Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
258/20.9PBLRS.L1-5
Relator: VIEIRA LAMIM
Descritores: INJÚRIA AGRAVADA
OFENSA À INTEGRIDADE FÍSICA QUALIFICADA
AGENTE DA AUTORIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/26/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: - “Polícias de merda, metes nojo, nojento” são, objetivamente, expressões que atingem a honra e consideração devidas a um agente da PSP, o que aliado à voluntariedade da arguida, preenche todos os elementos do crime de injúria agravada por que foi condenada.
- Não está em causa uma expressão genérica ou plural “filhos da puta” cujo destinatário seja duvidoso nem uma mera verbalização de linguagem grosseira, obscena, ordinária, ou desabafo, face a intervenção policial em relação a pessoa próxima da arguida.
- Exige-se às forças policiais que sejam rigorosas e competentes no cumprimento das suas missões, muitas vezes difíceis, por forma a serem merecedoras de respeito e credibilidade pela comunidade, o que também passa por se assegurar adequada proteção ao direito à honra e consideração de cada um dos seus elementos, não sendo por isso admissível uma postura de desvalorização de comportamentos como o da arguida que podia sentir-se incomodada com a detenção da pessoa que tratava como pai, mas isso não lhe permitia atingir a honra e consideração devida a cada um dos agentes que em serviço intervieram nessa ação.
- Ao desferir um pontapé em direção ao corpo do agente AA, não o atingindo devido a ação dele, a arguida praticou o crime de ofensa à integridade física qualificada, na forma tentada por que foi condenada e, sabendo que o ofendido, integrado em patrulha policial, executava missão de autoridade pública pelo que o facto de se ter decidido investir contra a integridade física do mesmo é merecedora de especial censura, daí a justificação para a qualificação do crime, não sendo invocável o direito à resistência previsto no art.21, da CRP, pois a ilicitude da sua conduta justificou a intervenção da autoridade policial.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Lisboa:

Iº 1. No Processo Abreviado nº258/20.9PBLRS, da Comarca de ……. (…… - JL P. Criminalidade - Juiz …), o Ministério Público acusou BB de um crime de ofensa à integridade física qualificada, na forma tentada (arts.22.º, 23.º, 26.º, 143.º, n.º 1, 145.º, n.º 1, alínea a, por referência ao artigo 132.º, n.º 2, alínea l, todos do Código Penal) e dois crimes de injúria agravada (arts181.°, n.° 1, e artigo 184.°, com referência ao artigo 132.º, n.º 2, alínea l, do mesmo Código).
O Tribunal, após julgamento, por sentença de 10 de maio de 2021, decidiu:
“…
A) Absolver a arguida BB da prática de um dos crimes de injúria agravada, previsto e punido pelos artigos 181.º, 184.º, por referência ao disposto no artigo 132.º, alínea l, todos do Código Penal, que lhe vinha imputado;
B) Condenar a arguida BB, pela autoria material de um crime de ofensa à integridade física qualificada, na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 22.º, 23.º 143.º, n.º 1 e 145.º, n.º 1, alínea a) e n.º 2, por referência ao artigo 132.º, n.º 2, alínea l), todos do Código Penal, na pena de 2 (dois) meses de prisão;
C) Substituir a pena de prisão, nos termos do artigo 45.º do Código Penal por 60 (sessenta) dias de multa, à taxa diária de 5 € (cinco euros), no total de 300 € (trezentos euros);
D) Condenar a arguida BB pela autoria material de um crime de injúria agravada, previsto e punido pelos artigos 181.º, 184.º, por referência ao disposto no artigo 132.º, alínea l, todos do Código Penal, na pena de 50 (cinquenta) dias de multa, à taxa diária de 5 € (cinco euros), no total de 250 € (duzentos e cinquenta euros);
….
...”.
2. Desta decisão recorre a arguida BB, motivando o recurso com as seguintes conclusões:
1 - Vem a ora Recorrente recorrer da sentença que, em primeira instância, a condenou num crime de ofensa à integridade física qualificada, na forma tentada e noutro de injúria agravada, tendo o douto Tribunal a quo fundamentado a sua decisão nas declarações da própria Recorrente e das testemunhas, bem como da prova documental constante dos autos.
2 - Não pode a aqui Recorrente conformar-se com a interpretação e valoração dada pelo douto Tribunal a quo quer à prova testemunhal produzida, quer ao contexto em que a situação ocorreu, dadas as incongruências que resultaram dos depoimentos dos agentes policiais que não foram valoradas, em contraposição com a valoração feita relativamente às discrepâncias nos testemunhos favoráveis à Recorrente.
3 - Refere o douto Tribunal a quo que as declarações da Recorrente são convergentes com as das testemunhas no que concerne à abordagem ao carro que transportava a figura paterna que conhece desde os 3 (três) anos de idade e que presenciou estar num estado lastimável após intervenção policial, sendo que, ficou a mesma num estado profundamente transtornado que a fez gritar aquando da passagem do carro em questão.
4 - O estado de perturbação da Recorrente era cabalmente visível, tendo sido atestado inclusive pelas testemunhas policiais e tendo a mesma explicado o seu estado de espírito no momento, ao douto Tribunal a quo (ficheiro 1 das declarações da Recorrente, mins. 5m13s a 8m46s; inquirição agente CC, mins. 5m16s a 5m25s e mins. 12m52s a 13m10s; inquirição agente DD, mins. 4m10s a 4m21s e 13m12s a 13m45s; inquirição EE, mins. 10m54s a 11m23s, todos reproduzidos na motivação do presente recurso).
5 - Portanto, todos os intervenientes percepcionaram o estado de espírito significativamente alterado da Recorrente, que era compreensível e coadunante com o comportamento do homem médio, quando confrontado com semelhante situação experienciada pela Recorrente.
