Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1383/16.6PFAMD.L1-5
Relator: JOÃO CARROLA
Descritores: INIMPUTABILIDADE
PERIGOSIDADE
ALTERAÇÃO NÃO SUBSTANCIAL DOS FACTOS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/01/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PARCIALMENTE PROVIDO
Sumário: - A declaração de inimputabilidade, fundada no disposto no art. 20° do CP, veio a ocorrer porque o arguido insistiu pela realização de Perícia Psiquiátrica pelo que o arguido sabia que, na hipótese de vir a ser declarado inimputável se seguiria a aferição da sua perigosidade.
- Porém, pela aferição possível dos quesitos formulados pela defesa quando requereu a realização da perícia psiquiátrica e do quesito que o tribunal entendeu fazer aos Srs. peritos quando, em plena audiência de julgamento, determinou a realização daquela perícia, nenhum destes era dirigido expressamente à questão de ser determinada a probabilidade, elevada ou não, de repetição de actos delitivos por parte do arguido em qualquer um dos quadros possíveis de observância ou inobservância de terapêutica, adequada e medicamente estabelecida, por parte do arguido, pelo que a menção factual ao que se mostra referido na factualidade provada, representa uma surpresa para o arguido.
- Não tendo implicado modificação do bem jurídico protegido que constava da acusação, nem determinando que dela adviesse um facto naturalístico diferente do constante da acusação assim como não implicou a perda da “imagem social” do facto primitivo, ou seja, não resultou a perda da sua identidade, não se configura uma alteração substancial dos factos.
- Mas, aos factos constantes da acusação foram aditados esses factos novos que, não deixando de ser relevantes em termos de diferente orientação quanto às opções punitivas dada a irresponsabilidade penal já atingida pela declaração de inimputabilidade, tal aditamento/alteração, porque não enquadrável na alínea f) do n.º 1 do art.º 1º do CPP, só pode consubstanciar, reafirmamos, alteração não substancial dos factos.
- Se o quadro de imputação jurídico criminal não se mostra alterado, mas apenas se modifica a opção da sanção aplicável (entre pena privativa ou medida de segurança) e é precisamente por isso (porque do facto aditado não resulta nem crime diverso e nem a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis) que se considera que estamos face a alteração não substancial dos factos constantes da acusação.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:

I.
No processo 1383/16.6PFAMD do Juízo Local Criminal de Amadora, Comarca de Lisboa Oeste, o arguido P. foi submetido a julgamento no final do qual veio a ser proferida sentença em que o tribunal decidiu: (transcrição)
Julga-se o arguido P. autor de factos que correspondem aos ilícitos típicos, em autoria material, na forma consumada e concurso real, de um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelos artigos 143°, n.º 1, e 145°, n.º 2, ambos do C. Penal, dois crimes de ameaça agravada, p. e p. pelo artigos 153°, n.º 1, e 155°, n.º 1, alínea c), ambos do C. Penal, e dois crimes de injúrias agravadas, p. e p. pelo artigo 181° e 184°, ambos do mesmo Código.
- Declara-se tal arguido inimputável relativamente aos mencionados ilícitos e perigoso;
- Determina-se a aplicação ao arguido da medida de segurança de internamento, em estabelecimento de tratamento psiquiátrico, nos termos dos artigos 20°, 91°, n°s 1 e 2 e 92°, n° 1, todos do C. Penal, com o limite máximo de 4 anos, suspensa na sua execução pelo período de 4 anos, mas sujeita a regime de prova, mediante plano individual de readaptação social, em termos a elaborar pela DGRSP e sob vigilância tutelar desta, nos termos do que dispõem os artigos 98°, 53° e 54°, todos do C. Penal, com inclusão de acompanhamento do arguido em consultas de psiquiatria junto dos competentes Serviços de Psiquiatria do Hospital Prof. Dr. Fernando Fonseca, Amadora, com uma frequência, pelo menos, trimestral, e cumprimento integral do plano de medicação que lhe seja prescrito.” 

