Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1027/19.4T9VFX.L1-5
Relator: MAFALDA SEQUINHO DOS SANTOS
Descritores: DIFAMAÇÃO
ADVOGADO
EXCLUSÃO DA ILICITUDE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/10/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROCEDÊNCIA
Sumário: - O direito penal não pode ser chamado a intervir sempre que a linguagem verbal ou escrita utilizada incomoda ou fere susceptibilidades do visado. Apenas o deve fazer quando é atingido o núcleo essencial de qualidades morais e consideração profissional que devem subsistir para que a pessoa mantenha o respeito por si própria e seja pelos outros considerada.
- A crítica feita por advogado, no âmbito de processo judicial, da conduta de um oficial de Justiça mesmo sendo desprestigiante e estigmatizante para o visado, não é criminalmente punível desde que a crítica não seja desenraizada da actuação da mesma.
 - Tal crítica só seria criminalmente punível se a mesma fosse dirigida à pessoa da visada e não ao acto praticado pela oficial de justiça ou à sua função no processo.
- Exercendo o ofendido funções públicas, a esfera da respectiva honra encontra-se ainda mais comprimida, estando sujeita a suportar, com maior tolerância, a crítica.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam em conferência na 5.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:
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1 - RELATÓRIO
1.1  Decisão recorrida
O arguido RP condenado por sentença de 8 de Junho de 2022, pela prática, em autoria material, sob a forma consumada, de um crime de difamação agravada, previsto e punido pelos artigos 180.º, n.º 1, 182.º, 184.º e 132.º, n.º 2, al. l), do Código Penal, na pena de 130 (cento e trinta) dias de multa, à taxa diária de 6,00€ (seis euros), no montante global de 780,00€ (setecentos e oitenta euros).
Mais foi condenado no pagamento à demandante MC da quantia global de 1.000,00€ (mil euros), acrescida de juros de mora, à taxa legal (4%), desde a data da prolação da sentença, até efectivo e integral pagamento, absolvendo-se o arguido/demandado do demais peticionado pela demandante.
1.2 Recurso
Inconformado com a decisão final, dela interpôs recurso o arguido, pugnando pela respectiva absolvição pela prática do crime pelo qual foi condenado, extraindo da sua motivação as seguintes conclusões:
«(…)
1. O art.º 37.º n.º 1 n.º 2 da Constituição, com base no qual a todos é reconhecido o direito de exprimir o seu pensamento de forma livre e sem poder ser sujeito a censura. A Constituição declara tal direito, dado que o pensamento, a capacidade de pensar e de o exprimir é inerente à dignidade humana. Atendendo a o pensamento nos define como seres humanos. A liberdade de expressão é também essencial para a realização do princípio democrático. A liberdade de expressão é uma faculdade de se revelar e difundir pensamento próprio pela palavra, imagem ou qualquer meio, sem impedimentos e/ou restrições, constituindo fundamentalmente um espaço de autonomia e imunidade perante qualquer censura ou repressão a tal revelação e/ou difusão. A liberdade de expressão na sua dimensão substantiva abraça convicções, ideias, opiniões, perspectivas, apreciações de factos, juízos de valor e o pensamento não dependendo ou pressupondo a inteligibilidade, a racionalidade, o interesse social ou a respectiva veracidade. O ora recorrente ao elaborar a peça processual onde exarou as expressões pelas quais foi acusado e condenado, estava a exercer a sua liberdade de expressão. O que podia e devia. Mais, estava a fazê-lo no âmbito do mandato judicial. No exercício das suas funções como advogado. O arguido, ora recorrente, é Advogado e foi no exercício das suas funções em defesa dos interesses de um cliente que escreveu, num requerimento, aquilo que lhe foi imputado como factos que levaram à sua condenação e que aqui se deixam por reproduzidos. Com tais expressões, que exarou na contestação apresentada no processo n.º 733…., que continua a correr termos, ao contrário do que é afirmado na sentença de que agora recorre, o ora recorrente não pretendeu molestar ou colocar em causa a reputação da ofendida.
Com toda a envolvência factual exposta tanto na sentença de que ora se recorre, como na exposição apresentada neste articulado que tem como epígrafe O DESENVOLVIMENTO, para onde se remete e que aqui se dá por reproduzido. Pelo que, a decisão de que ora se recorre faz do regime legal consignado neste artigo da Constituição uma interpretação contraria à Constituição, logo uma interpretação inconstitucional, inconstitucionalidade que deverá ser declarada.
2. O art.º 19.º da Declaração Universal do Direitos do Homem, aprovada pela Assembleia Geral das Nações Unidas e cuja recepção material na Constituição é feita pelo art.º 16.º deste diploma legal, nos termos do qual todo o indivíduo tem direito à liberdade de opinião e de expressão, o que implica o direito de não ser inquietado pelas suas opiniões e o de procurar, receber e difundir, sem consideração de fronteiras, informações e ideias por qualquer meio de expressão. Donde é também forçoso concluir que a sentença ora recorrida também nesta medida violou este preceito deste diploma proveniente do Direito Público Internacional, mas com recepção material na nossa Constituição. Tudo pelos mesmos fundamentos aduzidos na conclusão 1. e devidamente explanados na parte deste articulado que tem como epígrafe O DESENVOLVIMENTO. Nesta medida, a interpretação feita na sentença de que ora se recorro é contrária à Constituição, pelo que deve ser considerada inconstitucional.
3. O art.º 10.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, convenção de Direito Público Internacional a que o Estado português está obrigado, por via também constitucional e resultada da integração de Portugal na Comunidade Europeia. Também por violação do direito à liberdade de expressão, pelas razões aduzidas na conclusão 1. e devidamente explanados na parte deste articulado que tem como epígrafe O DESENVOLVIMENTO.
4. O art.º 20.º, n.º 2 da Constituição que determina que os cidadãos têm direito ao patrocínio judiciário e a fazer-se acompanhar por advogado perante qualquer autoridade. E esse patrocínio é um dos elementos essenciais à administração da justiça. Se bem que uma das características da liberdade de expressão é o direito de qualquer pessoa ao exercício da crítica, certo é que o advogado, no âmbito do exercício do patrocínio forense tem um direito a essa crítica, mas de modo reforçado. Pretender punir-se um advogado pelo exercício do mandato é por em causa este preceito constitucional. Pelo que a interpretação que a sentença ora recorrida, na interpretação que faz do regime legal deste preceito é contrária à Constituição, logo inconstitucional. Inconstitucionalidade que deve ser declarada. Tudo pelas razões que foram devidamente explanadas na parte deste articulado que tem como epigrafe O DESENVOLVIMENTO e que aqui se dá por reproduzido.
5. O art.º 208 da Constituição que determina que A lei assegura aos advogados as imunidades necessárias ao exercício do mandato e regula o patrocínio forense como elemento essencial à administração da justiça. Nesta medida, o processo crime de que o ora recorrente foi alvo, bem como a condenação de que foi vítima e de que agora recorre, é totalmente violadora deste preceito constitucional, pois não lhe foram asseguradas as imunidades necessárias ao exercício do mandato. O processo onde o ora recorrente exarou as expressões pelas quais foi acusado e, posteriormente, condenado, ainda não teve fim. Mas o ora recorrente foi acusado, julgado e condenado, por defender o seu constituinte. Como irá futuramente exercer o seu mandato, seja no processo onde defende AN …, seja em qualquer outro? Afinal onde estão as imunidades necessárias ao exercício do mandato? Se o reconhecimento à liberdade de expressão dos advogados não for assegurado, o patrocínio judiciário fica prejudicado. Sem as imunidades necessárias ao exercício do mandato é o próprio Estado de Direito que fica prejudicado. O advogado deve poder exprimir livremente o seu pensamento, quando aprecia, discute, critica, tendo em vista o que julgue necessário ao bom desempenho do seu mandato. E se assim não for fica prejudicado o direito de defesa dos seus clientes. E sem o exercício desse direito fica prejudicada a realização da JUSTIÇA. A sentença ora recorrida fez do regime previsto neste artigo uma interpretação contrária à Constituição, logo inconstitucional. Donde resulta que tal inconstitucionalidade deve ser declarada. Tudo pelas razões que foram devidamente explanadas na parte deste articulado que tem como epigrafe O DESENVOLVIMENTO e que aqui se dá por reproduzido.
6. O art.º 114.º, n.º 3 da Lei n.º 3/99, que estipula que a imunidade do desempenho eficaz do mandato forense é assegurada aos advogados pelo reconhecimento legal e pela garantia de efectivação (...) b) do direito ao livre exercício do patrocínio e ao não sancionamento de actos conformes ao estatuto da profissão. Pois tal imunidade não lhe foi assegurada na sentença de que ora se recorre. Tudo pelas razões expostas na conclusão 5. e que foram devidamente explanadas na parte deste articulado que tem como epigrafe O DESENVOLVIMENTO e que aqui se dá por reproduzido.
7. O n.º 1 e n.º 2 do art.º 12.º, n.º 1 da Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto que determinam que o patrocínio forense por advogado constitui um elemento essencial na administração da justiça e é admissível em qualquer processo, não podendo ser impedido perante qualquer jurisdição, autoridade ou entidade pública ou privada. Bem como para garantir o exercício livre e independente do mandato que lhe seja confiado, a lei assegura aos advogados as imunidades necessárias a um desempenho eficaz, designadamente: (...) o direito ao livre exercício do patrocínio ao não sancionamento pela prática de actos conformes ao estatuto da profissão. Perante um conflito entre o direito à liberdade de expressão e o direito a exercer o mandato sem constrangimentos, com as imunidades necessárias, de que estes normativos são expressão ordinária, deve entender-se que a tutela jurídico-penal do direito à honra deve ser preterida. Pois o exercício do mandato com as imunidades necessárias, corresponde ao desempenho de uma função de interesse público, o que lhe confere uma dignidade reforçada. Entender o contrário, seria abrir o caminho a, por meios burocráticos e/ou judiciais, diminuir de forma intolerável uma função pública de valor acrescido - o direito à liberdade de expressão do advogado no exercício do mandato com as imunidades necessárias. Mesmo considerando que as expressões usadas pelo ora recorrente possam ser ofensivas da honra da ofendida, o que só por mera hipótese se coloca, sem contudo conceder, o advogado pode fazer imputações e usar expressões ofensivas da honra das pessoas, no exercício do patrocínio, desde que necessárias à defesa da causa.
8. O n.º 2 do art.º 180.º do Código Penal, dado que, como acima se demonstrou, não houve qualquer animus difamandi por parte do ora recorrente, pelo que o elemento intelectual do elemento volitivo do dolo sempre estaria ausente. Mas da prova produzida resulta mais. Ficou provado que a factualidade referida pelo arguido do que estava em causa o proc. n.º 733 … era verdadeira. Assim, o facto de a senhora funcionária ter notificado PF como gerente de direito, sem que exista documento de onde possa retirar essa conclusão e/ou sentença transitada em julgado que determine que o constituinte do ora recorrente, era o gerente de facto, é uma realidade objectiva, concreta e real. É um facto. E fê-lo. Fê-lo no exercício das suas funções. Notificou, uma notificação judicial, no âmbito de um processo judicial e classificou o notificando, PF, como gerente de direito. Perante esta factualidade a senhora funcionária decide, tanto quanto o ora recorrente podia configurar, notificar o PF não como arguido, não como gerente da CONTRABALHO. Mas sim como gerente de direito.
Como já acima se referiu e apenas em resumo se repete, uma certidão do registo comercial não aponta ninguém como gerente de direito. Isso é uma classificação da doutrina e da jurisprudência. Assim, a senhora funcionária se queria notificar PF na qualidade de gerente da CONTRABALHO deveria tê-lo feito exactamente desse modo. A existência de tal notificação com a classificação de PF como gerente de direito é um facto. E é um documento judicial. Insiste-se, não existe documento ou sentença transitada em julgado que demonstre a gerência de facto do constituinte do ora recorrente. Logo a imputação de um facto comportamental por parte da senhora funcionária, numa notificação judicial, um acto oficial do tribunal, é naturalmente a exceptio veritatis excludente da ilicitude prevista na al. d) do n.º 2 do art.º 180.º do Código Penal. Tudo como se explanou no presente articulado na parte que tem como epígrafe O DESENVOLVIMENTO.
 9. O art.º 16.º do Código Penal. Dado que, para além de tudo o mais, o arguido, hoje, após o julgamento, após ter ouvido a senhora funcionária no seu depoimento, após ter ouvido a testemunha “S”, Juiz de Direito, já não teria exarado as expressões pelas quais foi acusado e condenado. Pois ficou a saber que a senhora funcionária não se determinou a tomar partido a favor de PF. Não decidiu, livre e conscientemente, usar a sua autoridade como funcionária judicial para favorecer o PF, falsificando até um documento com as declarações falsas que aí colocou - a classificação de PF como gerente de direito. Hoje, após o julgamento o arguido sabe que afinal, em vez de livre determinação e vontade, a senhora funcionária estava a cumprir ordens de uma senhora Juiz de Direito, a, nestes autos, testemunha, “S”. Ou seja, ao exarar as expressões pelas quais foi acusado e condenado estava em erro sobre factos essenciais. A senhora funcionária em causa não se autodeterminou de modo livre e consciente para tomar partido no litígio em causa. E se disso soubesse à data dos factos, o arguido não teria exarado as já referidas expressões. Em consequência deve esta circunstância ser tida em consideração e o ora recorrente ser absolvido, se as circunstâncias anteriores, de per si, não forem suficientes.»
1.3 O recurso foi admitido, por ser tempestivo e legal.
1.4 O Ministério Público apresentou resposta ao recurso interposto pelo arguido, pugnando pela respectiva improcedência e consequente manutenção da decisão recorrida, formulando as seguintes conclusões:
«(…)
1. Não assiste razão ao recorrente quando sustenta que, ao exarar as expressões, transcritas em sede de motivação, na peça processual “contestação”, mais não fez do que exercer o seu direito à liberdade de expressão, reforçado por se tratar de advogado em exercício de funções, e na (pretensa) defesa dos interesses do seu cliente.
2. A ofendida limitou-se a efectuar uma notificação a PF na qualidade de gerente de direito, relativamente ao qual havia sido já proferido despacho de arquivamento, no inquérito por crime de abuso de confiança fiscal, com tal fundamento, ao que acresce o facto de resultar da certidão de registo comercial da sociedade, ser este quem constava como gerente.
3. O ora recorrente insurge-se contra tal notificação nos moldes que constam do ponto 4 dos factos provados, transcritos em sede de motivação.
4. O mesmo imputa, concretamente, à ofendida, uma “atitude, propositada, consciente e deliberada” e uma “intenção de causar prejuízo a terceira pessoa, na situação em apreço ao ‘AN’”, referindo que a mesma com a sua atitude “apenas pretendeu prejudicar o AN”, mais lhe imputando a prática dos crimes de abuso de poder, denegação de justiça e prevaricação, e falsificação de documento.
5. Sucede que não foi demonstrado qualquer facto ou circunstância que permitisse considerar que o mesmo tinha fundamento para, razoavelmente e em boa fé, imputar à ofendida uma atitude propositada e deliberada de prejudicar AN, seu cliente.
6. As consequências, para a tramitação dos autos, que o recorrente entendeu ser de retirar de tal notificação - sendo PF notificado como gerente de direito, implicaria que AN era gerente de facto - “não tem qualquer cabimento lógico nas regras processuais penais e nas máximas da experiência comum.” (itálico negrito e sublinhado nossos).
7. Como salienta a douta sentença, “(…) discutindo-se no aludido processo se AN exerceria gerência de facto ou de direito, seria a decisão do Tribunal, transitada em julgado, após a realização de audiência de julgamento, que teria a aptidão para apreciar e resolver definitivamente a questão, com todos os efeitos legais daí inerentes.
8. A alegação de que a qualificação como “gerente de direito” constante da notificação efectuada pela ofendida condicionaria, de algum modo, a decisão do Tribunal no que concerne a tal questão, conforme o arguido sustenta, não faz, pois, qualquer sentido, à luz das regras de processo penal, conforme o arguido não pode deixar de saber, atenta a sua qualidade profissional.”
9. As imputações feitas pelo recorrente têm um significado inequivocamente pejorativo e uma manifesta aptidão lesiva da honra e consideração, tanto mais atentas as funções de oficial de justiça desempenhadas pela ofendida, sendo aliás por causa de tais funções que o recorrente faz as imputações objecto dos autos.
10.  E se é certo que, (...) o Advogado em exercício de patrocínio pode fazê-las ou usá-las porque beneficia do regime especialmente qualificado de liberdade de expressão que decorre do artigo 208.º da CRP (...) as mesmas “(...) têm de ser necessárias (...) à defesa da causa.” (cf. Parecer do Conselho Superior da ordem dos Advogados emitido em 23 de Setembro de 2005) O que não sucede manifestamente no caso dos autos.
11.  Entendemos com a douta sentença a quo que as imputações realizadas na sequência da realização da supracitada notificação: “(...) afiguram-se inócuas e irrelevantes para a questão de saber se o cliente do arguido havia exercido uma gerência de facto ou de direito e, eventualmente, se havia praticado o crime de que havia sido acusado e pronunciado A
12.  Assumem, porém, “contornos pejorativos tais que ultrapassam o limite do aceitável no que respeita ao exercício da liberdade de expressão, ainda que no exercício do patrocínio forense.”
13. Impõe-se assim concluir não existir qualquer violação do direito à liberdade de expressão, com a condenação, nem tão pouco das “imunidades necessárias ao exercício do mandato".
 14. Não corresponde à verdade que a senhora funcionária tenha notificado PF como gerente de direito sem que existisse um documento de onde pudesse retirar essa conclusão, dado o despacho de arquivamento proferido nos autos, que não foi objecto de qualquer censura por parte do recorrente, assim com a própria certidão de registo comercial da sociedade em causa.
15. Concluiu, e bem, a douta sentença pela inexistência de interesse legítimo por parte do recorrente ao fazer uso das expressões em causa, assim como não foi demonstrada, nem sequer remotamente, a veracidade das imputações efectuadas, ou sequer que o arguido tivesse fundamento sério para, em boa fé, as reputar verdadeiras, o que afasta os requisitos das alíneas a) e b) do n.º 2 do artigo 180.º do Código Penal.
16. Não assiste razão ao recorrente quando sustenta estar em erro sobre factos essenciais, por desconhecer que a funcionária havia efectuado a notificação em causa, sob orientação de juiz de direito.
17. Tal circunstância traduz apenas o que a doutrina e jurisprudência têm considerado como um “error in persona”, "sobre a pessoa" responsável, directa ou indirectamente, pelo facto praticado.
18. Como ensina Figueiredo Dias (v. motivação) quando o agente se encontra em erro quanto à identidade da pessoa a atingir, tal erro é irrelevante “(...) uma vez que a lei proíbe a lesão não de um determinado (...) indivíduo [seja funcionário ou magistrado judicial ou do Ministério Público] mas de tod[a] e qualquer (...) pessoa compreendidos no tipo de ilícito.”
19. No caso dos autos o recorrente imputou a funcionária judicial a prática de crimes e uma intenção de prejudicar conscientemente um interveniente processual. A circunstância do mesmo referir que agiria de forma distinta, v.g. “não teria exarado as já referidas expressões’ caso tivesse conhecimento de que a funcionária teria feito a notificação sob indicação de juiz de direito, apenas reforça a convicção de que quis atingir verdadeiramente a referida funcionária.
20. Até porque, reitera-se, em momento algum se insurgiu, e muito menos nos moldes em que o fez quanto à ofendida, contra o magistrado do Ministério Público que em sede de despacho de arquivamento qualificou PF como “gerente de direito”.
21. Termos em que se entende não dever ser valorado o erro a que alude o recorrente, em moldes que permitam a exclusão da sua responsabilidade criminal.»
1.5 Neste Tribunal, o Ex.mº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, subscrevendo a posição assumida pelo Ministério Público na 1.ª instância e referindo: « Dissentindo do juízo condenatório, propugnando pela absolvição, vem impugnar, unicamente, a matéria de direito, deixando intocável a factualidade (provada e não provada), a qual, aparentemente, a nosso ver, não contém, subjacente, erros decisórios (art.º 410º, 2, CPP), como seguramente Vªs Exas aferirão, com os poderes oficiosos que detêm para o efeito.
 A ser assim, pela sua completude, racionalidade, logicidade e obediência às regras da normalidade (art.ºs 127º e 355º, CPP), não se antevê como questionar o juízo subsuntivo e condenação definidos pelo Tribunal “ a quo”, decorrendo com inevitabilidade tal qualificação jurídico-penal.
