Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
11443/14.2T8LSB.L1-7
Relator: CONCEIÇÃO SAAVEDRA
Descritores: REGISTO COMERCIAL
RECUSA
ALTERAÇÃO DOS ESTATUTOS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/20/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: Tendo sido levado a registo junto da Conservatória do Registo Comercial a alteração dos estatutos de uma determinada empresa com base em Decreto-Lei que determinou tal alteração, não podia a Conservatória recusar tal registo com fundamento no art. 48, nº 1, als. b) e d), do C.R.C., uma vez que, em face desse diploma, não era manifesto que o facto submetido a registo não estava nele titulado nem era manifesta a nulidade do facto. Em qualquer destes dois casos, para motivar a recusa, o vício tem de ser manifesto, inequívoco, a não reclamar maior indagação
(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes, do Tribunal da Relação de Lisboa.


I-Relatório:


Veio o Município de Lisboa, ao abrigo do disposto no art. 92 do Código do Registo Comercial (C.R.C.), impugnar judicialmente a decisão de indeferimento liminar proferida pela Conservatória do Registo Comercial de Lisboa do seu pedido de retificação especial de registo correspondente à Ap. 27/20140718 requerido sob a Ap. 55/20140818 e respeitante a V.SA. Alega, para tanto e em síntese, que sendo detentor de 17,58% do capital social da referida sociedade, requereu, em Agosto de 2014, junto daquela C.R.C. a retificação, por cancelamento, com fundamento em nulidade, do registo submetido pela Ap. 27/20140718, respeitante à alteração dos estatutos da mesma V., pedido esse que foi liminarmente indeferido por manifesta improcedência por se entender “não caber à Conservatória a apreciação e decisão de pedido respeitante a declaração de nulidade de registo (ou sua requalificação) que tenha por base acto praticado no exercício de função legislativa”.

Diz que o facto registado foi a alteração dos estatutos da sociedade mediante ato administrativo publicado sob a forma de Decreto-Lei, em anexo ao DL nº 108/2014, de 2.7, sem a aprovação, como competia, da assembleia geral de acionistas prevista no art. 85 do Código das Sociedades Comerciais (C.S.C.), pelo que a referida alteração é nula, pois a ... é uma empresa pública que se rege pelo direito privado, sendo-lhe aplicável o mencionado Código. Assim, inexistindo assembleia geral e ata de aprovação da alteração de estatutos, não podia a Conservatória do Registo Comercial proceder ao registo, uma vez que o anexo ao DL que serviu de base ao mesmo não o permitia, cabendo-lhe antes recusar tal registo nos termos das alíneas b) ou d) do nº 1 do art. 48 do Código do Registo Comercial ou, pelo menos, fazê-lo como provisório por dúvidas, de acordo com os arts. 48, nº 2, 49 e 52, nº 2, do mesmo Código. Mais refere que com a retificação pretendida não pretendeu o requerente que a C.R.C. apreciasse a legalidade intrínseca do ato administrativo praticado pelo Estado, mas apenas que no ato de registo fosse tida em conta a lei aplicável que é a Lei do Sector Público Empresarial, aprovado pelo DL nº 133/2013, de 3.10. Conclui, pedindo seja declarado nulo o registo submetido pela AP. 27/20140718, nos termos dos arts. 32, nº 1, 22, nº 1, al. b), 82, nº 2, e 92, nº 1, todos do C.R.C..

A Conservatória do Registo Comercial sustentou a decisão de indeferimento argumentando, no essencial, que o tribunal judicial deve sobrestar na decisão nos termos do art. 92, nº 1, do C.P.C., uma vez que o Município recorrente interpôs, na jurisdição administrativa, providência cautelar de suspensão de ato administrativo, formalizado pelo diploma que fundou o registo. Mais defende a incompetência, em razão da matéria, nos termos do art. 96 do C.P.C., visto que o ato registado cuja retificação foi pedida (e liminarmente indeferida) foi praticado no exercício da função legislativa. Por fim, invoca que a C.R.C. respeitou o disposto no art. 32 do C.R.C., defendendo diversa interpretação da lei do sector público empresarial, atenta a especialidade do título registado, e pede a improcedência do recurso.