6 - As expressões proferidas pela Recorrente terão de ser analisadas sob o prisma da intenção ou não de atingir e lesar a honra de um agente em específico ou se consubstanciam um mero acto de desabafo dentro do quadro de emoção exacerbada experienciada pela Recorrente, uma vez que apenas o agente alegadamente lesado percepcionou tais expressões como a si dirigidas especificamente (inquirição agente AA, mins. 23m35s a 24m52s, 27m13s a 28m22s e 29m39s a 29m51s, todos transcritos na motivação do presente recurso).
7 - O agente alegadamente lesado baseia a sua convicção numa série de suposições e deduções em relação à sua pessoa, sem qualquer fundamento em factos concretos pois que o próprio refere que inicialmente a Recorrente proferiu as expressões no plural, de uma forma geral e generalizada, visando todos os agentes presentes no carro em que era motorista, mas que só ele é que decidiu, por iniciativa própria, parar o carro inesperadamente, durante o transporte de um detido, pai da Recorrente, colocando os próprios colegas em perigo.
8 - Quanto às expressões que a Recorrente terá proferido já na esquadra de polícia, o agente em causa nem sequer estava perto da mesma, deduzindo que seriam direccionadas a ele por uma questão gramatical, facto que não foi corroborado pelos restantes colegas intervenientes na situação (inquirição agente CC, mins. 14m04s a 15m41s e 19m33s a 20m05s, inquirição agente DD, mins. 15m17s a 18m02s e 30m09s a 31m20s).
9 - O agente CC apreendeu perfeitamente o estado de espírito significativamente alterado da Recorrente, face ao estado em que se encontrava o seu pai e não ouviu quaisquer outras expressões por parte desta, na esquadra, compreendendo totalmente porque a Recorrente tinha tido aquele comportamento (“Foi uma vítima da ligação que tinha com a pessoa que eu estava a transportar.” e “Se calhar num dia normal ela não fazia isso.”).
10 - Tendo o agente DD a mesma percepção que o colega acima indicado, percebendo que a Recorrente, com as suas expressões, não visava ninguém em específico, antes expressando a sua revolta (inquirição agente DD, mins. 15m17s a 18m02s)
11- Os agentes CC e DD foram, pelo contrário, surpreendidos pela actuação do colega AA, pois que com a sua conduta repentina, súbita, individual, inesperada e completamente contrária aos procedimentos de transporte de detidos, fez com que tivessem de adequar a sua actuação, colocando a sua segurança em perigo.
12 - O agente DD, na esquadra, ouviu a Recorrente, porém afirmou sem hesitação que a mesma proferia expressões genéricas e generalizadas, não visando um agente em concreto, não sendo, assim, expressões susceptíveis de lesar o bom nome de uma pessoa determinada (inquirição agente DD, mins. 30m09s a 31m20s).
13 - Deste modo, não pode a Recorrente conformar-se com uma decisão baseada numa regra gramatical (singular ou plural) quem nem sequer é sustentada por todos os intervenientes.
14 - Já quanto ao facto da Recorrente não conseguir afirmar com toda a certeza o teor das expressões que proferiu aquando se encontrava aos gritos, completamente em pânico e transtornada é perfeitamente compreensível face ao lapso temporal já decorrido (um ano), a situação ter sido tensa e ter-se desenrolado muito rapidamente.
15 - Aliás, a Recorrente, com toda a humildade, assumiu o que lhe era possível assumir, que foi a expressão que foi consentânea em todos os depoimentos, ou seja “filhos da puta”, não podendo afirmar é com toda a certeza a acuidade e veracidade de todas as expressões que lhe são imputadas.
16 - Mais, não pode afirmar do que não se recorda, até porque não é pacífico entre todas as testemunhas o resto das expressões que terá proferido, sendo que bem sabe o douto Tribunal a quo que cada testemunha relatou ter ouvido expressões diferentes umas das outras, sendo a única comum a já acima indicada e que foi assumida pela Recorrente.
17 - Assim, não percebendo a Recorrente o que mais pretendia o douto Tribunal a quo que esta assumisse, fez o que considerou ser mais correcto: sabe que gritou, dado o transtorno e o lapso temporal não consegue precisar o que terá dito, assume a responsabilidade por aquilo que foi unânime entre as testemunhas e que, portanto, aceita como verdadeiro, que foi uma expressão genérica e no plural (“filhos da puta”).
18 - Não pode é a Recorrente aceitar que dessa assumpção e das demais declarações das testemunhas se extrapole o âmbito do circunstancialismo, para imputar-lhe a prática de um crime por força de uma única letra (um “S”).
19 - Relativamente ao crime de agressão física qualificada na forma tentada, também não percebe a Recorrente como pôde o mesmo ser dado como provado, com base nas declarações do interessado, único que afirma ter existido um pontapé falhado e do agente DD que não afirmou ter visto o mesmo, mas sim um movimento com o pé que não consegue concretizar ou qualificar.
20 - Especialmente quando é verosímil que o movimento com o pé tenha sido consequência de um desequilíbrio provocado pelo facto do agente AA lhe ter agarrado o pulso para a manietar, conforme o mesmo assumiu tanto no auto, como em audiência de julgamento, antes do movimento do pé ocorrer.
21 - Quando alguém é agarrado com intenção de manietação é normal que seja necessário exercer algum tipo de força, ainda que mínima, para tirar o corpo do estado de repouso em que se encontra, podendo isso provocar o desequilíbrio, o que é perfeitamente normal e plausível, ao contrário do que considerou o douto Tribunal a quo.
22 - E tal tese é, de resto, consentânea com o que foi percepcionado por todas as testemunhas, que afirmaram que assim que o agente AA se aproximou e agarrou a Recorrente, esta foi imediatamente ao chão, chegando o próprio a referir que foi fácil proceder à manobra.
23 - De resto, nem o agente CC - que afirmou não ter visto nenhuma agressão - nem o agente DD - que não conseguiu qualificar o gesto da Recorrente como uma agressão e chegou a assumir que apenas referiu tal palavra, sugestionado pelo agente AA - conseguem acompanhar a teoria do referido agente (inquirição agente DD, mins. 10m42s a 12m23s e 19m11s a 22m55s).