Porém, pese a resignação com a matéria de facto pelo recorrente (inimpugnou-a na forma ampliada, também: cfr art.º 412º, 3, CPP), vem suscitar um conjunto de pretensas inconstitucionalidades e ilegalidades (art.ºs 37º, 1 e 2, 20º,2, 208º, CRP, 114º, 3,b), L 3/99, 13.01, 12º, 1 e 2, L 62/13, 26.08, 180º,1 e 2, a) e b) e 16º, CP, bem como inobservância dos art.ºs 19º, DUDH e 10º, CEDH), que inquinam e inibem a bondade da douta Decisão.
Já, em Resposta muito proficiente, com excelente tratamento jurídico e expositivo, logrou a Exma PR afecta ao JLCriminal recorrido desmontar o argumentário recursório, evidenciando a falácia dessa tese, posicionamento que acompanhamos integralmente.
Na verdade, depois de ter aceite a factualidade “in totum”, o que se enfatiza, ensaia invocar interpretações e aplicações normativas, pelo Julgador, “in casu”, que traíram o sentido constitucional (aqui abrangendo Direito Público Internacional recepcionado, pelo Estado Português, na Ordem Interna),que lhe garantem, como a todo o mortal, a livre emissão de opinião e de divulgação do pensamento (liberdade de expressão), com a necessária compressão do direito à honra e dignidade, no limite.
Mais alega que, estando (aquando da elaboração e junção da antedirá Contestação) no desempenho funcional, no exercício de mandato forense, poderia sempre expressar-se irrestritamente, em prol do patrocínio que assumiu, por estar no domínio dum pleito judicial.
Acresce à sua argumentação que jamais teve o “animus difamandi” e que a factualidade/imputação vertidas na peça processual correspondem à realidade (!).
Culmina, esclarecendo que desconhecia que os termos da notificação expedida pela demandante (enquanto OJ no pº 733 …) o fora sob expressa indicação da M.m.ª Juíza titular dessoutro processo, o que, a saber antecipadamente, levá-lo-ia a omitir as expressões por si lavradas.
Deve dizer-se que tanto a liberdade de expressão como o livre exercício de mandato e patrocínio, com assento em Direito Internacional e na Carta Magna, inquestionavelmente (art.ºs 37º,1 e 2, 32º, 1 e 3, e 208º, CRP), coabitam com outros direitos da mesma igualha (art.º 26º, CRP), devendo conciliar-se essa co-existência, através da utilização dos primeiros na justa medida do necessário e do adequado (art.º 208º, CRP) aos fins visados, salvaguardando, assim, a assertividade dos segundos.
Ora, cumpre recuperar que o recorrente/arguido é jurista, conhecedor do universo do Direito, bem sabendo que tais afirmações lançadas para a Contestação, imputando crimes (públicos) à demandante, de forma directa, iriam atingir a sua honorabilidade e reputação pessoal e funcional, podendo mesmo constituir um crime de denúncia caluniosa (art.º 365º, CPP).»
1.6 Notificados nos termos previstos no art.º 417.º, n.º 2 do Cód. Processo Penal, não foi apresentada resposta.
1.7 Colhidos os vistos e realizada a Conferência, cumpre decidir.
2.  Questões a decidir no recurso
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões da motivação que o recorrente produziu para fundamentar a sua impugnação da decisão da primeira instância, sem prejuízo das questões que forem de conhecimento oficioso (artigos 379.º, 403º, 410.º e 412º, nº 1, do Cód. Processo Penal e AUJ n.º 7/95 de 19/10/95, in DR de 28/12/1995).
Não se detecta questão de conhecimento oficioso a apreciar (nomeadamente vícios previstos no artigo 410.º do Cód. Processo Penal e que afetem a decisão recorrida).
Atendendo às conclusões apresentadas e uma vez que o recurso se cinge à matéria de direito cumpre apreciar se a conduta do recorrente preenche o tipo legal do crime de difamação agravada pelo qual foi condenado.
3. Da Decisão Recorrida
Transcreve-se a decisão recorrida nas partes relevantes, começando pela matéria de facto:
«(…)
2.1.  Matéria de Facto Provada
Realizada a audiência de julgamento, encontram-se provados, com relevância para a boa decisão da causa, os factos seguintes:
1. O arguido, RP, na qualidade de advogado/defensor, representou AN, no âmbito do processo 733 …, que correu termos no Juízo Local Criminal de Vila Franca de Xira (J…).
2. Por sua vez, a ofendida, MC, oficial de justiça, exercia funções, no ano de 2019, no Tribunal de Vila Franca de Xira.
3. A 25/03/2019, via Citius, e mediante assinatura digital certificada, o arguido, RP, dirigiu ao referido processo, em representação de AN, a sua "Contestação".
 4. Na referida peça processual, endereçada ao Juiz de Direito do processo, consta, além do mais, os seguintes excertos, reportados à ofendida, MC:
- ponto 24.º da contestação: "Tomou o AN conhecimento que a funcionária encarregue do processo notificou o PF como gerente de direito da empresa Cont....  da notificação com a referência 138301336";
- ponto 25.º da contestação: "A funcionária que praticou o acto foi a Sra. D. MC - Escrivão Auxiliar do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte - Juízo Local Criminal de Vila Franca de Xira - Juiz …";
- ponto 26.º da contestação: "Ora, com a devida vénia a funcionária não pode proceder a esta qualificação na notificação - enquanto gerente de direito - porquanto não existe qualquer sentença transitada em julgado que tenha apreciado tal questão";
- ponto 27.º da contestação: "Com esta atitude, propositada, consciente e deliberada a funcionária teve intenção de causar prejuízo a terceira pessoa, na situação em apreço ao AN , tendo cometido um crime de abuso de poder nos termos e para os efeitos do artigo 382.º do CP";
- ponto 28.º da contestação: "Ora, tendo praticado o acto de forma consciente, deliberada e com intenção de prejudicar o AN, pois da certidão comercial apenas consta o nome do PF enquanto gerente da empresa, cometeu igualmente a funcionária o crime de denegação de justiça e prevaricação previsto e punido nos termos e para os efeitos do artigo 369.º do CP";
- ponto 29.º da contestação: "Com a sua conduta a funcionária cometeu igualmente um crime de falsificação de documento, porquanto fez constar falsamente em documento facto juridicamente relevante, previsto e punido nos termos e para os efeitos do artigo 256.º do CP";
- ponto 30.º da contestação: "Reitera-se a funcionária com a sua atitude apenas pretendeu prejudicar o AN , sem cuidar uma posição de absoluta imparcialidade, fazendo juízos de valor antes do transito em julgado da decisão que pudesse conhecer da factualidade".
5. O arguido, RP, na qualidade de autor da peça processual, não podia ignorar que, ao serem realizadas tais imputações, na "Contestação" - desde logo, invocando uma atuação desonesta, propositada e criminosa, por parte da ofendida, com o fito de prejudicar outrem - as mesmas ofenderiam a honra e consideração de Maria Helena Costa, como quis e conseguiu.
6.  Mais sabia o arguido, da função de oficial de justiça que aquela desempenhava, sendo por causa dessa mesma função que assim actuou.
7. Em tudo agiu de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que tal facto era proibido e punido por lei.
DO PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL:
8. A demandante é Oficial de Justiça, escrivã auxiliar, e exerce funções no Núcleo de Vila Franca de Xira, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte desde 2000.
9. O demandado, por ser advogado, sabia que a contestação seria consultada quer por magistrados quer por colegas da demandante Oficiais de Justiça, para além das partes do respectivo processo.
10.  Quando a demandante estava a preparar o processo para o julgamento constatou o que o demandado tinha escrito sobre si (pontos 24.º a 30.º da contestação) e ficou muito perturbada e nervosa, porque nunca tinha passado por uma situação parecida.
11.  A demandante ficou impedida de tramitar o processo n.º 733 …
12.  Em consequência directa e necessária da descrita conduta do arguido, a demandante passou a andar angustiada, perturbada, deprimida, envergonhada, por saber que colegas Oficiais de Justiça e Magistrados tinham tido conhecimento do teor dos pontos 24.º a 30.º da contestação.
13. A demandante é uma pessoa respeitável, séria e cumpridora, que no exercício da sua profissão sempre procurou pautar a sua conduta por um elevado sentido das suas responsabilidades, com escrupuloso respeito pela satisfação do interesse público.
14. Em consequência directa e necessária da descrita conduta do arguido, a tranquilidade da demandante, a sua alegria no trabalho, e a sua serenidade, foram abaladas.
DA CONTESTAÇÃO:
15. O arguido não conhece a demandante pois, não é, nem nunca foi, pessoa que seja das suas relações interpessoais ou pessoa que lhe tivesse sido apresentada.
16. O arguido sempre agiu, na sua carreira profissional de cerca de 30 anos, com boa fé, transparência e lisura profissional.
Mais se provou que:
17. No âmbito do processo 733 … a demandante procedeu à notificação pessoal de PF, na qualidade de "gerente de direito da empresa Cont....  - Empresa de Trabalho Temporário, Lda.", datada de 14/08/2018.
18. O arguido admitiu parcialmente os factos.
19. Em sede de audiência de julgamento, o arguido efectuou pedido de desculpa à demandante, o qual apenas não foi realizado na presença desta atenta a vontade manifestada pela mesma.
20. Não se encontram averbadas quaisquer condenações no Certificado de Registo Criminal do arguido.
21. O arguido exerce actividade laboral enquanto advogado, auferindo mensalmente entre €1500 a 1600€
22. Reside em casa arrendada, suportando mensalmente a quantia de €903,04 a título de renda.
23. Vive com a companheira e o filho desta, de 13 anos de idade.
24. Tem a licenciatura em Direito.
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2.2. Matéria de Facto Não Provada
Com relevo para a boa decisão da causa, não se provou que:
a) Em consequência directa e necessária da descrita conduta do arguido, a motivação da demandante foi abalada.
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No mais, inexistem factos não provados, sendo que não foi considerada a matéria de Direito, conclusiva, meramente negatória, ou sem relevância para a boa decisão da causa.
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2.3. Motivação da Decisão de Facto
Relativamente à matéria da acusação, o Tribunal formou a sua convicção com base nas declarações do arguido, da demandante e nos depoimentos das testemunhas inquiridas em sede de audiência de julgamento, conjugadas com a prova documental junta aos autos, tendo tal prova sido concatenada entre si e apreciada segundo as regras da experiência e ao abrigo do princípio da livre apreciação da prova, consagrado no artigo 127.º do Código de Processo Penal.
Foram inquiridas as seguintes testemunhas:
- IC, Magistrada do Ministério Público que exerceu funções no Tribunal de Vila Franca de Xira entre 2018 e 2019.
- AG, Escrivão de Direito que exerceu funções no Tribunal de Vila Franca de Xira de 03/09/2018 a 31/08/2020.
- TS, Oficial de Justiça a exercer funções no Tribunal de Vila Franca de Xira desde Abril de 2018.
- AT, Escrivão de Direito a exercer funções no Juízo Local Criminal de Vila Franca de Xira, desde Setembro de 2012.
- AC, Magistrada Judicial a exercer funções no Juízo Local Criminal de Vila Franca de Xira - Juiz 3, desde Setembro de 2014.
 - SV, Magistrada Judicial a exercer funções no Juízo Local Criminal de Vila Franca de Xira - Juiz 1, desde Setembro de 2016.
- AP, advogado, amigo do arguido há mais de 30 anos e seu colega de escritório.
Assim, quanto à matéria vertida nos pontos 1 a 4 e 18 da matéria de facto provada, a decisão do Tribunal fundou-se, desde logo, nas declarações do arguido, que admitiu tal factualidade, as quais se mostraram consentâneas com o teor da certidão da contestação e da procuração forense apresentadas no processo n.º 733 …  de fls. 3 a 13, e com as declarações da demandante.
Em particular, no que respeita ao exacto teor das expressões descritas no ponto 4 da matéria de facto provada, teve-se em consideração o conteúdo da contestação apresentada no já referido processo n.º 733…, cuja certidão consta de fls. 3 a 13.
Quanto aos elementos psicológicos e volitivos imputados ao arguido nos pontos 5 a 7 da matéria de facto provada a convicção do Tribunal fundou-se numa apreciação da factualidade objectiva apurada à luz das máximas de experiência comum e das regras do normal acontecer, tendo-se considerado que aqueles elementos decorriam de forma segura, por inferência e com apoio nas regras de normalidade, das descritas condutas do arguido, tendo presente o contexto em que as aludidas expressões foram proferidas.
Com efeito, o arguido negou que com as expressões que exarou na contestação apresentada no processo n.º 733… pretendesse molestar ou colocar em causa a reputação da ofendida.
Explicou, em particular, que no referido processo estava em causa crime de natureza fiscal e que no seu âmbito se discutia se AN (que o arguido representava) exerceu uma gerência de facto ou de direito.
Sustentou que a notificação de PF, na qualidade de "gerente de direito da empresa Cont.... ", realizada pela ofendida, implicava, directa e necessariamente, que AN era gerente de facto, e que a ofendida não poderia ter realizado a notificação de tal pessoa na qualidade de "gerente de direito" sem que houvesse uma sentença transitada em julgado a declarar tal qualidade.
Referiu ainda que as expressões em causa foram escritas no exercício do patrocínio forense de AN, no livre exercício da liberdade de expressão.
O depoimento da testemunha AP veio secundar as declarações do arguido quanto à inexistência de intenção do mesmo de visar em concreto a ofendida e de a melindrar.
Referiu, em particular, que o arguido mantém com os funcionários judiciais uma postura de correcção, consideração e trato exemplar, referindo que o arguido igualmente recebe daqueles que contacta com maior habitualidade consideração e afecto.
 Declarou ainda que o arguido, no exercício da sua profissão, adopta um estilo veemente, forte, lutador e não asséptico, tomando o interesse e a dor do cliente, usando em prol dos seus constituintes a liberdade de expressão.
Mais referiu que teve conhecimento da peça processual em causa e que o arguido não pretendeu visar em concreto a funcionária, nem melindrá-la, consubstanciando o seu teor apenas o "estilo próprio" do arguido, que encarna de força viva a defesa do cliente.
Ora, pese embora as declarações do arguido se mostrem corroboradas pela prova documental junta aos autos no que concerne ao contexto em que exarou as expressões em causa na contestação, esse contexto não permite concluir pela inexistência de intenção do arguido de ofender a honra e a consideração da demandante através das mesmas.
Com efeito, resulta do teor da acusação e da decisão instrutória proferidas no processo 733… (de fls. 246 a 253 verso), que AN foi acusado e pronunciado pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal, juntamente com a sociedade arguida Cont....  -, Lda..
Por outro lado, resulta da leitura da contestação apresentada no processo 733… que nessa sede foi alegado pelo arguido, em representação de AN, que este "não é nem nunca foi gerente da sociedade Cont....  , Lda." (ponto 6.º), "O aqui AN  nunca foi gerente de facto ou de direito da sociedade Cont.... " pois tal função cabe ao Sr. PF e a ele exclusivamente" (ponto 9.º), "O AN , em momento algum, geriu por qualquer forma a Cont....  quando mais não seja por falta de legitimidade para o fazer" (ponto 10.º), entre outra factualidade no mesmo sentido (fls. 3 a 9).
Mais decorre do teor da certidão da notificação de fls. 26, que no âmbito do processo 733…, a 14/08/2018, a ofendida procedeu à notificação pessoal de PF, na qualidade de "gerente de direito da empresa Cont....  - Lda.".
Todavia, ainda que o arguido tenha exarado tais expressões numa peça processual mediante a qual exercia a defesa do seu cliente e ainda que a ofendida tenha efectivamente procedido a tal notificação, as expressões exaradas assumem contornos tais que ao proferi-las, por escrito, nessa sede, o arguido não podia deixar de saber que as mesmas ofenderiam a honra e consideração da demandante, pois que se revelavam indubitavelmente idóneas para o efeito.
Na verdade, o arguido não se limita a invocar a circunstância de a ofendida ter procedido à qualificação - de gerente de direito - na notificação e a sustentar que a ofendida não podia proceder a tal qualificação.
O arguido vai muito mais longe, imputando, concretamente, à ofendida, uma "atitude, propositada, consciente e deliberada" e uma "intenção de causar prejuízo a terceira pessoa, na situação em apreço ao AN ", mais consignando "Reitera-se a funcionária com a sua atitude apenas pretendeu prejudicar o AN ".
Por outro lado, não foi demonstrado qualquer facto ou circunstância que permita considerar que o arguido tinha fundamento para, razoavelmente e em boa fé, imputar à ofendida uma atitude propositada e deliberada de prejudicar AN .
Na verdade, resulta da certidão permanente da sociedade Cont.... , de fls. 33 a 37, a inscrição da designação de PF como gerente em 2011 (Inscrição 4, apresentação 133/20110210), sem que se encontre averbada a cessação de tais funções.
E, conforme se alcança do teor do próprio artigo 28.º da contestação do processo 733…, o arguido tinha conhecimento que PF- o notificado - constava da certidão do registo comercial da sociedade Cont....  como gerente da mesma.
Por outro lado, resulta do teor das notificações cuja certidão consta de fls. 132 a 138, que PF já havia sido anteriormente notificado no processo na qualidade de "gerente de direito", por ordem de Magistrado (fls. 133), por notificação elaborada por outra funcionária (fls. 135).
Ademais, em audiência de julgamento, o próprio arguido referiu que não sabe o que esteve no pensamento da ofendida ao proceder a tal notificação na qualidade em que o fez.
Acresce que do contexto que precedeu a realização de tal notificação, explicado pela demandante e secundado pela testemunha SV, igualmente não se retira qualquer circunstância que permitisse imputar à demandante uma actuação propositada no sentido de prejudicar AN.
Com efeito, explicou a demandante que uma senhora advogada compareceu na secção exigindo que lhe fosse efectuada uma notificação no âmbito do referido processo, e que por se lhe terem suscitado dúvidas consultou a senhora juiz que se encontrava de turno (já que era período de férias judiciais), tendo sido esta quem lhe deu indicações para notificar PF na qualidade de "gerente de direito", conforme fez.
A testemunha SV confirmou que foi consultada nos moldes relatados pela ofendida e que após ter consultado os autos e a certidão permanente da sociedade, tendo verificado que PF constava da certidão como gerente da sociedade, deu indicações à ofendida para proceder à notificação de tal pessoa nessa qualidade, admitindo como possível ter dado a indicação para a notificação ser realizada na qualidade de "gerente de direito".
Ora, não se vislumbra no aludido circunstancialismo que antecedeu a realização da notificação, e bem assim, no contexto em que a contestação foi apresentada, qualquer circunstância que conferisse ao arguido razões justificativas para, em boa fé, ter como verdadeira uma actuação intencional e deliberada da demandante de prejudicar AN.
 Por outro lado, a argumentação do arguido de que a notificação de PF, na qualidade de "gerente de direito da empresa Cont.... ", realizada pela ofendida, implicava, directa e necessariamente, que AN era gerente de facto, e que a menção de tal qualidade nessa notificação surtiria qualquer efeito no desfecho do processo não tem qualquer cabimento lógico, nas regras processuais penais e nas máximas da experiência comum.
Com efeito, discutindo-se no aludido processo se AN exerceria gerência de facto ou de direito, seria a decisão do Tribunal, transitada em julgado, após a realização de audiência de julgamento, que teria a aptidão para apreciar e resolver definitivamente a questão, com todos os efeitos legais daí inerentes.
A alegação de que a qualificação como "gerente de direito" constante da notificação efectuada pela ofendida condicionaria, de algum modo, a decisão do Tribunal no que concerne a tal questão, conforme o arguido sustenta, não faz, pois, qualquer sentido, à luz das regras de processo penal, conforme o arguido não pode deixar de saber, atenta a sua qualidade profissional.
Assim, perante o exposto, face às concretas expressões exaradas e ao aludido contexto em que as mesmas foram proferidas, imputando à ofendida uma "atitude, propositada, consciente e deliberada", uma "intenção de causar prejuízo a terceira pessoa, na situação em apreço ao AN ", mais consignando "Reitera-se a funcionária com a sua atitude apenas pretendeu prejudicar o AN ", e inclusivamente, imputando à ofendida a prática dos crimes de abuso de poder, de denegação de justiça e prevaricação, e de falsificação de documento, sem qualquer sustentação fáctica que permitisse ao arguido, em boa fé, ter como verdadeira tal intenção deliberada de prejudicar AN  e o cometimento dos referidos crimes, não podia o arguido deixar de saber que tais imputações eram idóneas a ofender a honra e consideração da ofendida, como ofenderam, face ao significado corrente que tais imputações encerram, sendo que o homem médio comum se sentiria ofendido na sua honra e consideração com as mesmas, como quis e conseguiu.
