Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
4591/2008-3
Relator: PEDRO MOURÃO
Descritores: LENOCÍNIO
INCONSTITUCIONALIDADE
FUNCIONÁRIO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/11/2009
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: 1 - A criminalização do crime de lenocínio p. e p. pelo artº 170º, nº 1 do CP configura-se como constitucional, uma vez que a sua definição, em sede de direito ordinário, reporta-se ao quadro de valores constitucionais consagrados, ou seja é crime o comportamento que viola ou ameaça violar o quadro daqueles valores, o que é manifestamente o caso dos autos, conforme resulta da matéria factual apurada tendo a conduta do arguido/recorrente traduzido numa clara violação da dignidade humana, da integridade moral e física da pessoa humana e, por isso, o obstáculo à livre realização da respectiva personalidade, valores constitucionalmente protegidos - artº s 25º e 26º da CRP.
2 - Oa militares da GNR, para efeitos penais, são funcionários, enquadrando-se no preceito legal do artº 386º CP. Este enquadramento fundamenta-se no facto dos militares da GNR serem estatuariamente e em particular órgãos de polícia criminal, colocando-os a desempenho uma actividade compreendida na função pública jurisdicional.
3 - Tendo auferido uma contrapartida monetária pela actividade que desempenhava como porteiro/segurança num bar, violando o seu estatuto de excluisvidade inerente à condição de militar, tal traduziu-se precisamente
no beneficio ilegítimo para si, elemento que faz parte do tipo do crime de abuso de poder previsto no artº 382 do C. P.
Decisão Texto Integral: Acordam, precedendo conferência, na 3ª Secção (Criminal) do Tribunal da Relação de Lisboa:

I. Relatório

1- No âmbito do supra identificado processo e por acórdão de 27/01/2007 – fls. 9281 a 9434, os arguidos aí devidamente identificados foram julgados e condenados da seguinte forma:

(...)

b) (AG) como co-autor da prática de um crime de lenocínio p. e p. pelo art.º 170º nº 1 do Código Penal, na pena de 2 anos e 6 meses de prisão;
- como autor material de um crime de detenção ilegal de arma p. e p. pelo art.º 6º nº 1 da Lei 22/97 de 27 de Junho – regime concretamente mais favorável ao arguido – na pena de 80 dias de multa à razão diária de 7 €, num total de 560 € ou, caso a multa não seja paga voluntária ou coercivamente, 53 dias de prisão;
- como autor material de um crime p. e p. pelo art.º 86º nº 1 al. d) da Lei 5/2006 de 23.02 – regime concretamente mais favorável ao arguido – na pena de 120 dias de multa à razão diária de 7 €, num total de 840 € ou, caso a multa não seja paga voluntária ou coercivamente, 80 dias de prisão;
- operado, nos termos do art.º 77º do Código Penal, o cúmulo jurídico entre as penas aplicadas a este, na pena única de 2 anos e 6 meses de prisão e 160 dias de multa à razão diária de 7 €, num total de 1120 € ou, caso a multa não seja paga voluntária ou coercivamente, 106 dias de prisão;
- suspendeu-se, nos termos do disposto no art.º 50º nº 1 do Código Penal, a pena de prisão supra imposta pelo período de 3 anos.

(...)

l) (PA) como autor material pela prática de um crime de detenção ilegal de arma p. e p. pelo art.º 382º do Código Penal, na pena de 200 dias de multa à razão diária de 5 €, num total de 1000 € ou, caso a multa não seja paga voluntária ou coercivamente, 133 dias de prisão.

(...)