Desta decisão condenatória veio o arguido recorrer, fundamentando a sua discordância nas seguintes conclusões:
“O presente recurso fundam-se na discordância em relação à sentença tirada nos autos, douta aliás, que, na sequência de haver julgado o arguido autor dos factos descritos na acusação e, bem assim, ter declarado a sua inimputabilidade relativamente aos mesmos ilícitos, erradamente o declarou perigoso e, por via disso, determinou-lhe a aplicação da medida de segurança de internamento em estabelecimento de tratamento psiquiátrico, nos termos dos artigos 20°, 91°, n°s 1 e 2 e 92°, n° 1, todos do Código Penal, com o limite máximo de 4 anos, medida suspensa na sua execução pelo período de 4 anos, mas sujeita a regime de prova, mediante plano individual de readaptação social, em termos a elaborar pela DGRSP e sob vigilância tutelar desta, nos termos do que dispõem os artigos 98°, 53° e 54°, todos do C. Penal, com inclusão de acompanhamento do arguido em consultas de psiquiatria junto dos competentes Serviços de Psiquiatria do Hospital Prof. Dr. Fernando Fonseca, Amadora, com uma frequência, pelo menos, trimestral, e cumprimento integral do plano de medicação que lhe seja prescrito.
As razões de discordância com a douta decisão sob recurso são, simultaneamente, de facto e de direito e giram em torno do facto dado como assente sob a al. n) do elenco dos provados.
I. Desde logo, salvo o devido respeito, por entender que a sentença recorrida é nula, por falta de fundamentação, quando menos relativamente ao facto dado como assente sob a al. n) dos provados, nos termos do disposto no art° 374°, n.º 2 ex vi art° 379°, n° 1 al. a) do C.P.P.;
II. como é, também, nula, nos termos da al. b) do n.º 1 do art° 379° do mesmo diploma legal, por haver condenado o recorrente por esse mesmo facto, fora dos casos e condições previstas nos art°s 358° e 359° do C.P.P.;
III. existindo contradição insanável da fundamentação, e entre esta e a decisão, justamente em torno do mesmo facto [art° 410°, n.º 2, al. b) do C.P.P.];
I. sendo certo que, em qualquer circunstância, o tribunal valorou erradamente a prova produzida em audiência encontrando-se, por isso mesmo, incorrectamente julgado o facto provado sob a al. n).
I - Da Nulidade da Sentença por Falta de Fundamentação - facto provado na al. n)
a) Para além do mais, o tribunal deu como assente, por provada, a matéria de facto constante na al. n) do respectivo elenco.
b) Não obstante, na motivação não deixa transparecer a indicação de qualquer elemento de prova que suporte essa decisão, com a consequente ausência de exame crítico da mesma neste particular.
c) Salvo o devido respeito, assim é justamente porque a prova desse facto não existe, nem indiciariamente, nunca tendo sido aflorado nos autos.
d) O certo é que, sem prejuízo do que infra se dirá, a referida falta de fundamentação é geradora de nulidade da sentença nos termos do disposto no art° 374°, n° 2 ex vi art° 379°, n° 1 al. a) do C.P.P., que aqui se invoca.
II - Da nulidade da sentença - al. b) do n.º 1 do art° 379° do C.P.P. - facto provado na al. n)
e) Não obstante, sem prejuízo da mesma não resultar de qualquer elemento de prova constante dos autos, a verdade é que a questão da eventual perigosidade do arguido nunca foi equacionada de nenhuma forma nos mesmos;
f) e ao arguido nunca foi feita qualquer comunicação a propósito nos termos e para os efeitos do disposto nos art°s 358° ou 359° do C.P.P.;
g) Razão pela qual, a circunstância de tal factualidade haver sido levada aos factos assentes fora dos casos e condições previstas nos art°s 358° e 359° do C.P.P., é geradora de nulidade da sentença nos termos da al. b) do n° 1 do art° 379° do mesmo diploma legal, o que aqui se argui, também, para os devidos e legais efeitos.
III- Da Contradição Insanável - (art° 410°, n° 2 al. b CPP) - Da Fundamentação, e entre esta e a decisão
h) Resulta do texto da decisão em crise existir contradição insanável na sua fundamentação e desta também com a decisão tomada.
