúvidas sobre a autenticidade do documento de que conste a sentença nem sobre a inteligência da decisão;
b) Que tenha transitado em julgado segundo a lei do país em que foi proferida;
c) Que provenha de tribunal estrangeiro cuja competência não tenha sido provocada em fraude à lei e não verse sobre matéria da exclusiva competência dos tribunais portugueses;
d) Que não possa invocar-se a excepção de litispendência ou de caso julgado com fundamento em causa afecta a tribunal português, excepto se foi o tribunal estrangeiro que preveniu a jurisdição;
e) Que o réu tenha sido regularmente citado para acção nos termos da lei do país do tribunal de origem e que no processo hajam sido observados os princípios do contraditório e da igualdade das partes;
f) Que não contenha decisão cujo reconhecimento conduza a um resultado manifestamente incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado Português.
Não está em causa que, não só uma decisão proferida por autoridade judicial estrangeira pode ser objecto de revisão e confirmação, mas também uma decisão proferida por autoridade administrativa estrangeira (ainda que sob a forma de escritura pública), desde que o ordenamento jurídico respectivo admita que a mesma produza os mesmos efeitos de uma decisão judicial stricto sensu (neste mesmo sentido veja-se o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12/7/2005, relatado por Moitinho de Almeida e disponível em www.dgsi.pt, e toda a jurisprudência aí mencionada, bem como a subsequente das Relações e do Supremo Tribunal de Justiça que vem acompanhando tal entendimento).
O que está em causa, antes, é a consideração da existência de uma decisão que careça de ser revista e confirmada em Portugal, nos termos a que alude o art.º 978º do Código de Processo Civil, e que esteja contida na escritura outorgada pelos requerentes em 21/12/2018.
A respeito desta questão afirmou já o Supremo Tribunal de Justiça, pelo seu acórdão de 28/2/2019 (relatado por Nuno Pinto Oliveira e disponível em www.dgsi.pt), que “o teor do art. 978.º, n.º 2, do Código de Processo deixa claro que a confirmação/revisão da escritura declaratória de união estável não é necessária para que tenha eficácia em Portugal”.
E mais afirma que “independentemente de ser ou não confirmada/revista, a escritura declaratória de união estável prevista pelo direito brasileiro sempre será um simples meio de prova, sujeito à apreciação de quem haja de decidir sobre o reconhecimento de direitos constituídos pela união de facto”, tendo presente que, como decorre do art.º 2º-A, nº 1, da Lei 7/2001 (na redacção da Lei 23/2010), em princípio a prova da união de facto pode ser feita por qualquer meio legalmente admissível.
Sendo por isso que conclui que “nem a declaração da junta de freguesia prevista pelo direito português nem a escritura declaratória de união estável prevista pela lei brasileira fazem com que o acto composto pelas declarações dos requerentes seja “caucionado administrativamente pela ordem jurídica em que foi produzido”, com a consequência de a escritura declaratória de união estável apresentada pelos requerentes não poder ser confirmada/revista”.
Tal entendimento foi seguido no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21/3/2019 (relatado por Ilídio Sacarrão Martins, disponível em www.dgsi.pt), aí se afirmando que “os requerentes não obtiveram na escritura uma decisão homologatória por parte do tabelião que possa servir de base à presente revisão. Apenas declararam que “vivem como se casados fossem desde 15.03.1992, convivência que se mantém duradoura, pública e contínua”. Por conseguinte, estamos perante um simples meio de prova sujeito à apreciação de quem haja de julgar a causa, ou sejam de quem haja de decidir sobre os direitos atribuídos ou reconhecidos em Portugal, pelo que a mencionada escritura invocada pelos requerentes, fica excluída do processo de revisão de sentença estrangeira”.
Tal entendimento foi ainda seguido no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 9/5/2019 (relatado por Nuno Pinto Oliveira e disponível em www.dgsi.pt), onde ficou sumariado que “a escritura pública declaratória de união estável prevista pelo direito brasileiro não pode ser confirmada ou revista nos termos do art. 978.º do Código de Processo Civil”.