24 - Dado não ter sido produzida qualquer prova no sentido da tentativa de agressão teria o douto Tribunal a quo de fazer vingar o princípio in dubio pro reo.
25 - Aliás, são várias as incongruências patentes nos testemunhos dos agentes policiais, sendo que a primeira é a atinente à afirmação do agente AA de que apenas terá sabido da relação da Recorrente com o detido que transportava na esquadra, o que é contrariado pelo agente DD (inquirição agente DD, mins. 09m00s a 09m25s a 26m39s).
26 - A actuação policial relativamente à Recorrente também não foi normal, pois não se pára um transporte de um detido, que até está ferido, de forma inesperada apenas porque uma miúda de 21 anos gritou um impropério na rua, o que, como já foi referido, surpreendeu os agentes que também seguiam no carro e colocou em causa a sua segurança (inquirição agente CC, mins. 14m04s a 14m25s e inquirição agente DD, mins. 15m17s a 18m02s).
27 - Também foi referido pelos agentes DD e CC que no seguimento da interacção do agente AA com a Recorrente, várias foram as vozes de revolta que se levantaram nas várias janelas e varandas do local onde a situação estava a ocorrer, o que não aconteceria se a atitude tivesse sido correcta (inquirição agente CC, mins. 11m02s a 11m34s, 12m00s a 13m42s; inquirição agente DD, mins. 10m02s a 10m12s).
28 - Os agentes CC e DD desvalorizaram a conduta a Recorrente, por força das circunstâncias que também eram do conhecimento do agente AA, sendo que o agente CC inclusive demonstrou que o comportamento da Recorrente foi um acto isolado de uma pessoa desesperada (inquirição agente CC, mins. 16m42s a 18m09s).
29 - O agente AA não conseguiu concretizar de que modo se tinha sentido ofendido e lesado (inquirição agente AA, mins. 12m33s a 12m57s, 20m07s a 21m10s e 22m30s a 22m43s).
30 - O mesmo agente demonstrou uma memória quase fotográfica da actuação da Recorrente (inquirição agente AA, mins. 01m49s a 02m52s), citando o auto, inclusive, mas não sabia indicar quem seguia com ele no carro na altura da ocorrência (inquirição agente AA, mins. 14m00s a 14m35s, 10m08s a 11m25s e 28m25s a 29m37s).
31 - Face a todas as disparidades apontadas, não descortina a Recorrente onde alicerçou o douto Tribunal a quo a certeza sólida e fundada para proceder à sua condenação.
32 - Da sentença recorrida resulta também a absolvição da Recorrente de um crime de injúria agravada de que vinha acusada, remetendo tal crime para uma continuidade da sua postura injuriosa, separando em dois crimes, dois momentos, o inicial na via pública e outro já na esquadra, acabando por absolver a Recorrente atribuindo os dois momentos a um  único crime continuado.
33 - Contudo tal não corresponde à verdade pois que consta dos autos, especialmente da própria acusação, que o procedimento criminal seguiu quanto a dois agentes relativamente ao crime de injúria agravada - CC e AA -  e foi arquivado para o agente DD, por este nunca ter manifestado intenção de procedimento criminal, ainda que notificado mais do que uma vez para tal.
34 - Dúvidas não restam que a Recorrente foi acusada de dois crimes de injúria agravada, por cada um dos agentes policiais que assumiu a qualidade de ofendido, ao contrário do que foi afirmado pela sentença recorrida, sendo que no decorrer do próprio depoimento do agente CC resultou claro que o mesmo não pretendia procedimento criminal relativamente à Recorrente e o Ministério Público afirmou expressamente que, consequentemente, tal crime cairia (inquirição agente CC, mins. 07m00s a 09m40s).
35 - Não pode manter-se uma decisão que não retrata a realidade do ocorrido e não tem em consideração os mais elementares direitos num Estado de Direito Democrático, nem a condição humana dos sujeitos.
36 - Foi, assim, a Recorrente condenada por um crime de injúria agravada, por ter proferido uma expressão que não se conseguiu determinar qual pois, de acordo com as testemunhas, será “filhos da puta” (genérico e plural), de acordo com a singularidade necessária para ser atribuído a um agente em concreto, terá sido “metes-me nojo” o que não reveste natureza injuriosa.
37 - Atendendo ao contexto e situação em que tais expressões foram proferidas, não têm estas o valor jurídico-penal que o douto Tribunal a quo lhes quis imprimir, dado que a Recorrente se encontrava toldada por profunda emoção incapacitante de usar do seu melhor raciocínio lógico-prático.
38 - Foram antes um acto de desabafo que tem sido entendido pela jurisprudência como insusceptível de causar dano ou lesão à honra de quem quer que seja, como referem os acs. do TRL de 17/04/2018, TRE de 23/01/2018 e TRC de 06/01/2010, sendo antes consideradas expressões proferidas “da boca para fora.”
39 - A mera verbalização de linguagem grosseira, obscena e ordinária não é passível de relevância jurídico-penal, especialmente quando, como no caso da Recorrente, a mesma se encontrava sob o efeito do choque do que vivenciou.
40 - A Recorrente é uma jovem com 21 anos à data dos factos que nunca tinha sido confrontada com uma situação do género, com um membro do seu núcleo familiar mais intrínseco, apanhada numa situação que seria perturbadora para qualquer pessoa, independentemente da idade.
41 - À luz do homem médio a reacção da Recorrente é mais do que compreensível, dada a emoção violenta por que foi tomada, sendo que para a caracterização de tal emoção, segue-se o entendimento dos acs. do TRL de 08/05/2018 e STJ de 09/05/2015.
42 - O douto Tribunal a quo ignorou e desconsiderou a empatia necessária que exige a análise dos casos à luz do homem médio.
43 - Também a interpretação dada aos factos para condenar a Recorrente por um crime de ofensa à integridade física qualificada, na forma tentada, não colhe acolhimento junto aos tribunais superiores, que defendem que não basta uma mera acção para que tal consubstancie a prática do ilícito penal imputado (nesse sentido, veja-se o ac. do TRE de 15/12/2015).
