Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
4956/2007-6
Relator: MARIA MANUELA GOMES
Descritores: PROCESSO JUDICIAL DE PROMOÇÃO E PROTECÇÃO DE MENOR EM PERIGO
RAPTO INTERNACIONAL DE MENORES
CADUCIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 07/20/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: REVOGADA A DECISÃO
Sumário: I - O processo especial de promoção e protecção de crianças ou jovens em perigo deve nortear-se primordialmente pela defesa do “interesse superior da criança e do jovem”, obedecendo entre outros, aos princípios da “proporcionalidade e actualidade”, “da prevalência da família”, da “obrigatoriedade da informação” e da “audição obrigatória e participação“.
II – Como processo de jurisdição voluntária que é, não tem que obedecer a critérios de legalidade estrita, impondo-se uma flexibilização no processado e a tomada das medidas que o caso concreto, com todas as sua peculiaridades, imponha e, simultaneamente um carácter de grande mutabilidade nas mesmas, já que é notório que as crianças e os jovens desenvolvem e modificam a sua personalidade e maturidade muito rapidamente.
III – No que respeita à determinação das autoridades competentes para decretar medidas de protecção da criança, tanto a Convenção da Haia de 1961 como a de 1996, (esta ainda não ratificada por Portugal), seguiram, por princípio, a solução de atribuir competência às autoridades (administrativa ou judiciária) do Estado Contratante da residência habitual da criança para decretarem medidas de protecção da sua pessoa ou bens.
IV - No caso da deslocação ou retenção ilícita de qualquer criança de um Estado-Membro para outro Estado-Membro da União Europeia, a Convenção sobre os Aspectos Civis do Rapto Internacional de crianças, concluída na Haia em 25.10.1980, e aprovada pelo Decreto do Governo nº 33/83, de 11 de Maio, atribui a competência para as medidas de protecção às autoridades do Estado Contratante em cujo território a criança tinha a sua residência habitual antes da sua deslocação ou retenção ilícita.
V - Quando uma criança tenha sido ilicitamente transferida e tiver decorrido um período de menos de 1 ano entre a data da deslocação ou da retenção indevidas e a data do início do processo perante a autoridade judicial ou administrativa do Estado contratante onde a criança se encontrar, a autoridade respectiva deverá ordenar o regresso imediato da criança.
VI - A autoridade judicial ou administrativa pode em determinadas circunstâncias recusar-se a ordenar o regresso da criança. Neste caso, se o Estado-Membro recusa a entrega da menor a Portugal, por decisão judicial que se tornou definitiva, por não ter sido objecto de recurso, essa decisão definitiva, considera-se aceite em termos de não poder questionar-se a competência para a dita recusa, tendo a partir daí de se considerar caducada a medida provisória imposta, não só pelo decurso do período de tempo legalmente fixado para esse tipo de medidas, como também por causa de uma verdadeira impossibilidade de execução da mesma, voluntariamente aceite por Portugal com a aprovação da citada Convenção.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa
1. O Mº Público requereu, no dia 14 de Outubro de 2003, a instauração de processo judicial de promoção e protecção, relativamente à menor A, nascida no dia 27.11.2000 e residente com os pais na Rua …, com o fundamento de que ela estaria a ser vítima de abusos sexuais por parte do pai, cidadão dinamarquês.
Produzidas algumas diligências investigatórias, o tribunal, por decisão provisória proferida no dia 20.10.2003, invocando o disposto no art. 35º al e) e 37º da Lei nº 147/99, de 1 de Setembro, determinou que a menor fosse entregue à guarda e cuidados dos seus avós maternos.
Esta medida, inicialmente aplicada por 30 dias, foi sendo sucessivamente reapreciada, prorrogada e alterada com admissão de visitas aos pais, em casa dos avós ou nos serviços de Segurança Social e a certa altura, com o acordo da avó, foi permitido à mãe da menor passar a ir buscá-la ao infantário.

No dia 20.02.2004, passados quatro meses de execução da medida, a mãe da menor foi buscá-la ao jardim de infância frequentado pela menor e levou-a para a Dinamarca, onde passou a viver todo o agregado familiar, então ainda só composto pelos pais – B cidadã portuguesa e C, cidadão estrangeiro - e pela menor.

