Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
3570/18.3T8FNC.L1-7
Relator: HIGINA CASTELO
Descritores: INTERDIÇÃO
PRESSUPOSTOS
ALTERAÇÃO DA LEI
MAIOR ACOMPANHADO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/21/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I - Com as alterações introduzidas no sistema pela Lei 49/2018, os conteúdos prédefinidos dos institutos da interdição e da inabilitação, assentes na incapacidade de exercício do requerido, deram lugar a uma figura maleável (maior acompanhado) com conteúdo a preencher casuisticamente pelo juiz em função da real situação, capacidades e possibilidades do concreto requerido.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os juízes no Tribunal da Relação de Lisboa:

I. Relatório
O Ministério Público, notificado da sentença proferida em 28/09/2019, nos autos identificados à margem, que decretou medida de acompanhamento em benefício de «AA», inibindo-o de exercer direitos pessoais, e com ela não se conformando, interpôs o presente recurso.
O recorrente termina as suas alegações de recurso, concluindo:
«- O Regime Jurídico de Acompanhamento a Maior Acompanhado, instituído pela Lei 49/2018 de 14de agosto, tem como objetivo, plasmado no nº 1 do artigo 140º do Código Civil, o bem-estar do acompanhado e a sua recuperação, em pleno exercício de todos os seus direitos, 
- Constituindo a restrição de tais direitos um regime excecional, cuja imposição, por sentença, deverá justificar-se mediante cada situação concreta.
- Por isso, o nº 1 do artigo 145º do Código Civil limita o acompanhamento ao estritamente necessário e o nº 1 do artigo 147º do mesmo Diploma Legal, estatui, como princípio geral, a liberdade no exercício dos direitos pessoais dos acompanhados, tais como os de casar, de estabelecerem relações de união de facto, de procriarem, perfilharem ou de adotarem, o de cuidarem e educarem os filhos, o de escolherem profissão, deslocarem-se no país ou estrangeiro, fixarem residência ou domicílio, de testar e de estabelecerem relações com quem entenderem. 
- Os direitos fundamentais pessoais estão constitucionalmente protegidos na Parte I, Título II da Constituição da República Portuguesa.
- Os direitos pessoais não especificados são garantidos pelo artigo 26º desse Diploma Legal Fundamental, 
- Entre estes, o de aceitar liberalidades a seu favor, direito que é retirado, de todo, ao requerido, sendo que, para que tal restrição fosse aplicada em seu benefício, bastava ser inibido de aceitar liberalidades com encargos.
- O direito de os Maiores Acompanhados constituírem família e de contraírem casamento, em condições de plena igualdade também se encontra constitucionalmente protegido, através do disposto nos artigos 67º e 36º nº 1 da Constituição da República Portuguesa.
- A liberdade de deslocação e de escolha de domicílio, a que o nº 2 do artigo 147º do Código Civil também faz alusão, encontra-se protegida, expressamente, no artigo 44º da Constituição da República Portuguesa, que, garante a “todos os cidadãos”, “o direito de se deslocarem e fixarem livremente em qualquer parte”.  - O direito à integridade física e moral encontra-se previsto no artigo 25º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa e o direito de o portador de doença mental poder decidir sobre a prática, no seu corpo, de atos de saúde decorre do artigo 5º da Lei de Saúde Mental.
- Não obstante, a sentença que determinou a aplicação de medida de acompanhamento ao requerido, impede-o de exercer tais direitos pessoais. Ou quaisquer outros.
- E tais decisões, restritivas dos direitos pessoais fundamentais do requerido, foram adotadas sem se alicerçarem em qualquer facto que o fundamente, ou razão de direito, que se encontre descrito na sentença, ou tenha sido alegado na petição inicial que deu origem ao presente processo.
- Pois que, dos factos dados tidos como relevantes “para a decisão a proferir”, não resulta, e nem se retira essa dedução da sentença, que o requerido se encontre incapaz de compreender e de exercer os direitos e deveres inerentes ao casamento, a uma relação de união de facto, ou, ainda, que não tenha maturidade para reproduzir ou assumir responsabilidades parentais, escolher a sua profissão ou residência ou para decidir sobre a prática, no seu corpo, dos atos de saúde descritos na Lei de Saúde Mental ou que sofra de alguma incapacidade que o impeça de beneficiar de liberalidades cuja aceitação não o prejudique.