Igualmente foi seguido no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10/12/2019 (relatado por Ilídio Sacarrão Martins e disponível em www.dgsi.pt), onde ficou sumariado que “a declaração dos requerentes numa Escritura Pública Declaratória de União Estável, perante uma autoridade administrativa estrangeira (tabelião) de que vivem em união de facto desde Julho de 2013, não deve ser considerada como abrangida pela previsão do artigo 978º nº 1, do CPC, não podendo ser revista e confirmada para produzir efeitos em Portugal”.
Do mesmo modo, tal entendimento foi seguido no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12/11/2020 (relatado por Maria do Rosário Morgado e disponível em www.dgsi.pt), onde ficou sumariado que “a declaração exarada numa “Escritura Pública de Declaração de União Estável”, perante uma autoridade administrativa estrangeira (tabelião) no sentido de que os outorgantes declaram viver em união de facto não se encontra abrangida pela previsão do artigo 978º nº 1, do CPC, não podendo ser revista e confirmada para produzir efeitos em Portugal”.
Também no acórdão deste Tribunal da Relação de Lisboa de 23/5/2019 (proferido no processo 247/19.6YRLSB, relatado por Arlindo Crua e onde o ora subscritor intervém como 1º adjunto) tal entendimento foi seguido, aí se concluindo que “inexistindo na escritura pública, cuja revisão/confirmação se pretende, qualquer emissão formal de vontade da entidade administrativa, ainda que de natureza ou carácter meramente homologatório, ou mesmo que as declarações dos Requerentes, ali Declarantes, tenham sido caucionadas administrativamente pela ordem jurídica em que foram produzidas, não se pode concluir pela existência de uma decisão susceptível de revisão e consequente confirmação, o que determina, necessariamente, juízo de total improcedência do presente processo especial”.
Igualmente foi seguido tal entendimento no acórdão deste Tribunal da Relação de Lisboa de 17/10/2019 (relatado por Teresa Prazeres Pais e disponível em www.dgsi.pt), aí se concluindo que “a declaração dos requerentes numa Escritura Pública Declaratória de União Estável, perante uma autoridade administrativa estrangeira (tabelião) de que mantêm uma união estável desde 3/9/2006, não deve ser considerada como abrangida pela previsão do artigo 978º nº 1, do CPC, não podendo ser revista e confirmada para produzir efeitos em Portugal”.
Do mesmo modo, tal entendimento foi igualmente seguido no acórdão deste Tribunal da Relação de Lisboa de 24/10/2019 (relatado pelo subscritor da presente decisão sumária e disponível em www.dgsi.pt), aí se concluindo que “inexistindo na “escritura de união estável” outorgada pelos requerentes (…) qualquer decisão proferida por autoridade administrativa, ainda que de natureza homologatória, improcede a pretensão dos mesmos no sentido da revisão e confirmação desse acto notarial através do presente processo especial de revisão de sentença estrangeira”.
Os requerentes visam contrariar tal entendimento, apelando ao já decidido em alguns acórdãos proferidos neste Tribunal da Relação de Lisboa, e de onde se pode retirar que:
- a escritura pública de união estável prevista na ordem jurídica brasileira encerra a intervenção de uma entidade administrativa que cauciona o acto, na medida em que a sua intervenção permite que o mesmo acto produza efeitos na ordem jurídica, desde logo o registo da união estável;
- Nessa medida, porque tal acto equivale a um acto jurisdicional, é de admitir que o mesmo possa ser revisto e confirmado, como o pode ser a escritura de divórcio consensual, também prevista na ordem jurídica brasileira, e que igualmente é objecto de registo, porque o acto respectivo produz efeitos perante terceiros.