44 - Não só não teve a Recorrente qualquer contacto físico com o agente alegadamente ofendido, como apenas o mesmo consegue afirmar seguramente que a Recorrente o visou atingir, pois esta negou ter tentado lograr tal acto, tendo antes sofrido um desequilíbrio após ser agarrada pelo agente em causa, indo ao solo, o que foi corroborado por todas as testemunhas.
45 - Mesmo os agentes que se encontravam no local não conseguiram precisar tal tentativa, um - CC - não a tendo visto e o outro - DD - não conseguindo precisar a natureza do movimento, havendo discrepâncias nas versões apresentadas, que impunham a aplicação do princípio in dubio pro reo.
46 - Sendo um princípio imposto ao julgador, não estando na sua disposição ou livre apreciação, por ser uma garantia elementar de defesa, como seguido pelos acs. do TRC de 12/09/2018 e STJ de 12/03/2009.
47 - Contudo, ainda que se considerasse ter existido tentativa de ofensa à integridade física, ainda assim a mesma estaria legitimada, ao abrigo do art. 21º CRP, tal como indica o ac. do TRE de 20/03/2018.
48 - Acresce que, mesmo que se equacionasse como provados os crimes em causa, não significa isso que os mesmos tivessem logo a natureza agravada que lhes foi imposta, pois em toda a conduta da Recorrente falham as características de especial censurabilidade ou perversidade, necessárias para o agravamento das molduras penais.
49 - Para que a prática de um crime seja agravada é necessário que a mesma seja levada a cabo nas circunstâncias previstas no art. 132º e ainda que a al. l) do referido preceito determine o agravamento quando o crime é perpetrado contra agentes de autoridade, também impõe comportamento revelador de especial censurabilidade ou perversidade.
50 - Não se encontra, deste modo, preenchido o tipo penal necessário para o agravamento dos crimes, pois serem cometidos contra um agente de autoridade não é factor de qualificação automática, tal como referem os acs. do TRG de 11/03/2019 e de 09/05/2005, TRC de 16/05/2018 e TRP de 30/04/2014.
51 - A actuação da Recorrente foi exageradamente relevada em termos jurídico-penais pelo douto Tribunal a quo, pelo que deve ser revogada a sentença proferida e ser substituída por decisão que retrate a realidade não só do ocorrido, mas também daquilo que em termos de experiência comum e bom senso, é perfeitamente compreensível, não devendo existir tratamento diferente para a Recorrente, quando a mesma se encontra em situação semelhante às que aqui foram elencadas.
Nestes termos e nos mais de direito deve o presente Recurso merecer provimento e, consequentemente, lavrar-se Acórdão que revogue totalmente a sentença recorrida.
3. O recurso foi admitido, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito suspensivo, a que respondeu o Ministério Público, concluindo pelo seu não provimento.
4. Neste Tribunal, a Exma. Srª. Procuradora-geral Adjunta, em douto parecer, concluiu pelo não provimento do recurso.
5. Realizou-se a conferência.
6. O objeto do recurso, tal como se mostra delimitado pelas respetivas conclusões, reconduz-se à apreciação das seguintes questões:
- apreciação da prova;
- qualificação jurídica dos factos;
*
IIº A decisão recorrida, no que diz respeito aos factos provados, não provados e respetiva fundamentação, é do seguinte teor:
1. No dia 21/04/2020, pelas 18:20 horas, os agentes da Polícia de Segurança Pública AA e CC, os quais se encontravam devidamente uniformizados e no exercício de funções, procediam ao transporte de um detido para o departamento policial.
2. Nessas circunstâncias, ao passarem pela Rua ......, no ......, a arguida, em tom de voz alto e sério, disse aos agentes: “NÃO VALEM NADA, POLÍCIAS DE MERDA, FILHOS DA PUTA, METEM-ME NOJO!”
3. Perante tais palavras, o agente AA imobilizou a viatura policial, questionando a arguida do porquê de tais palavras, tendo a arguida retorquido: “VAIS PRENDER-ME? METES NOJO FILHO DA PUTA.”.
4. Posto o que o agente AA deu voz de detenção à arguida, ordenando-lhe que colocasse as mãos atrás das costas, a fim de ser algemada, tendo a arguida respondido que se o agente AA se aproximasse lhe dava um estalo na cara.
5. Perante tal, o agente AA agarrou o pulso esquerdo da arguida, na tentativa de lhe fazer uma chave para sequente manietação.
6. Sucede que, ato contínuo, a arguida desferiu um pontapé visando a zona da coxa esquerda do agente AA, não logrando, no entanto, atingir o corpo do mesmo.
7. Já no interior da ...ª Esquadra de ......, a arguida em tom de voz alto e sério disse ao agente AA, por diversas vezes: “FILHO DA PUTA, NOJENTO”.
8. A arguida previu e quis dirigir ao agente da PSP AA as expressões referidas, bem sabendo que o mesmo era agente da PSP no exercício das respetivas funções e que tais expressões eram ofensivas da sua honra, consideração e dignidade pessoal e social e bem assim enquanto elemento de uma força de segurança no exercício das suas funções e ainda assim não se coibiu de as proclamar.
9. A arguida agiu motivada por razões atinentes ao exercício da atividade profissional dos agentes de autoridade, conhecendo a qualidade profissional destes e que se encontravam no exercício de funções, revelador da especial censurabilidade.
10. Ao desferir o pontapé quis a arguida molestar fisicamente o agente da PSP AA, bem sabendo que o mesmo era agente de autoridade e que se encontrava no exercício de funções, só não o tendo logrado dada a pronta intervenção do aludido agente.
11. A arguida agiu de forma livre, deliberada e consciente bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal.
Mais se provou que:
12. O detido que era transportado pelos agentes AA e CC tratava-se do padrasto da arguida, com quem a mesma reside desde os três anos de idade e a quem trata por pai.