i) Com efeito, é o que resulta de uma análise atenta da matéria provada sob as alíneas m) e n), entre si, da motivação da decisão de facto e, também do cotejo entre umas e outras;
j) Com efeito o facto assente na al. m) reflecte a prova produzida, designadamente a que resulta quer dos documentos juntos a fls. 63 e 64, quer do relatório psiquiátrico relativo ao arguido junto em 08.05.2018;
k) Não obstante, a introdução da matéria dada como assente no facto provado em n) gera a contradição com tudo quanto resulta dos autos e está sobejamente fundamentado.
l) E tal surge justamente por via da decisão de impor ao arguido uma medida de segurança de internamento, justificada por uma pretensa perigosidade que em boa verdade não resulta dos autos de forma nenhuma.
m) As apontadas contradições são o corolário disso mesmo.
IV - Do Erro de Julgamento
- Do facto provado sob a al. n);
- da subsequente declaração do arguido como perigoso; e
- da consequente determinação de aplicação de medida de segurança
n) Sem prejuízo de tudo quanto ficou dito, a verdade é que dos autos não resulta qualquer prova que permita dar como assente, por provado os factos constantes da al. n) do respectivo elenco, razão pela qual o mesmo se encontra erradamente julgado;
o) por via desse erro de julgamento, encontra-se errada também a decisão final de declarar o arguido perigoso e, consequentemente lhe impor a aplicação de medida de segurança de internamento, com o limite de quatro anos, ainda que suspensa na sua execução com sujeição do mesmo a regime de prova;
p) Destarte, em face da absoluta ausência de prova nos autos que permita indiciar sequer a possibilidade do arguido ser perigoso e, por via disso, dever ser-lhe aplicada qualquer medida de segurança de internamento, a sentença em crise deve ser substituída por acórdão que, fazendo uma correcta apreciação da prova produzida e de todos os elementos dos autos, corrija o erro de julgamento da matéria constante daquela al. n), que deve ser retirada por absoluta falta de suporte fáctico, com a óbvia consequência de não declarar o arguido perigoso e, por via disso, aplicar- lhe qualquer medida de segurança, assim corrigindo o erro de julgamento de facto e de direito cometido no aresto em crise;
q) este último bem evidenciado pelo errado pressuposto em que lavra a motivação constante da decisão recorrida que tem como epígrafe “Do efeito da inimputabilidade do arguido na data dos factos” subsequente ao ponto “3. Enquadramento jurídico-penal” e que precede a “5. Decisão”.
r) Tal, é o que resulta de uma correcta apreciação dos elementos dos autos e da melhor interpretação e aplicação dos art°s 20°, 53°, 54°, 91°, n°s 1 e 2 e 92°, n° 1 e 98°, todos do Código Penal e 127° do C.P.P., coisa que o douto Tribunal a quo não fez.
* *
A sentença recorrida violou por erro de interpretação e aplicação o disposto nas disposições legais supra citadas.
* *
Considera incorrectamente julgados
- os factos provados na al. n) do ponto 2.1 da sentença em crise.
Impõem solução diversa
- uma melhor apreciação do conjunto da prova produzida, da qual não resulta de modo nenhum, nem aflorada sequer, qualquer prova daquela matéria, nomeadamente dos elementos de prova genericamente referidos no ponto “2.3 Motivação da Decisão de Facto”.
- A correcta apreciação do conjunto da prova levará necessariamente a expurgar a sentença daquela matéria que é absolutamente estranha aos autos, com as legais consequências, como é de justiça
                                                 ***
Em suma:
- A sentença é nula quando vista por diversos prismas;
- há errada valoração do conjunto da prova produzida e, consequente, erro de julgamento quanto à matéria da al. n) dos factos provados.
- em qualquer circunstância, deve revogar-se a sentença recorrida e substituí-la por acórdão que, fazendo correcta apreciação e valoração da prova produzida, se “limite” a julgar o arguido autor dos factos que lhe são imputados nos autos e a declarar a sua inimputabilidade relativamente a tais ilícitos, sem mais.”