Notificados os interessados não requerentes, nos termos do art. 88, nº 4, do C.R.C., vieram a V., S.A., e a E., S.A., (esta detentora de participação no capital social da primeira), a fls. 47 e ss., pedir a improcedência do recurso e a manutenção do despacho recorrido. Alegam, em súmula, que o documento que titulou o registo em apreço foi o DL nº 108/2014, de 2.7, não podendo a Conservatória do Registo Comercial recusar o registo face ao mesmo, em obediência ao princípio da legalidade, tanto mais que o referido DL não consubstancia um mero ato administrativo, mas uma verdadeira lei em sentido material.

Respondeu ainda o interessado não requerente Município de Loures (de igual modo detentor de participação no capital social da ...), a fls. 87 e ss, aderindo, no essencial, aos fundamentos invocados pelo Município de Lisboa e pedindo a procedência do recurso.

Respondeu, por último, o interessado não requerente Município de Odivelas (igualmente detentor de participação no capital social da V., a fls. 100, limitando-se a aderir ao articulado do Município de Lisboa.

Remetidos os autos à 1ª Secção de Comércio da Instância Central da Comarca de Lisboa, foi pelo Ministério Público emitido o parecer a que alude o nº 2 do art. 93 do C.R.C., a fls. 140, no sentido da improcedência do recurso, defendendo não caber à Conservatória do Registo Comercial a apreciação e decisão de pedido de declaração de nulidade de registo quando este tenha por base ato legislativo.

Seguidamente, foi, em 2.2.2015, proferida sentença que, entendendo ser o tribunal competente para a apreciação da impugnação judicial e inexistir questão prejudicial a decidir, concluiu nos seguintes termos: “(...) julgando integralmente improcedente o presente recurso, mantenho o despacho recorrido que indeferiu liminarmente o requerimento rectificação da inscrição nº 6, Ap. 27/20140718, respeitante à alteração dos estatutos da sociedade V., SA, pessoa colectiva nº 509 479 600.
Custas pela recorrente - art. art. 527º nº1 do Código de Processo Civil.
(…).”