No que concerne à matéria vertida no ponto 8 da matéria de facto provada, a decisão do Tribunal fundou-se nas declarações da ofendida, a qual relatou a aludida factualidade no exacto sentido em que resultou provada, sem que tenham sido contrariadas por qualquer meio de prova.
No que respeita à matéria vertida no ponto 9 da matéria de facto provada, a decisão do Tribunal fundou-se nas máximas da experiência da comum e da normalidade do acontecer, sendo que atenta a qualidade profissional do arguido e os intervenientes que estão envolvidos na normal tramitação de um processo crime, o arguido não podia deixar de saber que tal peça processual seria consultada por magistrados, oficiais de justiça e pelas partes do processo.
No que concerne à matéria vertida no ponto 11 da matéria de facto provada, a decisão do Tribunal estribou-se nas declarações da demandante, que confirmou a aludida factualidade, secundadas pelos depoimentos das testemunhas CC e AG, que se revelaram seguros e concordantes quanto a esta matéria, sem que tenham sido produzidos quaisquer meios de prova que contrariassem tais depoimentos.
Quanto à matéria vertida nos pontos 10, 12 e 14 da matéria de facto provada, a decisão do Tribunal fundou-se nas declarações da demandante, que relatou as circunstâncias em que teve conhecimento das expressões exaradas a seu propósito na contestação apresentada e que descreveu de forma espontânea, segura e consistente os sentimentos que vivenciou em consequência da descrita conduta do arguido, em particular, os sentimentos de nervosismo, vergonha e tristeza, por ter visto a sua integridade colocada em causa, referindo ainda que a descrita conduta lhe causou insónias e noites mal dormidas, situação que a levou a tomar medicação para dormir.
As declarações da demandante afiguraram-se consentâneas com as máximas da experiência comum, atenta a idoneidade da conduta perpetrada pelo arguido suscitar tais sentimentos e efeitos, e mostraram-se secundadas pelos depoimentos das testemunhas inquiridas, pelo que mereceram credibilidade.
Com efeito, a testemunha IC, Magistrada do Ministério Público com quem a ofendida trabalhava, relatou o estado anímico da ofendida que observou nos meses subsequentes ao sucedido, referindo que a ofendida ficou perturbada e nervosa, tendo, inclusivamente, chegado a ver a ofendida chorar, estado esse que durou cerca de dois meses.
Também a testemunha CC, Magistrada Judicial titular do Juízo onde a ofendida exercia funções, asseverou ter presenciado tal estado de perturbação, descrevendo que quando a ofendida teve conhecimento do teor da contestação se apresentou perante si com um ar transtornado e chorosa, tendo ficado visivelmente ofendida. Mais confirmou que a ofendida ficou "de rastos", tendo ficado perturbada nas semanas seguintes, evitando falar do processo e facilmente ficando chorosa. Referiu ainda que a ofendida era pessoa alegre e que durante esse período andou muito em baixo, não sendo "a mesma H".
Por seu turno, também as testemunhas AG, TS e AT, colegas de trabalho da ofendida, referiram ter constatado o estado de perturbação da ofendida em consequência do sucedido, referindo que a mesma ficou muito abalada e incomodada, referindo, em particular, AT que a demandante ficou indignada e transtornada por ter sido colocada em causa a sua dignidade e brio profissional.
Os depoimentos das referidas testemunhas afiguraram-se espontâneos, sinceros, seguros, e, no essencial, congruentes entre si, revelando conhecimento directo dos factos que relataram, por si presenciados, não tendo sido notadas quaisquer circunstâncias nos seus depoimentos que fizessem suscitar dúvidas sobre a sua veracidade, pelo que mereceram credibilidade.
 No que respeita, à matéria constante do ponto 13 da matéria de facto provada, a decisão do Tribunal estribou-se no depoimento da testemunha CC, que, em particular, descreveu a ofendida como uma funcionária competente e cumpridora, sendo que não foi produzida qualquer prova em sentido contrário.
No que tange à factualidade ínsita no ponto 15 da matéria de facto provada, a decisão do Tribunal estribou-se nas declarações do arguido e da ofendida, que se revelaram concordantes.
No que concerne à factualidade constante do ponto 16 da matéria de facto provada, a decisão do Tribunal assentou no depoimento de AP e nas declarações do arguido, sem que tenham sido contrariados por quaisquer meios de prova.
No que respeita à factualidade vertida no ponto 17 da matéria de facto provada, a decisão do Tribunal estribou-se no teor da certidão da notificação de fls. 26 e nas declarações da demandante, que confirmou tal factualidade.
Relativamente à factualidade vertida no ponto 19 da matéria de facto provada, a decisão do Tribunal fundou-se nas declarações do arguido e da demandante.
Relativamente à ausência de antecedentes criminais do arguido, teve-se em consideração o teor do Certificado de Registo Criminal junto aos autos, de fls. 193.
No que concerne às condições pessoais e económicas do arguido, atendeu-se às suas declarações, as quais, quanto a esta matéria, se afiguraram seguras e credíveis, e não foram contrariadas por qualquer outro meio de prova.
A decisão do Tribunal relativa à factualidade ínsita na alínea a) da matéria de facto não provada resultou da sua total ausência de demonstração, pois que nenhum dos meios de prova produzidos permitiu sustentar tal matéria.
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III. Fundamentação de Direito
3.1. Enquadramento jurídico-penal
Vem o arguido acusado da prática, em autoria material, sob a forma consumada, de um crime de difamação agravada, previsto e punido pelos artigos 180.º, n.º 1, 182.º, 184.º, e 132.º, n.º 2, al. l), do Código Penal.
Preceitua o artigo 180.º, n.º 1, do Código Penal que "Quem, dirigindo-se a terceiro, imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto, ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra ou consideração, ou reproduzir uma tal imputação ou juízo, é punido com pena de prisão até 6 meses ou com pena de multa até 240 dias".
 Tal como no crime de injúria, o bem jurídico protegido no crime de difamação é a honra, salvaguardada no artigo 26.º da Constituição da República Portuguesa. A honra "tem de ser vista numa dupla perspectiva: a honra interior, que se reconduz ao juízo valorativo que cada pessoa faz de si mesma e a honra exterior, equivalente à representação que os outros têm sobre o valor de uma pessoa, ou seja, a reputação, o bom nome, a consideração que uma pessoa goza no meio social" (acórdão da Relação do Porto de 29/04/2020, proc. 6253/17.8T9VNG.P1, disponível em www.dgsi.pt).
No que especificamente concerne ao crime de difamação, os seus elementos objectivos podem dividir- se em dois grandes segmentos, que se passam a descrever: "um, o segmento da ofensa propriamente dita, que pode ser concretizado, por quem quer que seja - logo inexistência de qualquer limitação no que se refere ao universo dos candidatos positivos a sujeito activo -, através da a) imputação de facto ofensivo da honra de outrem, b) por meio de formulação de um juízo de igual modo lesivo da honra de uma pessoa ou ainda c) pela reprodução daquela imputação ou juízo; o outro segmento, o segmento do rodeio ou do enviesamento, exige que as condutas anteriormente descritas se não façam directamente ao ofendido mas se levem a cabo dirigindo-se a terceiros." (JOSÉ DE FARIA COSTA, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, Coimbra Ed., 1999, p. 609).
E é nesta última afirmação que reside a "pedra de toque" na distinção a estabelecer entre o crime de difamação e o crime de injúria: a necessidade de, no crime de difamação, se verificar a interposição de uma terceira pessoa no processo lesivo da honra ou consideração do ofendido; terceiro a quem a imputação do facto ou a formulação do juízo atentatórios da honra ou consideração alheias é conduzido (e não já directamente ao próprio ofendido como sucede na injúria), existindo uma imputação indirecta do facto ofensivo ou a formulação indirecta do juízo desvalioso (JOSÉ DE FARIA COSTA, Comentário..., p. 629).
A execução do crime de difamação pode revestir alguma ou algumas das seguintes formas de execução:
- Imputação de um facto ofensivo da honra ou consideração de outrem, mesmo que de modo meramente suspeito;
- Ou formulação de um juízo desvalioso sobre a honra ou consideração de outrem.
A estes elementos acresce, como se enunciou, a exigência da reprodução da imputação ou do juízo perante terceiro distinto do ofendido.
Imputar um facto a outrem significa "atribuir um facto, apresentá-lo como correcto ou verdadeiro, segundo a convicção ou perspectiva do imputante, que assim se identifica com o respectivo conteúdo".
Em suma: é «atribuir a alguém a prática de determinado facto, que lhe ofende a reputação ou o bom nome», considerada essa reputação como «a estima que se goza na sociedade, em virtude do próprio engenho ou de qualidades morais, da habilidade em uma arte, profissão ou disciplina: algo mais do que a consideração e menos do que o renome e a fama» (Helena Fragoso, Lições de Direito Penal, 137)." (MANUEL LEAL-HENRIQUES E MANUEL SIMAS SANTOS, Código Penal Anotado, 2º volume, 3.- Ed., Rei dos Livros, p. 470).
Na concretização dos elementos objectivos do tipo penal sob análise, assume especial relevo a distinção entre facto e juízo.
Neste particular, "poder-se-á dizer que a noção de facto se traduz naquilo que é ou acontece, na medida em que se considera como um dado real da experiência. Assume-se, por conseguinte, como um juízo de afirmação sobre a realidade exterior, como um juízo de existência. (...) Um facto é, pois, um elemento da realidade, traduzível na alteração dessa mesma realidade, cuja existência é incontestável, que tem um tempo e um espaço precisos, distinguindo-se, neste sentido, dos acontecimentos, que são também factos, mas que se expressam por conjuntos de acções (com unidade) que se protelam no tempo. De forma simples: um facto é um juízo de existência ou de realidade.
O juízo, independentemente dos domínios em que ele pode ser operatório (juízos psicológico, lógico, axiológico, jurídico), deve ser percebido, neste contexto, não como apreciação relativa à existência de uma ideia ou de uma coisa mas ao seu valor. O que é o mesmo que dizer: deve ser entendido relativamente ao grau de consecução dessa ideia, coisa ou facto, se valorados em função do fim prosseguido (a verdade, a beleza, a moral, a justiça, etc.)." (JOSÉ DE FARIA COSTA, Comentário.., pp. 609-610).
No tocante à asserção "mesmo sob a forma de suspeita", trata-se de pressuposto condicional que regula todos os demais elementos do tipo, considerando-se que "... a proposição referida não é um verdadeiro e próprio elemento do tipo, mas antes um alargamento modal à imputação de factos ou juízos desonrosos. Isto é: a imputação de factos ou a formulação de juízos desonrosos podem ser inequívocas, não apresentarem a menor dúvida, ou podem estar recobertas pelo manto perverso e acutilante da suspeita." (JOSÉ DE FARIA COSTA, ob. cit., pp. 611-612 e 629).
Já no que se refere às palavras que revestem relevância para efeitos de imputação objectiva dos factos ao agente, há a considerar que "o significado das palavras, para mais quando nos movemos no mundo da razão prática, tem um valor de uso. Valor que se aprecia, justamente, no contexto situacional, e que ao deixar intocado o significante ganha ou adquire intencionalidades bem diversas, no momento em que apreciamos o significado. Todavia, defender-se a posição doutrinária que se acaba de enunciar, não quer significar, nem por sombras, que não haja palavras cujo sentido primeiro e último seja tido, por toda a comunidade falante, como ofensivo da honra e consideração (JOSÉ DE FARIA COSTA, ob. cit., p. 630).
Por último, impõe-se atentar nos conceitos de honra e consideração.
Assim, há a considerar que honra é "a essência da personalidade humana, referindo-se, propriamente, à probidade, à rectidão, à lealdade, ao carácter" e por consideração entende-se "o património de bom nome, de crédito, de confiança que cada um pode ter adquirido ao longo da sua vida, sendo como que o aspecto exterior da honra, já que provém do juízo em que somos tidos pelos outros" (acórdão da Relação de Lisboa de 11/04/2019, proc. 215/16.0T9MTJ.L1-9, in www.dgsi.pt).
Por outras palavras, pode dizer-se que honra é a dignidade subjectiva, ou seja, o elenco de valores éticos que cada pessoa humana possui. Diz assim respeito ao património pessoal e interno de cada um - o próprio eu.
A consideração será o merecimento que o indivíduo tem no meio social, isto é, a reputação, a boa fama, a estima, a dignidade objectiva, que é o mesmo que dizer, a forma como a sociedade vê cada cidadão - a opinião pública. (MANUEL LEAL-HENRIQUES E MANUEL SIMAS SANTOS, Código Penal Anotado, 2.º volume, 3.ª Edição, Rei dos Livros, p. 469).
A acção típica do crime contra a honra consiste numa manifestação de menosprezo que seja idónea para afectar tal bem jurídico nas circunstâncias concretas em que é utilizada. A aferição da idoneidade da imputação factual ou das palavras para provocar lesão na honra ou consideração alheias necessita de ser apreciada em cada caso concreto, em face do concreto contexto situacional e sócio-cultural, não se podendo estabelecer um conceito uniforme de ofensa à honra ou consideração.
Não obstante, a adequação das expressões para atingir o bem jurídico protegido deverá aferir-se de acordo com a dignidade do indivíduo médio, não relevando a susceptibilidade pessoal do visado.
Com efeito, conforme pode ler-se no acórdão da Relação do Porto de 29/04/2020, já citado supra:
"a ofensa à honra e consideração não pode ser perspectivada em termos estritamente subjectivos, ou seja, não basta que alguém se sinta atingido na sua honra -, na perspectiva interior/exterior - para que a ofensa exista. Para concluir se uma expressão é ou não ofensiva da honra e consideração, é necessário enquadrá-la no contexto em que foi proferida, o meio a que pertencem ofendido/arguido, as relações entre eles, entre outros aspectos. Nesta linha de raciocínio, o Prof.Beleza dos Santos, na ob. cit., pág.167, citando Jannitti Piromallo, escreve «os crimes contra a honra ofendem um sujeito, mas não devem ter-se em conta os sentimentos meramente pessoais, senão na medida em que serão objectivamente merecedores de tutela»".
Na definição dos demais elementos do crime de difamação, impõe-se explicitar que:
"Formular um juízo de desvalor será toda a afirmação que encerra uma apreciação pessoal negativa sobre o carácter da pessoa acerca da qual se subscreve tal juízo.
Reproduzir uma imputação ou um juízo é divulgar uma afirmação alheia, ou seja, uma afirmação que não é objecto de uma convicção do próprio divulgante, bastando assim "que o arguido tenha transmitido informações ou observações alheias, relacionando-se positivamente com o seu conteúdo", não sendo necessário para a realização do tipo «que os factos reproduzidos sejam falsos, já que a prova da verdade surge como pressuposto objectivo da causa de justificação do n.º 2 (...) e não como elemento negativo da tipicidade» (Silva Dias, Alguns Aspectos do Regime Jurídico dos Crimes de Difamação e Injúrias, A.A.F.D. Lisboa, 1989, 12 e 13)." (MANUEL LEAL-HENRIQUES E MANUEL SIMAS SANTOS, ob. cit., p. 470).
Acrescenta o n.º 2 do artigo 180.º do Código Penal que "A conduta não é punível quando:
a) A imputação for feita para realizar interesses legítimos; e
b) O agente provar a verdade da mesma imputação ou tiver tido fundamento sério para, em boa fé, a reputar verdadeira."
Mais estabelece o citado normativo:
"3 - Sem prejuízo do disposto nas alíneas b), c) e d) do n.º 2 do artigo 31.º, o disposto no número anterior não se aplica quando se tratar da imputação de facto relativo à intimidade da vida privada e familiar.
4 - A boa fé referida na alínea b) do n.º 2 exclui-se quando o agente não tiver cumprido o dever de informação, que as circunstâncias do caso impunham, sobre a verdade da imputação".
O artigo 182.º do Código Penal, sob a epígrafe "Equiparação", estipula que "À difamação e à injúria verbais são equiparadas as feitas por escrito, gestos, imagens ou qualquer outro meio de expressão". É, assim, indiferente a forma que apresente a acção de difamar.
Por seu turno, estatui o artigo 184.º do Código Penal que "As penas previstas nos artigos 180.º, 181.º e 183.º são elevadas de metade nos seus limites mínimo e máximo se a vítima for uma das pessoas referidas na alínea l) do n.º 2 do artigo 132.º, no exercício das suas funções ou por causa delas, ou se o agente for funcionário e praticar o facto com grave abuso de autoridade".
As pessoas referidas no artigo 132.º, n.º 2, al. l), do Código Penal, são as seguintes: "membro de órgão de soberania, do Conselho de Estado, Representante da República, magistrado, membro de órgão do governo próprio das regiões autónomas, Provedor de Justiça, membro de órgão das autarquias locais ou de serviço ou organismo que exerça autoridade pública, comandante de força pública, jurado, testemunha, advogado, solicitador, agente de execução, administrador judicial, todos os que exerçam funções no âmbito de procedimentos de resolução extrajudicial de conflitos, agente das forças ou serviços de segurança, funcionário público, civil ou militar, agente de força pública ou cidadão encarregado de serviço público, docente, examinador ou membro de comunidade escolar, ministro de culto religioso, jornalista, ou juiz ou árbitro desportivo sob a jurisdição das federações desportivas, no exercício das suas funções ou por causa delas".
No que se refere ao elemento subjectivo do tipo, este crime está previsto na forma dolosa (em qualquer uma das modalidades de dolo: directo, necessário ou eventual), de acordo com as disposições conjugadas dos artigos 180.º, n.º 1, 182.º, 13.º e 14.º, do Código Penal.
Preenche o tipo subjectivo do crime em questão quem representa a idoneidade da imputação de factos (mesmo sob o modo de suspeita) ou do proferimento de palavras (por via oral, escrita ou gestual, expressa ou tácita) para causarem lesão na honra ou consideração do visado e age com vontade que a imputação fáctica ofensiva ou a formulação do juízo pernicioso cheguem ao conhecimento do seu destinatário (sendo irrelevante que exista ou não efectiva lesão do bem jurídico).
Dispõe ainda o artigo 26.º do Código Penal que "é punível como autor quem executar o facto, por si mesmo ou por intermédio de outrem, ou tomar parte directa na sua execução, por acordo ou juntamente com outro ou outros, e ainda quem, dolosamente, determinar outra pessoa à prática do facto, desde que haja execução ou começo de execução".
No caso vertente, resultou demonstrado que a 25/03/2019, via Citius, e mediante assinatura digital certificada, o arguido, na qualidade de advogado/defensor, dirigiu ao processo 733…, que correu termos no Juízo Local Criminal de Vila Franca de Xira (J..), em representação de AN, a sua "Contestação".
Na referida peça processual, endereçada ao Juiz de Direito do processo, consta, além do mais, os seguintes excertos, reportados à ofendida, MC:
- ponto 24.º da contestação: "Tomou o AN conhecimento que a funcionária encarregue do processo notificou o PF como gerente de direito da empresa Cont....  da notificação com a referência 138301336";
- ponto 25.º da contestação: "A funcionária que praticou o acto foi a Sra. D. MC - Escrivão Auxiliar do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte - Juízo Local Criminal de Vila Franca de Xira - Juiz …";
- ponto 26.º da contestação: "Ora, com a devida vénia a funcionária não pode proceder a esta qualificação na notificação - enquanto gerente de direito - porquanto não existe qualquer sentença transitada em julgado que tenha apreciado tal questão";
- ponto 27.º da contestação: "Com esta atitude, propositada, consciente e deliberada a funcionária teve intenção de causar prejuízo a terceira pessoa, na situação em apreço ao AN, tendo cometido um crime de abuso de poder nos termos e para os efeitos do artigo 382.º do CP";
- ponto 28.º da contestação: "Ora, tendo praticado o acto de forma consciente, deliberada e com intenção de prejudicar o AN, pois da certidão comercial apenas consta o nome do PF enquanto gerente da empresa, cometeu igualmente a funcionária o crime de denegação de justiça e prevaricação previsto e punido nos termos e para os efeitos do artigo 369.º do CP";
- ponto 29.º da contestação: "Com a sua conduta a funcionária cometeu igualmente um crime de falsificação de documento, porquanto fez constar falsamente em documento facto juridicamente relevante, previsto e punido nos termos e para os efeitos do artigo 256.º do CP";
- ponto 30.º da contestação: "Reitera-se a funcionária com a sua atitude apenas pretendeu prejudicar o AN , sem cuidar uma posição de absoluta imparcialidade, fazendo juízos de valor antes do transito em julgado da decisão que pudesse conhecer da factualidade".