- Desconhece-se, assim, que factos, ou razões de direito, determinaram a perda plena dos direitos pessoais do requerido.
- Tal como se desconhece em que elementos probatórios se sustentaram os factos considerados como provados na sentença.
- Nomeadamente, o facto descrito, na “Fundamentação de Facto” da sentença, sob o número 8 e que relata que o requerido “não tem orientação no tempo, não conseguindo identificar a sucessão dos dias, meses e anos”.
- Ou o juízo conclusivo de que “a sua condição clínica determina a completa incapacidade do Requerido, afetando-o em todas as áreas da sua vida corrente, deixando-o totalmente dependente de uma supervisão e cuidados permanentes na sua vida, a cargo de terceiros”, que se encontra descrito como quarto facto comprovado, quando da leitura da própria sentença, nomeadamente, factos 7, 8, 9 e da ata de audição de beneficiário, resulta que este tem autonomia para desempenhar atos básicos diários, inclusivamente, “conhece o dinheiro e faz compras” (cfr. ata de audição de beneficiário)
- Se o mero facto de o requerido padecer da doença que determinou a instauração da petição inicial fosse suficiente para o impedir de exercer direitos pessoais, a sua perda estaria consagrada na lei, como efeito automático da aplicação de uma medida de acompanhamento, em vez de constituir uma exceção à regra geral do livre exercício dos direitos pessoais, estipulada no nº 1 do artigo 147º do Código Civil.
- Com efeito, a medida de acompanhamento de maior, destina-se a proteger e beneficiar o seu destinatário, pelo que a perda de direitos fundamentais, legal e constitucionalmente consagrados, só deve acontecer, em casos excecionais e devidamente justificados.
- A sentença, contudo, ao restringir os direitos pessoais do requerido, padece de total fundamentação de facto e de direito,
- Incumprindo, por isso, o dever de fundamentação imposto pelos artigos 205º nº 1 da Constituição da República Portuguesa e 154º nº 1 do Código de Processo Civil, violando, ainda, o disposto nos artigos 140º nº1, 145º nº 1, 147º nº 1 do Código Civil e os artigos 26º, 36º nº 1, 67º, 25º n.º 1, 44º da Constituição da República Portuguesa.
Pelo exposto, deve ser dado provimento ao presente recurso, declarando-se a nulidade da sentença, por falta de fundamentação, nos termos do disposto no artigo 615º nº 1 alínea b) do Código de Processo Civil e determinando-se a sua substituição por outra que não restrinja os direitos pessoais da requerido.
Assim se fazendo Justiça!»
Não houve contra-alegações.
Foram colhidos os vistos e nada obsta ao conhecimento do mérito.
Objeto do recurso
Sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso, são as conclusões das alegações de recurso que delimitam o âmbito da apelação (arts. 635, 637, n.º 2, e 639, n.ºs 1 e 2, do CPC).
Tendo em conta o teor daquelas, colocam-se as questões de saber se a fundamentação da sentença é insuficiente a ponto de gerar a sua nulidade, se a decisão de facto deve ser alterada e se a incapacidade do beneficiário é de tal sorte que não deva exercer direitos pessoais.
II. Fundamentação de facto
Os factos provados são os adquiridos em 1.ª instância, com a alteração do 4., justificada em III.B.:
1. O Requerido nasceu a … de 1990, é solteiro e natural da freguesia de …. 
2. É filho de «BB» e de «CC». 
3. O Requerido é detentor de défice cognitivo provavelmente congénito e, desde os 18 anos de idade, sofre de sequelas de traumatismo crânio-encefálico, com um compromisso nos mecanismos de controlo da impulsividade e agressividade.
4. A condição clínica do requerido dificulta-lhe a acertada tomada de decisões patrimoniais e não patrimoniais importantes, não correntes (incluindo, o controlo dos medicamentos a tomar), bem como o são relacionamento com terceiros (por excesso de agressividade e impulsividade), deixando-o dependente de uma supervisão e cuidados a cargo de terceiros, embora tenha autonomia para se deslocar, alimentar, vestir, alguns atos de higiene, e fazer pequenas compras ou recados.