Desta sentença, interpôs recurso o Município de Lisboa, ao abrigo do art. 93-A do C.R.C., apresentando as respetivas alegações que culmina com as conclusões a seguir transcritas:
 “
I-Ao suportar a sua decisão nestes três aspetos – (i) a desconsideração da análise da lei do sector público empresarial, (ii) considerar que o registo dos autos não é um registo por transcrição e (iii) que apenas se considera a aplicação do art. 48.º als b) ou d) (e não o art.22.º) – mal andou o tribunal a quo.
II-Pois que, em presença de um registo de um acto relativo a uma sociedade comercial que se encontra abrangida pela lei do sector público empresarial, haveria que ter em conta o regime legal respectivo, na medida em que o mesmo dispõe sobre os actos relativos à sociedade sujeitos a registo, em especial sobre as alterações de estatutos, nomeadamente o disposto nos artigos 14.º, 36.º, 37.º e 38.º do Decreto-Lei n.º 133/2013, de 3 do Outubro.
III-Por outro lado, o tribunal a quo, ao considerar que o registo em causa não é um registo por transcrição contende frontalmente com o disposto nos artigos 3.º n.º 1 r) ou 5.º e) e 53.º-A nºs 1 e 5 do CRC, e a conclusão que tira dessa não consideração de registo por transcrição - que é a de não apreciar a aplicabilidade do disposto no artigo 22.º do CRC, designadamente a alínea b) do seu n.º 1 – inquina também a sua decisão com o vício de erro de julgamento.
IV-A alteração de estatutos de uma sociedade comercial ou de uma empresa pública, é um ato sujeito a registo comercial, nos termos previstos na alínea r) do n.º 1 do artigo 3.º ou na alínea e) do artigo 5.º do CRC, consistindo num registo por transcrição, conforme decorre do disposto nos nºs 1 e 5 do artigo 53.º-A do CRC.
V-Para a concretização deste registo por transcrição, é exigível ao conservador que, em cumprimento dos artigos 32.º, 47.º e 48.º do CRC, aprecie a viabilidade do pedido em face das disposições legais aplicáveis, dos documentos apresentados e dos registos anteriores, verificando especialmente a legitimidade dos interessados, a regularidade formal dos títulos e a validade dos atos nele contidos, devendo também atender às disposições legais que impõem ou limitam o conteúdo das disposições estatutárias, devendo recusar o registo de alterações de estatutos que não cumpram as disposições legais do CSC relativas aos elementos que devem constar no contrato social, nomeadamente os previstos no artigo 9.º do CSC.
VI-Perante um pedido de registo de alteração de estatutos de uma sociedade comercial que constitui uma empresa pública lato sensu, deverá o conservador, para além de atentar no regime legal previsto no CRC e no Código das Sociedades Comerciais (CSC), ter também em conta as disposições do regime jurídico aplicável a este tipo de sociedades, em especial a Lei do Sector Público Empresarial (Decreto-Lei n.º 133/2013, de 3 de Outubro aprovado e publicado por força da respetiva lei de autorização legislativa, a Lei n.º 18/2013, de 18 de Fevereiro), na medida em que este se reflecte sobre a validade e formalidade dos atos sujeitos a registo relativos a estas sociedades.
VII-A Lei do Sector Público Empresarial (Decreto-Lei n.º 133/2013, de 3 de Outubro) consiste numa "lei de bases gerais do estatuto das empresas públicas" que constitui matéria de competência relativa da Assembleia da República, nos termos previstos na alínea u) do n.º 1 do artigo 165.º da CRP, e que, por força do disposto no n.º 2 do artigo 112.º da CRP tem natureza reforçada, o que determina o valor superior da Lei n.º 18/2013 (lei de autorização legislativa) sobre o Decreto-Lei n.º 133/2013 e deste (lei de desenvolvimento das bases gerais das empresas públicas) sobre os decretos-leis que tenham sido aprovados e publicados no seu âmbito, como é o caso do Decreto-Lei n.º 108/2014.
VIII-Prevê expressamente o artigo 36.º deste diploma que a alteração dos estatutos de empresas públicas que revistam a forma de sociedade comercial, como é o caso da V., é realizada nos termos do Código das Sociedades Comerciais, devendo os projetos de alteração ser devidamente fundamentados e aprovados pelo titular da função acionista.
IX-Recorrendo-se às disposições do Código das Sociedades Comerciais (CSC) - aplicáveis por força das supra citadas disposições legais da Lei do Sector Público Empresarial -, no que se refere aos estatutos das sociedades, para que seja válida e eficazmente concretizada uma alteração de estatutos, a mesma, quer por modificação ou supressão de alguma das suas cláusulas quer por introdução de nova cláusula, só pode ser deliberada pelos sócios da sociedade, conforme imperativamente previsto no n.º 1 do artigo 85.º do CSC.
X-A alteração do contrato de sociedade é pois, da competência exclusiva dos sócios, devendo fazer-se por maioria qualificada nos termos do disposto no artº 265º do CSC, consistindo assim, a deliberação dos acionistas, na única forma que legalmente permite proceder à alteração dos estatutos da sociedade.
XI-Tal deliberação deverá ser então precedida das formalidades previstas no referido CSC, nomeadamente quanto à respetiva convocatória incluindo a ordem de trabalhos e prazos a cumprir (artigo 375.º CSC), devendo ser reduzida a ata nos termos do artigo 388.º do CSC, ata esta que consiste na única forma de fazer prova da realização legalmente válida da assembleia geral de acionistas.
XII-Como única forma de prova da deliberação que proceder à aprovação da alteração dos estatutos da sociedade, será essa ata, acompanhada do texto dos estatutos alterados por via dessa mesma deliberação, que consistiriam - sendo os únicos documentos que legalmente comprovam a alteração dos estatutos da ... -, estes sim, no único título suficiente com base no qual poderia ter sido efetuado o registo respetivo conforme se estabelece no n.º 1 do artigo 32.º do CRC.
XIII-Conclui-se assim que o documento com base no qual foi efetuado o registo de alteração de estatutos da sociedade V.S.A., não consistindo em ata de deliberação dos seus acionistas, é um título insuficiente para fazer prova do facto que se pretendeu registar.
XIV-Encontrando-nos perante um registo por transcrição, é-lhe aplicável o disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 22.º do CRC sendo que, não tendo o conservador recusado o registo por insuficiência do título, conforme lhe competia, nem tendo deferido a pretensão do recorrente de cancelamento do mesmo, cabia ao tribunal a quo declarar a nulidade do registo AP 27/20140718.
XV-A sentença recorrida padece assim dos vícios supra identificados de erro de julgamento ao não ter procedido à apreciação e necessária aplicação do disposto nos artigos 14.º, 34.º, 36.º e 38.º do Decreto-Lei n.º 133/2013 e consequente aplicação do disposto nos artigos 9.º, 85.º e 265.º do CSC e ao ter considerado que o registo de alteração de estatutos não constitui um registo por transcrição, contrariando frontalmente o disposto nos n.ºs 1 e 5 do artigo 53.º-A e 22.º n.º 1 b) do CRC, resultando na violação das normas jurídicas aqui identificadas.
XVI-Numa correta interpretação das normas jurídicas violadas deveria assim o tribunal a quo, ter dado provimento à impugnação do recorrente, considerando que o registo em causa se trata de um registo por transcrição, que o título que lhe serviu de base é insuficiente por não consistir em deliberação dos acionistas - o único título legalmente admissível para fazer prova do facto (alteração de estatutos) e consequentemente ter declarado nulo o registo AP 27/20140718 da sociedade ...-, S.A..”
Pede a procedência do recurso e a revogação da sentença recorrida, determinando-se “a anulação da decisão impugnada e a declaração de nulidade do registo AP 27/20140718 da sociedade ...-Valorização e Tratamento de Resíduos Sólidos das Regiões de Lisboa e do Oeste, S.A.”.