Conforme decorre do supra exposto, "a análise para verificação do ilícito não se pode circunscrever ou limitar à valoração isolada e objectiva das expressões, exigindo-se que as mesmas sejam observadas e apreciadas em função do circunstancialismo de tempo, de modo e de lugar em que foram proferidas, tendo ainda em conta realidades relacionadas com o contexto sociocultural e a maior ou menor adequação social do comportamento" (acórdão da Relação de Guimarães de 30/06/2014, proc. 377/13.8GCBRG.G1, disponível em www.dgsi.pt).
Ora, as imputações de uma "atitude propositada, consciente e deliberada" com "intenção de causar prejuízo a terceira pessoa, na situação em apreço ao AN ", e de "a funcionária com a sua atitude apenas pretendeu prejudicar o AN , sem cuidar uma posição de absoluta imparcialidade", e da prática dos crimes de abuso de poder, p. e p. pelo artigo 382.º do Código Penal, de denegação de justiça e prevaricação, p. e p. pelo artigo 369.º do Código Penal, e de falsificação de documento, p. e p. pelo artigo 256.º do Código Penal, a um oficial de justiça, por causa do exercício das suas funções, exaradas numa peça processual dirigida ao Juiz de Direito, face ao significado corrente que tais imputações encerram (conduta intencional de prejudicar outrem; abuso de poderes ou violação de deveres inerentes às suas funções, com intenção de obter, para si ou para terceiro, benefício ilegítimo ou causar prejuízo a outra pessoa; conduta consciente e contra direito de praticar acto no exercício de poderes decorrentes do cargo que exerce; e fazer constar falsamente de documento facto juridicamente relevante, com intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo) têm um significado inequivocamente pejorativo, sendo consideradas ofensivas da honra e consideração pelo cidadão comum, e mais especificamente, pelo cidadão médio comum colocado nas mesmas circunstâncias que a ofendida, isto é, pelo oficial de justiça médio comum.
Tais imputações, têm, pois, manifesta aptidão lesiva da honra e consideração do homem médio comum, contendo um carácter suficientemente ofensivo da honra e consideração para merecer a sua censura penal.
Ora, ao imputar à ofendida tal conduta e a prática dos referidos crimes, o arguido efectuou imputações idóneas a ofender a honra e consideração da demandante, como efectivamente ofenderam.
Mais se apurou que o arguido, na qualidade de autor da peça processual, não podia ignorar que, ao serem realizadas tais imputações, na "Contestação" - desde logo, invocando uma actuação desonesta, propositada e criminosa, por parte da ofendida, com o fito de prejudicar outrem - as mesmas ofenderiam a honra e consideração de MC, como quis e conseguiu, sabendo o arguido da função de oficial de justiça que aquela desempenhava, sendo por causa dessa mesma função que assim actuou.
 Resultou ainda provado que o arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei, o que nos permite concluir que o arguido actuou com dolo directo e com consciência da ilicitude (artigos 14.º, n.º 1, e 17.º do Código Penal).
Encontram-se, assim, preenchidos, os elementos objectivos e subjectivos do tipo de crime em apreço.
Sustenta o arguido que as considerações efectuadas foram proferidas no âmbito da liberdade de expressão e no âmbito da liberdade necessária ao exercício da profissão de advogado, e que o juízo tecido possui uma base factual mínima, real ou em cuja veracidade o agente tem fundamento para, em boa fé, acreditar.
Tal alegação remete-nos para a causa de exclusão da ilicitude prevista no artigo 180.º, n.º 2, do Código Penal.
Estabelece o n.º 2 do artigo 180.º do Código Penal que "A conduta não é punível quando:
a) A imputação for feita para realizar interesses legítimos; e
b) O agente provar a verdade da mesma imputação ou tiver tido fundamento sério para, em boa fé, a reputar verdadeira."
Invoca o arguido que as imputações efectuadas foram proferidas no livre exercício da liberdade de expressão, no âmbito do patrocínio forense, o que nos remete para a hipótese de as expressões supra descritas terem sido proferidas para a realização de um interesse legítimo.
Vejamos.
Sob a epígrafe "Liberdade de expressão e informação", estabelece o artigo 37.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa que "Todos têm o direito de exprimir e divulgar livremente o seu pensamento pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio, bem como o direito de informar, de se informar e de ser informados, sem impedimentos nem discriminações".
Acrescenta o n.º 2 do citado normativo que "O exercício destes direitos não pode ser impedido ou limitado por qualquer tipo ou forma de censura".
Mais dispõe o n.º 3 do referido preceito que "As infracções cometidas no exercício destes direitos ficam submetidas aos princípios gerais de direito criminal ou do ilícito de mera ordenação social, sendo a sua apreciação respectivamente da competência dos tribunais judiciais ou de entidade administrativa independente, nos termos da lei".
O princípio da liberdade de expressão traduz-se, assim, no direito de exprimir e divulgar livremente o pensamento, bem como o direito de informar, sem impedimentos ou discriminações.
Este princípio igualmente beneficia de tutela no plano do direito internacional.
Desde logo, prevê o artigo 19.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem que "Todo o indivíduo tem direito à liberdade de opinião e de expressão, o que implica o direito de não ser inquietado pelas suas opiniões e o de procurar, receber e difundir, sem consideração de fronteiras, informações e ideias por qualquer meio de expressão".
Por seu turno, estatui o artigo 10.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem:
"1. Qualquer pessoa tem direito à liberdade de expressão. Este direito compreende a liberdade de opinião e a liberdade de receber ou de transmitir informações ou ideias sem que possa haver ingerência de quaisquer autoridades públicas e sem considerações de fronteiras. O presente artigo não impede que os Estados submetam as empresas de radiodifusão, de cinematografia ou de televisão a um regime de autorização prévia.
2. O exercício desta liberdade, porquanto implica deveres e responsabilidades, pode ser submetido a certas formalidades, condições, restrições ou sanções, previstas pela lei, que constituam providências necessárias, numa sociedade democrática, para a segurança nacional, a integridade territorial ou a segurança pública, a defesa da ordem e a prevenção do crime, a protecção da saúde ou da moral, a protecção da honra ou dos direitos de outrem, para impedir a divulgação de informações confidenciais, ou para garantir a autoridade e a imparcialidade do poder judicial.".
A jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem relativa ao artigo 10.º, tem entendido, como princípios fundamentais, que:
"A liberdade de expressão constitui um dos fundamentos essenciais de uma sociedade democrática e uma das condições primordiais do seu progresso e realização de cada um. Sem prejuízo do n.º 2, ela é válida não apenas para as «informações» ou «ideias» acolhidas favoravelmente ou consideradas como inofensivas ou indiferentes, mas também para as que ferem, chocam ou causam inquietação. Assim o exigem o pluralismo, a tolerância e o espírito de abertura sem os quais não há «sociedade democrática». Como especifica o artigo 10.º, o exercício desta liberdade está sujeito a formalidades, condições, restrições e sanções que todavia devem ser estritamente interpretadas, devendo a sua necessidade ser estabelecida de maneira convincente (...).
A verificação do carácter «necessário numa sociedade democrática» da ingerência litigiosa impõe ao Tribunal que examine se a ingerência correspondia a uma «necessidade social imperiosa», se era proporcionada à finalidade legitima prosseguida e se as razões aduzidas pelas autoridades nacionais para a justificar são pertinentes e suficientes (...)." (vide, entre outros, o acórdão do TEDH de 28/09/2000, no caso Lopes Gomes da Silva c. Portugal).
Ora, o direito à honra, ao bom-nome e reputação, com consagração constitucional no artigo 26.º da CRP conflitua, por vezes, com o princípio constitucional da liberdade de expressão, contemplado no artigo 37.º da CRP, conforme vimos.
Este direito "tem uma grande amplitude, permitindo que se emitam juízos desfavoráveis, contundentes, críticas, embora sujeito a limites, designadamente, o respeito devido à honra e dignidade.
Porém, os direitos ao bom-nome e reputação e à livre expressão, que têm, em princípio, igual valor não podem ser entendidos em termos absolutos e, em caso de conflito, têm de ser harmonizados nas circunstâncias concretas" (acórdão da Relação do Porto de 29/04/2020, citado supra).
Ora, uma das manifestações da liberdade de expressão é o direito que cada pessoa tem de exercer o direito de crítica, nomeadamente, no âmbito do patrocínio forense.
A propósito da articulação da liberdade de expressão no exercício do patrocínio forense com o direito à honra, consignou-se no acórdão da Relação de Coimbra de 28/11/2007, proc. 163/01.8TBAND.C1, disponível em www.dgsi.pt:
"A nossa República mostra-se politicamente organizada como um Estado de Direito Democrático.
Um dos direitos reconhecidos a todos os seus cidadãos é o de acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva. [Artigo 20.º, n.º 2 da CRP: "Todos têm direito, nos termos da lei, á informação e consulta jurídica, ao patrocínio judiciário e a fazer-se acompanhar por advogado perante qualquer autoridade."]
E, um dos elementos que tende a torná-lo efectivo é o que reconhece o patrocínio judiciário como "elemento essencial á administração da justiça."[Artigo 208.º da CRP: "A lei assegura aos advogados as imunidades necessárias ao exercício do mandato e regula o patrocínio forense como elemento essencial á administração da justiça."]
Patrocínio que apenas se concebe cabalmente exercitado se, nomeadamente aos Advogados, for reconhecido o princípio da liberdade de expressão. O que, aliás, vem sucedendo abundantemente em arestos do Supremo Tribunal de Justiça e dos Tribunais das Relações que o proclamam. [António Arnaut, in Revista da Ordem dos Advogados, Ano 57, pág. 487; Alfredo Gaspar, in Revista da Ordem dos Advogados, Ano 48, págs. 1.027 e segs.]
A livre actuação do Advogado no exercício do patrocínio forense é, inquestionavelmente, uma exigência do Estado de Direito e uma instituição de interesse público.
Como se escreveu no Parecer do Conselho Superior da Ordem dos Advogados, emitido em 23 de Setembro de 2005, e relatado pelo Dr. Virgílio Vasconcelos Ribeiro [www.oa.pt Pareceres], se o Advogado estivesse privado de "exprimir livremente o seu pensamento, de apreciar, discutir e criticar tudo quanto julgue conveniente ao bom desempenho do seu mandato e até onde lhe pareça necessário", o direito de defesa seria esvaziado do seu conteúdo e perderia todo o sentido o conceito de tutela judicial efectiva - não seria possível a realização da justiça.
Não é, porém, irrestrita, a intervenção do Advogado no exercício do patrocínio forense.
Com efeito, ela mostra-se onerada por deveres deontológicos esparsamente consagrados no respectivo Estatuto, aprovado através da Lei n.º 15/2005, de 26 de Janeiro.
Também a lei ordinária especifica os termos em que tal direito deve ser concebido. [Artigo 114.º, n.º 3 da Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro [LOFTJ]: "A imunidade necessária ao desempenho eficaz do mandato forense é assegurada aos advogados pelo reconhecimento legal e pela garantia de efectivação, designadamente. (...) b) do direito ao livre exercício do patrocínio e ao não sancionamento pela prática de actos conformes ao estatuto da profissão; (...)".
Artigo 266.º-B, do Código de processo Civil: "1. Todos os intervenientes no processo devem agir em conformidade com um dever de recíproca correcção, pautando-se as relações entre advogados e magistrados por um especial dever de urbanidade.
2. Nenhuma das partes deve usar, nos seus escritos ou alegações orais, expressões desnecessária ou injustificadamente ofensivas da honra ou do bom nome da outra, ou do respeito devido às instituições."]
No desempenho cabal do seu mandato, o Advogado tem o dever de agir de forma a defender os interesses legítimos do seu cliente; de estudar com cuidado e tratar com zelo a questão de que seja incumbido, utilizando para o efeito todos os recursos da sua experiência, saber e actividade; de defender os direitos, liberdades e garantias, de pugnar pela boa aplicação das leis, pela rápida administração da justiça e pelo aperfeiçoamento da cultura e instituições jurídicas e tem o dever de dizer tudo quanto julgue conveniente ao bom desempenho do seu mandato, ainda que arrisque afrontar o direito ao bom nome e reputação de outrem.
Na verdade, o discurso da defesa não é asséptico ou vazio de intenção, nem é um ensaio científico ou uma comunicação estritamente técnica. É construído para vir a prevalecer, convencendo o julgador. A linguagem utilizada para lá da sua dimensão intelectual, tem uma dimensão emocional. Decorre no seio de um debate, a mais das vezes, contraditório, em ambiente carregado de conflitualidade e de que não está ausente a emoção trazida da contenda da vida real para o cenário judicial.
Daí que o mandato forense não possa, pois, ser exercido em estado de constrangimento ou sob o perigo de, a cada passo, serem invocadas contra o Advogado reacções criminais ou disciplinares decorrentes da tutela da honra dos restantes intervenientes processuais.
Na presença, assim, de dois direitos fundamentais, para além de serem directamente aplicáveis, eles só podem ser restringidos nos casos expressamente autorizados pela CRP (e por via de lei), e tão-só na medida em que a restrição seja exigida para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos (artigo 18.º, n.ºs 1 e 2 da CRP).
Tanto nos casos em que exista reserva de lei restritiva expressamente prevista na Constituição, como naqueles outros em que não exista, a solução das situações concretas de concorrência conflitual entre direitos fundamentais elencados nesta categoria dos direitos, liberdades e garantias impõe sempre a sua compressão recíproca. Ao legislador ordinário e ao intérprete que está perante a situação concreta, no primeiro caso, ou só a este último, no segundo caso, competirá determinar a medida exacta de tal compressão.
Esta tarefa da realização da concordância prática está vinculada a um critério de proporcionalidade, que limita o sacrifício de cada um dos valores ao necessário e ao adequado à salvaguarda dos outros.
Em circunstância alguma, pode, porém, qualquer dos direitos em conflito ser objecto de aniquilamento do seu conteúdo essencial, sob pena de ruptura da unidade da ordem constitucional. Por estas razões, e para impedir que o núcleo essencial de alguns direitos que são manifestações da liberdade de expressão (a liberdade de informação e de crítica ou liberdade de imprensa, o debate político) e da liberdade de criação cultural e artística seja severamente constrangido pela tutela jurídico-penal da honra, tem-se entendido que, face ao exercício desses direitos, deve esta recuar, por exclusão da ilicitude das respectivas condutas, operada, seja por força do exercício de um direito (artigo 31.º, n.º 2, alínea b) do CP), seja pela prossecução de interesses legítimos (artigo 180.º, n.º 2, alínea a) do mesmo diploma).[ Jorge Figueiredo Dias, Direito da Informação e Tutela da Honra no Direito Penal da Imprensa Portuguesa, in Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 115.º, págs. 105 e segs; Jorge Figueiredo Dias e Manuel da Costa Andrade, Limites do Direito de Defesa, in Revista da Ordem dos Advogados, Ano 52, págs. 277 e segs.]
Este maior sacrifício do bem jurídico da honra mostra-se justificado sempre que o exercício concreto daquelas liberdades corresponda ao desempenho da função de interesse público que lhes é própria, e que lhes confere uma dignidade reforçada.
Caso típico a poder verificar-se quando a tutela do direito à honra de alguns dos sujeitos processuais põe em risco o núcleo do direito à liberdade de expressão do Advogado e faz perigar, por isso, de forma intolerável, a função pública que dele depende - a administração da justiça.
Nessas situações, é necessário que a tutela da honra dos intervenientes no processo recue para a fronteira que lhe é imposta pela necessidade de conservação do núcleo essencial do direito à liberdade de expressão do Advogado.
Tendo-se sempre em consideração os já citados normativos legais.
Uma das normas estatutárias a que esta vinculado o Advogado é a do artigo 105.º, n.º 1 do EOA (epigrafado "Dever de correcção"), em cujos termos: "O advogado deve exercer o patrocínio dentro dos limites da lei e da urbanidade, sem prejuízo do dever de defender adequadamente os interesse do seu cliente."
No já aludido Parecer da AO, fazem-se menções pertinentes sobre a adequada interpretação deste normativo, donde que nos permitamos citá-las:
"... Para cumprir o "dever de defender adequadamente os interesses do seu cliente", o Advogado tem, pois, o direito - e, sobretudo, tem o dever - de optar por exprimir livremente o seu pensamento e de "apreciar, discutir e criticar tudo quanto julgue conveniente ao bom desempenho do seu mandato e até onde lhe pareça necessário ao triunfo da causa que está a seu cargo", como ensinava o Professor Alberto dos Reis., ou - usando uma expressão do Conselheiro Osório de Castro - de "dizer tudo quanto possa ser útil ao bom direito".(...)
E deve fazê-lo ainda quando tal importe sacrifício da tutela da honra de outras pessoas, mesmo daquelas que interagem no quadro do processo - Advogados, Magistrados, Árbitros ou outros.
A jurisprudência da Ordem, reiterada, firme e pacificamente, vem reconhecendo, há longas décadas, a legitimidade do emprego pelo Advogado de "expressões mais ou menos enérgicas, veementes, vibrantes, consoante a natureza do assunto e o temperamento emocional de quem as subscreve". (...) Da mesma forma, não merece censura disciplinar o uso de um estilo - que pode, porventura, não ser o mais desejável - irónico ou contundente, de menor elegância ou de menor moderação, mas que as circunstâncias do patrocínio justifiquem.
O Professor Barbosa de Magalhães, Bastonário da Ordem dos Advogados, deixou, na Gazeta da Relação de Lisboa, o seu próprio testemunho a este propósito, ao referir-se a um processo em que interviera: "sempre que, no exercício da minha nobre missão, vir decisões que mereçam uma crítica mais viva e mesmo violenta, tantas e tantas vezes precisa, não deixarei de a fazer". (...)
Também não é censurável o exercício do direito de crítica objectiva, quer ela incida sobre as posições da parte adversa ou sobre os actos dos juízes ou dos magistrados do Ministério Público, quer incida sobre o funcionamento dos órgãos de administração da justiça ou de outras instituições, quer sobre modos de procedimento ou de aplicação de directivas, ordens e instruções hierárquicas, quer ainda sobre orientações na interpretação da lei.
Com frequência, a crítica objectiva feita pelo Advogado corresponde ao cumprimento, não só de um dever de patrocínio, mas também de um dever deontológico para com a comunidade (...).
As regras de convivência democrática próprias do Estado de Direito arredaram daqui as derradeiras convicções renitentes, sustentadas, em épocas passadas, em modelos que excluíam da crítica os órgãos e os agentes do poder.
A impunidade do direito de crítica objectiva - mesmo quando exercido pelo homem da rua por mero exercício de cidadania - é defendida unanimemente pela Doutrina e pela Jurisprudência, com base na sua irrelevância penal, por atipicidade dos correspondentes sacrifícios da honra. (...)
Acresce que à sua legitimidade é indiferente a falta de pertinência ou de justeza técnica ou científica da crítica feita.
Quanto às imputações e às expressões ofensivas da honra das pessoas, o Advogado em exercício do patrocínio pode fazê-las ou usá-las, porque beneficia do regime especialmente qualificado de liberdade de expressão que decorre do artigo 208.º da CRP.
Mas, para tanto, têm elas de ser necessárias (...) à defesa da causa.
Compete exclusivamente ao Advogado a decisão acerca do que é necessário ao bom desempenho do mandato.
É ele quem define a estratégia global e a táctica da defesa. É ele quem tem a responsabilidade de construir o discurso da defesa. Só ele pode, em seu juízo e consciência, escolher os temas a introduzir na discussão, as imputações a fazer e as expressões a utilizar, à luz do que for necessário à defesa adequada dos interesses do seu cliente.
Nem poderia ser de outro modo, sob pena de o Advogado ver postergada a sua independência.
No desempenho de função de interesse público, maxime no exercício do patrocínio forense, pode afirmar--se uma presunção no sentido da liberdade de expressão. Há respeitados autores que o defendem. (...)
Estando o Advogado no exercício do mandato forense, deve presumir-se-lhe o animus defendendi e, nessa medida, ter por necessárias à defesa da causa as expressões que utilize e as imputações que faça.
Assim mesmo deliberou, em Maio de 1989, o I Congresso Extraordinário da Ordem dos Advogados Portugueses, que aprovou a seguinte recomendação:
"Deve ser alterada a legislação no sentido de que se presume o animus defendendi em todos os escritos e afirmações orais produzidos pelos advogados em juízo". (...)
O justo limite da liberdade de expressão do Advogado é ditado, como se assinalou, pelas necessidades da defesa da causa.
Se as expressões ou imputações ofensivas utilizadas - depois de ponderadas, em concreto, segundo as leges artis, as circunstâncias processuais em que foram produzidas e os fins a que obedeceram - forem ostensivamente inadequadas à defesa da causa, deve entender-se que elas foram feitas ad hominem. Nessas situações, o Advogado excede o limite da sua livre actuação.