Com efeito, no acórdão de 24/10/2019 (relatado por Pedro Martins e disponível em www.dgsi.pt) ficou afirmado que “o papel do tabelião brasileiro que lavra uma escritura declaratória de divórcio é exactamente o mesmo daquele que lavra uma escritura declaratória da união de facto. E aquela, como esta, serve de base para o registo civil (tal como uma sentença judicial declaratória da união estável). Uma e outra estão caucionadas pela ordem jurídica [e não só administrativamente]. Se não se aceitar a possibilidade de revisão da escritura declaratória da união de facto, também não se poderá aceitar a escritura declaratória do divórcio, pondo em causa o entendimento reiterado e uniforme, de que para que haja uma “decisão” basta que se esteja perante um acto caucionado pela ordem jurídica em que foi produzido”, mais se concluindo “que, embora se possa discutir a necessidade abstracta deste processo de revisão, a verdade é que não há razões para não admitir a revisão de uma escritura declaratória da união estável brasileira para que vigore em Portugal e possa ser averbada no registo civil em Portugal, o que se traduz numa situação vantajosa para os requerentes, nem que seja ao nível da publicidade da situação e da sua invocação perante terceiros”, e concluindo-se ainda que “mesmo que a intervenção no acto da autoridade prevista na lei se limite à verificação da prática do acto e não ao proferimento de uma decisão, tal significa o caucionamento pela ordem jurídica do acto em causa e ele pode ser revisto como se fosse uma sentença para os efeitos do art. 978 do CPC. Ou, parafraseando o STJ nos acórdãos de 2013, não releva que o reconhecimento da união estável se tenha produzido de maneira contratual apenas através das declarações dos outorgantes; basta que se trate de um acto caucionado pela ordem jurídica em que foi produzido”.
Também no acórdão de 21/11/2019 (relatado por Ana de Azeredo Coelho e disponível em www.dgsi.pt) se conclui que “no caso da escritura declaratória de união estável, a intervenção do oficial público prevista no sistema jurídico brasileiro autoriza, nomeadamente, o registo da situação de união de facto e a usufruição de direitos e privilégios atribuídos em razão dessa situação”, concluindo-se ainda que tal escritura, “envolvendo mais do que o mero reforço da força probatória, é susceptível de revisão por ser este o ponto específico que a revisão visa: produção de efeitos na ordem jurídica”, e afirmando-se ainda que, “mesmo a pressupor que a revisão solicitada tem como fito a inscrição em registo civil da situação de união de facto, entende-se que a atribuição de competência exclusiva visa apreciar a verificação dos requisitos de inscrição em registo, ao que se não destina a presente acção de revisão”.
Do mesmo modo, no acórdão de 11/12/2019 (relatado por Luís Filipe Sousa e disponível em www.dgsi.pt) conclui-se pela admissibilidade da revisão de “escritura pública de união estável realizada no Brasil”, uma vez que “sendo admissível a formalização da união estável no Brasil através de escritura pública perante tabelião, a intervenção e controle feitos pelo tabelião consubstanciam a intervenção de uma entidade administrativa que cauciona o acto, ao qual são atribuídos efeitos precípuos pela ordem jurídica brasileira”, pelo que “a outorga da escritura de união estável perante o notário, a função deste e o controlo da actividade notarial pelos tribunais no Brasil são susceptíveis de equivaler aos requisitos de acto jurisdicional impostos pelo art. 3º, nº2, do Regulamento nº 2016/2014, do Conselho de 24.6.2016, tendo a intervenção de oficial público repercussão performativa na ordem jurídica em que é prevista e praticada”.
Não se coloca em crise que a escritura pública de união de facto que o ordenamento jurídico brasileiro prevê (aí denominada união estável) tem repercussão performativa nesse ordenamento, desde logo por possibilitar o registo do facto declarado (a união estável), como previsto por aquele mesmo ordenamento.
Todavia, do art.º 978º do Código de Processo Civil decorre uma delimitação simultaneamente positiva e negativa, quanto ao requisito da necessidade da revisão e confirmação de decisões estrangeiras sobre direitos privados.
Com efeito, por um lado está em causa a necessidade de revisão e confirmação ditada pelos efeitos que a decisão estrangeira é susceptível de produzir no ordenamento jurídico português (nº 1 do referido art.º 978º). Mas, por outro lado, está em causa a desnecessidade de revisão e confirmação, caso os efeitos obtidos se limitem à utilização da decisão como simples meio de prova (nº 2 do referido art.º 978º).