No dia 26.07.2004, o Mº Pº, invocando a Convenção sobre os Aspectos Civis do Rapto Internacional de Crianças, concluída na Haia em 25.10.1980 e aprovada pelo DL nº 33/83, de 11 de Maio, requereu que fosse solicitado à Autoridade Central competente que providenciasse pelo regresso imediato da menor à companhia dos avós maternos, a fim de se assegurar a execução da medida aplicada, diligência que se veio a revelar infrutífera, porque os Tribunais Dinamarqueses, por decisão de 1ª instância proferida em 21.06.2005 e da 2ª instância, proferida em 22.07.2005, tornada definitiva por falta de recurso para a instância superior, indeferiram o pedido de entrega da menor aos avós, recusando-se a devolver a menor a Portugal,”apesar do rapto ilegal”, com fundamento no disposto no art. 11º nº 2 da Lei da execução internacional de decisões judiciais em matéria de responsabilidade parental, invocando que “a A irá sofrer prejuízos graves ao nível da sua saúde psíquica e física se for entregue aos avós maternos”.
Comunicada essa decisão a Portugal, o Tribunal, em 2006, determinou o arquivamento do apenso destinado a executar a medida provisória imposta (fls. 614).

Não obstante a retirada da menor do agregado familiar a que fora, provisoriamente, confiado e a sua saída do país, no dia 2.08.2004, foi proferido novo despacho a determinar que a menor continuasse entregue à guarda e confiança dos avós maternos, nos termos do art. 62º nº 3, al. c) da Lei nº 147/99, determinando-se o regresso imediato da menor para o agregado familiar dos avós maternos.

Interposto recurso desta decisão, com o objectivo de saber se se justificava a continuação da medida provisória aplicada à menor, este Tribunal da Relação de Lisboa, por acórdão datado de 14.12.2004, confirmou a decisão recorrida, decidindo-se o seguinte:
- Justifica-se medida provisória de confiança de uma criança aos avós maternos no âmbito da Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo indiciando-se que, na ausência da mãe, uma criança com menos de 3 anos de idade pode ter sido vítima de abusos sexuais por parte do pai.
- Uma tal medida continua a impor-se a partir do momento em que, a mãe (com a conivência do pai) levou a filha para fora de Portugal, aproveitando o regime de visitas que o tribunal gradualmente ia concedendo aos pais, instalando-se com o marido na Dinamarca, país da nacionalidade do marido.
- Não se vê que a Convenção da Haia de 1996 relativa à competência, à lei aplicável, ao reconhecimento, à execução e à cooperação em matéria de poder paternal e de medidas de protecção de menores ou a Convenção da Haia de 1961, aprovada pelo Decreto-Lei nº 48494, de 22 de Julho de 1968, legitimem a fuga ou rapto de uma criança para assim, se impedir que no Estado onde a criança tinha a sua residência habitual possam ser adoptadas quaisquer medidas de protecção relativamente a essa criança, designadamente em relação ao pai que relativamente ao seu próprio filho haja incorrido em actos de abuso sexual.
- Não se vê que as aludidas convenções proíbam a execução de medidas provisórias judicialmente decretadas proferidas no âmbito de processos de promoção e protecção das crianças e jovens em perigo.
Esta decisão transitou em julgado.

2. Em 9.02.2007, o SEF junto do Aeroporto de Lisboa contactou o Tribunal a dar conhecimento de que a menor se encontrava naquele aeroporto e a solicitar que fosse informado se continuava a “interessar a detenção para presença à Autoridade Judiciária da menor” uma vez que se encontrava pendente naqueles serviços um pedido para esse fim (fls. 35).
Na sequência do que, ouvido o Mº Pº e os avós da menor, foi proferido um despacho, datado desse mesmo dia - 9.02.2007 - que, invocando desconhecer a decisão dos Tribunais da Dinamarca e pondo a tónica no facto da menor ter sido levada para aquele país por virtude da prática de um crime por parte da sua progenitora, e ponderando manterem-se todos os pressupostos que determinaram a retirada da menor aos pais, ordenou que, ao abrigo da Convenção da Haia, se solicitasse ao Gabinete SIRENE, que providenciasse pelo imediato regresso da menor para o agregado familiar dos avós.
Mais ordenou que se passassem “os competentes mandados internacionais para impedir que a menor possa viajar através de qualquer aeroporto no espaço SCHENGEN” (fls. 42), o que foi cumprido, tendo a menor sido entregue aos avós maternos no dia 10.02.2007, encontrando-se na altura munida do passaporte dinamarquês).