Emerge, então, a tutela do direito à honra das pessoas ofendidas pelas imputações ou expressões usadas. As razões de interesse público que a sacrificavam deixaram de estar presentes.
O Advogado fica sujeito a perseguição disciplinar, por violação do dever de urbanidade. (...)." (destacados nossos).
Actualmente, a Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto, que aprovou a Lei da Organização do Sistema Judiciário (e que sucedeu à Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro), estabelece no seu artigo 12.º, n.º 1, que "O patrocínio forense por advogado constitui um elemento essencial na administração da justiça e é admissível em qualquer processo, não podendo ser impedido perante qualquer jurisdição, autoridade ou entidade pública ou privada".
Mais prevê o artigo 13.º, n.º 1, do referido diploma que "A lei assegura aos advogados as imunidades necessárias ao exercício dos atos próprios de forma isenta, independente e responsável, regulando-os como elemento indispensável à administração da justiça".
Acrescenta o n.º 2, al. a), do citado normativo que "Para garantir o exercício livre e independente de mandato que lhes seja confiado, a lei assegura aos advogados as imunidades necessárias a um desempenho eficaz, designadamente: (...) O direito ao livre exercício do patrocínio e ao não sancionamento pela prática de atos conformes ao estatuto da profissão".
Por seu turno, o Código de Processo Civil actualmente em vigor (aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho), contempla no seu artigo 9.º, sob a epígrafe "Dever de recíproca correcção" o seguinte:
"1 - Todos os intervenientes no processo devem agir em conformidade com um dever de recíproca correção, pautando-se as relações entre advogados e magistrados por um especial dever de urbanidade.
2 - Nenhuma das partes deve usar, nos seus escritos ou alegações orais, expressões desnecessária ou injustificadamente ofensivas da honra ou do bom nome da outra, ou do respeito devido às instituições.".
No plano do direito estatutário do advogado, o "Dever de correcção" anteriormente previsto no artigo 105.º, n.º 1, do Estatuto da Ordem dos Advogados passou a estar regulado no artigo 110.º, n.º 1, do (Novo) Estatuto da Ordem dos Advogados, aprovado pela Lei n.º 145/2015, de 09 de Setembro, estabelecendo que "O advogado deve exercer o patrocínio dentro dos limites da lei e da urbanidade, sem prejuízo do dever de defender adequadamente os interesses do seu cliente" (mantendo inalterada a anterior redacção do preceito).
Ora, na ponderação dos direitos em conflito, a legitimação da conduta típica do advogado depende de a mesma se afigurar necessária e adequada ao exercício do patrocínio forense e às finalidades prosseguidas, à luz dos direitos e deveres estabelecidos quer nas normas processuais, quer nas normas estatutárias. Deste modo, não se poderão considerar ofensivas, no plano criminal, as expressões e as imputações que fundem as premissas do raciocínio ou argumento jurídicos, quando estejamos perante o discurso escrito de um advogado.
Todavia, esta linguagem terá de ser justificada pelas exigências da defesa da causa.
 Volvendo ao caso dos autos, atendendo às concretas imputações efectuadas e ao contexto em que as mesmas foram proferidas, e na medida em que as mesmas visam directamente a ofendida, não se vislumbra como as mesmas possam, de algum modo, mostrar-se legitimadas ou justificadas pelo exercício da defesa do cliente representado pelo ora arguido nesses autos.
Com efeito, numa contestação apresentada em processo crime, em que o cliente do aqui arguido se encontrava acusado e pronunciado pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal, e em que este invocava não ter exercido a gerência de facto da sociedade arguida, era legítimo invocar que a notificação concretizada (com a menção à qualidade de "gerente de direito") pela senhora oficial de justiça (aqui ofendida) não podia ter sido efectuada.
Porém, as imputações a uma oficial de justiça de uma "atitude propositada, consciente e deliberada" com "intenção de causar prejuízo a terceira pessoa, na situação em apreço ao AN ", de que "a funcionária com a sua atitude apenas pretendeu prejudicar o AN , sem cuidar uma posição de absoluta imparcialidade", e as imputações da prática dos crimes de abuso de poder, p. e p. pelo artigo 382.º do Código Penal, de denegação de justiça e prevaricação, p. e p. pelo artigo 369.º do Código Penal, e de falsificação de documento, p. e p. pelo artigo 256.º do Código Penal, em virtude da realização da aludida notificação, afiguram-se inócuas e irrelevantes para a questão de saber se o cliente do arguido havia exercido uma gerência de facto ou de direito e, eventualmente, se havia praticado o crime de que havia sido acusado e pronunciado.
Ora, atendendo às concretas imputações efectuadas (que envolvem não só uma conduta dolosa de prejudicar um interveniente processual, como a prática de crimes relativos à violação de deveres do cargo, em prejuízo de terceiro e/ou em benefício próprio), entendemos que as mesmas assumem contornos pejorativos tais que ultrapassam o limite do aceitável no que respeita ao exercício da liberdade de expressão, ainda que no exercício do patrocínio forense.
Com efeito, ao imputar à ofendida, que expressamente nomeou e individualizou (ponto 25.º da contestação), uma conduta deliberada e intencional de prejudicar um interveniente processual, e uma actuação criminosa que implicava a violação de deveres do cargo e a actuação consciente contra direito, numa linguagem acusatória, entrou-se no âmbito da esfera pessoal da honra, reputação e bom nome da ofendida, ultrapassando em muito o que seria adequado e exigido em tal tipo de contestação.
Na verdade, dizer-se que assumiu uma conduta deliberada e intencional de prejudicar um interveniente processual, e uma actuação criminosa que implicava a violação de deveres do cargo e a actuação consciente contra direito, é dizer-se do pior possível para a honra e reputação de uma pessoa trabalhadora, no exercício de funções públicas, e para a consideração social que lhe é devida.
 Alegando nestes moldes, o arguido extravasou os limites que processual e estatutariamente lhe eram impostos, e entrou no ataque pessoal e alusões pessoalmente vexatórias, isto é, na alusão deprimente, a uma pessoa que nem sequer era parte na causa.
Neste contexto, e pese embora toda a argumentação expendida na contestação apresentada e decorrente das próprias declarações do arguido, afigura-se indubitável que em nada se mostrava necessária a utilização da linguagem acusatória mencionada, totalmente desproporcionada ao objecto do processo crime que corria seus trâmites, e sem cobertura nos normativos citados ao longo da presente fundamentação.
Assim, em face dos fundamentos expostos, afigura-se-nos que o contexto em que as expressões foram proferidas não permite concluir que as mesmas tenham sido efectuadas para realizar interesses legítimos.
Ademais, e conforme decorre, desde logo, da motivação da decisão da matéria de facto, não foi demonstrada a verdade das imputações efectuadas, nem se apuraram circunstâncias que permitissem concluir que o arguido tivesse fundamento sério para, em boa fé, as reputar verdadeiras.
Na verdade, ainda que a ofendida tenha concretizado a notificação a que aludem os pontos 24.º a 26.º da contestação apresentada no processo n.º 733..., a simples prática de tal acto não confere minimamente fundamento para fazer crer ao arguido numa "atitude propositada, consciente e deliberada" com "intenção de causar prejuízo a terceira pessoa, na situação em apreço ao AN " e na prática dos enunciados crimes, que envolvem a violação de deveres do cargo, a actuação contra direito, em benefício próprio e/ou em prejuízo de terceiro.
Não se mostram, pois, preenchidos os requisitos previstos nas alíneas a) e b) do n.º 2 do artigo 180.º do Código Penal, o que impede que se conclua pela verificação de tal causa de exclusão da ilicitude.
Deste modo, os factos praticados pelo arguido preenchem todos os elementos do tipo objectivo e subjectivo do crime em apreço, pelo que, não tendo sido apurada factualidade susceptível de consubstanciar qualquer causa de exclusão da culpa ou da ilicitude, conclui-se que o arguido cometeu, em autoria material, sob a forma consumada, o crime de que vinha acusado.»
4. Fundamentação:
Do preenchimento do tipo legal do crime de difamação agravada - Das causa de exclusão da ilicitude e da punibilidade previstas nos art.ºs 31.º e 180.º, n.º 2 do Cód. Penal O recorrente foi condenado, pela prática, em autoria material, sob a forma consumada, de um crime de difamação agravada, previsto e punido pelos artigos 180.º, n.º 1, 182.º, 184.º e 132.º, n.º 2, al. l), do Código Penal, na pena de 130 (cento e trinta) dias de multa, à taxa diária de 6,00€ (seis euros), no montante global de 780,00€ (setecentos e oitenta euros), assim como no pagamento à demandante da quantia global de 1.000,00€ (mil euros), acrescida de juros de mora, à taxa legal (4%), desde a data da prolação da sentença, até efetivo e integral pagamento.
Insurge-se contra a decisão, por a mesma violar princípios constitucionalmente protegidos, nomeadamente a liberdade de expressão do advogado, referindo não estar provado o elemento subjetivo do crime, pugnando pela verificação das causas de exclusão da ilicitude previstas no n.º 2 do art.º 180.º, do Cód. Penal e pela verificação de erro sobre factos essenciais.
Importa apontar, ab initio, que o recorrente não impugnou a matéria de facto fixada pelo Tribunal a quo, não fazendo uso da faculdade a que alude o art.º 412.º, n.ºs 3, 4 e 6 do Cód. Processo Penal, nem aponta à decisão a verificação de qualquer um dos vícios enumerados no art.º 410.º do mesmo diploma (nem os mesmos se detetam, considerando a imposição de conhecimento oficioso).
Assim sendo, este Tribunal terá por assente a factualidade acima enumerada.
Encontram-se, por isso, assentes factos que preenchem o elemento subjetivo, o animus difamandi, que o recorrente pretende contestar em sede de recurso (conclusões 1 a 7). Visando demonstrar a inexistência de preenchimento do elementos subjetivo, o recorrente, na realidade, não fez uso do meio processual adequado (pois que estrutura as respetivas alegações, motivação e conclusões, como um recurso exclusivo em matéria de direito).
As questões suscitadas em sede de recurso poderão reconduzir-se à ponderação da verificação de causas de exclusão da ilicitude e da punibilidade em face da matéria de facto assente. Ou seja, a utilidade do alegado reconduzir-se à discussão sobre o preenchimento do tipo objetivo do crime de difamação.
Alega o recorrente, a propósito da liberdade de expressão do advogado e das imunidades necessárias aos causídicos para cabal desempenho do mandato, a violação dos artigos 114.º, n.º 3 da Lei 3/99, de 13/1[1]  e art.º 12.º, n.º 1 e 2 da Lei n.º 62/2013, de 26/8.
Invoca, ainda, que a sentença recorrida violou o disposto nos art.ºs 37.º, n.ºs 1 e 2 da CRP, 19.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem e 10.º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, na medida em que condenou o recorrente quando o mesmo atuava no exercício do mandato forense e no âmbito da sua liberdade de expressão.
Como já referimos, podemos reconduzir os fundamentos das alegações, não à inexistência de preenchimento do elemento subjetivo (conclusões 1 a 7), pois que o mesmo resulta assente da matéria de facto, mas à ponderação se a ordem jurídica na sua globalidade excluí a ilicitude, nomeadamente se a atuação do arguido comprovada nos autos poderá reconduzir-se ao exercício de um direito e/ou cumprimento de um dever imposto por lei (art.º 31.º, n.º 1 e 2, als. b) e c) e do Cód. Penal).
Vejamos, por isso, se a factualidade provada permite considerar verificada alguma das causas de exclusão da ilicitude ou da punibilidade, nomeadamente as previstas no art.º 31.º e 180.º, n.º 2 do Cód. Penal.
Comete o crime de difamação agravada previsto e punido no art.180.º do Cód. Penal que "Quem, dirigindo-se a terceiro, imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto, ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra ou consideração, ou reproduzir uma tal imputação ou juízo"
A pena prevista é a de prisão até 6 meses ou multa até 240 dias, agravada sendo a vítima uma das pessoas referidas no art.º 132.º, n.º 2, al. l), do Cód. Penal (cfr. art.º 184.º, do Cód. Penal), como é o caso da ofendida. Este ilícito exige o dolo para o respetivo preenchimento em qualquer uma das suas formas (cfr. art.ºs 13.º, 14.º, 180.º, todos do Cód. Penal) e há muito que é pacífico na jurisprudência e doutrina que o ilícito em referência, se basta, para o seu preenchimento, com o dolo genérico [2].
Escreve a este propósito Souto de Moura, no Acórdão do STJ de 14/01/2009, disponível em www.dgsi.pt, citando o Cons. Rodrigues da Costa, no Acórdão também do STJ de Abril de 2008, “A este título, o tipo penal exige o dolo em qualquer uma das suas modalidades: dolo directo, necessário ou eventual, mas não o chamado dolo específico, consistente na intenção específica de ofender (animus diffamandi vel injuriandi), como sinónimo de o fim ou motivo do agente ser um elemento requerido pelo tipo subjectivo, a ponto de tal intenção ser excluída quando o fim ou motivo visados fossem de outra natureza: o fim de narrar, ensinar, corrigir, brincar....Essa teoria está hoje completamente ultrapassada, defendendo-se doutrinária e jurisprudencialmente que o elemento subjectivo se basta com o chamado dolo genérico: a simples consciência de que as expressões utilizadas são aptas a ofender a honra e consideração de uma pessoa, considerando o meio social e cultural e a “sã” opinião da generalidade das pessoas de bem.
Não é necessário que tais expressões atinjam efectivamente a honra e consideração da pessoa visada, produzindo um dano de resultado, bastando a susceptibilidade dessas expressões para ofender. É que o crime em causa é um crime de perigo, bastando a idoneidade da ofensa para produzir o dano”.
Tratando-se de um tipo de crime doloso, é, assim, necessário que o agente conheça, saiba, represente corretamente as circunstâncias do facto que preenche um tipo legal de crime e que atue com consciência do mesmo, por forma a poder dizer-se que se decidiu pela prática do ilícito.
Os bens jurídicos protegidos com este tipo de ilícito são a honra e o bom nome.
“A honra, refere-se ao apreço de cada um por si, à autoavaliação no sentido de não ser um valor negativo, particularmente do ponto de vista moral.
A consideração, ao juízo que forma ou pode formar o público no sentido de considerar alguém um bom elemento social ou, ao menos, de não o julgar um valor negativo".
"Aquilo que razoavelmente se não deve considerar ofensivo da honra ou do bom nome alheio, aquilo que a generalidade das pessoas (de bem) de um certo país e no ambiente em que se passaram os factos, não considere difamação ou injúria, não deverá dar lugar a uma sanção reprovadora como é a pena"[3].
«(...) a honra é vista assim como um bem jurídico complexo que inclui, quer o valor pessoal ou interior de cada indivíduo, radicado na sua dignidade, quer a própria reputação ou consideração exterior.»[4] .
A conduta típica pode reconduzir-se à imputação de factos e/ou de juízos desonrosos.
Importa distinguir as duas realidades, seguindo-se aqui de perto Faria e Costa. Facto é aquilo que acontece, a realidade exterior, um juízo de existência ou de realidade. Imputar um facto é afirmar um acontecimento da vida real, ainda que sob a forma de suspeita ou de comunicação incompleta sobre a realidade. A imputação de factos desonrosos não é ilícita quando é verdadeira e prossegue interesses legítimos (art.º 180.º, n.º 2 do Cód. Penal).
Por seu turno, a imputação de um juízo reporta-se ao grau de consecução da ideia, coisa ou facto, à apreciação relativa a estes. Um juízo de valor não é ilícito quando resulta do legítimo exercício de um direito, como seja a liberdade de expressão, de imprensa, de criação artística, do exercício do patrocínio judiciário (art.º 31.º do Cód. Penal).
Tem vindo a reconhecer a jurisprudência que o direito penal não pode ser chamado a intervir sempre que a linguagem verbal ou escrita utilizada incomoda ou fere suscetibilidades do visado. Apenas o deve fazer quando é atingido o núcleo essencial de qualidades morais e consideração profissional que devem subsistir para que a pessoa mantenha o respeito por si própria e seja pelos outros considerada.
Sendo o direito ao bom-nome, reputação e imagem merecedor de consagração constitucional (cfr. art.º 26.º, da Constituição da República Portuguesa) de igual forma é o direito à liberdade de expressão (cfr. art.ºs 26.º e 37.º, deste mesmo diploma), sendo uma das suas manifestações o direito à crítica.
Este direito traduz-se no reconhecimento da faculdade de emitir juízos de valor racionais, lógicos e coerentes sobre o objeto visado, com propósitos determinados. Já o excedem as atitudes desviantes, com a finalidade de atingir fins não permitidos, gratuitamente ofensivas, as considerações guiadas com propósito de maledicência, de vingança, de ajuste de contas, desproporcionais ao fim visado.
É verdade que a Constituição da República Portuguesa (CRP), bem como os textos fundamentais de direito internacional que obrigam o Estado português, como a Declaração Universal dos Direitos Humanos (art.º 19.º) e a Convenção Europeia dos Direitos do Homem e Direitos Fundamentais (art.º 10.º) consagra a liberdade de expressão, que compreende a liberdade de opinião.
Mas não estamos perante um direito absoluto, como não se deixou de analisar na sentença recorrida. O exercício do mesmo implica deveres e responsabilidades e terá de se compaginar com os demais direitos fundamentais, entre os quais se encontra o direito ao bom nome e reputação (art.ºs 17.º, 18.º, 25.º e 26.º da CRP).
Sendo ambos direitos fundamentais, cabe ajuizar da concordância prática, da proporcionalidade do sacrifico de cada um dos valores fundamentais envolvidos, com vista à salvaguarda de outros.
Os nossos Tribunais têm-se debruçado em inúmeros arestos sobre a presente problemática e maioritariamente sufragado o entendimento, na senda da jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH), da justificação na maior compressão da honra perante o ponderado exercício da liberdade de expressão, do direito à crítica.
Têm também seguido de perto a doutrina do Prof. Costa Andrade [5] , que defende, num contexto de conflito entre o direito à honra e a liberdade de expressão, devem considerar-se atípicos os juízos de apreciação e de valoração crítica vertidos sobre realizações científicas, académicas, artísticas, profissionais, ou sobre prestações conseguidas nos domínios do desporto e do espetáculo, quando não se ultrapassa o âmbito da crítica objetiva, ou seja, quando a valoração e censura críticas se atêm exclusivamente às obras, às realizações ou prestações em si, não se dirigindo diretamente à pessoa dos seus autores ou criadores, posto que não atingem diretamente a honra pessoal do cientista, do artista, do desportista, do profissional em geral, nem atingem a honra com dignidade penal e a carência de tutela penal que define e baliza a pertinente área de tutela típica.
Defende, ainda, Costa Andrade que se devem considerar atípicos os juízos que, como reflexo necessário da crítica objetiva, acabam por atingir a honra do visado, desde que a valoração crítica seja adequada aos dados de facto, excluindo-se, no entanto, a atipicidade relativamente a críticas caluniosas, bem como a outros juízos exclusivamente motivados pelo propósito de rebaixar e humilhar, bem como todas as situações em que os juízos negativos sobre o visado têm nenhuma conexão com a matéria em discussão. Distingue, assim, a crítica dirigida à obra da agressão pessoal ao autor.
Tais considerandos são expendidos a propósito do direito à liberdade de expressão exercido na imprensa ou noutros campos abertos à discussão pública e à circulação de ideias e opiniões, sendo transpostas em algumas decisões dos tribunais superiores para o campo judicial, ainda que com alguma relatividade pois que nos processos judiciais a intervenção processual encontra-se regulamentada e deverá observar determinado formalismo, visando a obtenção de determinada tutela. Não estamos, no âmbito processual, em meio de aberta discussão de ideias ou de divulgação pública, ainda que se discutam, a maioria das vezes, questões de interesse público relevante.
É também o que sustenta o Parecer da OA de 25/09/2005:« para impedir que o núcleo essencial de alguns direitos que são manifestações da liberdade de expressão (a liberdade de informação e de crítica ou liberdade de imprensa, o debate político) e da liberdade de criação cultural e artística seja severamente constrangido pela tutela jurídico-penal da honra, tem-se entendido que, face ao exercício desses direitos, deve esta recuar, por exclusão da ilicitude das respectivas condutas, operada, seja por força do exercício de um direito (artigo 31º, n.º 2, b) do Código Penal), seja pela prossecução de interesses legítimos (artigo 180º, n.º 2, a) do mesmo diploma)».
E o patrocínio judiciário é reconhecido constitucionalmente como elemento essencial à administração da justiça (art.º 208.º da CRP), sendo o direito de defesa do arguido um imperativo constitucional (art.ºs 20.º e 32.º).