O Digno Magistrado do Ministério Público respondeu, concluindo “que deverá ser integralmente mantida a douta decisão recorrida, julgando-se como manifestamente improcedente o recurso interposto pelo arguido”.

Neste Tribunal, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta elaborou parecer em que pugna pela improcedência do recurso.
Dado cumprimento ao disposto no art.º 417º n.º 2 CPP, o recorrente não veio responder ao parecer.

II.
Colhidos os vistos legais, cumpre agora apreciar e decidir.
A sentença recorrida apresenta o seguinte conteúdo, na parte relevante para as questões suscitadas pelo recorrente:
Factos provados

a) No dia 10/10/2016, pelas 20h45, no Largo Io de Maio, Encosta do Sol, Amadora, o arguido, sob a influência da ingestão excessiva de bebidas alcoólicas, encontrava-se a proferir expressões insultuosas e de cariz ameaçador relativamente a utentes da via pública que por ali circulavam.
b) Nesse momento, quando os agentes da PSP LC e JM, devidamente uniformizados e no exercício das suas funções, se encontravam a falar com um de tais utentes, o arguido dirigiu-se a este e afirmou "Preto de merda, és um filho da puta, não gosto de pretos".
c) Confrontado com a sua actuação pelos mencionados agentes da PSP, o arguido, em tom agressivo, respondeu "Polícias de merda, não vos quero aqui, fodo-vos todos", sendo então dito por aqueles que o mesmo devia corrigir a respectiva conduta, visto encontrar-se na presença de agentes da autoridade, ademais sendo-lhe solicitada a respectiva identificação pelo agente LC.
d) Nesse momento, o arguido afirmou a tal agente que não lhe daria a respectiva identificação, mais lhe afirmando "Sois todos uma merda, a polícia não vale um caralho, cambada de filhos da puta, eu sozinho mato-vos a todos", sendo-lhe novamente solicitado pelos mencionados agentes da PSP que devia cessar tal comportamento e que, se o mantivesse, incorreria na prática de um crime.
e) Acto contínuo, o arguido dirigiu-se a LC e, sem que nada o fizesse prever, empurrou-o e desferiu-lhe um soco na zona da barriga, causando-lhe dores.
f) De imediato, os aludidos agentes agarraram o arguido e lograram manietá-lo, sendo que este afirmou ainda "Sois mesmo uma merda, cobardes", após o que o arguido foi algemado, sendo-lhe dada voz de detenção.
g) De seguida, o arguido foi transportado em viatura caracterizada da PSP para a esquadra da PSP da Brandoa, no interior da qual o mesmo manteve um comportamento alterado, sendo solicitada uma ambulância de emergência a fim de auxiliar o arguido, tendo este recusado qualquer tipo de assistência médica.
h) Nessa ocasião, o arguido referiu ainda a LC "Eu estive na tropa, eu fui ao ultramar, estás fodido comigo".
i) O arguido tinha consciência de que as expressões supra referidas que dirigiu aos mencionados agentes de autoridade, com a prática de actos ofensivos da respectiva vida e integridade física e de teor insultuoso, eram adequadas a causar-lhes medo, inquietação e limitação à sua liberdade de decisão, bem como a atingir a honra e consideração pessoal de tais elementos da PSP, ciente ainda que estes exerciam funções públicas e de autoridade.
j) Sabia ainda que não podia atingir o corpo do agente LC, pois que o mesmo se encontrava no exercício legítimo das suas funções e, ainda, assim, não se coibiu de o fazer, causando-lhe dores.
k) O arguido praticou os factos supra descritos sob a influência da doença mental de que padece - transtorno de personalidade - cujo respectivo quadro clínico, em conjunto com histórico de depressão e o estado de embriaguez que verificava na data dos factos, desempenhou um papel determinante, necessário e suficiente para a prática destes.
l) Em tal data, o arguido não estava capaz de avaliar a ilicitude dos seus actos, nem de se determinar de acordo com tal avaliação.
m) O arguido tem actualmente consciência parcial da doença de que padece e aceita voluntariamente a necessidade de ser tratado, procedendo à toma pontual da medicação que se lhe encontra prescrita, apresentando actualmente estabilidade do seu quadro clínico.
n) Existe possibilidade de repetição de factos semelhantes aos acima descritos por parte do arguido, nomeadamente caso ocorra interrupção do tratamento psicofarmacológico de que carece, ou retoma de consumo excessivo de bebidas alcoólicas.
o) O arguido é natural de Angola e veio para Portugal com os pais e irmãos, com cerca de 30 anos, sendo o mais velho de uma fratria de quatro irmãos.
p) Até então o arguido vivia em Angola, altura em que chegou a combater na "guerra colonial".
q) Nesse país frequentou a escola, até grau de escolaridade não apurado.
r) Após passar a residir em Portugal, o arguido exerceu actividade laborai para a Câmara Municipal de Lisboa na recolha nocturna de lixo, onde permaneceu mais de 30 anos.
s) Foi casado, não teve filhos dessa união e está actualmente divorciado.
t) Há cerca de três anos, em contexto que não foi possível precisar mas que surge na mesma altura da sua separação conjugal, foi submetido a uma avaliação psiquiátrica e acompanhado em psiquiatria da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa.
u) A nível laboral foi transferido da CML para a Junta de Freguesia de Santo António em Lisboa, onde não chegou a iniciar funções por se encontrar de baixa médica, o que ocorre até à presente data.
v) O arguido reside com a sua mãe e com um filho de 36 anos de idade.
w) O arguido encontra-se de baixa médica há cerca de dois anos, auferindo cerca de 600,00 € mensalmente.
x) O arguido reconhece manter consumos abusivos de álcool mas apenas ocasionalmente.
y) Quando questionado em abstracto sobre os ilícitos em causa nestes autos, o arguido revela défices relativamente à sua gravidade, que desvaloriza.
z) Não possui antecedentes criminais registados.