5. O Requerido tem discurso coerente, mas pouco percetível por dificuldade na articulação das palavras.
6. O Requerido tem dificuldade na coordenação motora dos membros inferiores e tem falta de equilíbrio.
7. O Requerido lê e escreve de forma muito básica, tendo completado apenas o 2.º ano de escolaridade.
8. Orienta-se no espaço, mas não tem orientação no tempo, não conseguindo identificar a sucessão dos dias, meses e anos.
9. É autónomo apenas na realização das tarefas mais simples do dia a dia, como seja as relacionadas com a sua higiene e alimentação, mas carece da ajuda da mãe para tomar banho dada  a falta de  equilíbrio.
10. O Requerido vive em casa de seus pais, sendo a mãe que dele cuida permanentemente.      
11. O Requerido necessita de ajuda de terceiros para o acompanhamento médico e para o cumprimento da medicação prescrita.
12. Conhece o dinheiro.
13. O Requerido recebe do Estado uma pensão social mensal de € 264,32.
14. Não possui testamento vital e/ou procuração para cuidados de saúde.
III. Apreciação do mérito do recurso
A. Da nulidade imputada à sentença
O recorrente insurge-se contra o que entende ser a falta de fundamentação dos factos 4 e 8, na parte a seguir a «mas», pugnando pela nulidade da sentença.
As afirmações em causa nos aludidos pontos da factualidade assente são as seguintes:
«4. Esta sua condição clínica determina a completa incapacidade do Requerido, afetando-o em todas as áreas da sua vida corrente, deixando-o totalmente dependente de uma supervisão e cuidados permanentes na sua vida, a cargo de terceiros.»; e
«8. Orienta-se no espaço, mas não tem orientação no tempo, não conseguindo identificar a sucessão dos dias, meses e anos.».
Estes factos correspondem aos que o ora recorrente alegou nos artigos 4.º e 13.º da sua petição inicial:
«4.º Tal doença determina a completa incapacidade do mesmo para governar a sua pessoa e administrar o seu património — Docs. 2 a 4 citados.»;
«13.º Não tem noção do tempo, não conseguindo identificar a sucessão dos dias, anos e meses.»
Com a petição, o Ministério Público, ora recorrente, juntou vários documentos para justificar os aludidos factos, entre eles, uma declaração do médico de família, um relatório do exame às faculdades mentais do acompanhado, feito no âmbito de um processo crime, em 2014, e um relatório de 2013 de perícia psiquiátrica realizada em 2012.
A declaração é de maio de 2018 e dela consta que o visado «não é capaz de reger a sua pessoa e os seus bens, após traumatismo crânio-encefálico desde os 18 anos».
Do segundo documento consta, entre o mais, que o examinado «não sabe escrever, sofreu um acidente de viação com traumatismo crânio-encefálico, resultando sequelas cerebrais graves e condicionantes do seu comportamento - região frontal.
Apresenta-se desinibido na entrevista, inquieto, disártrico, com pensamento muito pobre, sem capacidade de abstração. Sem crítica e capacidade de avaliar o alcance dos seus atos.
Segundo a mãe (…).
Estrutura familiar disfuncional, incapaz de conter estes comportamentos e de o fazer cumprir a medicação instituída.
Conclusão;
1. Pelo acima exposto, concluímos que este sofre de retardo mental moderado a severo.
2. Incapaz de reger a sua pessoa e bens,
3. Inimputável.»
Do terceiro documento consta, entre o mais:
«Chegou a frequentar a escola mas sem rendimento, fugia constantemente, não sabe ler nem escrever, tem o 2° ano de escolaridade.
Tem 7 irmãos e vive com os pais em …. Não sabe qual o propósito deste exame/perícia e afirma: "isto é uma armadilha que me estão a fazer..." sic.
Refere agressão física grave alegadamente por parte de 7 indivíduos em que resultou politraumatismos graves com 9 meses de internamento hospitalar, 7 dos quais em coma e 4 paragens cardíacas, segundo o examinando e a mãe.
O examinando trabalhava na construção civil e depois da alegada agressão nunca mais conseguiu trabalhar, tendo ficado com sequelas graves.
Esta agressão terá acontecido numa saída com amigos, no ….