Também a lei ordinária, densificando aquelas exigências, reconhece as imunidades necessárias ao exercício do patrocínio judiciário – art.ºs 12.º e 13.º da Lei 62/2013, de 26/8 (LOSJ), 150.º, n.º 2 do Cód. Processo Civil, 80.º e 93.º do EOA.
A livre atuação do Advogado no exercício do patrocínio forense é uma exigência do Estado de Direito e reveste indiscutível interesse público.
Por isso, deverá «reconhecer-se ao advogado a liberdade de dizer, por escrito ou oralmente, tudo o que for necessário à defesa da causa que lhe está confiada” e admitir-se que há circunstâncias em que se compreende e justifica um certo vigor de linguagem »[6]. E assim têm vindo a considerar maioritariamente os nossos Tribunais.
Como se pode ler no Ac. da R.P de 4/11/2020  [7]  que, por sua vez, faz uma resenha de algumas das decisões nesta matéria desse Tribunal Superior: «Necessária compressão do
direito à honra para salvaguarda da liberdade de expressão, no qual se inclui o direito à crítica objectiva,  que se vem traduzindo, na prática jurisprudencial, na exigência da verificação de ataques à honra ou reputação social com certo nível de gravidade, pois só nestas circunstâncias uma eventual condenação, com base na violação desse direito, não poderá ser considerada uma interferência ilegítima no direito de liberdade de expressão, consagrado no art.º 10º, § 1º, da Convenção Europeia dos Direitos Humanos.
É abundante a jurisprudência nacional que, na ponderação dos dois direitos constitucionais em conflito, salienta a necessidade de uma ofensa grave, desproporcionada e ilegítima à honra por forma a justificar o sacrifício do direito à liberdade de expressão - sendo certo que, como salienta Manuel da Costa Andrade (obra citada, pág. 153), evocando E..., para a superação normativa do conflito há-de ter-se sempre presente “que não é possível tomar uma decisão definitiva no caso concreto sem a apreciação pelo julgador das circunstâncias relevantes para a ponderação, que no caso comprovadamente se conjuguem”.
Exemplificativos do que acaba de se expor, encontramos, entre muitos outros, os seguintes arestos deste Tribunal da Relação do Porto, todos disponíveis para consulta em www.dgsi.pt:
- Acórdão do TRP de 9/3/2020 - Estelita de Mendonça.
“Vem-se entendendo, unanimemente, que nem todo o facto que envergonha e perturba ou humilha cabe na previsão das normas dos art.ºs 180º e 181º do Código Penal, tudo dependendo da «intensidade» da ofensa ou perigo de ofensa (uma vez que os crimes de difamação e de injúria são crimes de perigo). Como escreveu Beleza dos Santos «nem tudo aquilo que alguém considere ofensa à dignidade ou uma desconsideração deverá considerar-se difamação ou injúria punível (...).” v. Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 92º, pág. 167.
Com efeito, aquilo que razoavelmente se não deve considerar ofensivo da honra ou do bom nome alheio, aquilo que a generalidade das pessoas (de bem) de um certo país e no ambiente em que se passaram os factos não pode considerar difamação ou injúria, não deverá dar lugar a uma sanção reprovadora, como é a pena - ob. cit. pág.s 165 e 166.
 Aliás, nesta linha, decidiu o Ac. da Rel. de Évora, de 02/07/96, onde se escreveu: «Um facto ou juízo, para que possa ser havido como ofensivo da honra e consideração devida a qualquer pessoa, deve constituir um comportamento com objecto eticamente reprovável, de forma a que a sociedade não lhe fique indiferente, reclamando a tutela penal de dissuasão e repressão desse comportamento. Supõe, pois, a violação de um mínimo ético-necessário à salvaguarda sócio-moral da pessoa, da sua honra e consideração” - (negrito nosso) (CJ, Ano 1996, T. IV, pág. 295). É hoje claro, de resto, o “estreitamento” da honra enquanto bem jurídico, a acompanhar “uma certa perda da sua importância relativa”, (José de Faria Costa, Direito Penal Especial, Coimbra, 2004, pág. 104), que igualmente aponta para uma “verdadeira erosão interna” e para uma indesmentível “erosão externa” a que a honra tem sido sujeita.”.
- Acórdão do TRP de 11/4/2019 - Francisco Mota Ribeiro (já citado).
“[...] para haver uma violação de tal direito, o concreto ataque à honra ou consideração (“reputação”) terá de atingir um certo nível de gravidade, de molde a prejudicar o gozo daquele direito. Porquanto só um determinado nível de gravidade permitirá que uma eventual condenação, com base na violação desse direito, não possa ser considerada uma interferência ilegítima no direito de liberdade de expressão, consagrado no art.º 10º, § 1º, da mesma Convenção, pressupondo-se assim que uma tal condenação só possa ser aceitável, nos termos do art.º 10º, § 2, da CEDH, na medida em que se mostre necessária, numa sociedade democrática, à proteção da reputação ou de direitos de outrem.”.
- Acórdão do TRP de 25/9/2019 - Paulo Costa.
“Para que um facto ou um juízo possa ser havido como ofensivo da honra e consideração devidas a qualquer pessoa, deve constituir comportamento objetiva e eticamente reprovável de forma que a sociedade não lhe fique indiferente, reclamando, assim, a tutela penal de dissuasão e repressão desse comportamento.”.
- Acórdão do TRP de 11/9/2019 - Jorge Langweg.
“Como se refere no Acórdão do TR do Porto de 11.11.2015, in www.dgsi.pt “A protecção penal conferida à honra só encontra justificação nos casos em que objectivamente as expressões que são proferidas não têm outro sentido que não seja o de ofender, que inequívoca e em primeira linha visam gratuitamente ferir, achincalhar, rebaixar a honra e o bom nome de alguém”.
- Acórdão do TRP de 27/11/2019 - Raúl Esteves.
“[...] O art.º 25º nº1 da Constituição da República dispõe que “A integridade moral e física das pessoas é inviolável”, dispondo o art.º 26º do mesmo diploma que, “a todos são reconhecidos os direitos á identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade, á capacidade civil, á cidadania, ao bom nome e reputação, á imagem, á palavra, á reserva da intimidade da vida privada e familiar e á protecção legal contra quaisquer formas de discriminação”. Por seu lado, estabelece o art.º 37º da Constituição da República que “todos têm o direito de exprimir e divulgar o seu pensamento por palavras, pela imagem ou por qualquer outro meio, bem como o direito de informar, de se informar, e ser informados, sem impedimentos ou discriminações”.
Ambos os direitos, merecem tutela e garantia constitucionais, enquanto direitos fundamentais das pessoas, inscritos na Constituição da República. “O direito de liberdade de expressão e o direito à consideração e à honra, ambos constitucionalmente garantidos, quando em confronto, devem sofrer limitações, de modo a respeitar-se o núcleo essencial de um e de outro” (Cfr. neste sentido, Gomes Canotilho e Vital Moreira, in Constituição da República Portuguesa Anotada, pág. 110-111). O conflito entre esses dois direitos, haverá assim de ser resolvido mediante uma convivência pacífica onde ressalta os interesses legítimos que importa, em cada caso, acautelar, sendo chamado, em sede penal, a protecção enérgica do direito à Honra e ao bom Nome se, no caso, repete-se, se mostrar violado, sem qualquer fundamento legitimador, o exercício do direito de expressão, onde se insere o direito à critica.
Neste contexto, é crucial o contributo do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, definindo nos seus arestos quais são as características básicas que definem uma sociedade democrática e o papel que nela desempenha a liberdade de expressão.
Aquela alta instância não se tem cansado, pois, de repetir, decisão após decisão, que o regime democrático é o único compatível com o sistema instituído pela Convenção Europeia, o que de resto decorre desde logo do próprio preâmbulo desta, como tem ainda sublinhado que de entre as características básicas de um qualquer regime democrático estão as noções de pluralismo, de tolerância e de espírito de abertura. Mais: nesta linha de reconhecimento do valor do confronto livre de ideias, tem o Tribunal Europeu sustentado consistentemente que a liberdade de expressão, está no coração de um regime democrático. Assim se compreende que a jurisprudência do Tribunal Europeu tenda a ser muito liberal na protecção da liberdade de expressão, particularmente no domínio político, e isso, mesmo que a linguagem empregue seja objectivamente ofensiva e até algo provocatória, ou ainda que se trate de ideias que choquem ou perturbem. [...]”.
Acórdão do TRP de 7/11/2018 - Cravo Roxo.
“Fazendo apelo ao que se escreveu no Ac. desta Relação, de 26.04.2006 (www.dgsi.pt): “um dos princípios estruturais do direito criminal é o da subsidiariedade (ou da mínima intervenção criminal), que implica que o apelo àquele só se legitima quando a tutela dos bens jurídicos não puder ser garantida por outras vias, com incidências menos drásticas para os direitos das pessoas, sejam elas estaduais ou privadas, destacando-se nestas a autotutela por banda dos concretos portadores dos bens jurídico-penais. Estes considerandos aferem-se pela conduta da vítima, enquanto carente de tutela jurídica, designadamente em certas expressões da vida; e também pela acção do agente, para se apreciar da possibilidade de os factos praticados se revestirem de tipicidade, ou seja, para se verificar se estamos perante factualidade típica com natureza e índole criminal.”.
Acórdão do TRP de 14/6/2017 - Maria Ermelinda Carneiro.
“Como é referido, a este propósito, no Acórdão da Relação do Porto, de 26/03/2011, disponível em www.dgsi.pt “Em matéria de direitos fundamentais deve atender-se ao princípio jurídico- constitucional da proporcionalidade, segundo o qual se deve procurar obter a harmonização ou concordância prática dos bens em colisão, a sua otimização, traduzida numa mútua compressão por forma a atribuir a cada um a máxima eficácia possível. Até onde vai o exercício do direito e quando passa ele a ser ilegítimo? O art.º 334.º do Código Civil estatui que «é ilegítimo o exercício de um direito quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito». Uma definição idêntica não se encontra no Código Penal. Acompanhando o acórdão da Relação de Coimbra de 23 de Abril de 1998 diremos que «Há um sentir comum em que se reconhece que a vida em sociedade só é possível se cada um não ultrapassar certos limites na convivência com os outros [...]. Do elenco desses limites ou normas de conduta fazem parte as que estabelecem a “obrigação e o dever” de cada cidadão se comportar relativamente aos demais com um mínimo de respeito moral, cívico e social, mínimo esse de respeito que não se confunde, porém, com educação ou cortesia, pelo que os comportamentos indelicados, e mesmo boçais, não fazem parte daquele mínimo de respeito, consabido que o direito penal, neste particular, não deve nem pode proteger as pessoas face a meras impertinências». Tal interpretação está de acordo com o princípio da mínima intervenção do aparelho sancionatório do Estado, que subjaz ao direito penal. E deste princípio não podemos esquecer-nos na determinação dos elementos objetivos previstos no art.º 180.º n.º 1 do Código Penal. Para a correta determinação dos elementos objetivos do tipo importa atender ao contexto em que os factos ou juízos pretensamente atentatórios da “honra ou consideração” são produzidos (...)”.
- Acórdão do TRP de 9/11/2016 - Raúl Esteves.
“É próprio da vida social a ocorrência de algum grau de conflitualidade entre os membros da comunidade. Fazem parte da sua estrutura ontológica as desavenças, diferentes opiniões, choques de interesses incompatíveis que causam grandes animosidades - Ac. do Tribunal da Relação do Porto de 07/12/2005. O direito não pode intervir sempre que a linguagem utilizada incomoda ou fere susceptibilidades do visado. Só o pode fazer quando é atingido o núcleo essencial de qualidades morais que devem existir para que a pessoa tenha apreço por si própria e não se sinta desprezada pelos outros. Se assim não fosse a vida em sociedade seria impossível. E o direito seria fonte de conflitos, em vez de garantir a paz social, que é a sua função. Pelo que não há que considerar típicas sem mais, para efeitos das incriminações que tutelam o bem jurídico honra, todas e quaisquer expressões, imputações e juízos de valor que impliquem uma imagem negativa da pessoa que por eles é visada, por mais grave que essa imagem possa, a priori, afigurar-se - Cfr. Ac. da Relação do Porto de 12.06.2002, 05.11.2008 e 8.05.2013, dgsi, que se seguem de perto. [...]”.
Acórdão do TRP de 2/12/2015 - Ernesto Nascimento.
“I - A fronteira do permitido só é ultrapassada quando a valoração negativa passa a atingir directamente a substância pessoal, passa a denegar aquele respeito de que toda a pessoa é credora por força da sua dignidade humana.
II - Mesmo no exercício do seu direito de cidadania, não pode ser afectado o bom nome de uma pessoa sem qualquer necessidade ou proporcionalidade, através do uso de expressões que apenas visam o enxovalho e a humilhação pública do visado.”.
Acórdão do TRP de 20/6/2012 - Ernesto Nascimento.
“I - A liberdade de expressão tem longínquas raízes históricas, surpreendendo-se na Constituição dos EUA, o primeiro texto legal a referir-se claramente a tal liberdade.
II - São cada vez mais frequentes os conflitos entre o direito à honra, bom nome e reputação, por um lado, e o direito de expressão do pensamento, por outro.
III - Numa sociedade democrática, a liberdade de expressão reveste a natureza de verdadeira garantia institucional, impondo por vezes, um recuo da tutela jurídico-penal da honra. Recuo, que tem que ser justificado por um correcto exercício da liberdade de expressão, aferido pelo interesse geral.
IV - Sendo inevitável o conflito entre a liberdade de expressão, na mais ampla acepção do termo e o direito à honra e consideração, a solução do caso concreto, há-de ser encontrada através da “convivência democrática” desses mesmos direitos: i. é., consoante as situações, assim haverá uma compressão maior ou menor de um ou outro.
V - Costa Andrade defende que se devem considerar atípicos os juízos que, como reflexo necessário da crítica objectiva, acabam por atingir a honra do visado, desde que a valoração crítica seja adequada aos pertinentes dados de facto, esclarecendo, no entanto, que se deve excluir a atipicidade relativamente a críticas caluniosas, bem como a outros juízos exclusivamente motivados pelo propósito de rebaixar e humilhar. [...]”.
(....)
Refere-se no acórdão do TRP, de 11/12/2013 (Pedro Vaz Pato, in www.dgsi.pt): “Uma linha de fronteira entre o exercício livre do direito de crítica e a criminal ofensa à honra passa pela distinção entre a crítica de atos, atitudes e procedimentos concretos e delimitados, ou obras que deles são fruto, por um lado, e o juízo sobre a própria pessoa, por outro lado. A distinção vale para o campo da crítica política (é lícita a crítica negativa da atuação de um político, numa ou mais situações concretas e determinadas, não a ofensa à sua pessoa), como para o da crítica artística ou desportiva (é lícita a crítica negativa de uma obra ou prestação, não a ofensa à pessoa do seu autor). E vale também para o âmbito da crítica a uma decisão judicial ou a uma peça processual: não constitui crime de difamação a crítica (ainda que exagerada, injusta ou descortês) a uma decisão judicial que não atinge a pessoa do juiz seu autor.”.
E também o Tribunal da Relação de Évora tem tomado posição nesta matéria:
- No acórdão de 17/04/2012 - 250/08.1TALGS.E1, relator Maria Isabel Duarte, www.dgsi.pt.
«1. O justo limite da liberdade de expressão do Advogado, no exercício, das suas funções, é ditado pelas necessidades de defesa da causa.
2.  Se as expressões ou imputações utilizadas, na formulação de pergunta a testemunha, forem ofensivas, são ostensivamente inadequadas a essa defesa, devendo entender-se que foram feitas ad hominem.»
- No acórdão de 10/05/2016 - processo n.º 953/09.3TASTR.E2, relator João Amaro, www.dgsi.pt:
« I - Se o arguido (Advogado), enquanto mandatário judicial de uma parte interveniente num determinado processo de natureza cível, suscitou, perante o Tribunal da Relação, um “incidente de suspeição” do Magistrado Judicial que tramitava tal processo, alegando existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade, nomeadamente por entender haver amizade/intimidade/inimizade entre esse Magistrado e uma das partes intervenientes, concretizando as suas alegações - em resumo, o Magistrado Judicial conferia, “quase sempre”, prazos mais alargados para uma das partes (a alegadamente beneficiada) responder aos requerimentos da outra, tinha uma “inimizade grave” em relação a uma das partes, e tinha “grande intimidade” com a outra parte -, a honra do aludido Magistrado, que foi afetada pelas palavras (escritas) do arguido, foi, tão-só, a sua “honra funcional” (não se questionando a pessoa do Magistrado, enquanto tal, mas sim a pessoa do mesmo no exercício da sua função, e, além disso, apenas no exercício da sua função naquele concreto processo).
II - A atuação do mandatário judicial, no estrito âmbito assinalado, não merece censura criminal (não preenche os elementos, objetivos e subjetivos, do crime de difamação), estando afastada a ilicitude.»
III - Ao referido afastamento da ilicitude é, em princípio, indiferente a falta de pertinência da crítica feita pelo Advogado, sobretudo quando essa crítica se traduz, no essencial, na formulação de meros juízos de valor, bem como é indiferente a maior ou menor correção (elegância ou polidez) das expressões utilizadas pelo Advogado.
IV - O Advogado, se violar o dever de urbanidade, fica sujeito a perseguição disciplinar, mas não, só por isso, a perseguição criminal (a acidez, a indelicadeza, a falta de polidez, e mesmo a formulação de juízos injustos e impertinentes sobre a atuação, num processo concreto, de um Magistrado Judicial, vindas de mandatário judicial interveniente nesse processo, não são punidas criminalmente).»
E realça o Ac. RE de 01/07/2014 [8] que há que atender, na análise dos tipos legais que tutelam a honra e consideração pessoal, nomeadamente no crime de difamação, à Convenção para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, a qual tem valor superior ao direito ordinário português, assim como à jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem :«IV- A apreciação valorativa do confronto entre a liberdade de expressão e a honra é feita em sede infra-constitucional pela Convenção e pelo ordenamento penal português, e não no patamar constitucional, o que torna a Convenção um pilar essencial de onde se deve partir para a análise criminal em casos que exijam a sua aplicação.
V- A Convenção faz uma clara opção na definição da maior relevância do valor “liberdade de expressão” sobre o valor honra. Ou seja, a ponderação de valores é normativa, já foi feita pela Convenção com uma clara preferência pelo valor liberdade de expressão.
VI - A liberdade de expressão só pode ser sujeita a restrições nos termos claros e restritivos do n.º 2 do art.º 10.º da Convenção, pelo que as formalidades, condições, restrições e sanções à liberdade de expressão devem ser convenientemente estabelecidas, corresponderem a uma necessidade imperiosa e interpretadas restritivamente (Decisão Sunday Times, 26-04-1979, § 65).
VII - A tutela da honra deve situar-se na análise dos tipos penais de difamação no momento lógico de análise do n.º 2 desse art.º 10.º.
VIII - Esse art.º 10.º é um pilar, não apenas de reconhecimento de direitos individuais, mas muito mais relevantemente de reconhecer que há direitos individuais que são o cimento de um determinado tipo de sociedade, a sociedade democrática, juridicamente Estado de Direito.
IX - Se no geral prevalece como direito maior a liberdade de expressão pela sua essencialidade democrática, no campo da luta política e questões de interesse geral a tutela da honra é residual. É jurisprudência convencional constante a afirmação de que no campo da luta e discurso político ou em questões de interesse geral pouco espaço há para as restrições à liberdade de expressão.
X - Na análise do n.º 2 do art.º 10º da Convenção é necessário saber se existem os requisitos de punibilidade ali contidos: se a restrição à liberdade de expressão está “prevista na lei” (aqui através do tipo penal de difamação) e prossegue um objectivo legítimo” (aqui a tutela da honra) e se a condenação do arguido se justifica, se é uma “providência necessária numa sociedade democrática”.
 XI - A expressão “providência necessária numa sociedade democrática” tem sido interpreta da pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem como a exigência de uma necessidade social imperiosa que justifique uma condenação.
XII - A natureza e a medida das penas infligidas pela prática de crimes de difamação são elementos a ter em consideração quando se trata de medir a proporcionalidade da ingerência na liberdade de expressão.
XIII - Neste sentido, a aplicação de penas de prisão não se justifica nos crimes de difamação, excepto em circunstâncias excepcionais, designadamente se outros direitos fundamentais foram gravemente atingidos, como nos casos de incitamento à violência, de discurso de violência contra pessoas ou grupos, de incitamento ao ódio e de apelo à intolerância.
XIV - O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem na recente decisão Amorim Giestas e Jesus Costa Bordalo c. Portugal (3 de Abril 2014, § 36) é claro em considerar que o ordenamento jurídico português contém um remédio específico para a protecção da honra e da reputação no art.º 70.º do Código Civil, pelo que a penalização por difamação se deve entender hoje como residual.»