2.2. Factos não provados
Não se provou que o arguido agiu voluntária e conscientemente, bem sabendo serem as suas condutas previstas e punidas por lei.

2.3 Motivação da decisão de facto
Quanto à factualidade provada e não provada, a convicção do Tribunal assentou, desde logo, na análise crítica da documentação e perícia junta autos, designadamente, do teor do auto de notícia por detenção de fls. 3 a 5, documentação de 63 e 64 e relatório pericial psiquiátrico relativo ao arguido junto em 08/05/2018.
Ademais, tiveram-se em conta as declarações prestadas pelo arguido em audiência e os depoimentos prestados pelas testemunhas ouvidas, cujos depoimentos se revelaram espontâneos, objectivos e coerentes, merecendo, por isso, a credibilidade do Tribunal.
Cumpre referir, desde logo, que o arguido, em audiência de julgamento, optou por prestar declarações, nas quais, em síntese, reconheceu apenas que ia calmamente na rua a falar consigo próprio, alcoolizado, altura em que se apercebe apenas de um vulto nas suas costas, motivo pelo qual e por receio, voltou-se na direcção deste, admitindo que terá então desferido um ou dois murros, apenas então se apercebendo que se tratava de um agente da PSP.
No mais, recusou que tenha proferido as expressões insultuosas ou ameaçadoras constantes da acusação, sendo que antes foi de imediato algemado pelos agentes da PSP aí referidos, com violência, sendo de seguida transportado para esquadra da PSP, local onde foi pedida assistência médica não sabe para que efeito.
Relatou ainda que não se recorda já de outros detalhes do então ocorrido e que se encontra de baixa médica, por motivos psiquiátricos, mediante medicação que toma, ademais beneficiando de acompanhamento médico em ambiente Hospitalar.
Cumpre referir que o arguido prestou declarações denotando uma postura relativamente agitada, denotando, a espaços, alguma confusão no seu discurso, ainda que tenha evidenciado plena compreensão dos factos que lhe eram imputados, suscitando-se ao Tribunal, porém, dúvidas quanto ao mesmo manter uma memória minimamente objectiva dos acontecimentos e correspondente ao comportamento que então manteve.
Com efeito, nesta parte o Tribunal não ficou convicto, com segurança, de que o arguido se recordasse dos factos com precisão, o que se mostrou justificado à luz, quer do lapso de tempo já decorrido, quer por força da doença psiquiátrica de que padece - transtorno de personalidade com quadro de depressão e antecedentes de alcoolismo - cuja existência se mostrou indubitável em face do supra aludido relatório médico- pericial e que implicou, na data dos factos, incapacidade em o arguido avaliar a ilicitude da sua conduta e se determinar de acordo com essa avaliação impondo a conclusão segura do Tribunal quanto à sua inimputabilidade em tal data.
Por seu turno, perante os elementos probatórios disponíveis e atentas as declarações do arguido e sua postura em audiência, não se revelou que actualmente exista probabilidade elevada quanto ao arguido, em liberdade, praticar factos ilícitos típicos idênticos aos praticados nestes autos, tanto mais que, como se refere no aludido relatório pericial, o arguido cumpre a medicação que se lhe encontra prescrita, está abstinente do consumo de álcool e apresenta estabilidade do seu quadro clínico.
Quanto ao mais e no que atém aos concretos comportamentos do arguido na data dos factos e que lhe vinham imputados na acusação, o Tribunal formou convicção segura quanto à ocorrência dos que, a final, se deram como provados, tendo por base os elementos documentais acima elencados, em conjugação com as declarações do arguido e os depoimentos de LC e JM, ambos agentes da PSP e que confirmaram a ocorrência das condutas do arguido constantes da acusação, em consonância com a descrição que já constava do auto de notícia acima referido, ademais fazendo-o mediante depoimentos espontâneos, objectivos, essencialmente coerentes entre si e suficientemente detalhados, merecendo, pelo tanto, a credibilidade do Tribunal.
De resto, a prova do percurso de vida do arguido e a respectiva situação pessoal e familiar actual, resultou das declarações que o mesmo prestou nesse âmbito e, em especial do teor do relatório social junto aos autos.
Teve-se ainda em conta o CRC relativo ao arguido junto aos autos como meio de prova de ausência de registos de condenações criminais.”