Ressonância magnética cerebral de 19/12/2008, relata "atrofia córtico-subcortical generalizada. Pequenas contusões cerebrais na região frontoparietal direita, no bordelete do corpo caloso e no pedúnculo cerebral esquerdo."
(…)
Orientado no espaço mas desorientado no tempo: não sabe dia da semana ou do mês, refere estar em Agosto de 2012.
Discurso coerente mas pouco percetível por dificuldades na articulação das palavras.
Aparentemente sem atividade alucinatória. Alguma desconfiança: "isto é uma armadilha que me estão a fazer..." sic.
Não parecia estar sob consumos de álcool ou outros tóxicos e nega quaisquer consumos atualmente, exceto tabaco.
Reformado por invalidez.
Nunca foi seguido em consultas de psiquiatria, nunca tomou psicofármacos e nunca esteve internado na casa de saúde São João de Deus antes da alegada agressão em que ficou politraumatizado, nomeadamente com contusões cerebrais graves.
A versão da mãe coincide com a versão do examinando, não foram encontradas contradições. Também não acredita num possível acidente de mota e acredita que o filho foi agredido: " como é que o meu filho estava todo rebentado e a mota normal?" sic
(…) Na minha opinião, trata-se de um doente para manter acompanhamento e medicação psiquiátrica para sempre no sentido de controlar agressividade e impulsividade
Na sentença, o tribunal a quo fundamentou os factos que considerou provados em bloco (com exceção dos 13 e 14), no «conjunto geral da prova  documental junta aos autos  (assento de nascimento do Requerido,  declaração médica do Serviço de Saúde da RAM; Relatório  do Exame às Faculdades Mentais do Serviço de Psiquiatria do Serviço de Saúde da RAM», e na «audição pessoal e direta do beneficiário e das declarações prestadas pela mãe do Requerido, que se encontra documentada  em  auto,  através da qual o tribunal se  apercebeu das  limitações  e necessidades do Requerido».
A fundamentação é ligeira, mas existe.
Nessa medida, a sentença não enferma da nulidade invocada pelo recorrente (art. 615, n.º 1, al. b), do CPC).
B. Da alteração da matéria de facto
Nas suas alegações, o Ministério Público pede, ainda que de forma indireta, a eliminação ou alteração do facto 4, invocando que dos «factos 7, 8 e 9 e da ata de audição de beneficiário, resulta que este tem autonomia para desempenhar atos básicos diários, inclusivamente, “conhece o dinheiro e faz compras”».
O recorrente pode impugnar a decisão sobre a matéria de facto, conquanto observe as regras contidas no art. 640 do CPC. Segundo elas, e sob pena de rejeição do respetivo recurso, o recorrente deve especificar: a) os pontos da matéria de facto de que discorda;  b) os meios probatórios que impõem decisão diversa da recorrida; e, c) a decisão que, em seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas (art. 640, n.º 1, do CPC).
No que respeita à indicação dos meios probatórios, quando os que sejam invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes (art. 640, n.º 2, do CPC).
Das aludidas especificações, os pontos da matéria de facto de que o recorrente discorda têm de constar necessariamente das conclusões, dado que estas servem para delimitar o objeto do recurso, cfr. arts. 639 e 635, n.º 4, do CPC (assim tem sido interpretado, v.g., Ac. STJ de 21/04/2016, proc. 449/10.0TTVFR.P2.S1, relatado por Ana Luísa Geraldes); as demais especificações podem ficar apenas no corpo das alegações.
O recorrente cumpriu com suficiência os indicados ónus.