E a respeito da imunidade dos advogados no exercício do respetivo mandato refere-se no Ac. TRE de 7/03/2017  que esta «...não está dependente de uma ponderação de valores de compatibilização que tenha em vista evitar a liberdade de expressão do advogado, de forma que se possa afirmar que quando atinge a honra de alguém a imunidade já não opera. Essa sempre seria uma imunidade ridícula, que apenas existiria caso não ferisse ninguém.
Ou seja, só existiria nos casos em que seria inútil a sua existência. Porque, entende-se, a imunidade existe para operar quando ofende mas a ofensa se justifica pela necessidade de defesa. A não ser assim a imunidade de advogado assemelhar-se-ia a certos seguros de saúde que implicam o pagamento de prémios mas que a seguradora cancela se o segurado ficar doente. No caso a “imunidade” existiria enquanto fosse desnecessária e ficaria cancelada quando fosse necessária.
Assim, o juízo a formular não assenta numa ponderação igualitária e não se limita ao círculo liberdade de expressão do advogado versus direito à honra e consideração do visado pelo escrito. Isso é esquecer o básico em confronto.
O juízo a formular exige a análise da necessidade do escrito em função da defesa de um direito e demanda a proporcionalidade entre esse dito por necessidade e aquelas honra e consideração.»
Já no Acórdão de 24/01/2017 se decidiu que «As afirmações ínsitas em correspondência entre advogados que se caracterizam por não serem corteses, correctas e urbanas e, nessa medida, suportarem um juízo de ilicitude civil e disciplinar não constituem necessariamente crime».
Mais recentemente, em 8/11/2022, decidiu este Tribunal Superior:
«I.  O direito penal reveste natureza fragmentária, de tutela subsidiária (ou de última ratio) de bens jurídicos dotados de dignidade penal, não abarcando as meras insignificâncias.
II. Em sede de criação artística ou de debate político, há agressões típicas da honra que, não obstante, se tornam irrelevantes por força da liberdade de expressão. E por maioria de razão quando tal liberdade é exercida no âmbito do mandato forense.
III. A Convenção Europeia dos Direitos do Homem vigora na ordem jurídica portuguesa com valor infraconstitucional mas superior ao direito ordinário.
IV. A CEDH faz uma clara opção na definição da maior relevância do valor “liberdade de expressão” sobre o valor “honra”. Ou seja, a “ponderação de valores” é normativa e já foi feita pela Convenção com uma clara preferência pelo valor “liberdade de expressão”.
V. A liberdade de expressão só pode ser sujeita a restrições nos termos excecionais previstos no art.º 10.º, n.º 2 da Convenção, pelo que as “formalidades, condições, restrições e sanções” à liberdade de expressão, devem ser convenientemente estabelecidas, corresponderem a uma necessidade imperiosa e interpretadas restritivamente.
VI. A jurisprudência do TEDH, a observar pelo Estado Português no cumprimento do art.º 10.º da CEDH, tem entendido que a liberdade de expressão constitui um dos fundamentos essenciais de uma sociedade democrática e das condições primordiais do seu progresso e do desenvolvimento de cada um, sendo válida não só para as informações ou ideias acolhidas ou consideradas inofensivas ou indiferentes, mas também para aquelas que ferem, chocam ou ofendem, já que assim o querem o pluralismo, a tolerância e o espírito de abertura sem os quais não há “sociedade democrática”.
VII. Mais, tem considerado o TEDH que a liberdade de expressão também se aplica aos advogados. Onde, além da substância das ideias e informações expressas, abrange o seu modo de expressão conexa com a independência da profissão de advogado, que é crucial para o funcionamento eficaz da administração de uma justiça que se pretende justa.
VIII. Daí que só excecionalmente possa numa sociedade democrática ser admissível a aplicação de qualquer sanção penal (por mais leve que seja) a um advogado no exercício do respetivo mandato forense, enquanto limite que afete a respetiva liberdade de expressão.
IX. Como regra tem entendido o TEDH que as razões apresentadas pelos tribunais nacionais para justificar as condenações de advogados no exercício de mandato forense não podiam ser consideradas pertinentes e suficientes e não correspondiam a nenhuma necessidade social premente. Tratando-se de interferências no exercício do seu direito à liberdade de expressão, desproporcionadas e desnecessárias numa sociedade democrática.»
 Refere-se, aqui, a respeito da jurisprudência do TEDH, o seguinte: «E, em plena consonância com o supra-exposto, cumpre dar nota da jurisprudência que vem sendo firmada a este respeito pelo Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, a observar pelo Estado Português no cumprimento do artigo 10.º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, de acordo com a qual "a liberdade de expressão constitui um dos fundamentos essenciais de uma sociedade democrática e das condições primordiais do seu progresso e do desenvolvimento de cada um. Sem prejuízo do disposto no nº 2 do artigo 10º, é válida não só para as «informações» ou «ideias» acolhidas ou consideradas inofensivas ou indiferentes, mas também para aquelas que ferem, chocam ou ofendem. Assim o querem o pluralismo, a tolerância e o espírito de abertura sem os quais não há «sociedade democrática»" (vd., inter alia, o Caso Almeida Azevedo contra Portugal, com decisão proferida a 03.01.2007 e o Caso Azevedo contra Portugal, tendo sido proferida decisão a 27.06.2008).
E, em particular acerca da liberdade de expressão dos advogados, atente-se nos recentes acórdãos TEDH de 12-2-2019 e 8-10-2019.
Ac. TEDH 12-2-2019, PAIS PIRES DE LIMA c. PORTUGAL
“A Corte reitera que a liberdade de expressão também se aplica aos advogados. Além da substância das ideias e informações expressas, abrange o seu modo de expressão...
A questão da liberdade de expressão está ligada à independência da profissão de advogado, que é crucial para o funcionamento eficaz da administração justa da justiça (Sialkowska v. Polônia, nº 8932/05, § 111, 22 de março de 2007). É, portanto, apenas excepcionalmente que um limite que afecte a liberdade de expressão do advogado de defesa - mesmo por meio de uma leve sanção penal - pode ser considerado necessário em uma sociedade democrática (Nikula , citado acima, § 55, e Kyprianou c. Chipre [GC], n.º 73797/01 , § 174, CEDH 2005 - XIII).
61. No entanto, há que distinguir se o advogado fala no tribunal ou fora dele (Morice, já referido, § 136). No que diz respeito, em primeiro lugar, aos "factos da audiência", quando a liberdade de expressão do advogado pode suscitar uma questão do ponto de vista do direito do seu cliente a um julgamento justo, a equidade também milita a favor de uma troca livre, mesmo enérgica, de pontos de vista entre as partes e o advogado tem o dever de "defender zelosamente os interesses dos seus clientes"...
Além disso, a Corte leva em consideração o facto de que as observações controvertidas não saem da sala do tribunal.
O Tribunal considera que tal condenação também é suscetível de produzir um efeito dissuasor para a advocacia como um todo, em particular quando se trata de advogados que defendem os interesses de seus clientes (ver, mutatis mutandis , Nikula , já citado, § 55, Gouveia Gomes Fernandes e Freitas e Costa , já referidos, § 54, e Erdener c. Turquia , n.º 23497/05 , § 39, 2 de fevereiro de 2016).
iii. Conclusão
68. Tendo em conta as observações anteriores, o Tribunal considera que as indemnizações atribuídas no presente processo foram desproporcionadas em relação ao objetivo legítimo prosseguido. A interferência na liberdade de expressão do requerente não era, portanto, “necessária em uma sociedade democrática”. Assim, houve uma violação do artigo 10 da Convenção”.
Acórdão TEDH de 8-10-2019 Condenação Portugal por violação art.º 10º da Convenção - liberdade de expressão (advogados)
“No que diz respeito à necessidade de ingerência «numa sociedade democrática», o Tribunal de Justiça remete para os princípios gerais reiteradamente reiterados desde o acórdão Handyside c. Reino Unido, 7 de Dezembro de 1976 (Série A nº 24), e que recordou em Morice v. França ([GC], n.º 29369/10, §§ 124 a 127, CEDH 2015). Para os princípios relativos à liberdade de expressão dos advogados, refere-se também ao acórdão Morice, (já citado, §§ 132 a 139) e nos acórdãos Gouveia Gomes Fernandes e Freitas e Costa v. Portugal (n.º 1529/08, § 46, 29 de março de 2011).
71. O Tribunal reitera que a natureza e a gravidade das penalidades impostas também são fatores a serem levados em consideração quando se trata de medir a proporcionalidade da interferência (ver Morice, citado acima, § 176, e as referências nele citadas). No caso em apreço, considera que, ainda que a coima aplicada ao primeiro requerente seja modesta e que tenha beneficiado do não registo da sua condenação no registo criminal, a aplicação de uma sanção penal apresenta por si só um efeito dissuasor o exercício da liberdade de expressão, que é tanto mais inaceitável no caso de um advogado chamado a assegurar a defesa eficaz dos seus clientes ( ibidem , e Mor c. França , n.º 28198/09 , § 61, 15 de dezembro de 2011). Além disso, nos dois processos em apreço, os recorrentes foram condenados a pagar aos juízes em causa quantias significativas de indemnização, a saber, 5.000 euros para o primeiro requerente e 10.000 euros para o segundo requerente (nºs 20 e 38 supra). As penas aplicadas não encontraram, portanto, o justo equilíbrio entre a necessidade de proteger o direito à honra dos juízes em causa e a autoridade judiciária, por um lado, e a liberdade de expressão dos requerentes, por outro. São também susceptíveis de produzir um efeito dissuasor para o conjunto da advocacia, em particular quando se trata de advogados que defendem os interesses dos seus clientes (cf., mutatis mutandis, Gouveia Gomes Fernandes e Freitas e Costa, já referido, § 54, e Erdener c. Turquia, nº 23497/05, § 39, 2 de fevereiro de 2016).»
E na Relação de Guimarães, encontramos publicados os seguintes acórdãos:
- 28/02/2011, processo n.º 2765/07.0TABRG.G1, relator Fernando Monterroso: «I- Nenhum atentado à honra existe no facto de se alegar que o juiz decidiu contra toda a prova produzida, ou que só decidiu em determinado sentido devido ao “normal esquecimento que advém de três anos de audiências de julgamento”. Estes juízos não contêm mais do que a alegação de que o tribunal errou, sendo que não é, sequer, pensável a existência de um recurso em que não se alegue a existência de erro na decisão ou nos seus pressupostos.
II- Mas, o advogado que em alegações de recurso por si elaboradas afirma que da parte do juiz foi “manifesta a intenção de fazer improceder a acção”, comete grave atentado à honra do juiz, por atingir profundamente o núcleo das qualidades fundamentais exigíveis a um juiz: a isenção e a imparcialidade.»
 - Acórdão de 30/06/2014, Processo n.º 30/11.7GBAVV.G1, relator João Lee Ferreira:
«I - Aos advogados são asseguradas as imunidades necessárias ao exercício do mandato, não sendo ilícito o uso de expressões e imputações indispensáveis à defesa da causa. Entre o direito ao livre exercício do patrocínio forense e o direito ao bom nome e reputação dos visados, ter-se-á que ponderar as circunstâncias concretas do caso, para que o sacrifício de cada um dos valores seja apenas o necessário.
II - Atribuir a quem se imputa o incumprimento de uma dívida o epíteto de “caloteiro”, ou seja, de pessoa que contrai dívidas e não pode ou não tenciona pagá-las, sendo uma atitude descortês, tem ainda de ser considerado nos limites da adequação à defesa da causa.
III - Porém, é destituído de pertinência para a defesa dos interesses concretos de um credor em processo judicial, afirmar que o visado “vive de esquemas, não passa de um Chico esperto, que veio de Lisboa para enganar os parolos dos Arcos”, que “podia ter gasto a quantia exequenda nas meninas” e que é uma pessoa que efetua frequentemente “intrigas, trapaças ou manobras escondidas”.»
- Acórdão de 16/09/2019, processo n.º 3298/16.9T9VCT.G1, relatora Isabel Cerqueira
« 1 - Não integram o crime de injúria a Magistrado as expressões proferidas ou constantes de requerimento apresentado por advogado, no exercício do mandato forense, mesmo que essas expressões integrem ilícito disciplinar relativamente ao mandatário, e sejam descorteses e pouco éticas, desde que não visem humilhar ou rebaixar o magistrado no desempenho da sua função, intenção que tem que resultar de factos concretos, como e por exemplo a existência de animosidade anterior.
2 - Devendo tais expressões aparentemente injuriosas e desde que não visem directamente o magistrado na sua honra pessoal e "funcional" ser vistas no âmbito do confronto direito à honra/ liberdade de expressão, tendo o primeiro que ser interpretado restritivamente em função da segunda, nos termos da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, ratificada por Portugal através da L. 65/78, de 13/10.
 3 - E também de acordo com a Jurisprudência do TEDH, ou seja, sem esquecer que o direito de critica ampla se aplica à actividade dos juízes, e reconhecendo como este tribunal um amplíssimo espaço de liberdade de expressão aos advogados, quando no exercício do mandato forense.»
- Acórdão de 13/07/2020, 377/18.1T9BCL.G1, relator Jorge Bispo «I) O direito fundamental ao bom nome e reputação de qualquer pessoa, consagrado no art.º 26º, n.ºs 1 e 2 da CRP, tem de ser compatibilizado com o direito fundamental da liberdade de expressão e informação, com idêntica consagração constitucional (art.º 37º da CRP), bem como a nível de mecanismos de direito internacional, como a Convenção Europeia dos Direitos Humanos (art.º 10º) e a Declaração Universal dos Direitos Humanos (art.º 19º).
II) Uma das manifestações da liberdade de expressão é precisamente o direito que cada pessoa tem de divulgar a opinião e de exercer o direito de crítica.
III) A temática do conflito entre a liberdade de expressão e de opinião e o direito à honra e reputação tem sido frequentemente objeto de decisões por parte do TEDH, dando sistematicamente prevalência à primeira e frisando que a liberdade de expressão constitui um dos fundamentos essenciais de uma sociedade democrática e vale não somente para as “informações” ou “ideias” favoráveis, inofensivas ou indiferentes, mas também para aquelas que ofendem, chocam ou inquietam.
IV) Como resulta do parágrafo 2º do artigo 10º da CEDH, a liberdade de expressão está sujeita a exceções que devem ser interpretadas restritivamente, devendo a necessidade de qualquer restrição ser demonstrada de maneira convincente.
V) Assim, o direito de crítica tem necessariamente limites mais apertados quando o visado é um simples particular do que em relação a pessoas que exercem funções públicas, atuando nessa qualidade, na medida em que os atos destas estão necessariamente sujeitos a um controlo atento, seja pela comunicação social, seja pelo cidadão comum da comunidade na qual exercem as funções, devendo, por isso, os visados demonstrar muito maior tolerância, sobretudo quando produzem declarações públicas que se prestam à crítica.
VI) Daí que se devam considerar atípicos os juízos que, como reflexo necessário da crítica objetiva, acabam por atingir a honra do visado, desde que a valoração crítica seja adequada aos pertinentes dados de facto e agente não incorra na crítica caluniosa ou na formulação de juízos de valor que têm subjacente o exclusivo propósito de rebaixar e de humilhar.»
E de igual forma encontramos decisões sobre a presente problemática no Tribunal da Relação de Lisboa:
- Acórdão de 9/11/2004, processo n.º 8460/2003-5, relator Vieira Lamim
«Ainda que no decurso de processo judicial se possa agudizar o conflito subjacente e que se deva admitir com frequência a veemência no combate verbal e escrito, entre os respectivos advogados, o uso de expressões que colidam com a honra e consideração e o bom nome de outrem e que sejam dispensáveis relativamente à defesa da causa, fazem incorrer o advogado que as escreveu na prática de facto integrador de crime de difamação, por tal devendo ser pronunciado.»
- Ac. R.L. de 03/02/2009, processo n.º 10661/2008-5, relator Vieira Lamim
«I - Num contexto de conflito entre o direito à honra e a liberdade de expressão, a jurisprudência dos nossos tribunais superiores, na esteira da orientação assumida por Costa Andrade, vem defendendo que devem considerar-se atípicos os juízos de apreciação e de valoração crítica vertidos sobre realizações científicas, académicas, artísticas, profissionais, etc., ou sobre prestações conseguidas nos domínios do desporto e do espectáculo, quando não se ultrapassa o âmbito da crítica objectiva, isto é, enquanto a valoração e censura críticas se atêm exclusivamente às obras, às realizações ou prestações em si, não se dirigindo directamente à pessoa dos seus autores ou criadores, posto que não atingem a honra pessoal do cientista, do artista, do desportista, do profissional em geral, nem atingem a honra com a dignidade penal e a carência de tutela penal que definem e balizam a pertinente área de tutela típica;
II- Segundo aquele insigne Mestre, a atipicidade da crítica objectiva não depende do acerto, da adequação material ou da “verdade” das apreciações subscritas, as quais persistirão como actos atípicos seja qual for o seu bem fundado ou justeza material, para além de que o correlativo direito de crítica, com este sentido e alcance, não conhece limites quanto ao teor, à carga depreciativa e mesmo à violência das expressões utilizadas, isto é, não exige do crítico, para tornar claro o seu ponto de vista, o meio menos gravoso, nem o cumprimento das exigências da proporcionalidade e da necessidade objectiva, só devendo ser excluída a atipicidade relativamente a críticas caluniosas, bem como a outros juízos exclusivamente motivados pelo propósito de rebaixar e humilhar e, bem assim, em todas as situações em que os juízos negativos sobre o visado não têm nenhuma conexão com a matéria em discussão, consignando expressamente que uma coisa é criticar a obra, outra muito distinta é agredir pessoalmente o autor, dar expressão a uma desconsideração dirigida à sua pessoa;
III- Estando em causa um requerimento inicial de uma providência cautelar, subjacente à qual está um litigio entre accionistas de determinada empresa, em que os requerentes defendem que os responsáveis pela contabilidade e guarda da documentação favoreciam os seus opositores, o uso da expressões “servilismo para alguns actionistas...” e “...a contabilidade resolve - estulta, habilidosa e irresponsavelmente...”, revela a discordância em relação a determinado procedimento e insere-se no exercício do direito à liberdade de expressão, enquanto direito de opinião e de crítica;
IV- Estando em causa uma peça processual dirigida a um tribunal, a quem era solicitada determinada providência, para cuja procedência era essencial convencer o julgador de determinados factos, é de aceitar que quem tem a obrigação de a redigir recorra a adjectivação forte, segundo estilo literário próprio, por forma a destacar perante o destinatário da peça os factos que considera mais importantes para o êxito da pretensão.»
 - Ac. 7/07/2009, 7123/07.3TDLSB.L1-5, relator Santos Rita
«(...) II - As expressões mencionadas não são susceptíveis de integrar o crime de difamação do art.º 180º, nº 1 do C. Penal de que seriam co-autores os oponentes da dita providência pois por elas é responsável o advogado e não os constituintes,
III- Mas também não integram o mencionado crime de que seria eventual autor o mandatário judicial subscritor de tal peça.
IV- Pois, «é necessário não esquecer que um processo é uma luta, quase sempre viva e apaixonada, de interesses ou sentimentos e que nem sempre é possível manter nessa luta uma atitude de extrema correcção e de impecável urbanidade».
V- «A faculdade que às partes compete de alegarem com toda a liberdade, por meio dos seus advogados, tudo quanto julgarem aproveitável à defesa dos seus direitos é um sagrado e essencial direito indispensável à boa administração da justiça».
- Acórdão de 27/05/2010, 3880/07.5TACSC.L1-9, relator Abrunhosa de Carvalho
«Sendo a técnica da redacção do art.º 180º do C. Penal, sobretudo dos n.ºs 2 e 3 pouco rigorosa, nos casos em que factos com potencial difamatório, relativos à intimidade da vida privada, são imputados num articulado de uma acção cível, e, portanto, alegados no exercício de um direito, só se exclui a ilicitude, nos termos do disposto no art.º 31º/2-b) do C. Penal, se o agente tiver tido fundamento sério para, em boa-fé, os reputar de verdadeiros, nos termos do disposto no mesmo art.º 180º/2-b).»
- Acórdão de 18/12/2012, 5816/11.0TDLSB.L1-5, relatora Margarida Bacelar
«O elevado perfil pessoal e profissional do juiz seria garantia da desconformidade da crítica e seria o perfil deste a retirar à potencial ofensa a gravidade que conduziria à tipicidade da conduta.»