Assim, se no ordenamento jurídico nacional o efeito visado não existe ou, existindo, não carece de ser alcançado através da afirmação jurisdicional do facto, então não se torna necessário que o acto estrangeiro (que teve de ser produzido para que tal efeito pudesse existir, face à repercussão performativa prevista na ordem jurídica desse país) careça de ser revisto e confirmado.
Ou seja, e no caso concreto da escritura de união estável outorgada no Brasil, não é porque aí se torna necessário a outorga da mesma, para a produção de efeitos do facto declarado (a união de facto) na ordem jurídica desse país (desde logo o registo desse facto), que a mesma assume eficácia de igual natureza, face ao ordenamento jurídico nacional.
É necessário, por um lado, que essa repercussão performativa se verifique, à face do ordenamento jurídico nacional. E, por outro lado, é necessário que ultrapasse a mera necessidade de utilização da escritura como simples meio de prova em Portugal.
Ou, dito de outra forma, é à face do ordenamento jurídico nacional que deve ser aferida a necessidade da existência de uma escritura pública que declare a união de facto, na medida em que a produção dos efeitos visados por essa declaração só consiga ser alcançada (em Portugal) por esse acto notarial com repercussão performativa.
O que é o mesmo que afirmar que a escritura em questão pode ser considerada como um acto caucionado pela ordem jurídica brasileira, aí equivalendo a um acto jurisdicional porque aí produz efeitos jurídicos, mas que não corresponde a uma decisão carecida de revisão e confirmação, à face do ordenamento jurídico nacional, porque aqui esses efeitos jurídicos não são alcançados por acto notarial com tal repercussão performativa.
É isso que resulta dos acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça acima identificados e que, com o devido respeito, os acórdãos deste Tribunal da Relação de Lisboa a que os requerentes fazem apelo (designadamente aqueles acima identificados) não atendem, já que partem da repercussão performativa da escritura de união estável no ordenamento jurídico brasileiro para a afirmação da necessidade de revisão e confirmação no ordenamento jurídico nacional, sem cuidarem de verificar se essa mesma repercussão performativa é necessária à face do ordenamento jurídico nacional, ou se este se basta com a força probatória específica que o acto detém.
Com efeito, estando em causa a declaração da união de facto, nem tal facto jurídico é susceptível de registo, à face do ordenamento jurídico nacional (porque excluído do elenco taxativo de factos objecto de registo constante do art.º 1º do Código do Registo Civil), nem é necessária a declaração judicial desse facto, para que o mesmo seja reconhecido pela ordem jurídica nacional (como resulta do já referido art.º 2º-A da Lei 7/2001, de 11/5) e aqui produza os seus efeitos.
E a comparação com os efeitos da escritura de divórcio consensual também não colhe, exactamente porque a necessidade de revisão e confirmação desta escritura decorre da necessidade de fazer ingressar no registo civil nacional o facto em questão (o divórcio), na medida em que corresponde ao averbamento da dissolução do facto anterior (o casamento) que também foi registado.
Ou seja, não é de acolher o entendimento defendido pelos requerentes e estribado nos acórdãos deste Tribunal da Relação de Lisboa que os mesmos invocam, havendo antes que concluir, face ao acima exposto, que a escritura de união estável apresentada pelos requerentes não corresponde a um acto decisório necessitado de revisão e confirmação através do presente processo especial, e assim se concluído pela improcedência da pretensão dos requerentes.
***
DECISÃO
Por todo o exposto julga-se improcedente a pretensão dos requerentes e, em consequência, não se concede a revisão da escritura melhor identificada nos factos provados.
Tendo presente o decidido quanto a custas, já constante da decisão singular, e mostrando-se paga a taxa de justiça devida pela reclamação para a conferência, nada mais há a determinar, relativamente à responsabilidade tributária dos requerentes.