O facto 4 tinha a seguinte redação:
«4. Esta sua condição clínica determina a completa incapacidade do Requerido, afetando-o em todas as áreas da sua vida corrente, deixando-o totalmente dependente de uma supervisão e cuidados permanentes na sua vida, a cargo de terceiros
Para o reapreciar, recorremos aos documentos acima aludidos e extratados em III.A. – declaração do médico de família de 2018, relatório de exame às faculdades mentais do acompanhado, feito no âmbito de um processo crime, em 2014, e relatório de 2013 de perícia psiquiátrica realizada em 2012. Os primeiros dois afirmam apenas as conclusões do médico no sentido de o visado não ser capaz de reger a sua pessoa e os seus bens. O último, afirmando a inimputabilidade, contém mais indicações, designadamente a de que o acompanhado tem discurso coerente, mas pouco percetível por dificuldades na articulação das palavras, que é orientado no espaço, que não consome álcool ou outros produtos tóxicos, com exceção de tabaco, que nunca tomou psicofármacos. Por outro lado, tomamos também em consideração os factos 7, 8 e 9, que afirmam que o visado lê e escreve, ainda que de forma muito básica, tendo completado apenas o 2º. ano de escolaridade, que se orienta no espaço, e que é autónomo na realização das tarefas mais simples do dia a dia, como seja as relacionadas com a sua higiene e alimentação, embora careça da ajuda da mãe para tomar  banho dada  a falta de  equilíbrio.
Com estes dados não se pode afirmar tão contundentemente como se faz no facto 4 da sentença que a condição clínica do acompanhado «determina a completa incapacidade do Requerido, afetando-o em todas as áreas da sua vida corrente, deixando-o totalmente dependente de uma supervisão e cuidados permanentes na sua vida, a cargo de terceiros».
O que se encontra provado é que a condição clínica do requerido dificulta-lhe a acertada tomada de decisões patrimoniais e não patrimoniais importantes, não correntes (incluindo, o controlo dos medicamentos a tomar), bem como o são relacionamento com terceiros (por excesso de agressividade e impulsividade), deixando-o dependente de uma supervisão e cuidados a cargo de terceiros, embora tenha autonomia para se deslocar, alimentar, vestir, alguns atos de higiene, e fazer pequenas compras ou recados.
Nestes termos, e ao abrigo do disposto no art. 662, n.º 1, do CPC (A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa), se altera o facto 4.
C. Da aplicação do Direito
No presente recurso discutem-se os pressupostos de uma medida de acompanhamento aplicada ao abrigo do disposto nos artigos 138 e ss. do CC, na redação introduzida pela Lei 49/2018, de 14 de agosto, que criou o regime jurídico do maior acompanhado, eliminando os institutos da interdição e da inabilitação, até então previstos e regulados naquele Código (v. art. 1.º da Lei 49/2018, relativo ao objeto do diploma).
A Lei 49/2018 alterou não apenas o Código Civil e o Código de Processo Civil, mas dezassete outros diplomas que se reportavam a pessoas na situação de interditas ou inabilitadas, institutos que aboliu.
As alterações produzidas pela Lei 49/2018 entraram em vigor em fevereiro de 2019 (180 após a publicação – art. 25) e tiveram imediata aplicação aos processos de interdição e de inabilitação pendentes aquando da sua entrada em vigor, devendo os juízes utilizar os poderes de gestão processual e de adequação formal para proceder às adaptações necessárias nos processos pendentes (art. 26, n.ºs 1 e 2).
Das normas introduzidas no sistema pela Lei 49/2018 resultou uma alteração de paradigma: a rigidez do anterior sistema, assente em duas figuras (interdito e inabilitado) que limitavam a capacidade de exercício do requerido de formas estanques e pré-definidas na lei, deu lugar a uma figura maleável (maior acompanhado) com conteúdo a preencher casuisticamente pelo juiz em função da real situação, capacidades e possibilidades do concreto requerido; e onde antes a regra era a da incapacidade de exercício, agora é a da capacidade.
«De acordo com Pinto Monteiro, a pergunta agora já não é “aquela pessoa possui capacidade mental para exercer a sua capacidade jurídica?”, mas “quais os tipos de apoio necessários àquela pessoa para que ela exerça a sua capacidade jurídica?”. Parte-se de uma ideia de capacidade, para dotar a pessoa dos instrumentos necessários para a sua tutela nos casos pontuais — e sempre tendo em conta as particularidades de cada atuação ou domínio de atuação — em que dela careça. A solução já não é generalizante, procurando, pelo contrário, preservar até ao limite a possibilidade de atuação autónoma do sujeito. No fundo, pretende-se proteger sem incapacitar» (Mafalda Miranda Barbosa, “Maiores Acompanhados: da Incapacidade à Capacidade?”, ROA, Ano 78, jan./jun. 2018, p. 236, a obra que cita de A. Pinto Monteiro é O Código Civil Português entre o elogio do passado e um olhar sobre o futuro).