13. A arguida trabalha num estabelecimento de ......, auferindo de salário mensal o montante de quinhentos euros.
14. Vive com a sua mãe, o seu padrasto e a sua irmã mais nova.
15. Tem como habilitações o 12.º ano de escolaridade.
16. A arguida não regista antecedentes criminais.
*
1.2) Matéria de facto não provada
Não ficou por demonstrar qualquer outro facto com relevo para a decisão da causa.
*
1.3) Justificação da convicção do Tribunal
Em obediência ao disposto no artigo 389.º-A, n.º 1, alínea a) ex vi do artigo 391.º-F, ambos do Código de Processo Penal, cumpre expor os motivos que fundamentam a antecedente decisão fática, com indicação e exame crítico sucinto das provas que serviram para formar a convicção do Tribunal.
O Tribunal atentou nos meios de prova produzidos e examinados em audiência de discussão e julgamento, designadamente nas declarações prestadas pela arguida, pelas testemunhas AA, o agente da Polícia de Segurança Pública ofendido, CC e FF, agentes da Polícia de Segurança Pública que tiveram intervenção nos factos e pelas testemunhas EE, vizinha da arguida, GG, amigo do padrasto da arguida e documentalmente louvou-se no teor do auto de notícia de fls. 2 a 4 e do Certificado de Registo Criminal de fls. 56.
Assim, o Tribunal filiou a sua convicção, primeiramente, na ponderação das declarações prestadas pela arguida, a qual afirmou não concordar com os factos que lhe vêm imputados, explicando, em síntese, que se encontrava na sua residência e se dirigiu à via pública por ter visto um aparato policial, sabendo que o seu padrasto (que trata por pai) ali se encontrava. Quando se aproximou do local, viu o seu padrasto cego por ter sido atingido por gás pimenta e a ser algemado, tendo começado a chorar, sendo que o agente CC lhe disse para se ir embora. Um amigo falou com a sua mãe que lhe disse que o padrasto só tinha tentado separar polícia de um amigo. Posteriormente, viu o carro onde se encontravam os agentes, começou a gritar e o carro parou, o agente AA saiu do carro com o bastão extensível a ameaçá-la, não teve tempo para dizer nada, desequilibrou-se e o agente AA mandou-se ao chão, ficando em cima de si. À sua volta estavam apenas dois ou três polícias. Afirma que se recorda de ter gritado mas não tem memória das expressões que empregou. De seguida, o agente AA pegou em si e meteu-o no carro, tendo as algemas muito apertadas e quando chegou a esquadra, disse para lhe desapartarem as algemas, eles tiraram as algemas, ficou sentada algemada e já estava mais calma não tendo dito nada ao agente AA.
Por seu turno, resultou do depoimento do ofendido AA, em síntese, foi chamado ao local dos factos, com brevidade, para dar apoio aos colegas, sendo o motorista da viatura e quando estava a fazer o transporte de um detido para a esquadra, a arguida meteu-se na estrada a gritar, encontrando-se do lado esquerdo da viatura, de forma audível porque trazia o vidro aberto “POLÍCIAS DE MERDA, FILHOS DA PUTA, METEM-ME NOJO”. Imobilizou a viatura (sendo que não levava nenhum objeto na mão), abordou a arguida e ela continuou “VAIS PRENDER-ME, METES-ME NOJO, FILHO DA PUTA”, deu-lhe voz de detenção e disse-‑lhe para pôr as mãos nas costas e a arguida respondeu “SE TE APROXIMAS DOU-TE UM ESTALO NA CARA”. Nesse momento, aproximou-se, agarrou-a pelo pulso esquerdo, ela desferiu um pontapé com o pé direito que o atingiu apenas levemente na perna esquerda porque se desviou para a lateral e depois para a retaguarda, rodando o pulso da arguida e aproveitando o seu desequilíbrio levou-a ao chão. Na esquadra, a arguida continuou “FILHO DA PUTA, POLÍCIA DE MERDA” e só nessa altura veio a saber que a arguida e o indivíduo que vinha na viatura policial tinham uma ligação familiar.
A testemunha CC, agente da Polícia de Segurança Pública declarou, em síntese, que nas circunstâncias de tempo e lugar a que se reportam os factos, se encontrava no interior da viatura conduzida pelo agente AA, quando ouviu a arguida, em tom audível, proferir as expressões “FILHOS DA PUTA, NÃO VALEM NADA”. O colega imobilizou o veículo, saiu do carro e ele ficou junto ao detido que estava a ser transportado, sendo que saiu e ficou junto ao veículo, tendo visto que quando o colega abriu a porta ela continuou a dizer algumas palavras, só tendo percebido que o agente AA lhe disse que estava detida e não se tendo apercebido de mais nada. Como a arguida já tinha estado junto a si, muito exaltada e chateada já tinha conhecimento que era filha do detido, o que transmitiu ao agente AA. Na esquadra, viu a arguida mas na sua presença esteve calada, não tendo ouvido mais nada.
A testemunha DD, agente da Polícia de Segurança Pública declarou, em síntese, que nas circunstâncias de tempo e lugar a que se reportam os factos, tendo-se deslocado ao local na sequência de um pedido de auxílio de um colega, estava com um indivíduo que foi detido, sendo que a arguida se aproximou a perguntar o que estavam a fazer ao seu pai, tendo falado com ela, explicando a situação, sendo que o detido também falou com ela tendo-lhe dito para ir para casa e que estava tudo bem. Posteriormente, ao passar na viatura policial conduzida pelo agente AA, a arguida proferiu as expressões “METEM-ME NOJO, NÃO VALEM NADA, FILHOS DA PUTA”, ao que o colega parou o carro, foi em direção da arguida e ela disse “VAIS ME PRENDER, METES-ME NOJO”. De seguida, a arguida fez um movimento com o pé (viu o pé dela no ar) e tentou dar um pontapé e o colega colocou-a no chão. A arguida ficou sentada, algemada, continuou sempre a falar e depois de transportada para a esquadra continuava com as injurias, sempre direcionadas ao agente AA, o pai dela que estava detido ia falando com ela e o Subcomissário FF foi falar com ela, até que se acalmou.