Passados dois dias, ouvida a menor, os avós e o Mº Pº (mas sem intervenção dos pais ou do seu mandatário, que não foram notificados para as diligências a realizar), com data de 12.02.2007, considerando-se que continuavam a verificar-se as finalidades que levaram à aplicação da medida e que a menor continuava a beneficiar do apoio dos avós, e sob a invocação do disposto no art. 34º, als. a), b) e c), 35º nº 1 al. b) e 40º ex vi do art. 37º , todos da LPCJP, foi ordenado, para além da realização de várias diligências, que se executasse “de imediato a medida já anteriormente determinada e, por conseguinte, a A fique entregue à guarda e confiança dos avós maternos, sem prejuízo dos ulteriores termos do processo” (fls. 82/83).

A mãe da A veio então, por requerimento apresentado no dia 21.02.2007, arguir diversas pretensas “nulidades” atribuídas aos despachos proferidos quer no dia 9, quer no dia 12 de Fevereiro de 2007 – a incompetência absoluta do Tribunal para determinar a entrega da A aos avós, lei aplicável ao caso, falta de notificação do mandatário dos pais, violação do caso julgado, caducidade da medida provisória, da inexistência da situação de emergência da menor que legitime a aplicação da medida provisória de promoção e protecção, da ilegalidade da solicitação ao Gabinete Sirene para execução da decisão, a prova produzida no dia 12.02 para além de nula é inconclusiva, etc.
E terminou pedindo a realização de diversas diligências, bem como a cessação da medida e a entrega da menor aos pais.

Sobre esse requerimento veio a ser proferida a decisão constante de fls. 236 a 249, datada de 28.02.2007, que julgou improcedentes todas as “nulidades” arguidas, defendendo basicamente continuar a caber às autoridades portuguesas a competência para a protecção da menor, até por se verificar a subsistência de perigo para ela, e no que toca à falta de notificação do mandatário das partes, entendeu-se que tal constituía, quando muito uma irregularidade insusceptível de influir no exame da causa.
No que respeita à invocada caducidade da medida, foi decidido que “ainda que se entendesse que a medida provisória aplicada se encontrava extinta, por caducidade, nada obstaria à aplicação de nova medida provisória, em processo pendente, logo que verificado como subsistente a existência de perigo para a criança, nos termos do art. 37º da LPCJP