A alteração de paradigma está presente desde logo na designação, «medida de acompanhamento», com tónica na ajuda ao acompanhado, em vez das designações dos anteriores institutos conotados com a falta de capacidade. Bem como está presente nas sucessivas alusões ao «benefício para o acompanhado» que a medida de acompanhamento constitui, por contraposição à anterior sujeição. Lê-se no art. 138 do CC, na redação resultante da Lei 49/2018 (como todos os indicados), epigrafado «acompanhamento» que «o maior impossibilitado, por razões de saúde, deficiência, ou pelo seu comportamento, de exercer, plena, pessoal e conscientemente, os seus direitos ou de, nos mesmos termos, cumprir os seus deveres, beneficia das medidas de acompanhamento previstas neste Código».
Vejamos rapidamente algumas outras normas que evidenciam os que se vem de dizer, sublinhando as partes mais relevantes.
Artigo 140 Objetivo e supletividade
1 - O acompanhamento do maior visa assegurar o seu bem-estar, a sua recuperação, o pleno exercício de todos os seus direitos e o cumprimento dos seus deveres, salvo as exceções legais ou determinadas por sentença.
2 - A medida não tem lugar sempre que o seu objetivo se mostre garantido através dos deveres gerais de cooperação e de assistência que no caso caibam.
Artigo 141 Legitimidade
1 - O acompanhamento é requerido pelo próprio ou, mediante autorização deste, pelo cônjuge, pelo unido de facto, por qualquer parente sucessível ou, independentemente de autorização, pelo Ministério Público.
(…)
Artigo 143 Acompanhante
1 - O acompanhante, maior e no pleno exercício dos seus direitos, é escolhido pelo acompanhado ou pelo seu representante legal, sendo designado judicialmente.
2 - Na falta de escolha, o acompanhamento é deferido, no respetivo processo, à pessoa cuja designação melhor salvaguarde o interesse imperioso do beneficiário,…
Artigo 145 Âmbito e conteúdo do acompanhamento
1 - O acompanhamento limita-se ao necessário.
2 - Em função de cada caso e independentemente do que haja sido pedido, o tribunal pode cometer ao acompanhante algum ou alguns dos regimes seguintes: a) Exercício das responsabilidades parentais ou dos meios de as suprir, conforme as circunstâncias; b) Representação geral ou representação especial com indicação expressa, neste caso, das categorias de atos para que seja necessária; c) Administração total ou parcial de bens; d) Autorização prévia para a prática de determinados atos ou categorias de atos; e) Intervenções de outro tipo, devidamente explicitadas.
(…)
Artigo 146 Cuidado e diligência
1 - No exercício da sua função, o acompanhante privilegia o bem-estar e a recuperação do acompanhado, com a diligência requerida a um bom pai de família, na concreta situação considerada.

Artigo 147 Direitos pessoais e negócios da vida corrente
1 - O exercício pelo acompanhado de direitos pessoais e a celebração de negócios da vida corrente são livres, salvo disposição da lei ou decisão judicial em contrário.
2 - São pessoais, entre outros, os direitos de casar ou de constituir situações de união, de procriar, de perfilhar ou de adotar, de cuidar e de educar os filhos ou os adotados, de escolher profissão, de se deslocar no país ou no estrangeiro, de fixar domicílio e residência, de estabelecer relações com quem entender e de testar.
Artigo 155 Revisão periódica
O tribunal revê as medidas de acompanhamento em vigor de acordo com a periodicidade que constar da sentença e, no mínimo, de cinco em cinco anos.
Subsidiariedade (art. 140 do CC), respeito pela autonomia da pessoa (arts. 141, 143 e 147), necessidade (arts. 145 e 155), bem-estar e recuperação do sujeito (arts. 140 e 146)  são as traves mestras que orientam o novo regime e as medidas a aplicar a cada caso.
A alteração é de tal modo importante e forte que, não só a nova legislação se aplica aos processos pendentes (já referidos n.ºs 1 e 2 do art. 26 da Lei 49/2018), como também às interdições e inabilitações anteriormente decretadas. Com efeito, nos termos dos n.ºs 4 e 5 do art. 26, às interdições decretadas antes da sua vigência aplica-se o regime do maior acompanhado, sendo atribuídos ao acompanhante poderes gerais de representação, mas podendo o juiz autorizar a prática de atos pessoais, direta e livremente, mediante requerimento justificado.