Em contra-alegações, pugnou a interessada não requerente Empresa o, S.A., em súmula, pela manutenção do julgado.

O recurso foi admitido (a fls. 316) como de apelação, com subida imediata nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
***

II-Fundamentos de Facto:

A decisão da 1ª instância fixou como provada a seguinte factualidade:

1)...-Valorização e Tratamento de Resíduos Sólidos das Regiões de Lisboa e Oeste, S.A., pessoa colectiva nº …….., encontra-se matriculada na Conservatória do Registo Comercial desde 22/06/2010.
2)Em 02/07/14 foi publicado em Diário da República o Decreto Lei nº 108/2014 de 2 de Julho, nos termos do qual foi alterado o Decreto Lei nº 68/2010 de 15 de Junho e alterados os estatutos da sociedade ...-, S.A., que haviam sido aprovados em anexo àquele Decreto Lei.
3)Mediante a Ap. 27/20140718 foram inscritas no registo comercial as alterações do contrato de sociedade da ...- S.A., objecto do referido Decreto Lei nº 108/2014.
4)Em 18/08/2014 o Município de Lisboa requereu, em sede de processo especial de rectificação, a rectificação, por cancelamento, do registo submetido pela Ap. 27/20140718, com os fundamentos constantes de fls. 16 a 24 (processo em papel) cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.
5)Por despacho da Conservatória do Registo Comercial de 01/09/14 foi liminarmente indeferida a rectificação solicitada, nos termos do disposto no art. 88º do CRC, com os fundamentos constantes de fls. 26 (processo em papel), cujo teor aqui se dá por reproduzido.
                                 ***
III-
Fundamentos de Direito:

Cumpre apreciar do objeto do recurso.