Outra questão suscitada pelo recorrente (AG) é a da invocada inconstitucionalidade do art.º 170º do Código Penal.
Defende o recorrente que sendo a prostituição, em si mesma, uma actividade lícita, a incriminação em apreço ofende o princípio da proporcionalidade, pois aquele preceito "… não titula qualquer bem jurídico e, por essa via, falece legitimidade ao direito penal para coarctar os direitos, liberdades e garantias constitucionalmente consagrados", destinando-se a norma penal a proteger a "concepção moral alicerçada numa visão paternalista da sociedade e da falta de capacidade de autodeterminação do indivíduo e do seu direito de autodeterminação sexual constitucionalmente consagrado".
Regista-se na decisão recorrida a forma como esta questão havia sido superiormente decidida, o que se subscreve transcrevendo:
"O arguido (PA) suscitou no decorrer dos autos a inconstitucionalidade do artº 170º nº 1 do Código Penal (fê-lo, designadamente, num recurso que interpôs do despacho de pronúncia o qual não veio a ser admitido).
Refere o arguido que o disposto naquele artº 170º nº 1 viola o disposto no artº 18º nº 2 da CRP na medida em que o preceito não tutela qualquer bem jurídico pelo que, não o tutelando, os direitos, liberdades e garantias não podem ser coarctados de forma tão vil.
Cumpre decidir sendo certo que a questão não é nova e que para a solução da mesma iremos recorrer, amiúde, ao decidido nos Acs. do T.C. nºs 144/2004, 196/2004 e 303/04, respectivamente, de 10.03.2004, 23.03.2004 e 05.04.2004, acessíveis em http://www.tribunalconstitucional.pt, por entendermos que os mesmo fazem correcta aplicação do Direito.
“A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos” – artigo 18º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa.
É o chamado princípio da necessidade ou da carência de tutela penal ou da proporcionalidade em sentido amplo.
“Uma vez que o direito penal utiliza como arsenal das suas sanções específicas, os meios mais onerosos para os direitos e as liberdades das pessoas, ele só pode intervir nos casos em que todos os outros meios da política social, em particular da política jurídica, se revelem insuficientes e inadequados. Quando assim não aconteça aquela intervenção pode e deve ser acusada de contrariedade ao princípio da proporcionalidade, sob a precisa forma de violação do princípio da proibição de excesso” – Figueiredo Dias, in Temas Básicos da Doutrina Penal, edição de 2001, 58.
Nesta matéria tem vindo a entender a jurisprudência do nosso Tribunal Constitucional que “cabe ao legislador uma ampla margem de discricionariedade legislativa na delimitação das condutas que devem ser criminalizadas ou descriminalizadas, bem como na cominação das respectivas penas”.
“Tal margem de liberdade não prejudica, naturalmente, a consideração de limites impostos pelos princípios constitucionais, de entre os quais se salientam os que resultam do princípio da culpa, inerente à dignidade da pessoa, do princípio da necessidade ou da máxima restrição das penas, decorrente do regime das restrições aos direitos, liberdades e garantias, em que as penas criminais se traduzem (...) ou ainda do princípio da igualdade”.
“Onde quer que se procure situar materialmente a aplicação do princípio da proporcionalidade à definição dos crimes e das penas (...), é certo que as normas penais não são imunes a um juízo constitucional de proporcionalidade (...)”.
“(...) A criminalização de condutas deve restringir-se aos comportamentos que violem bens jurídicos essenciais à vida em comunidade, devendo a liberdade de conformação do legislador ser limitada sempre que a punição criminal se apresente como manifestamente excessiva ou o legislador actue de forma voluntarista ou arbitrária, ou ainda as sanções se mostrem desproporcionadas ou desadequadas, isto é, não assegurem a “justa medida dos meios (penais) e dos fins (das penas), não se garantindo uma adequada proporção entre as sanções e os factos que elas se destinam a punir (...)” – cfr. Acórdão n.º 168/99, do TC, de 10 de Março de 1999, relatado por Maria dos Prazeres Pizarro Beleza.
Dispõe o n.º 1 do artigo 170º do Código Penal, na versão decorrente da Lei n.º 65/98, de 2 de Setembro, que:
“Quem, profissionalmente ou com intenção lucrativa, fomentar, favorecer ou facilitar o exercício por outra pessoa de prostituição ou a prática de actos sexuais de relevo é punido com pena de prisão de 6 meses a 5 anos”.
Perante aquela disposição legal discute-se a determinação do respectivo bem jurídico protegido.
Para uns, o bem jurídico tutelado pelo crime de lenocínio é “o interesse geral da sociedade na preservação da moralidade sexual e do ganho honesto” – cfr. Reis Alves, in Crimes Sexuais, 67. Outros entendem que se protegem “bens jurídicos transpersonalistas de étimo moralista” – cfr. Anabela Rodrigues, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo 1, 519.
Para outros, porém, a previsão normativa do n.º 1 do artigo 170º do Código Penal o que está em causa, mais do que tudo, é a exploração de uma pessoa por outra, uma espécie de usura ou enriquecimento ilegítimo fundado no comércio do corpo de outrem por parte do agente.
Inculca tal entendimento o facto do apontado tipo legal de crime prescrever que o agente actue “profissionalmente ou com intenção lucrativa”.
Assim entendido, a prática do lenocínio, previsto e punido no n.º 1 do artigo 170º do Código Penal, configura uma clara violação da dignidade humana, da integridade moral e física da pessoa humana e, por isso, obstáculo à livre realização da respectiva personalidade, valores constitucionalmente protegidos – cfr. artigos 25º e 26º da Constituição da República Portuguesa.
Fomentar, favorecer ou facilitar o exercício por outra pessoa da prostituição ou a prática de actos sexuais de relevo, fazendo disso profissão ou com intenção lucrativa, não é um acto de intimidade da pessoa, de vida privada, de liberdade individual já que o mesmo é projectado exactamente para fora dela e da sua esfera privada e, no fundo, acaba por significar uma exploração indigna da pessoa humana – neste sentido, embora no âmbito na versão primitiva do Código Penal de 1982, veja-se o acórdão do Supremo Tribunal de 29 de Janeiro de 1992, prolatado no Processo n.º 42058, in BMJ, 413, 263.
É certo que se pode esgrimir o argumento de que um bem jurídico político-criminalmente vinculante existe onde se encontre reflectido um valor jurídico-constitucionalmente reconhecido em nome do sistema social total e que, deste modo, se pode afirmar que ‘preexiste’ ao ordenamento jurídico-penal. O direito penal não tem legitimidade para intervir – “com o seu cortejo de censuras e o seu arsenal de sanções, as mais drásticas ao dispor do Estado – como instrumento de tutela, estabilização ou reafirmação contra-fáctica de normas de étimo exclusivamente moralista. Ou, se se pretender, como instrumento de protecção e salvaguarda de valores de fundo moralistas”.
“Ao Estado falece, por inteiro, legitimidade para impor, oficial e coactivamente, quaisquer concepções morais, para tutelar a moral ou uma certa moral: neste campo tudo deve ser deixado à livre decisão individual”.
“O direito penal de uma sociedade secularizada (...) só está legitimado a intervir para proteger bens jurídicos fundamentais da pessoa ou da própria comunidade. O que tem como reflexo imediato a ilegitimidade – e uma ilegitimidade contrafacticamente assegurada através da sanção da inconstitucionalidade – de qualquer lei penal incriminatória que se propusesse punir comportamentos humanos em nome, exclusivamente, da sua imoralidade”.
“As puras violações morais não conformam a lesão de um autêntico bem jurídico e não podem, por isso, integrar o conceito material de crime”.