- Acórdão de 23/05/2013, processo n.º 5394/08.7TBOER.L1-2, relatora Ondina do Carmo Alves
«1. Sendo o exercício da liberdade de expressão e do direito de informação potencialmente conflituantes com o direito ao bom nome e reputação de outrem, o Tribunal Europeu dos Direito do Homem (TEDH), tendo em consideração o que decorre da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (CEDH), tem vindo a dar particular relevo à liberdade de expressão, enquanto fundamento essencial de uma sociedade democrática.
2. Estando em causa juízos de valor, em relação aos quais, ao contrário da imputação de factos, não pode ser exigida a prova da verdade, o TEDH tem adoptado uma posição de intervenção máxima e de sobreposição dos seus critérios aos das decisões nacionais.
3. A vinculação dos juízes nacionais à CEDH e à jurisprudência consolidada do TEDH implica a necessidade de implementar a reflexão e inflexão da jurisprudência nacional, assente no entendimento, até há pouco dominante, de que o direito ao bom nome e reputação se deveria sobrepor ao direito de liberdade de expressão e/ou informação.»
- Ac. 31/05/2022, processo n.º 436/20.0PFCSC.L1-5, relatora Alda Casimiro
«- O advogado, como mandatário judicial, pratica actos jurídicos, não em nome próprio, mas por conta do mandante e, obviamente, com base em informações que lhe foram prestadas para o efeito pelo seu constituinte.
- Entre o advogado e o cliente existe uma relação de confiança que não exige a comprovação de tudo o que lhe é afirmado pelo constituinte.
- A Constituição assegura aos advogados as imunidades necessárias a um desempenho eficaz do patrocínio e se é certo que essa imunidade não é total, ela tem forçosamente grande abrangência.
- A imunidade não está dependente de uma ponderação de valores de compatibilização que tenha em vista evitar a liberdade de expressão do advogado, de forma que se possa afirmar que quando atinge a honra de alguém a imunidade já não opera.»
E o Tribunal da Relação de Coimbra pronunciou-se, para além da decisão que suporta a recorrida, nos:
- Acórdão 25/11/2013, processo n.º 365/10.6T3OBR.C1, relator José Eduardo Martins
«I - O mandatário forense, se agir de acordo com as regras próprias da deontologia profissional, escreve na peça processual os factos que lhe são transmitidos pelo seu cliente, convencido de que correspondem à verdade.
II - Os princípios da boa-fé e da colaboração entre os intervenientes processuais impõem tal premissa - sob pena de se tornar perverso, à partida, o acesso aos tribunais -, sem prejuízo da necessidade de controle de eventuais desvios que, justamente devido à sua natureza, devem ser alegados e provados e não considerados aprioristicamente.
III - Nestes termos, para que haja comparticipação num crime de difamação, cometido através de peça processual, é necessário que exista um acordo prévio, mesmo tácito, entre mandatário e mandante, para afirmação ou propalação de factos inverídicos.
IV - Consequentemente, se dos autos não decorre que o crime de difamação foi praticado em comparticipação entre o mandante e o seu advogado, subscritor da peça processual difamatória, ao ter sido deduzida queixa apenas contra o primeiro, não se verifica a falta da condição de procedibilidade consignada no n.º 3 do artigo 115.º do CP.»
- Acórdão de 9/12/2012, processo n.º 96/11.0TAGRD.C1, relator Jorge Jacob
«I - Chamar a alguém atrasado mental é manifestamente ofensivo, para mais tratando-se de alguém que exerce funções públicas para as quais foi democraticamente eleito.
 II - Neste condicionalismo não funciona a causa de justificação prevista na al. a), do n.º 2, do art.º 180º, do Código Penal, já que não está em causa uma imputação de factos que visem a realização de um interesse legítimo, mas uma formulação de juízos de valor ofensivos.
III - Na impossibilidade de funcionamento da causa de justificação do art.º 180º, n.º 2, do Código Penal, dada a inadmissibilidade da exceptio veritatis, deverão funcionar as regras gerais constantes do art.º 31º, do mesmo Diploma, em cujos termos “o facto não é punível quando a sua ilicitude for excluída pela ordem jurídica considerada na sua totalidade”, nomeadamente, nos termos da al. b), do respectivo n.º 2, quando o facto for praticado “no exercício de um direito”, havendo, no entanto, que ter em especial atenção os princípios da ponderação de interesses e/ou da adequação social.
IV - Ainda que esta expressão tenha sido proferida no âmbito de uma contenda política, a densidade dos direitos em questão não permite afirmar uma manifesta supremacia do direito do arguido de se pronunciar politicamente sobre os factos dessa contenda, sacrificando o direito ao bom-nome e reputação do assistente, tanto mais que o arguido não carecia em absoluto da formulação do juízo ofensivo para fazer valer o seu ponto de vista, razão pela qual não poderá prevalecer-se da causa de justificação.»
- Acórdão de 25/01/2012, processo n.º 412/10.1TACVL.C1, relator Orlando Gonçalves
«1- A “exceptio veritatis”, como causa de exclusão da ilicitude prevista no art.180.º, n.ºs 2 e 3 do Código Penal, tem lugar através da prova dos factos imputados, não se aplicando à formulação de juízos ofensivos.
2- Escrever numa “Reclamação” que os utentes são maltratados e que a assistente tem vindo, ao longo da sua permanência naquele serviço, a ter atitudes quer verbais, quer comportamentais, indignas e inaceitáveis, são juízos de valor e não factos concretos e como tal estão fora da “exceptio veritatis”.
3- Independentemente da prova da “exceptio veritatis”, a imputação de juízos poderá sempre integrar a causa de exclusão da ilicitude ao abrigo do ao art.º 31.º, n.º 2, al. b), do Código Penal, quando fiquem demonstrados factos concretos que sustentem os juízos ou que com base nos mesmos o agente tinha fundamento sério para, em boa fé, os reputar verdadeiros.
4- Aceitando o arguido não ter presenciado os factos que imputou à assistente, e que nem sequer entra há pelo menos 15 anos na Extensão de Saúde, exigia a boa fé que o mesmo antes de escrever a reclamação averiguasse junto de outros utentes do serviço, não só se eram maltratados pela assistente e se ao longo da sua permanência naquele serviço ela tinha atitudes verbais e comportamentais indignas e inaceitáveis, a impor a sua suspensão ou transferência, especificando os respetivos factos concreto»
- Acórdão de 25/02/2015, processo n.º 59/13.0TAGVA.C1, relatora Elisa Sales
«I - Nos termos e para os efeitos da previsão típica do artigo 180.º, n.º 1, do CP, a luta política apenas poderá relevar, como critério de justificação, em casos limite, situando-se, todavia, a potencial ofensa da honra e consideração numa relação directa com esse cenário participativo.
II - Não estando em causa o debate político próprio de cidadãos livres exprimindo, embora com desassombro, as suas ideias, mas sim a ofensa pela ofensa, sem nenhuma relação com a dignidade e verticalidade que devem ser apanágio desse debate, inexiste crítica pública legítima, verificando-se antes atentado à honra e consideração pessoal do visado.»
- Acórdão de 9/11/2016, processo n.º 459/13.6TAMGR.C1, relatora Alice Santos «I - É próprio da vida social a ocorrência de algum grau de conflitualidade entre os membros da comunidade. Fazem parte do seu estatuto ontológico as desavenças, diferentes opiniões, choques de interesses incompatíveis que causam grandes animosidades.
II - No caso vertente, estamos perante uma reclamação que reflecte algum tipo de censura, que recai sobre as faltas sistemáticas de uma funcionária e a passagem de uma baixa médica “fora” do prazo. No fundamental trata-se de uma reclamação com um tom expositivo mais convicto, mais crítico, talvez até impulsivo.
III - Do teor da “reclamação” não se lê qualquer ataque pessoal ao assistente, ou aos seus serviços. Como é referido na sentença recorrida o que, efectivamente ressalta da reclamação é estranheza do arguido pelo facto de ter sido passada uma baixa médica com efeitos retroactivos.
IV - A faculdade de crítica não está isenta de limites.
V - Não se detecta no comportamento do arguido um situar-se além de tais limites, pelo que não se verifica o elemento objectivo do crime.»
- Acórdão de 15/06/2022, processo n.º 113/19.5T9NLS.C1, relator Paulo Guerra
«1 - É a protecção dos direitos relativos à integridade moral das pessoas, como a honra e a reputação, que as normas dos art.ºs 180º e 181º do CP visam acautelar.
2. No conceito de honra inclui-se quer o valor pessoal ou interior de cada indivíduo, radicado na sua dignidade, quer a própria reputação ou consideração exterior, consubstanciando-se na pretensão, constitucionalmente protegida, de não ser vilipendiado ou depreciado no seu valor aos olhos da comunidade, mesmo enquanto homem político.
3. O exercício do direito de liberdade de expressão e de informação, ainda que a coberto da liberdade de imprensa, não justifica, só por si, a imputação a outra pessoa de factos ou a formulação de juízos ofensivos da sua honra e consideração.
4. Não é juridicamente aceitável que, em nome das liberdades de expressão, de opinião e de informação, se ofenda, injustificada e imerecidamente, a honra e a consideração de outra pessoa, mesmo que no âmbito do direito de participação na vida política e relativamente a assuntos do interesse público, como são os que se referem à gestão de uma autarquia/...)»
E o Supremo Tribunal de Justiça decidiu no Acórdão de 17/12/2014 processo n.º 114/12.4TRPRT.S1, relator OLIVEIRA MENDES que: «(...) XII - Não se detecta a ocorrência de uma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa quando, num caso, os factos inserem-se na defesa apresentada pela arguida, acto elaborado fora do processo, subscrito pelo seu mandatário e nele integrado de forma escrita, enquanto, no outro, os factos tiveram lugar em acto ocorrido no processo, ou seja, intra-processualmente, em procedimento presidido pelo inspector judicial.
XIII - A ilicitude da conduta dos arguidos só pode ser afastada pelas causas de exclusão previstas nas als. b) e c) do n.º 2 do art.º 32.º do CP, quando perante a colisão de direitos (direito à honra do assistente versus direito de defesa da arguida e dever de patrocínio do arguido) se entender que o direito de defesa e o dever de patrocínio foram devida e legitimamente exercidos, ou seja, quando a sua utilização se mostre necessária à defesa da causa, quando se revele adequada e essencial.
XIV - Como os factos, as afirmações e os juízos de valor não se mostram indispensáveis para a defesa da causa, os arguidos devem ser pronunciados como co-autores de um crime de difamação p. e p. pelos art.ºs 180.º, n.º 1, 182.º, 184.º e 132.º, n.º 2, al. l), do CP.»
Aqui chegados, é pacífico que o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem reconhece uma particular amplitude ao direito à liberdade de expressão, incluindo no exercício do patrocínio judiciário, sobrepondo-se à honra, sendo as exceções admissíveis limitadas ao mínimo.
E os Senhores advogados têm o dever de agir de forma a defender os legítimos interesses dos respetivos constituintes, de dizer e criticar tudo quanto julguem conveniente ao bom desempenho do seu mandato, ainda que tal signifique sacrifício da tutela da honra de terceiros.
Reconhece-se, por isso, a impunidade da crítica objetiva.
Já quanto a expressões e juízos de valores dirigidos a terceiros, os mesmos apenas encontram justificação na estrita necessidade da defesa da causa. Continuando com o Parecer da OA acima citado «O justo limite da liberdade de expressão do Advogado é ditado, como se assinalou, pelas necessidades da defesa da causa.
Se as expressões ou imputações ofensivas utilizadas - depois de ponderadas, em concreto, segundo as leges artis, as circunstâncias processuais em que foram produzidas e os fins a que obedeceram - forem ostensivamente inadequadas à defesa da causa, deve entender-se que elas foram feitas ad hominem.
Nessas situações, o Advogado excede o limite da sua livre actuação.
Emerge, então, a tutela do direito à honra das pessoas ofendidas pelas imputações ou expressões usadas. As razões de interesse público que a sacrificavam deixaram de estar presentes.»
É que os senhores Advogados atuam, de igual forma, norteados por deveres deontológicos, como os consignados no art.ºs 90.º, 95.º e 110.º do respetivo Estatuto. Devem, nomeadamente, proceder com urbanidade, isto é com correção, com polidez, delicadeza, civilidade.
Na concatenação dos direitos em apreço, há que ponderar a situação concreta que se nos apresenta na sua globalidade.
Está em causa uma peça processual subscrita e apresentada em juízo pelo recorrente, na defesa de um seu constituinte em ação penal em que o mesmo é arguido. Na mesma, este formula os seguintes considerandos, reportados à ofendida, oficial de justiça no Tribunal onde corre termos o referido processo:
«- ponto 24.º da contestação: "Tomou o AN conhecimento que a funcionária encarregue do processo notificou o Pedro Miguel Parente Ferreira como gerente de direito da empresa Cont.... da notificação com a referência 138301336";
- ponto 25.º da contestação: "A funcionária que praticou o acto foi a Sra. D. MC - Escrivão Auxiliar do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte - Juízo Local Criminal de Vila Franca de Xira - Juiz 3";
- ponto 26.º da contestação: "Ora, com a devida vénia a funcionária não pode proceder a esta qualificação na notificação - enquanto gerente de direito - porquanto não existe qualquer sentença transitada em julgado que tenha apreciado tal questão";
- ponto 27.º da contestação: "Com esta atitude, propositada, consciente e deliberada a funcionária teve intenção de causar prejuízo a terceira pessoa, na situação em apreço ao NA, tendo cometido um crime de abuso de poder nos termos e para os efeitos do artigo 382.º do CP";
- ponto 28.º da contestação: "Ora, tendo praticado o acto de forma consciente, deliberada e com intenção de prejudicar o AN, pois da certidão comercial apenas consta o nome do PF enquanto gerente da empresa, cometeu igualmente a funcionária o crime de denegação de justiça e prevaricação previsto e punido nos termos e para os efeitos do artigo 369.º do CP";
- ponto 29.º da contestação: "Com a sua conduta a funcionária cometeu igualmente um crime de falsificação de documento, porquanto fez constar falsamente em documento facto juridicamente relevante, previsto e punido nos termos e para os efeitos do artigo 256.º do CP";
- ponto 30.º da contestação: "Reitera-se a funcionária com a sua atitude apenas pretendeu prejudicar o AN , sem cuidar uma posição de absoluta imparcialidade, fazendo juízos de valor antes do transito em julgado da decisão que pudesse conhecer da factualidade".
Alega o recorrente que atuou exclusivamente na defesa do seu constituinte, no Processo n.º 733… , onde se discute a prática de um crime de natureza fiscal, bem como a qualidade de gerente da empresa Cont.... , que o recorrente atribuí a PF. A questão fulcral a discutir no apontado processo crime é, em seu entender, quem geria de facto a empresa e, por isso, tomou a decisão de fazer suas quantias que pertenciam ao Estado, ou seja, quem praticou o crime de fraude fiscal.
Alega, em conclusão, que a notificação feita pela ofendida a PF, como gerente de direito, é uma tomada de posição num litígio que tem de ser dirimido pelo tribunal.
Apreciando o invocado, temos de concordar com a primeira instância quando considerou a irrazoabilidade do argumento de defesa. A forma como a notificação a um dos sócios de uma sociedade é elaborada por um oficial de justiça, num processo crime que está pendente, nenhuma influência pode ter na apreciação do exercício dos poderes societários por parte do julgador.
Cabe ao juiz do processo crime, segundo a prova aí produzida e fazendo uso do princípio da sua livre apreciação, decidir a verificação dos respetivos elementos típicos.
 O alegado pelo arguido é inócuo para o julgamento criminal e, ainda que assim não fosse, deveria o arguido ter-se atido no âmbito da crítica objetiva.
Mas sendo inócuo e revelando, no mínimo, desconhecimento das regras de apreciação da prova em processo penal e não observância de lisura processual (que reclamava, desde logo, que previamente questionasse, pelos meios processuais ao seu dispor, o teor da referida notificação), não são ainda assim, em nosso entender ilícitas (sendo que a imputação da prática dos apontados crimes não foi equacionada no âmbito de eventual crime de denúncia caluniosa), pois que sendo desprestigiantes e estigmatizantes para a visada, não são desenraizadas da atuação da mesma. Isto é, os juízos desvaliosos são dirigidos ao ato praticado pela oficial de justiça - a notificação - à sua função no processo, e não à pessoa da mesma.
E tratando-se de juízos depreciativos não são, ainda assim, desenraizados do respetivo suporte factual - a realização de uma notificação que poderia ter-se limitado à imputação da qualidade de “gerente” em conformidade com o teor da certidão de matrícula da sociedade.
Os juízos desvaliosos formulados encontram aqui suporte factual suficiente.
E exercendo a ofendida funções públicas, a esfera da respetiva honra encontra-se ainda mais comprimida, estando sujeita (à imagem dos demais intervenientes processuais) a suportar, com maior tolerância, a crítica.
E é este o sentido da jurisprudência do TEDH, elevando a liberdade de expressão na regra, afirmada pelo n.º 1 do art.º 10.º da CEDH, que só excecionalmente pode ser derrogada mediante a verificação de pressupostos específicos e em razão da valores taxativamente tutelados no n.º 2.
Caminhando no sentido que pressupõe, na realidade, a despenalização de condutas que afetem a honra , o TEDH  em arestos que se debruçam sobre as ingerências na liberdade de expressão do advogado (em intervenções processuais ou extra processuais) e em particular considerando a intervenção condenatória com aplicação de uma sanção de natureza penal (ainda que apenas uma multa residual), tem por regra como desnecessária a compressão do direito à liberdade de expressão numa sociedade onde deverá imperar a tolerância e o pluralismo e onde os mandatários forenses não podem sentir-se condicionados no exercício do mandato.
«No que respeita à tutela e limites da liberdade de expressão dos advogados (...) TEDH, este vem sublinhando “a posição central [deles] como intermediários entre o público e os tribunais”, razão pela qual “jogam um papel chave no assegurar que os Tribunais, cuja missão é fundamental num Estado de Direito, gozem da confiança do público”, mas que tal não pode ser garantido se os cidadãos não tiverem “confiança na capacidade dos profissionais forenses no providenciar de uma representação efetiva” dos seus clientes, postulada no direito a um processo equitativo (art.º 6.º CEDH).»16 
Partindo-se, por isso, do princípio basilar da liberdade de expressão e da imunidade decorrente da atuação no exercício do mandato forense, dirigindo-se os factos e juízos desonrosos imputados pelo arguido ao ato processual praticado pela ofendida (e não à pessoa em si, ainda que nesta possa ter reflexos) e sendo a visada funcionária pública, entendemos que não foi atingido aquele patamar que justifique a imposição de limites ao exercício daqueles princípios basilares, nomeadamente com sanções penais.
A pena aplicada e indemnização conferida não encontraram, portanto, o justo equilíbrio entre a necessidade de proteger o direito à honra da oficial de justiça em causa, por um lado, e a liberdade de expressão do recorrente no exercício do respetivo mandato forense, por outro. Sobrepondo-se esta, está verificada a causa de exclusão da ilicitude prevista no art.º 31.º, n.º 2, al. b) do Cód. Penal, o que conduz à respetiva absolvição.
O recurso terá, por isso, que proceder.
5. DECISÃO
Pelo exposto acordam as Juízas desta Relação em julgar procedente o recurso interposto pelo arguido RUI MANUEL MENDES PIMENTA e, em consequência, revogar a decisão recorrida, absolvendo-se o recorrente da prática do crime de difamação agravada previsto e punido pelos artigos 180.º, n.º 1, 182.º, 184.º e 132.º, n.º 2, al. l), do Código Penal, bem como do consequente pedido de indemnização civil.
Sem custas (art.º 513º, nº 1, do Cód. Proc. Penal).
Notifique.
*
Lisboa, 10 de janeiro de 2023
Mafalda Sequinho dos Santos
Capitolina Fernandes Rosa
Carla Francisco
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[1] Diploma revogado pela Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto.
[2] A este propósito ver, entre outros, Faria Costa, no Comentário Conimbricense ao Código Penal, na anotação aos aludidos tipos de ilícitos, e António Jorge Fernandes de Oliveira Mendes, in “O Direito à Honra e a sua tutela Penal”, Almedina, pág. 40 a 59.
[3] Prof. Beleza dos Santos in R.L.J., ano 92 pág.164.
[4] Faria e Costa, Comentário Conimbricense do Código Penal, Coimbra Editora, T. I, p. 607.
[5] “Liberdade de Imprensa e Inviolabilidade Pessoal”, Coimbra, 1996.
[6] Alberto dos Reis, RLJ, ano 59, págs. 49, 50 e 51.
[7] Proc. 224/17.3T9VFR.P1, relatora Liliana de Páris Dias, in www.dgsi.pt
[8] Proc. n.º 53/11.6TAETZ.E2), relator Gomes de Sousa www.dgsi.pt