Como é sabido, são as conclusões que delimitam o seu âmbito. Por outro lado, não deve o tribunal de recurso conhecer de questões que não tenham sido suscitadas no tribunal recorrido e de que, por isso, este não cuidou nem tinha que cuidar, a não ser que sejam de conhecimento oficioso.

Compulsadas as conclusões do recurso, verificamos que cumpre aqui apenas dilucidar se devia a Conservatória do Registo Comercial ter recusado o registo da alteração aos estatutos da sociedade ...-, S.A., prevista no DL nº 108/2014, de 2.7, sem qualquer ata de deliberação dos seus acionistas como estabelece o Código das Sociedades Comerciais, por tal diploma constituir título insuficiente para fazer prova do facto que se pretendeu registar.

Vejamos.

Centrando antes de mais a questão, temos que o debate terá de circunscrever-se à competência do Conservador e à observância das regras previstas no Código do Registo Comercial, pois a apreciação sobre a validade em si do ato levado a registo, formalizado num Decreto-lei, emergente da atividade legislativa do Governo, não compete nem ao Conservador nem aos tribunais judiciais. De resto, é o próprio Município requerente quem afirma ter sido já impugnado junto do STA o diploma apresentado como suporte ao registo, em virtude do mesmo consubstanciar um ato administrativo, constando, por outro lado, da certidão permanente da ..., a fls. 114 e ss., como registo provisório por natureza, que foi instaurada pelo mesmo Município ação junto do STA, em 2.10.2014, a pedir “seja declarada nula a alteração de estatutos registada pela Insc. 6 – AP. 27/20140718”.

Isto posto e recapitulando, temos que o Município de Lisboa pediu junto da C.R.C. a retificação, por cancelamento, com fundamento em nulidade, do registo submetido pela Ap. 27/20140718, respeitante à alteração dos estatutos da mesma ....

Tal registo teve por base o DL nº 108/2014, de 2.7, que alterou o DL nº 68/2010, de 15.6, e procedeu à alteração dos estatutos da sociedade ...-Valorização e Tratamento de Resíduos Sólidos das Regiões de Lisboa e do Oeste, S.A..

O despacho do Adjunto de Conservador foi de indeferimento liminar por manifesta improcedência, ao abrigo do art. 88, nº 1, do C.R.C., por entender “não caber à Conservatória a apreciação e decisão de pedido respeitante a declaração de nulidade de registo (ou sua requalificação) que tenha por base acto praticado no exercício de função legislativa”.