No que diz respeito aos crimes sexuais, em especial o de lenocínio que agora importa considerar, a Reforma de 1995 do Código Penal assumiu por inteiro esta perspectiva, e redesenhou-os “a partir de dois autónomos e bem definidos bens jurídicos pessoais: a liberdade e a autodeterminação sexual. Pondo consequentemente termo a todas as incriminações que não pudessem ser compreendidas e justificadas em nome da tutela, mais ou menos próxima, destes específicos bens jurídicos”.
O legislador de 1995 “manteve-se, no essencial, fiel ao desenho da incriminação que vinha de 1982. Continuando, por isso, a exigir, como momento nuclear da estrutura típica da incriminação, a exploração de situação de abandono ou de necessidade económica. Precisamente o momento que, apesar de tudo, imprime à incriminação a marca de uma incriminação votada à tutela da liberdade sexual das pessoas. E, por vias disso, lhe emprestava a indispensável legitimidade constitucional, como tutela de bens jurídicos”.
Todavia, “o legislador de 1998 (com a Lei n.º 65/98, de 2 de Setembro) alterou a estrutura típica do crime de lenocínio, repristinando a solução vigente entre nós antes de 1982. Ou seja: eliminando a exigência típica da ‘exploração duma situação de abandono ou necessidade’, nessa medida voltando a alargar consideravelmente a extensão da incriminação” e fazendo “do crime de Lenocínio entre adultos um crime sem bem jurídico e ‘sem vítima’ ”.
Na observação pertinente de Anabela Rodrigues, “com esta incriminação o bem jurídico não é, como devia, a liberdade de expressão sexual da pessoa, mas persiste aqui uma certa ideia de ‘defesa do sentimento geral de pudor e de moralidade’, que não é encarada hoje como função do direito penal e, de qualquer modo, não presidiu ao novo enquadramento dos ‘crimes contra a liberdade sexual’ no título mais vasto dos crimes contra as pessoas e como uma forma que assumem os atentados contra a liberdade”.
Nas palavras de Mouraz Lopes, “o que é tutelado agora no n.º 1 (do art. 170º), como bem jurídico, é uma determinada concepção de vida que se não compadece com a aceitação do exercício profissional ou com intenção lucrativa do fomento, favorecimento ou facilitação da prostituição”.
Assim sendo, tem de concluir-se “pela inconstitucionalidade material do n.º 1 do art. 170º do Código Penal na versão em vigor”. É uma conclusão que decorre directamente do n.º 2 do artigo 18º da Constituição da República Portuguesa. Por força do qual, “uma norma incriminatória na base da qual não seja susceptível de se divisar um bem jurídico claramente definido é nula, por dever ser considerada materialmente inconstitucional e como tal declarada pelos Tribunais.
Poder-se-á dizer ainda que não deixará de ser pertinente a objecção de que o n.° 1 do art. 170º Código Penal eleva à categoria de crime e pune condutas de simples comparticipação em actos lícitos e livres.
Em bom rigor, o fomento, favorecimento ou facilitação da prostituição não são mais do que comparticipação numa conduta alheia que, repete-se, além de lícita é desenvolvida com liberdade, o que levanta a questão de saber se alguém pode ser incriminado por auxiliar outrem a exercer um direito próprio.
Ao incriminar o fomento, favorecimento ou facilitação da prostituição de pessoa livre e autodeterminada, o n.º 1 do art. 170º ofende o princípio da fragmentariedade ou subsidiariedade do direito penal e ainda os direitos à livre expressão da sexualidade, à vida privada, à identidade pessoal e à liberdade, consagrados nos arts. 26º, n.º 1, e 27º, n.º 1, CRP, e o direito ao trabalho, consagrado nos arts. 47º e 58º CRP, direitos estes que nada impede sejam exercidos com o auxílio e participação, mesmo interessada e lucrativa, de terceiros.
No entanto, e ante estes argumentos o Tribunal Constitucional tem sempre respondido com a afirmação da constitucionalidade do preceito sustentando que (a citação que se segue é do Ac. 144/2004 já referido) “Não se terá, aqui, de responder à questão geral sobre se o Direito Penal pode, constitucionalmente, tutelar bens meramente morais, questão que não pode ser resolvida sem o esclarecimento prévio do que se entende por bens puramente morais e que não pode deixar de tomar em consideração que há valores e bens tidos como morais e que relevam, inequivocamente, no campo do Direito. A relação entre o Direito e a Moral ou o Ethos tem sido objecto de uma controvérsia muito importante, sendo uma das questões fundamentais da Filosofia do Direito. Com efeito, desde a tradição liberal radicada em Stuart Mill (On liberty, 1859) ou mesmo do pensamento de Kant (Metaphysik der Sitten, 1797), em que o Direito se situa apenas no plano do dano ou do prejuízo dos interesses ou da violação dos deveres (externos) para com os outros até às concepções de uma total fusão entre o Direito e a Moral, em que se reconhece que o Direito tem legitimidade para impor colectivamente valores morais (assim, por exemplo, no pensamento anglo saxónico, Patrick Devlin, em The Enforcement of Morals, 1965, em nome da manutenção da identidade da sociedade), tem se mantido acesa a discussão. Apesar das duas posições extremas – a da separação absoluta entre o Direito e a Moral e a da total coincidência entre Direito e Moral – é amplamente aceite que o Direito e a Moral, embora a partir de perspectivas diferentes, fazem parte de uma unidade mais vasta (assim, Arthur Kaufmann, Recht und Sittlichkeit, 1964, p. 9, e, de modo introdutório à questão, J. Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, 1990, p. 59 e ss.).
Assim, tanto quem procure em valores morais a legitimação do Direito, como quem acentue a distinção entre Moral e Direito, reconhecerá, inevitavelmente, que existem bens e valores que participam das duas ordens normativas [partindo de concepções diversas sobre o Direito, mas coincidindo neste último ponto, cf. Radbruch, Filosofia do Direito (trad. port. de L. Cabral de Moncada), 6ª ed., 1979; e Kelsen, Teoria Pura do Direito (trad. port. de Baptista Machado), 1979 – este último, apesar da separação radical entre Direito e Moral, não deixa de reconhecer que o Direito pode tutelar valores morais, sem que, por isso, Direito e Moral se confundam; também Hart o reconhece em “Positivism and the Separation of Law and Morals”, Harvard Law Review, 1958; ver ainda, do mesmo autor, Conceito de Direito (trad. port. de A. Ribeiro Mendes), 1986]. Mesmo as posições mais favoráveis à autonomia do Direito não negam que possam existir valores morais tutelados também pelo Direito, segundo a lógica deste e, por força dos seus critérios (sobre toda a problemática da relação entre a Moral e o Direito, veja se, por exemplo, Arthur Kaufmann, Rechtsphilosophie, 2ª ed., 1997, Kurt Seelmann, Rechtsphilosophie, 1994). Porém, questão prévia a tal problemática e decisiva no presente caso, é a de saber se a norma do artigo 170º, nº 1, do Código Penal apenas protege valores que nada tenham a ver com direitos e bens consagrados constitucionalmente, não susceptíveis de protecção pelo Direito, segundo a Constituição portuguesa.