Inconformados com essa decisão agravaram os pais da menor dos despachos proferidos em 9, 12 e 28, todos de Fevereiro de 2007, acima referidos.
Alegaram e no final formularam, em síntese, as seguintes conclusões:
- As decisões de 9 e 12 de Fevereiro violam o art. 2º da LPCJP já que nessa altura a menor já não tinha residência em Portugal, residindo há muito mais de um ano na Dinamarca, com conhecimento do Tribunal e dos avós maternos e não existe nenhum indício de que se encontrava em situação de perigo, pelo que o Tribunal perdeu competência.
- No incidente em que foi proferida a decisão de 9 de Fevereiro, a autoridade central dinamarquesa para a Convenção de Haia sobre os aspectos civis da Rapto Internacional de Crianças e a Convenção Europeia sobre o reconhecimento e execução das decisões relativas à guarda de menores e sobre o restabelecimento da guarda de menores informou este Tribunal que os tribunais dinamarqueses tinham decidido que a criança não seria devolvida, pelo que, por despacho de 28 de Novembro 2006, foi decidido “(…) dar por encerrado o processo nesta (…)”.
- E esse despacho transitou em julgado.
- Ao não recorrerem da decisão do tribunal da Relação, que confirmou a decisão do Tribunal de O, os avós, tendo advogado constituído e mantendo-se inactivos a partir daí, abdicaram de pedir a entrega da A.
- A decisão do tribunal estrangeiro constitui caso julgado.
- Pelo que estão verificados todos os requisitos exigidos pelo art. 7º da Convenção da Haia.
- Os Tribunais Portugueses, são pelo exposto, absolutamente incompetentes, pelo que as decisões de 9 e 12 de Fevereiro enfermam de nulidade nos termos do art. 668º, nº 1, al. d) do CPC, por conhecerem de questões que não podiam conhecer.
- No dia 23 de Julho de 2004 foi proferida decisão no processo principal onde se determinou a continuação da medida provisória já aplicada à menor de entrega aos cuidados e guarda dos avós maternos.
- Desde essa data até à apresentação das alegações o Tribunal nunca mais se pronunciou sobre tal medida, nem procedeu à sua revisão ou confirmação.
- Tal falta de revisão determina a caducidade da medida provisória aplicada, nos termos do art. 63º nº 1, al. a) da LPCJP, pelo que a entrega da menor aos avós é ilegal, uma vez que a medida provisória aplicada cessou em 23 de Janeiro de 2005.
- Já que nos termos do art. 62 nº 6 da LPCJP as medidas provisórias são obrigatoriamente revistas no prazo máximo de seis meses após a sua aplicação
- Nestes termos, a decisão que determina a manutenção da medida aplicada em 2004 é nula, por o Tribunal se ter pronunciado sobre questão de que não podia tomar conhecimento, nos termos do art. 668º nº 1 d) do CPC.
- O mandatário dos pais não foi notificado para se pronunciar sobre a promoção do Mº Pº datada de 9.02.2007, o que para além de evidenciar parcialidade (já que o mandatário dos avós o foi), constitui nulidade nos termos do art. 201º do CPC, por influir no exame da causa, devendo declarar-se nula a decisão de 9.02.2007, também por violação dos princípios do contraditório e da audição obrigatória dos pais e designadamente dos art. 191º e 192º da OTM, bem como do art. 61 nº 3 do E.O.A.
- A decisão de arquivamento proferida no apenso em 28.11.2006 transitou em julgado, pelo que a decisão de 9.02.2007 proferida nesse apenso arquivado, viola o caso julgado, sendo por isso nula uma vez que o tribunal recorrido não invoca quaisquer factos novos que a legitimem.
- A decisão de 9.02.2007 não adoptou qualquer um dos procedimentos prescritos pelos artigos 191º e 192º da OTM, pelo que também é nula em virtude da violação dessas normas (art. 201º nº 1 do CPC), por serem formalidades que a lei prescreve e que não foram cumpridas,
- A decisão de 12.02.2007 é igualmente nula por violação do contraditório e da audição obrigatória, nos termos do art. 4º, al. i) da LPCJP, que determina que os pais têm que ser ouvidos na definição da medida de promoção e protecção, o que não aconteceu.
- Na decisão de 12.02.2007 não resulta qualquer facto objectivo de que se depreenda a situação de emergência e perigo concreto, conforme determina o art. 37º da Lei citada.
- E violou o superior interesse da A e colocou a menor, agora sim, numa situação de perigo, uma vez que pode ser violentada psiquicamente pela avó, dado que a personalidade desta se encontra desestruturada e desequilibrada conforme referem os respectivos relatórios médicos e sociais.
- Toda a prova produzida há três anos e os factos então apurados não podem legitimar ou fundar a medida agora aplicada.
- Não há factos, nem indícios dos quais resulte que não se deva dar prevalência à família e promover a responsabilidade parental.

Os agravados contra alegaram pugnando pela manutenção do decidido.
Por seu turno o Mº Público, apesar de, como os recorrente e os recorridos, fundar a sua análise também na Convenção da Haia de 1996, concluiu, basicamente, que os tribunais portugueses tinham competência para fazer executar a medida aplicada e que a mesma não caducara porque, tendo o afastamento da menor derivado de uma conduta ilícita da sua mãe, não havia interesse em reapreciá-la, tendo o arquivamento do processo ocorrido apenas relativamente ao apenso do incidente de entrega da menor.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

3. Para o conhecimento do recurso importa ter em consideração toda a dinâmica processual constante do relatório que antecede.