Impugnado este despacho, foi o mesmo mantido em 1ª instância, discorrendo-se nos seguintes termos: “(…) Defende a recorrente que a alteração de estatutos desta sociedade apenas poderia ser efectuada por deliberação dos accionistas reunidos na respectiva assembleia geral. Esse é um fundamento para atacar a validade do Decreto Lei nº 108/2014 e não do registo subsequente.
Não iremos, na verdade, sequer discutir essa questão, porquanto a validade intrínseca do Decreto Lei nº 108/2014 não é objecto deste recurso e não é objecto da competência da Conservatória. Não vamos analisar o regime da lei do sector público empresarial e regime das diferentes espécies de empresas públicas ou se o referido diploma é um acto administrativo ou político-legislativo porque só dirimimos o que a Conservatória do Registo Comercial tenha competência para apreciar, o que não sucede neste caso.
O argumento seguinte prende-se com a suficiência do título para fazer o registo, sendo alegada a violação do art. 32º do Código do Registo Comercial e a nulidade do registo nos termos do art. 22º nº1, al. b) do mesmo diploma.
Esclareça-se, antes de mais, que este não foi um registo feito por transcrição – caso em que seria aplicável o art. 22º - mas antes uma inscrição.
Assim, o que teremos que analisar é se a Conservatória deveria ter registado o registo nos termos do art. 48º, als. b) ou d), como também alegado pela recorrente.
E nesta parte desde logo se diga que só a nulidade do título apresentado – como já referimos, um Decreto Lei – poderia levar à insuficiência do título.
Para os efeitos da alínea b), resulta claro, do confronto do texto do diploma e da Ap. 27/20140718 que a alteração está devidamente titulada no diploma legal.
Para os efeitos da alínea d), há que referir, também com as contra-interessadas, que não é manifesta a nulidade do acto. É que o acto é um Decreto Lei e as leis, por definição, não sofrem de nulidade. Os negócios e as situações jurídicas podem ser nulas – contrárias à lei, bons costumes, ordem pública – mas as leis, essas poderão sofrer de ilegalidade ou inconstitucionalidade, não de nulidade. Assim, também a hipótese da alínea d), manifestamente, não se verifica.
Tudo visto, constata-se a evidente correcção do despacho recorrido, ao indeferir este concreto pedido de rectificação de forma liminar.
Acrescente-se que, resultando da certidão permanente da ... que correm já, não apenas o procedimento cautelar noticiado nos autos mas também a acção correspondente, a presente decisão (confirmada) de indeferimento liminar, em nada contende com uma futura decisão de fundo quanto à validade do Decreto Lei nº 108/2014, susceptível de registo, com a normais consequências da mesma.
Deve pois o despacho recorrido ser mantido, sendo o recurso integralmente improcedente. (…)”.  

Concordamos, no essencial, com o sentenciado, discordando apenas na parte em que considera que não estamos perante um registo por transcrição, tendo em vista o disposto no art. 53-A do C.R.C.([1]), mas daí não decorre, como veremos, diferente resultado na decisão final.

Desde logo, já acima adiantámos, não cabe aqui discutir a hierarquia das leis ou a validade intrínseca do DL nº 108/2014, de 2.7, aprovado pelo Governo em Conselho de Ministros, promulgado pelo Presidente da República e publicado em Diário da República (1ª série, nº 125), enquanto suporte idóneo do ato levado a registo. Pretender fazê-lo para justificar o registo ou a respetiva recusa é cometer ao Conservador uma atribuição que transcende o previsto no art. 47 do C.R.C., como foi salientado na resposta ao recurso. De acordo com este normativo, sob a epígrafe “Princípio da legalidade”, “A viabilidade do pedido de registo a efectuar por transcrição deve ser apreciada em face das disposições legais aplicáveis, dos documentos apresentados e dos registos anteriores, verificando-se especialmente a legitimidade dos interessados, a regularidade formal dos títulos e a validade dos actos neles contidos.”

O que aqui está em causa é, pois, a recusa do registo e seus fundamentos.

Sendo indiscutível que estamos perante um facto – alteração de estatutos – sujeito a registo, nos termos dos arts. 3, nº 1, al. r), e 5, al. e), do C.R.C., vejamos quais os motivos da recusa por parte do Conservador.

De acordo com o art. 48, nº 1, do C.R.C., “O registo por transcrição deve ser recusado nos seguintes casos:
a)(Revogada.)
b)Quando for manifesto que o facto não está titulado nos documentos apresentados;
c)Quando se verifique que o facto constante do documento já está registado ou não está sujeito a registo;
d)Quando for manifesta a nulidade do facto;
e)Quando o registo já tiver sido lavrado como provisório por dúvidas e estas não se mostrem removidas;
f)(Revogada.)
g)(Revogada.)
h)Quando a entidade se encontrar em incumprimento quanto à obrigação do registo da prestação de contas, sem prejuízo das exceções previstas no n.º 3 do artigo 17.º, e não proceder ao referido registo durante o prazo fixado para o suprimento de deficiências.”