Ora, a resposta a esta última questão é negativa, na medida em que subjacente à norma do artigo 170º, nº 1, está inevitavelmente uma perspectiva fundamentada na História, na Cultura e nas análises sobre a Sociedade segundo a qual as situações de prostituição relativamente às quais existe um aproveitamento económico por terceiros são situações cujo significado é o da exploração da pessoa prostituída (cf. sobre a prostituição, nas suas várias dimensões, mas caracterizando o como “fenómeno social total” e, depreende se, um fenómeno de exclusão, José Martins Bravo Da Costa, “O crime de lenocínio. Harmonizar o Direito, compatibilizar a Constituição”, em Revista de Ciência Criminal, ano 12, nº 3, 2002, p. 211 e ss.; do mesmo autor e Lurdes Barata Alves, Prostituição 2001 – O Masculino e o Feminino de Rua, 2001). Tal perspectiva não resulta de preconceitos morais mas do reconhecimento de que uma Ordem Jurídica orientada por valores de Justiça e assente na dignidade da pessoa humana não deve ser mobilizada para garantir, enquanto expressão de liberdade de acção, situações e actividades cujo “princípio” seja o de que uma pessoa, numa qualquer dimensão (seja a intelectual, seja a física, seja a sexual), possa ser utilizada como puro instrumento ou meio ao serviço de outrem. A isto nos impele, desde logo, o artigo 1º da Constituição, ao fundamentar o Estado Português na igual dignidade da pessoa humana. E é nesta linha de orientação que Portugal ratificou a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (Lei nº 23/80, em D.R., I Série, de 26 de Julho de 1980), bem como, em 1991 a Convenção para a Supressão do Tráfico de Pessoas e de Exploração da Prostituição de Outrem (D.R., I Série, de 10 de Outubro de 1991).
É claro que a esta perspectiva preside uma certa ideia cultural e histórica da pessoa e uma certa ideia do valor da sexualidade, bem como o reconhecimento do valor científico das análises empíricas que retratam o “mundo da prostituição” (e note se que neste terreno tem sido longo o percurso que conduziu o pensamento sociológico desde a caracterização da prostituição como anormalidade ou doença – assim, C. Lombroso e G. Ferro, La femme criminelle et la prostituée, 1896, e, no caso português, os estudos de Tovar de Lemos, A prostituição. Estudo anthropologico da prostituta portuguesa, 1908, e, sobre as concepções da ciência acerca da prostituição no início do século, cf. Maria Rita Lino Garnel, “A loucura da prostituição”, em Themis, ano III, nº 5, 2002, p. 295 e ss. – até ao reconhecimento de que as prostitutas são vítimas de exploração e produto de uma certa exclusão social). Mas tal horizonte de compreensão dos bens relevantes é sempre associado a ideias de autonomia e liberdade, valores da pessoa que estão directamente em causa nas condutas que favorecem, organizam ou meramente se aproveitam da prostituição.
Não se concebe, assim, uma mera protecção de sentimentalismos ou de uma ordem moral convencional particular ou mesmo dominante, que não esteja relacionada, intrinsecamente, com os valores da liberdade e da integridade moral das pessoas que se prostituem, valores esses protegidos pelo Direito enquanto aspectos de uma convivência social orientada por deveres de protecção para com pessoas em estado de carência social. A intervenção do Direito Penal neste domínio tem, portanto, um significado diferente de uma mera tutela jurídica de uma perspectiva moral, sem correspondência necessária com valores essenciais do Direito e com as suas finalidades específicas num Estado de Direito. O significado que é assumido pelo legislador penal é, antes, o da protecção da liberdade e de uma “autonomia para a dignidade” das pessoas que se prostituem. Não está, consequentemente, em causa qualquer aspecto de liberdade de consciência que seja tutelado pelo artigo 41º, nº 1, da Constituição, pois a liberdade de consciência não integra uma dimensão de liberdade de se aproveitar das carências alheias ou de lucrar com a utilização da sexualidade alheia. Por outro lado, nesta perspectiva, é irrelevante que a prostituição não seja proibida. Na realidade, ainda que se entenda que a prostituição possa ser, num certo sentido, uma expressão da livre disponibilidade da sexualidade individual, o certo é que o aproveitamento económico por terceiros não deixa de poder exprimir já uma interferência, que comporta riscos intoleráveis, dados os contextos sociais da prostituição, na autonomia e liberdade do agente que se prostitui (colocando o em perigo), na medida em que corresponda à utilização de uma dimensão especificamente íntima do outro não para os fins dele próprio, mas para fins de terceiros. Aliás, existem outros casos, na Ordem Jurídica portuguesa, em que o autor de uma conduta não é incriminado e são incriminados os terceiros comparticipantes, como acontece, por exemplo, com o auxílio ao suicídio (artigo 135º do Código Penal) ou com a incriminação da divulgação de pornografia infantil [artigo 172º, nº 3, alínea e), do Código Penal], sempre com fundamento na perspectiva de que a autonomia de uma pessoa ou o seu consentimento em determinados actos não justifica, sem mais, o comportamento do que auxilie, instigue ou facilite esse comportamento. É que relativamente ao relacionamento com os outros há deveres de respeito que ultrapassam o mero não interferir com a sua autonomia, há deveres de respeito e de solidariedade que derivam do princípio da dignidade da pessoa humana.
Por outro lado, que uma certa “actividade profissional” que tenha por objecto a específica negação deste tipo de valores seja proibida (neste caso, incriminada) não ofende, de modo algum, a Constituição. A liberdade de exercício de profissão ou de actividade económica tem obviamente, como limites e enquadramento, valores e direitos directamente associados à protecção da autonomia e da dignidade de outro ser humano (artigos 471º, nº 1 e 61º, nº 1, da Constituição). Por isso estão particularmente condicionadas, como objecto de trabalho ou de empresa, actividades que possam afectar a vida, a saúde e a integridade moral dos cidadãos [artigo 59º, nº 1, alíneas b) e c) ou nº 2, alínea c), da Constituição]. Não está assim, de todo em causa a violação do artigo 47º, nº 1, da Constituição. Nem também tem relevância impeditiva desta conclusão a aceitação de perspectivas como a que aflora no pronunciamento do Tribunal de Justiça das Comunidades (Sentença de 20 de Novembro de 2001, Processo nº 268/99), segundo a qual a prostituição pode ser encarada como actividade económica na qualidade de trabalho autónomo (cf., em sentido crítico, aliás, Massimo Luciani, “Il lavoro autonomo de la prostituta”, em Quaderni Costituzionali, anno XXII, nº 2, Giugno 2002, p. 398 e ss.). Com efeito, aí apenas se considerou que a permissão de actividade das pessoas que se prostituem nos Estados membros da Comunidade impede uma discriminação quanto à autorização de permanência num Estado da União Europeia, daí não decorrendo qualquer consequência para a licitude das actividades de favorecimento à prostituição.
As considerações antecedentes não implicam, obviamente, que haja um dever constitucional de incriminar as condutas previstas no artigo 170º, nº 1, do Código Penal. Corresponde, porém, a citada incriminação a uma opção de política criminal (note se que tal opção, quanto às suas fronteiras, é passível de discussão no plano de opções de política criminal – veja se Anabela Rodrigues, Comentário Conimbricense, I, 1999, p. 518 e ss.), justificada, sobretudo, pela normal associação entre as condutas que são designadas como lenocínio e a exploração da necessidade económica e social, das pessoas que se dedicam à prostituição, fazendo desta um modo de subsistência. O facto de a disposição legal não exigir, expressamente, como elemento do tipo uma concreta relação de exploração não significa que a prevenção desta não seja a motivação fundamental da incriminação a partir do qual o aproveitamento económico da prostituição de quem fomente, favoreça ou facilite a mesma exprima, tipicamente, um modo social de exploração de uma situação de carência e desprotecção social.