Por seu turno, a testemunha EE declarou, em síntese, que assistiu à situação porque reside na Avenida ......, no ... andar, a cerca de trinta metros dos acontecimentos e conhecendo a arguida por ser sua vizinha. Afirmou que a arguida atingida pelo veículo policial o que a fez desequilibrar-se, tendo vindo para volta da mesma cerca de quatro ou cinco agentes policiais, que a algemaram e dizendo a arguida para a largarem. Disse a um agente para levarem a miúda para casa porque não fazia sentido o que estavam a fazer, tendo-lhe sido dito por um agente “meta-se na sua casa, meta-se na sua vida, a senhora não sabe o que é que ela disse.” No final do seu depoimento, acabou por reconhecer ter ouvido a arguida proferir as expressões “Cabrões e filhos da puta”.
A testemunha GG, afirmou, em síntese, ter estado presente no local a que se reportam os factos e que, apesar de ter assistido com maior atenção aos factos respeitantes ao pai da arguida, ainda se apercebeu da presença da arguida, que outro amigo tentou tirá-la do local, mas que a mesma à passagem do veículo policial proferiu a expressão “FILHOS DA PUTA” e que o veículo fez uma travagem brusca e marcha atrás, que o agente AA foi direito à arguida, a qual foi ao chão, mas não lhe parecendo que o polícia a tenha atirado ao chão ou que trouxesse alguma coisa na mão e tendo-lhe dito qualquer coisa de forma agressiva.
A testemunha FF, subcomissário da esquadra, referiu, em síntese, que quando se dirigiu ao local dos factos a arguida já se encontrava a ser algemada, sendo que se encontrava descontrolada e a gritar, não se recordando das palavras que expressava e que já no interior da esquadra policial proferiu vários impropérios, designadamente proferiu as palavras “filho da puta, foda-se, vai para o caralho e nojento”, dirigindo-se ao agente AA porque era o mesmo que se encontrava junto a ela, sendo que tomou a iniciativa de ir ter uma conversa com a mesma, que acabou por a acalmar.
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Ponderando a prova produzida, importa começar por assinalar que as declarações da arguida são convergentes com as das testemunhas quanto às circunstâncias de tempo e lugar em que os factos ocorreram, bem como acerca da intervenção da arguida, no momento em que o veículo que transportava o seu padrasto e era conduzido pelo agente AA passou na via pública junto a ela, dirigindo-se ao mesmo aos gritos.
Relativamente às expressões utilizadas pela arguida aquando da passagem da viatura policial, as mesmas foram mencionadas quer pelo agente AA, quer pelo agente CC e DD. As testemunhas GG e EE, outrossim referiram tê-la ouvido proferir a expressão “filhos da puta”. Por seu turno, quanto às expressões utilizadas aquando da aproximação do agente AA, para além deste, o agente DD igualmente afirmou ter ouvido a arguida retorquir: “Vais-me prender, metes-me nojo”. Relativamente às expressões utilizadas no interior da esquadra policial, para além do agente AA, também o agente DD afirmou tê-la ouvido dizer expressões tais como “Metem-me nojo”. A testemunha FF declarou ainda que, na esquadra policial, estando no seu gabinete, ouviu a arguida mencionar várias expressões injuriosas, tais como “filho da puta, foda-se, vai para o caralho e nojento”, as quais dirigia certamente ao agente AA que era o único agente que se encontrava mais próximo dela, a fazer o expediente, tendo-a advertido para não continuar com aquele comportamento para não piorar a sua situação.
A posição da arguida, quanto a tais factos e expressões foi no sentido de não os negar inteiramente após a produção de prova, referindo não poder “desmentir tanta gente”, no que se refere ao facto de ter proferido a expressão “filhos da puta”, mas remetendo-se para um nível de desconhecimento que não conseguiu esclarecer totalmente - na medida em que, embora reconhecendo que nunca perdeu a consciência ou os sentidos e recordando a situação que despoletou a sua reação tempestuosa (pois revelou ter memória de ter gritado e de outros factos que descreveu com minúcia ) - o que acabou por descredibilizar o seu depoimento.
Com efeito, não se vê como poderá alegar a arguida não ter qualquer memória das expressões que proferiu (que acabou por reconhecer parcialmente) e, ao mesmo tempo, ter recordações tão precisas dos demais acontecimentos, pois, mesmo que numa situação de elevada tensão e nervosismo, como a que se verificou conforme é relatado por todos os envolvidos, certamente tais factos não seriam esquecidos.
Deste modo, em face da prova testemunhal produzida e bem assim do parcial reconhecimento da arguida, não subsistiram quaisquer dúvidas quanto ao facto da mesma se ter dirigido aos agentes, quando os mesmos se faziam deslocar na viatura policial, proferindo a expressão “Filhos da puta”, por todos mencionada e as demais expressões ofensivas proferidas posteriormente que lhe vêm imputadas, referenciadas pelo agente AA e pelo agente DD, expressões estas que parcialmente foram mencionadas pelas demais testemunhas, que não souberam reproduzir integralmente tudo o quanto a arguida referiu naquelas circunstâncias.
No que concerne à interação da arguida com o agente AA no momento em que o mesmo imobilizou a viatura policial, os factos que se sucederam foram corroborados integralmente por este e pelo agente DD que mencionou, aliás de forma espontânea que a arguida, à aproximação do colega ainda afirmou “Vais-me prender, metes-me nojo” e que viu a mesma fazer um movimento com o pé, ao que se seguiu a atuação do colega, colocando-a no chão.
Da análise crítica das declarações prestadas pelo agente AA retira-se que o mesmo se expressou com seriedade, de forma firme, segura e por esses motivos persuasiva, sendo que não revelou pretender empolar os acontecimentos (notando-se até que desvalorizou o toque que ainda chegou a percecionar do pé da arguida na sua perna, afirmando que esta não o atingiu, quando se retira do seu depoimento que o fez mas de forma leve).