Face às conclusões formuladas pelo recorrente, as questões suscitadas no recurso são:
- Nulidade da sentença por falta de fundamentação nos termos do art.º 379º n.º 1 al. a) CPP;
 - Nulidade da sentença por força do art.º 379º n.º 1 al. b) CPP;
- Vicio da sentença nos termos do art.º 410º n.º 2 al. b) CPP - contradição insanável da fundamentação e entre esta e a decisão;
- Erro de julgamento quanto ao facto provado n).

Passando a apreciar a primeira das questões - nulidade da sentença por falta de fundamentação nos termos do art.º 379º n.º 1 al. a) CPP – que o recorrente aponta à inserção, como provada, da matéria de facto constante na al. n) [Existe possibilidade de repetição de factos semelhantes aos acima descritos por parte do arguido, nomeadamente caso ocorra interrupção do tratamento psicofarmacológico de que carece, ou retoma de consumo excessivo de bebidas alcoólicas.] -, radicando-a no conteúdo da motivação que não deixa transparecer a indicação de qualquer elemento de prova que suporte essa decisão, com a consequente ausência de exame crítico da mesma neste particular.
Com o devido respeito pela leitura que o recorrente fez da sentença e da motivação do tribunal, quanto à matéria de facto provada, nesta é mencionado como meio de prova atendido e valorado pelo tribunal o relatório médico- pericial que consta dos autos do qual, de resto, são feitas diversas menções na fundamentação.
Ora, o dever de fundamentação decorrente do disposto no art.º 374.º n.º 2, do C.P.P., ao consignar que, “ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal”, não impõem uma pormenorização excessiva ou desproporcionada (exposição tanto quanto possível, diz a lei), antes devendo a sentença conter aquele mínimo de referências que persuadam os interessados de que se fez justiça e lhe possibilitem avaliar as probabilidades de recurso, do mesmo modo que possibilite ao tribunal sindicar a decisão, designadamente apreciar os meios de impugnação apresentados. Mas a lei não exige que em relação a cada facto se autonomize e substancie a razão de decidir, como também não exige que em relação a cada facto fonte de prova se descreva como a sua dinamização se desenvolveu em audiência, sob pena de se transformar o acto de decidir numa tarefa impossível.
Nesta perspectiva da nulidade baseada na al. a) do n.º 1 do art.º 379º CPP não se mostra acometida a sentença.

Aponta o recorrente ainda que a sentença enferma de nulidade nos termos do art.º 379º n.º 1 al. b) CPP - Que condenar por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, fora dos casos e das condições previstos nos artigos 358.º e 359.º - porquanto, alega, “a questão da eventual perigosidade do arguido nunca foi equacionada de nenhuma forma nos mesmos;” e “ao arguido nunca foi feita qualquer comunicação a propósito nos termos e para os efeitos do disposto nos art°s 358° ou 359° do C.P.P.”.
A consideração de que a inserção constante do ponto n) da matéria de facto provada constitui uma alteração da matéria de facto constante da acusação tem a sua razão de ser na medida em que a acusação se mostrar deduzida no pressuposto da plena imputabilidade penal do arguido contra a qual a mesma foi deduzida.
Resulta dos autos, e certamente não discordará o recorrente, que a questão da sua inimputabilidade e consequente irresponsabilidade penal foi por si suscitada em sede de contestação onde requereu a realização de perícia psiquiátrica, de forma a avaliar essa inimputabilidade no momento da prática dos actos.
Ora, foi pelos termos vertidos nessa mesma perícia que o tribunal afirmou como provado o facto em questão, ou seja, a materialidade em questão (que não se mostra dependente a exacta formulação em que o facto aditado se mostra ali inserido pelos termos concretos adiantados na perícia) foi suscitada em concreto pela defesa e resulta de actividade processual da sua iniciativa.
Como se mostra referido não parecer da Exma. PGA, “… a declaração de inimputabilidade, fundada no disposto no art. 20° do CP, veio a ocorrer, nomeadamente e pelo menos, porque o arguido insistiu pela realização de Perícia Psiquiátrica. Logo, sabia que, na hipótese de vir a ser declarado inimputável — o que constatou ao ser notificado do relatório da Perícia - seguir-se-ia a aferição da sua perigosidade e, tendo em conta a gravidade dos factos por si perpetrados, a subsequente aplicação de medida de medida de segurança de internamento, de harmonia com o disposto no art. 91° do CP.
Ora, os factos que sustentam a declaração de perigosidade são os que o Recorrente já conhecia, bem como conhecia os efeitos da declaração de inimputabilidade, que decorrem da lei (art. 91° do CP).”