O Município requerente, como vimos, pretende que a recusa do registo aqui se justificaria por força das alíneas b) ou d) do nº 1 do art. 48 do C.R.C., ou que esse registo deveria pelo menos ter sido feito como provisório por dúvidas, de acordo com os arts. 48, nº 2, 49 e 52, nº 2, do mesmo Código.

Ora, não pode concluir-se, em face do DL nº 108/2014, ser manifesto que o facto submetido a registo não está nele titulado (al. b) do nº 1 do art. 48), nem que é manifesta a nulidade do facto (al. d) do nº 1 do art. 48).

Em qualquer dos casos, para motivar a recusa, o vício tem de ser manifesto, inequívoco, a não reclamar maior indagação.

Em primeiro lugar, e na perspetiva que aqui se impõe, a alteração dos estatutos levada a registo está claramente titulada pelo diploma legal em questão, pelo que não se verifica a previsão da al. b) do nº 1 do art. 48.

Por outro lado, de acordo com o art. 22, nº 1, do C.R.C., o registo por transcrição será nulo:
“a)Quando for falso ou tiver sido feito com base em títulos falsos;
b)Quando tiver sido feito com base em títulos insuficientes para a prova legal do facto registado;
c)Quando enfermar de omissões ou inexactidões de que resulte incerteza acerca dos sujeitos ou do objecto da relação jurídica a que o facto registado se refere;
d)Quando tiver sido assinado por pessoa sem competência funcional, salvo o disposto no n.º 2 do artigo 369.º do Código Civil, e não possa ser confirmado;
e)Quando tiver sido lavrado sem apresentação prévia.”

Segundo o Município requerente, o registo seria nulo, nos termos da al. b) do nº 1 do art. 22, por ter sido efetuado com base em título insuficiente para a prova legal do facto registado.

Contudo, se, por um lado, o referido diploma legal constitui, formal e objetivamente, prova bastante do facto registado – não cumprindo ao Conservador, como vimos dizendo, discutir a sua idoneidade ou validade intrínseca, como ato legislativo – jamais poderia afirmar-se, para efeitos de recusa do registo ao abrigo da al. d) do nº 1 do art. 48 do C.R.C. que é manifesta a nulidade do facto registado.

Ou seja, do que se deixa dito não se retira, à luz do Código de Registo Comercial, motivo bastante para a recusa do registo pelo Conservador e menos ainda para a declaração, nesta sede, de nulidade do registo lavrado e/ou para o seu cancelamento com esse fundamento.

Pelas razões apontadas, não se vê também motivo para que o registo devesse ter sido realizado como provisório por dúvidas, de acordo com os arts. 48, nº 2, 49 e 52, nº 2, do C.R.C..

Em síntese, nenhuma razão assiste ao apelante, pelo que cumpre confirmar a sentença recorrida que manteve o indeferimento liminar do pedido de retificação especial de registo correspondente à Ap. 27/20140718 e respeitante a ..., S.A..
***

IV-Decisão:

Termos em que e face ao exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação, mantendo a sentença recorrida.
Custas pelo apelante.
Notifique.

***
  
                                                                                                     Lisboa, 20.9.2016

                                                                                                              
Maria da Conceição Saavedra
Cristina Coelho
Luís Filipe Pires de Sousa                                                                                                            

[1]Dispõe este normativo quanto às formas do registo, estabelecendo que estes “são efetuados por transcrição ou depósito”, consistindo os primeiros “na extractação dos elementos que definem a situação jurídica das entidades sujeitas a registo constantes dos documentos apresentados” e os segundos, sem prejuízo dos regimes especiais de depósito da prestação de contas, “no mero arquivamento dos documentos que titulam factos sujeitos a registo”.