Tal opção tem o sentido de evitar já o risco de tais situações de exploração, risco considerado elevado e não aceitável, e é justificada pela prevenção dessas situações, concluindo se pelos estudos empíricos que tal risco é elevado e existe, efectivamente, no nosso país, na medida em que as situações de prostituição estão associadas a carências sociais elevadas (sobre a realidade sociológica da prostituição cf., por exemplo, Almiro Simões Rodrigues, “Prostituição: – Que conceito? – Que realidade?”, em Infância e Juventude, Revista da Direcção geral dos Serviços Tutelares de Menores, nº 2, 1984, p. 7 e ss., e José Martins Barra Da Costa e Lurdes Barata Alves, Prostituição 2001 ..., ob. cit., supra) não é tal opção inadequada ou desproporcional ao fim de proteger bens jurídicos pessoais relacionados com a autonomia e a liberdade. Ancora se esta solução legal num ponto de vista que tem ainda amparo num princípio de ofensividade, à luz de um entendimento compatível com o Estado de Direito democrático, nos termos do qual se verificaria uma opção de política criminal baseada numa certa percepção do dano ou do perigo de certo dano associada à violação de deveres para com outrem – deveres de não aproveitamento e exploração económica de pessoas em estado de carência social [cf., com interesse para a questão da construção do conceito de dano nesta área e independentemente da posição sobre a pornografia aí defendida, matéria que não tem relevância no contexto do presente acórdão, Catherine Mackinnen, Pornography: On Morality in and Politics, em Toward a Feminist Theory of State, 1989, que defende a incriminação da pornografia em face da sua ofensividade contra a imagem da mulher e a construção da respectiva identidade como pessoa. Também sobre tal lógica de construção do dano, cf. Sandra E. Marshall, “Feminism, Pornography and the Civil Law”, em Recht und Moral (org. HEIKE JUNG e outros), 1991, p. 383 e ss., defendendo a autora que, na pornografia, o dano consistiria na negação da humanidade da mulher, sendo relevante para o tema do presente Acórdão a perspectiva de que “a perda da autonomia não é um assunto meramente subjectivo ... a autonomia é negada mesmo que não se reconheça. Aqui pode ser traçado um paralelo com a escravatura ... A própria condição da escravatura requer que o escravo não se veja a si próprio como alguém que possui ou a quem falta autonomia ... Isto pode ser formulado dizendo que uma tal pessoa não se pode ver a si própria completamente. Como item da propriedade não possui um em si mesma”]. O entendimento subjacente à lei penal radica, em suma, na protecção por meios penais contra a necessidade de utilizar a sexualidade como modo de subsistência, protecção directamente fundada no princípio da dignidade da pessoa humana.
Por todo o exposto, julga-se conforme à Constituição o disposto no artº 170º nº 1 do Código Penal na redacção actual.".
Esta matéria tem sido já objecto de tratamento em decisões judiciais, salientando-se o entendimento unânime que do Tribunal Constitucional tem vindo, decidindo pela constitucionalidade da norma. Veja-se, a título de exemplo a argumentação aduzida no seu Acórdão n° 144/2004, proc.º nº 566/2003, da 2ª secção, in www.uc3m.es/uc3m/inst/MGP/JCI/revista-05jur-por1.htm.
Este unanimidade do Tribunal Constitucional, com os públicos fundamentos que aqui se perfilham, determinará o entendimento da constitucionalidade daquela norma e, como tal, a sua aplicação sem qualquer constrangimento.
O S.T.J. tem entendido igualmente e de forma clara que a criminalização do crime de lenocínio p. e p. pelo art.º 170.º, n.º 1, do CP configura-se como constitucional, uma vez que a sua definição, em sede de direito ordinário, reporta-se ao quadro de valores constitucionais consagrados, ou seja é crime o comportamento que viola ou ameaça violar o quadro daqueles valores, o que é manifestamente o caso dos autos, conforme resulta da matéria factual apurada. Com efeito a conduta do arguido/recorrente traduziu-se numa clara violação da dignidade humana, da integridade moral e física da pessoa humana e, por isso, obstáculo à livre realização da respectiva personalidade, valores constitucionalmente protegidos – art.ºs. 25.º e 26.º da CRP. Vejamos então o entendimento do S.T.J. plasmado, a título de exemplo, no Acórdão nº 1125/2007, de 05/09/2007, in www.dgsi.pt,
"I- O conteúdo material do que seja crime deve decorrer do quadro axiológico-jurídico constitucionalmente consagrado, ou seja, só pode ser crime o comportamento que viola ou ameaça violar o quadro de valores constitucionalmente consagrados.
II - Como tal, a definição do crime em sede de direito ordinário deve reportar-se àquele quadro de valores constitucionais, sob pena de inconstitucionalidade material.
III - Na previsão normativa do n.º 1 do art. 170.º do CP o que está em causa, mais do que tudo, é a exploração de uma pessoa por outra, uma espécie de usura ou enriquecimento ilegítimo fundado no comércio do corpo de outrem por parte do agente.
IV - Inculca tal entendimento o facto do apontado tipo legal de crime prescrever que o agente actue “profissionalmente ou com intenção lucrativa”.
V - Por isso, não é exclusivamente o aspecto estrito de liberdade e autodeterminação sexual, como bem pessoal, que subjaz à criminalização do lenocínio.
VI - Assim entendida, a prática do lenocínio, p. e p. pelo n.º 1 do art. 170.º do CP, configura uma clara violação da dignidade humana, da integridade moral e física da pessoa humana e, por isso, obstáculo à livre realização da respectiva personalidade, valores constitucionalmente protegidos – cf. arts. 25.º e 26.º da CRP.
VII - Fomentar, favorecer ou facilitar o exercício por outra pessoa da prostituição ou a prática de actos sexuais de relevo, fazendo disso profissão ou com intenção lucrativa, não é um acto de intimidade da pessoa, de vida privada, de liberdade individual, já que o mesmo é projectado exactamente para fora dela e da sua esfera privada e, no fundo, acaba por significar uma exploração indigna da pessoa humana.
VIII - O direito ao trabalho constitucionalmente salvaguardado seguramente que pressupõe a dignidade humana no seu exercício.
IX - Embora a vítima do crime de lenocínio (art. 170.º do CP) possa ser, em qualquer das formas, qualquer pessoa adulta, homem ou mulher, tem sido ao nível da vítima mulher que o tema intensamente tem incidido.
X - O art. 170.º, n.º 1, do CP insere-se numa opção de política criminal, tendo em conta a necessidade de combater o tráfico de pessoas para exploração sexual, assentando o bem jurídico na protecção da dignidade da pessoa no modo de explicitação comunitária da sua liberdade e autodeterminação sexual.
XI - O art. 170.º, n.° 1, do CP protege um bem jurídico de natureza constitucional, que é a dignidade da pessoa humana, constitutiva de um dos princípios fundamentais da República Portuguesa, conforme dispõe o art. 1.º da CRP, assumindo-se aquele normativo do CP como uma dimensão de tutela jurídico-penal da garantia da dignidade humana, constitucionalmente consagrada, e protegida pelo art. 26.°, n.º 2, da Lei Fundamental, aqui na vertente da dignidade ínsita à auto-expressividade sexual, co-determinando tal inciso, axiológico-normativamente, a expressividade comunitária do modo de exercício do direito à liberdade e autodeterminação sexual, ou seja, vinculando esse exercício de autodeterminação sexual, com projecção e relevância ético-sociais, à dignidade da pessoa, de forma a que esta não constitua mera mercadoria, res possidendi, mero instrumento de prestação sexual, ainda que com o consentimento da vítima, explorada profissionalmente ou com intenção lucrativa por outrem.
XII - A criminalização do crime de lenocínio p. e p. pelo art. 170.º, n.º 1, do CP configura-se, por isso, como constitucional.
XIII - Para que se verifique o crime de lenocínio p. e p. no art. 170.°, n.° 1, do CP basta que o agente pratique alguma das condutas ali previstas (fomentar, favorecer ou facilitar o exercício por outra pessoa de prostituição ou a prática de actos sexuais de relevo) "profissionalmente ou com intenção lucrativa".
".
Assim e por ausência de suporte normativo ou jurisprudencial, não poderá colher o entendimento do recorrente de que estamos perante uma norma substantiva inconstitucional – art.º 170º nº 1 do C.P. -, com as necessárias consequências.