Do mesmo modo, o agente DD expressou-se de forma espontânea, séria, convicta e por esses motivos persuasiva, descrevendo os factos de forma rigorosa, referindo apenas os de que tinha memória.
Assim, ponderados crítica e ponderadamente tais depoimentos à luz das regras da experiência e da normalidade, entende-se que os mesmos se revelaram críveis e convincentes, dado que foram prestados de uma forma séria, firme e coesa, considerando-se que falaram com verdade nas declarações que prestaram.
E das declarações de tais agentes decorre claramente que a arguida, depois de se dirigir aos agentes que transportavam o seu padrasto na viatura policial com expressões insultuosas e ao deparar-se com uma inesperada reação do agente AA, que se dirigiu a ela, visivelmente perturbado com as expressões que tinha acabado de ouvir, encontrando-se devidamente uniformizado, não cessou com o seu comportamento, antes o incrementou, agora dirigindo-se diretamente a este agente com expressões diretamente ofensivas da sua honra e consideração (tais como metes nojo, filho da puta”).
Nestas circunstâncias, é manifesto que a arguida estava perfeitamente ciente da pessoa a quem se dirigia e que o mesmo se encontrava a exercer as suas funções de agente das forças da autoridade e pretendeu ofendê-lo publicamente, sabendo que se encontravam mais pessoas a assistir a estes acontecimentos.
Neste contexto a tentativa de agressão, descrita pelo AA e referenciada pelo agente DD que vê a arguida fazer um movimento com o pé na direção daquele agente é inteiramente plausível e credível, não sendo minimamente congruente com uma mera tentativa de obstar à sua detenção. Com efeito, caso a arguida pretendesse obstar a que o agente AA a detivesse, não seria através de um movimento com o pé que o faria, não sendo ainda tal movimento minimamente congruente com um desequilíbrio, na medida em que a ação do agente AA foi no sentido de a manietar para a algemar, sendo que, foi apenas porque conseguiu evitar a ação da arguida, desviando-se, que teve oportunidade de aproveitar o desequilíbrio provocado pela sua própria ação para a colocar no solo.
A respeito destes factos, o Tribunal não pode valorizar os depoimentos das testemunhas CC, que negou ter observado esses factos (não percebendo mais nada depois do agente AA ter dito “estás detida”), EE, que pautou o seu discurso pela falta de objetividade, fazendo menção a acontecimentos que, manifestamente, não ocorreram (designadamente dizendo que a arguida tinha sido atropelada pelo veículo policial, o que foi negado até pela própria) e GG que demonstrou falta de memória quanto a estes concretos factos, referindo que os observou já quando a arguida estava sentada no chão, não se recordando de que forma foi algemada, mas considerando que os agentes policiais que interagiram com a arguida não foram muito agressivos.
Por seu turno, a arguida neste particular, refere que o agente AA estava munido de um bastão extensível, com o que a ameaçou, o que não foi atestado ou afirmado por nenhuma testemunha e sendo, naquelas circunstâncias altamente inverosímil e, por esses motivos, de afastar.
Foi muito discutida em audiência de discussão e julgamento a postura do agente AA, por ter valorizado a atuação da arguida que é ainda muito jovem e estaria perturbada pela detenção do seu progenitor, do que o agente tinha conhecimento.
No entanto, a circunstância do agente AA ter conhecimento prévio de que a arguida era filha do cidadão que estava a ser transportado (o que é negado pelo mesmo, sendo que o agente não teve intervenção direta na sua detenção, conforme resultou dos depoimentos prestados), mesmo a ser verdadeira não coloca minimamente em causa a legitimidade do seu procedimento. Com efeito, não resultou da prova produzida que o agente AA tenha tido qualquer intervenção ou interação anterior com o progenitor da arguida ou com a mesma, pelo que a arguida não tinha quaisquer motivos para atentar contra a honra e consideração deste agente. Acresce que, segundo decorre das declarações prestadas pelas testemunhas e mesmo pela própria, a arguida foi aconselhada a regressar à sua residência, pelos agentes, de forma cordata (ainda antes do transporte do seu padrasto) sendo que o seu próprio progenitor a tentou desmotivar de prosseguir com aquele comportamento, instando-a a regressar ao domicilio, conduta que a arguida optou por não adotar, mantendo o mesmo comportamento que direcionou ao agente AA e no qual persistiu mesmo no interior da esquadra policial.
De resto, no que concerne à atuação da arguida no interior da esquadra, o agente FF não teve dúvidas em afirmar que a mesma era claramente direcionada ao agente AA e que a arguida só se acalmou depois de se ter dirigido a ela, sendo que o seu pai se encontrava calmo.
Assim, todos os aludidos meios de prova, conjugados, permitiram ao Tribunal adquirir a convicção de que, ao contrário do que a arguida pretendeu fazer crer, toda a sua conduta é que se mostrou inteiramente desajustada às circunstâncias, tendo tido oportunidade de cessar o seu comportamento em vários momentos, o que não fez, optando por confrontar e atingir, publicamente, a honra e consideração do agente AA, sem qualquer motivo válido que o justificasse.
A arguida sabia da qualidade de agente policial do ofendido que se encontrava devidamente uniformizado e, por conseguinte, não poderia desconhecer a gravidade e a natureza ilícita das condutas que adotou.
Por conseguinte, a convicção acerca da atitude interior da arguida, atentas as circunstâncias do caso, foi aferida com recurso aos dados da experiência comum e à lógica, decorrendo dos mesmos que a arguida não poderia desconhecer que não lhe era permitido atuar da forma como atuou, dirigindo-se a um agente da autoridade, no exercício das suas funções.
No que tange às condições pessoais e socioeconómicas da arguida, a convicção do Tribunal estribou-se nas declarações pela mesma prestadas em audiência de discussão e julgamento nas quais fez fé.
No que respeita aos antecedentes criminais da arguida, esteou-se o Tribunal no teor do seu Certificado de Registo Criminal.
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No que tange à factualidade não provada, cumpre referir que não se produziu em audiência de julgamento qualquer prova que permitisse dar como provados outros factos para além dos descritos nessa qualidade.