25 de Março de 2021
António Moreira
Carlos Castelo Branco (vencido, nos termos da declaração de voto que segue)
Lúcia Sousa

DECLARAÇÃO DE VOTO
*
Não acompanho a decisão que fez vencimento quanto aos fundamentos e à decisão, assim reponderando e alterando posição antes subscrita – na conferência desta mesma Relação e Secção, de 24-10-2019 (Processo nº 1531/19.4YRLSB) - lavrando voto de vencido, com sucinta menção das razões de discordância, nos seguintes termos:
1) O âmbito do n.º 1 do artigo 978.º do CPC é tão só o de determinar que, em regra e salvo o que derive de convenções internacionais, do Direito da União Europeia ou de lei especial, nenhuma decisão estrangeira tem eficácia em Portugal sem estar revista e confirmada;
2) A tese que fez vencimento introduz um requisito não previsto na lei – artigo 980.º do CPC - para a revisão e confirmação de decisões estrangeiras: A necessidade da revisão para a ordem jurídica portuguesa;
3) O n.º 2 do artigo 978.º do CPC prescreve apenas a desnecessidade de revisão no caso de invocação da decisão estrangeira – não revista – em processo pendente em tribunal português, para aí servir tal decisão como simples meio de prova, sujeito à apreciação do julgador dessa causa pendente;
4) A revisão prevista no processo regulado nos artigos 978.º e ss. do CPC é, como tem sido unanimemente declarado pela doutrina e jurisprudência, uma revisão meramente formal – com vista ao apuramento sobre se estão verificados os requisitos, enunciados no artigo 980.º do CPC, de que depende a revisão – não podendo envolver uma revisão de mérito da decisão estrangeira;
5) Apenas no caso da alínea f) do artigo 980.º do CPC se verifica a necessidade de apreciação sobre se a decisão cujo reconhecimento se pretende conduz a um resultado manifestamente incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado Português;
6) Ora, relativamente à alínea f) do artigo 980.º do CPC, o ordenamento jurídico português prevê a união de facto na Lei n.º 7/2001, de 11.5, definindo-a como “a situação jurídica de duas pessoas que, independentemente do sexo, vivam em condições análogas às dos cônjuges há mais de dois anos” - artigo 1.º, n.º 2. No Direito da União Europeia reconhece-se um instituto mais próximo do regime da união estável, que consiste no da denominada “parceria registada”, dispondo de diversos instrumentos legais que regulam o seu regime, como o Regulamento (UE) 2016/1104 do Conselho, de 24 de junho de 2016. Da análise dos três institutos – união de facto, união estável e parceria registada - resulta que a união estável se edifica entre a união de facto portuguesa e a parceria registada do Regulamento, como se notou no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 21-11-2019 (Proc.º n.º 1899/19.2YRLSB-6, rel. ANA DE AZEREDO COELHO).
7) No direito brasileiro elevou-se a união estável ao status de entidade familiar, passando a utilizar-se esta expressão («união estável») para definir uma relação estável entre duas pessoas e reservando-se a expressão «concubinato» para as relações entre duas pessoas impedidas de se casar.
8) Estabelece o parágrafo 3.º do artigo 226.º da Constituição Federal Brasileira de 1988 que: “Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento (…)”. Esta figura foi regulada nas Leis Federais n.º 8.971/1994, de 29-01-1994 e n.º 9.278/1996, de 10-05-1996 e, entretanto, o Código Civil de 2002 (aprovado pela Lei n.º 10.406, de 10-01-2002), veio reconhecer, no artigo 1.723, a união estável como “a união entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família”.
9) Nos termos do artigo 215.º do Código Civil Brasileiro, a escritura pública lavrada em notas de tabelião, é documento dotado de fé pública, fazendo prova plena, o que significa que a escritura pública de união estável serve de prova pré-constituída da existência da união estável, uma vez que incide fé pública sobre a declaração dos companheiros no tocante à convivência pública, contínua, duradoura e com o objetivo de constituir família. Estamos perante instrumento brasileiro apto a disciplinar as relações patrimoniais entre os conviventes (cf. Ronan Cardoso Naves Neto, A União Estável nas Serventias Extrajudiciais, 2016, Universidade FUMEC, Faculdade de Ciências Humanas, Sociais e de Saúde – FCH, p. 74, consultado em: http://www.fumec.br/revistas/pmmd/article/view/5497/2766).