(...)

O recorrente (PA) suscita também a questão de entender que os militares da GNR não são funcionários, conforme a incriminação prevista para o crime de abuso de poder, tal como se encontra previsto no art.º 382º do C.P. Sucede porém que dever-se-á atentar ao disposto no art.º 386º do C.P., que define o conceito de funcionário.
Estipula o nº 1 al. c) deste normativo
"1 — Para efeito da lei penal a expressão funcionário abrange:

c) Quem, mesmo provisória ou temporariamente, mediante remuneração ou a título gratuito, voluntária ou obrigatoriamente, tiver sido chamado a desempenhar ou a participar no desempenho de uma actividade compreendida na função pública administrativa ou jurisdicional, ou, nas mesmas circunstâncias, desempenhar funções em organismos de utilidade pública ou nelas participar.
…".
Dúvidas não têm restado de que os militares da GNR, para efeitos penais, são funcionários, enquadrando-se abrangidos por aquele transcrito preceito legal.
Este enquadramento fundamenta-se no facto dos militares da GNR serem estatutariamente e em particular órgãos de polícia criminal, colocando-os a desempenho uma actividade compreendida na função pública jurisdicional.
Neste sentido aponta o Regulamento de Disciplina da GNR, que foi aprovado pela Lei nº 145/99, de 01/09. Prevê o seu art.º 8º, que versa sobre os deveres (transcrição):
"1 - O militar da Guarda deve ter sempre presente que, como agente de força de segurança e como autoridade e órgão de polícia criminal, fiscal e aduaneira, é um soldado da lei, devendo adoptar, em todas as circunstâncias, irrepreensível comportamento cívico, actuando de forma íntegra e profissionalmente competente …".
Assim como o art.º12 ° nº 2 al. c) da mesma Lei, sobre o dever de zelo:
"2 - No cumprimento do dever de zelo, cabe ao militar da Guarda, designadamente:

c) Considerar-se disponível para o serviço, pronto para em qualquer momento, mesmo quando fora do exercício normal de funções, assumir a condição plena de atente de autoridade, e intervir como tal, conhecendo e tomando conta das ocorrências que se integrem na sua esfera de competência própria ou delegada e participando-as nos demais casos à autoridade competente para delas conhecer;
…".
Assim a lei, para além de definir o militar da GNR como órgão de polícia criminal, também o considera disponível para o serviço em qualquer momento. Digamos que potencialmente estará sempre em serviço, uma vez quer sobre o mesmo impende o dever de disponibilidade, de resto a exemplo do que se passa com outros órgãos de polícia criminal, vinculando em permanência ao cumprimento dos deveres funcionais, legalmente estipulados no seu estatuto.
Destarte ser-lhe-ia legalmente exigível a participação de um qualquer crime que viesse a ter conhecimento, tal como a intervenção em qualquer outro que presenciasse, a fim de lhe pôr cobro.
Não o fazendo, como se veio a provar, violou deveres inerentes às suas funções de militar da GNR.
O arguido/recorrente, com a sua apurada conduta, colocou-se numa situação de manifesta incompatibilidade, traduzida de resto na prática do crime pelo qual veio a ser condenado. Sendo um militar da GNR um "soldado da lei", conforme expressa aquele art.º 8º e, simultaneamente estar perante a prática de um crime e nada fazer… Tal conduta ilícita do arguido/recorrente torna-se perceptível pelo conhecido circunstancialismo, nomeadamente o facto de receber uma contrapartida monetária pela actividade que desempenhava, a qual lhe era atribuída por arguido condenado no âmbito dos presentes autos.
Tendo auferido essa contrapartida monetária, violando o seu estatuto de exclusividade inerente à condição de militar, tal traduziu-se precisamente no benefício ilegítimo para si, elemento que faz parte do tipo do crime de abuso de poder previsto no art.º 382 do C.P.
Conclui-se, sem qualquer reserva, que o arguido/recorrente estava legalmente vinculado à participação do ilícito criminal de que tinha conhecimento por via dos serviço prestado no bar como porteiro/segurança, em obediência aos seus deveres funcionais. Acabou por colocar em crise a autoridade e a credibilidade do Estado, independentemente do grau de conhecimento que se tivesse da sua condição profissional. Não está em causa a quantidade de pessoas conhecedoras daquela condição para que a sua conduta fosse violadora daqueles bens jurídicos que a norma incriminadora visa proteger.
Face ao exposto entende-se não ter sido violado no acórdão recorrido o art.º 382º do C.P., pelo que também não poderá proceder este recurso.