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IIIº 1. A recorrente dirige críticas à apreciação da prova pelo tribunal recorrido, fala de incongruências entre os depoimentos dos agentes policiais e alega que o agente AA depôs com base em suposições.
Não cumpre as exigências do art.412, nº3, do CPP, já que não especifica os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados.
Diz que o agente AA depôs com base em suposições por o mesmo ter dito que ela inicialmente proferiu expressões no plural não permitindo isso compreender que ele se tenha considerado visado.
Contudo, sendo ele um dos elementos que integravam força policial a quem ela dirigiu as expressões “NÃO VALEM NADA, POLÍCIAS DE MERDA, FILHOS DA PUTA, METEM-ME NOJO!”, não tinha ele razões para duvidar que tais expressões também lhe eram dirigidas.
Quanto à expressão proferida na esquadra, “FILHO DA PUTA, NOJENTO”, tendo sido o agente AA quem a algemou e conduziu à esquadra, encontrando-se ele nesse momento nesse local, a conclusão de que a expressão proferida se dirigia a ele é lógica e conforme as regras de experiência comum.
Os agentes CC e DD que também integravam a força policial, confirmaram o estado de espírito da arguida, motivado pelo facto de a pessoa que trata por pai ter sido detida, mas confirmaram também que ela proferiu as expressões consideradas como provadas, dirigidas ao carro policial onde se encontravam e que era conduzido pelo agente AA.
As expressões usadas não deixam dúvidas sobre o caráter injurioso das mesmas, como considerado provado.
Quanto ao pontapé dirigido ao agente AA com intenção de o atingir na zona da coxa esquerda, além do agente AA confirmando esse facto, o mesmo foi referido pela testemunha DD que disse ter visto a arguida fazer um movimento com o pé, tentando atingi-lo.
O agente CC referiu não ter visto este gesto, mas esclarecendo ele que ficou junto do detido que transportavam no carro, é compreensível que não se apercebesse de tudo o que se passava com o agente AA que saiu da viatura.
Assim, a matéria de facto provada corresponde ao sentido da prova produzida em audiência, com respeito pelo “princípio da livre apreciação da prova”, segundo o qual "a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente" (art. 127, CPP).
A recorrente tenta fazer vingar a sua visão pessoal sobre a prova, o que não é suficiente para alterar o decidido, exigindo-se que as provas indicadas imponham decisão diversa (art.412, nº3, al.b, CPP), o que, manifestamente, não é o caso.
Invoca violação do princípio in dubio pro reo.
Contudo, permitindo a prova produzida em audiência formar uma convicção segura no sentido em que os factos foram considerados provados, não existindo em relação a eles qualquer dúvida, é manifesto que não há motivo para aplicação desse princípio.
2. Alega que foi acusada de dois crimes de injúria agravada, por cada um dos agentes policiais que assumiu a qualidade de ofendido e que em relação a um deles houve desistência.
Ela foi condenada, porém, apenas pelo crime de que foi vítima o agente AA, que apresentou queixa e dela não desistiu, sendo a referência na sentença a continuidade da ação da arguida feita por forma a abranger a conduta na via pública e na esquadra, de que o mesmo agente foi ofendido.
Em causa, ao contrário do alegado, não está uma expressão genérica ou plural “filhos da puta” cujo destinatário seja duvidoso, mas sim as expressões ditas na via pública “NÃO VALEM NADA, POLÍCIAS DE MERDA, FILHOS DA PUTA, METEM-ME NOJO!” dirigidas à força policial integrada pelo agente AA e a ele “VAIS PRENDER-ME? METES NOJO FILHO DA PUTA.”, depois na esquadra dirigida a ele “FILHO DA PUTA, NOJENTO”.
“Polícias de merda, metes nojo, nojento” são, objetivamente, expressões que atingem a honra e consideração devidas a um agente da PSP, o que aliado à voluntariedade da arguida, preenche todos os elementos do crime de injúria agravada por que foi condenada.
Em causa não está uma mera verbalização de linguagem grosseira, obscena, ordinária, ou desabafo, face a intervenção policial em relação a pessoa próxima da arguida.
A arguida podia sentir-se incomodada com a detenção da pessoa que tratava como pai, mas isso não lhe permitia atingir a honra e consideração devida a cada um dos agentes que em serviço intervieram nessa ação.
Exige-se às forças policiais que sejam rigorosas e competentes no cumprimento das suas missões, muitas vezes difíceis, por forma a serem merecedoras de respeito e credibilidade pela comunidade, o que também passa por se assegurar adequada proteção ao direito à honra e consideração de cada um dos seus elementos, não sendo por isso admissível uma postura de desvalorização de comportamentos como o da arguida.
Tinha 21 anos à data dos factos e podia nunca ter sido confrontada com situação do género, mas era-lhe exigível ter consciência do respeito devido pela honra e consideração de cada pessoa, em particular quando investida em poderes de autoridade pública.
Justifica-se, pois, a censura penal da sua conduta.
Ao desferir um pontapé em direção ao corpo do agente AA, não o atingindo devido a ação dele, a arguida praticou o crime de ofensa à integridade física qualificada, na forma tentada por que foi condenada.
A arguida sabia que o ofendido AA integrado em patrulha policial executava missão de autoridade pública pelo que o facto de se ter decidido investir contra a integridade física do mesmo é merecedora de especial censura, daí a justificação para a qualificação do crime.
Não é invocável o direito à resistência previsto no art.21, da CRP, pois a ilicitude da sua conduta justificou a intervenção da autoridade policial.
Em conclusão, o recurso não merece provimento.
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IVº DECISÃO:
Pelo exposto, os juízes do Tribunal da Relação de Lisboa, após conferência, negando provimento ao recurso da arguida, BB, acordam em confirmar a sentença recorrida.
Condena-se a recorrente em 3Ucs de taxa de justiça.

Lisboa, 26 de outubro de 2021
Vieira Lamim
Artur Vargues