10) De modo a unificar o procedimento, o Conselho Nacional de Justiça brasileiro, emitiu o Provimento n.º 37, de 7 de julho de 2014, dispondo sobre o registo da união estável no Livro “E”, por Oficial de Registro Civil das Pessoas Naturais. Tal provimento prevê o registo facultativo da “sentença declaratória de reconhecimento e dissolução, ou extinção, bem como de escritura pública de contrato e distrato envolvendo união estável” (artigos 1.º e 2.º).
11) Do que se vêm referindo decorre a inexistência de manifesta incompatibilidade do instituto em causa, ainda que formalizado por escritura pública, com os princípios da ordem pública internacional do Estado Português;
12) A aferição de um juízo de necessidade da revisão, com referência à produção de efeitos – ou à sua ausência - na ordem jurídica portuguesa de decisões estrangeiras, conduz a uma revisão de mérito fora do contexto legal enunciado;
13) Acompanham-se, de perto, as considerações fundamentadoras expendidas a propósito no Acórdão desta Relação de 21-11-2019 (Pº 1899/19.2YRLSB-6, rel. ANA DE AZEREDO COELHO), onde se concluiu que: “1. A evolução do entendimento do que seja decisão sobre direitos privados proferida por tribunal estrangeiro, implica já a ultrapassagem da dicotomia intervenção constativa ou performativa do oficial público, para exigir uma outra ordem de classificação: intervenção de oficial público com ou sem repercussão performativa na ordem jurídica em que é prevista e praticada. 2. No caso da escritura declaratória de união estável, a intervenção do oficial público prevista no sistema jurídico brasileiro autoriza, nomeadamente, o registo da situação de união de facto e a usufruição de direitos e privilégios atribuídos em razão dessa situação. 3. Envolvendo mais do que o mero reforço da força probatória, é susceptível de revisão por ser este o ponto específico que a revisão visa: produção de efeitos na ordem jurídica.”.
14) Ou seja: A intervenção do oficial público brasileiro, na medida em que possibilita o registo do facto objeto da escritura pública, tem os mesmos efeitos que, na ordem jurídica portuguesa, teria a intervenção, no caso, de um notário ou de um juiz, viabilizando o juízo de validade do acto praticado no sentido de que tal acto da ordem jurídica brasileira é de equiparar, para este efeito, a uma decisão judicial.
15) A intervenção do oficial público tem efeito performativo e autorizativo da inscrição registral da situação de união estável, em moldes idênticos à que decorreria da intervenção decisória do juiz sobre a validade do acto e dos envolvidos no mesmo. Neste mesmo sentido decidiram os acórdãos do STJ de 29-01-2019 (Pº 896/18.0YRLSB.S1, rel. ALEXANDRE REIS) e desta Relação de Lisboa de 24-10-2019 (Pº 2403/19.8YRLSB.L1-2, rel. PEDRO MARTINS), de 23-01-2020 (Pº 2718/19.5YRLSB, rel. GABRIELA CUNHA RODRIGUES) e de 23-01-2020 (Pº 3106/19.9YRLSB-2, rel. LAURINDA GEMAS).
16) E, não ofendendo o instituto da união estável a ordem pública portuguesa e tendo vindo a ser admitido, progressivamente, o reconhecimento de actos jurídicos – incluindo escrituras públicas declaratórias – atestadores de união estável, em situação equiparável ao conceito ínsito no artigo 978.º, n.º 1, do CPC, de “decisão sobre direitos privados”, conclui-se que nada obsta à concessão da revisão do referido acto;
17) Da mera circunstância de não existir na ordem jurídica portuguesa o registo de união estável, não se infere a improcedência do pedido de revisão, podendo o mesmo relevar, ainda assim, para a ordem jurídica nacional, não incumbindo ao julgador decidir sobre a “desnecessidade” de uma tal pretensão.
18) Em suma: Admitindo-se a possibilidade de revisão e confirmação de decisões emanadas de autoridade judicial ou administrativa estrangeira, desde que, neste último caso, o ordenamento jurídico respectivo admita que a mesma decisão produza os mesmos efeitos de uma decisão judicial, o que no caso se verifica e, encontrando-se reunidos os demais requisitos necessários para a confirmação, julgaria procedente a pretensão de revisão e confirmação formulada.

Lisboa, 25-03-2021,
Carlos Castelo Branco