Em suma entende-se ser de assumir, relativamente às questões em apreço, a posição firmada no acórdão, aderindo-se plenamente à argumentação aí expendida.

3- Responsabilidade pelas custas
Uma vez que os arguidos decaíram nos recursos que interpuseram são responsáveis pelo pagamento da taxa de justiça – art.º 513º nº 1 do C.P.P.
De acordo com o disposto no art.º 87º nº 1 alínea b) e nº 3 do Código das Custas Judiciais a taxa de justiça varia entre 1 e 15 uc's.
Tendo em conta a complexidade do processo, julga-se adequado fixar essa taxa em 5 uc's.

III- Dispositivo
Por todo o exposto acorda-se em negar provimento aos recursos interpostos pelos arguidos (AG) e (PA), confirmando-se o acórdão recorrido.

Custas a cargo dos recorrentes, fixando a taxa de justiça em 5 (cinco) uc's por cada um – art.ºs 513º nº 1 e 514º nº 1, ambos do C.P.P.

D.n.

Lisboa, 11/02/09
(Pedro Mourão)
(Fernando Estrela)

Consigna-se, para efeitos do disposto no artigo 94 nº 2 do Código do Processo Penal, que o presente acórdão foi integralmente revisto e elaborado em computador pelo primeiro signatário, que rubrica as restantes folhas, consignando que todos os versos se encontram em branco.