Porém, pela aferição possível dos quesitos formulados pela defesa quando requereu a realização da perícia psiquiátrica e do quesito que o tribunal entendeu fazer aos Srs. peritos quando, em plena audiência de julgamento, determinou a realização daquela perícia, nenhum destes era dirigido expressamente à questão de ser determinada a probabilidade, elevada ou não, de repetição de actos delitivos por parte do arguido em qualquer um dos quadros possíveis de observância ou inobservância de terapêutica, adequada e medicamente estabelecida, por parte do arguido.
Nesta perspectiva, a menção factual ao que se mostra referido no ponto n) da factualidade provada, representa uma surpresa para o arguido e, por essa via, na medida em que, ambos os pontos em si, não implicou nem modificação do bem jurídico protegido que constava da acusação, nem implicou que dela adviesse um facto naturalístico diferente do constante da acusação, como não implicou a perda da “imagem social” do facto primitivo, ou seja, não resultou a perda da sua identidade.
Dúvidas não há, porém, in casu, de que aos factos constantes da acusação foram aditados esses factos novos que, não deixando de serem relevantes em termos de diferente orientação quanto às opções punitivas dada a irresponsabilidade penal já atingida pela declaração de inimputabilidade, tal aditamento/alteração, porque não enquadrável na alínea f) do n.º 1 do art.º 1º do CPP, só pode consubstanciar, reafirmamos, alteração não substancial dos factos.
Se retirado da sentença, a definição do quadro de imputação jurídico criminal não se mostra alterado, apenas se modifica, como dissemos, a opção da sanção aplicável (entre pena privativa ou medida de segurança) e é precisamente por isso (porque do facto aditado não resulta nem crime diverso e nem a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis) que se considera que estamos face a alteração não substancial dos factos constantes da acusação.
O arguido tem direito a pronunciar-se sobre o facto, tem direito a contraditá-lo, tem direito a produzir eventual prova sobre ele, enfim, tem direito a sobre ele exercer todos os direitos de defesa que a CRP lhe assegura.
Para tanto, deveria o Mmo. Juiz a quo, oficiosamente, no decurso da audiência, ter comunicado a alteração ao arguido e conceder-lhe, se ele o requerer, o tempo estritamente necessário para a preparação da defesa – n.º 1 do art.º 358º do CPP.
E porque tal formalismo não foi cumprido, como se vê da acta de audiência, segundo a alínea b) do n.º 1 do art.º 379º do CPP, “é nula a sentença” “Que condenar por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, fora dos casos e das condições previstos nos artigos 358.º e 359.º”.
A omissão do cumprimento do disposto no art.º 358º n.º1 do Código de Processo Penal constitui nulidade da sentença, art.º 379º n.º1 al. b) do Código de Processo Penal. Impõe-se, assim, a anulação da sentença para se dar cumprimento ao disposto no art.º 358º n.º1 Código de Processo Penal.
Com a nulidade declarada, mostra-se prejudicado o conhecimento das demais questões suscitadas no recurso.

III.
Face ao exposto, decide-se conceder parcial provimento ao recurso interposto pelo arguido P., declarando-se nula a sentença recorrida e, em consequência, determina-se seja reaberta a audiência para integral cumprimento do n.º 1 do art.º 358º do CPP quanto ao concreto facto constante do ponto n) dos factos provados.
Sem custas.
Feito e revisto pelo 1º signatário.
Lisboa, 1 de Outubro de 2019.

João Carrola
Luís Gominho