Nos termos do n.º 6 do mesmo artigo e diploma, às inabilitações decretadas antes da sua vigência aplica-se o regime do maior acompanhado, cabendo ao acompanhante autorizar os atos antes submetidos à aprovação do curador.
Os tutores e curadores nomeados antes da entrada em vigor da nova lei passam a acompanhantes (n.º 7 do art. 26); e os acompanhamentos que resultaram de conversão de anteriores interdições e inabilitações nos termos dos n.ºs 4 a 6 são revistos a pedido do próprio, do acompanhante ou do Ministério Público, à luz do regime atual (n.º 8 do mesmo artigo).
No caso sub judice, o processo iniciou-se como interdição e, na sua pendência, entrou em vigor a nova legislação, pelo que, no momento da sentença, foi aplicado o regime do maior acompanhado.
O art. 147 expressa que o exercício pelo acompanhado de direitos pessoais e a celebração de negócios da vida corrente são livres, salvo disposição da lei ou decisão judicial em contrário.
O n.º 2 do mesmo artigo enumera alguns direitos pessoais, a saber: direitos de casar ou de constituir situações de união, de procriar, de perfilhar ou de adotar, de cuidar e de educar os filhos ou os adotados, de escolher profissão, de se deslocar no país ou no estrangeiro, de fixar domicílio e residência, de estabelecer relações com quem entender e de testar.
A demência notória, o que não é o caso, pelo menos ainda, constitui impedimento dirimente absoluto para casar (art. 1601, al. b), do CC); e o indivíduo notoriamente demente não tem capacidade para perfilhar (art. 1850, n.º 1, do CC). Por via destas disposições legais, independentemente do teor da medida de acompanhamento decretada, a capacidade de gozo (cf. Carlos Alberto da Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, Coimbra Editora, 3.ª ed., p. 217) do notoriamente demente está restringida.
Só excecionalmente, com fundamentação relevante, ponderando o supremo interesse do acompanhado, lhe poderá ser coartado pelo tribunal o direito de exercer direitos pessoais. Até porque, para muitos direitos pessoais, nomeadamente para os listados no n.º 2 do art. 147, o seu mau uso ou exercício pelo acompanhado está acautelado por outros mecanismos: para casar, constituir união de facto ou procriar é necessária a convergência de vontade alheia; para adotar é necessário uma decisão de autoridade, que aferirá das condições do adotante para educar e sustentar o adotando; os cuidados aos filhos são sindicáveis através de vários procedimentos.
Nesta sequência, compreende-se o recurso, pois o tribunal a quo incluiu na medida de acompanhamento os seguintes pontos:
«1.7. Consignar que, nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 5.º, n.º 3 da Lei 36/98, de 24/7 (Lei de Saúde Mental), a situação de acompanhamento de maior, declarada pela presente sentença, não faculta o exercício direto de direitos pessoais.
1.8. Consignar que, nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 4.º, n.º 1 do Dec.-Lei n.º 272/2001, de 13/10, o acompanhado não pode aceitar ou rejeitar liberalidades a seu favor.»
Considerando os factos assentes e o enquadramento legal em vigor, não encontramos razões para estas limitações à capacidade do requerido (excetuada a de rejeitar liberalidades e de aceitar liberalidades com encargos), pelo que as revogamos. Mantemos o que consta do ponto 1.6. relativo à capacidade de testar, dadas as limitações do requerido evidenciadas em 3 e 4.
IV. Decisão
Face ao exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar a apelação procedente, revogando o ponto 1.7. do dispositivo da sentença e alterando o 1.8. para a seguinte redação:
1.8. Consignar que, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 4.º, n.º 1, do DL 272/2001, de 13 de outubro, o acompanhado não pode aceitar liberalidades com encargos, nem rejeitar liberalidades a seu favor.
Sem custas.
Lisboa, 21/01/2020

HIGINA CASTELO
JOSÉ CAPACETE
CARLOS OLIVEIRA