O Direito.
4. Vistas as alegações dos recorrentes as questões a decidir são, basicamente, saber:
- se se verificam as nulidades processuais invocadas e respectivas consequências:
- se os Tribunais portugueses face à decisão dos Tribunais dinamarqueses e à situação de facto verificada deixaram ou não de ser competente para a execução da medida primitivamente aplicada;
- se a medida provisória de entrega da menor A aos avós, aplicada pelo Tribunal Judicial em Outubro de 2003, reapreciada em 2.08.2004 e confirmada por acórdão desta Relação de Lisboa em 14 de Dezembro de 2004 caducou;
-em caso negativo, se continuam a ser competentes para a revisão ou aplicação de nova medida de promoção e protecção.

Não obstante, por regra, o conhecimento das nulidades processuais dos despachos recorridos arguidas deva anteceder o conhecimento das demais questões objecto dos recursos, considera-se que no caso concreto deve apreciar-se em primeiro lugar a questão da eventual caducidade da medida provisória imposta pelos Tribunais portugueses à menor e da competência daqueles, uma vez que da resolução destas questões pode resultar prejudicado o conhecimento das ditas nulidades arguidas (art. 660º nº 2 do CPC).
Começaremos, portanto, pelas 2ª e 3º questões, cuja apreciação se acha interligada, como se verá.

4.1. Invocam os agravantes basicamente que a medida provisória de entrega da menor A aos avós, aplicada pelo Tribunal Judicial em Outubro de 2003, reapreciada em 2.08.2004 e confirmada por acórdão desta Relação de Lisboa, em 14 de Dezembro de 2004, caducou muito antes da menor ter sido “retida “ no aeroporto de Lisboa, em Fevereiro de 2007.
Consequentemente, quer o despacho de 9.02.2007 - que, ponderando manterem-se todos os pressupostos que determinaram a retirada da menor aos pais, ordenou que, ao abrigo da Convenção da Haia, se solicitasse ao Gabinete SIRENE, que providenciasse pelo imediato regresso da menor para o agregado familiar dos avós e ordenou simultaneamente a passagem dos competentes mandados internacionais para impedir que a menor pudesse viajar através de qualquer aeroporto no espaço SCHENGEN e que culminou com a entrega da menor A aos avós maternos no dia 10.02.2007 – quer o despacho de 12.02.2007 – que considerou que se continuavam a verificar as finalidades que levaram à aplicação da medida e que ordenou que se executasse “de imediato a medida já anteriormente determinada e, por conseguinte, a A fique entregue à guarda e confiança dos avós maternos, sem prejuízo dos ulteriores termos do processo”, seriam ilegais.

Como é sabido e deriva do estatuído no art. 4º da Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo, aprovada pela Lei nº 147/99 (com as alterações introduzidas pela Lei nº 31/2003, de 22 de Agosto), doravante abreviadamente referenciada com LPCJP, o processo especial de promoção e protecção de crianças ou jovens em perigo deve nortear-se primordialmente pela defesa do “interesse superior da criança e do jovem”, obedecendo entre outros, aos princípios da “proporcionalidade e actualidade” (a intervenção deve ser apenas a necessária e a adequada à situação de perigo em que criança ou o jovem se encontram no momento em que a decisão é tomada e só pode interferir na sua vida e na sua família na medida do que for estritamente necessário a essa finalidade) (al. e)) “da prevalência da família” (al. g)), da “obrigatoriedade da informação” e da “audição obrigatória e participação “ (ou seja, a criança e o jovem, os seus pais ou legais representantes têm direito a ser informados dos seus direitos e dos motivos que determinaram a intervenção e a forma como esta se processa (al. h), bem como têm o direito de participar nos actos e na definição da medida de promoção e protecção (al .i)).
Dados os fins e objectivos visados pelo dito processo, o mesmo, como processo de jurisdição voluntária que é, não tem que obedecer a critérios de legalidade estrita, impondo-se uma flexibilização no processado e a tomada das medidas que o caso concreto, com todas as sua peculiaridades imponha e, simultaneamente um carácter de grande mutabilidade nas mesmas, já que é notório que as crianças e os jovens desenvolvem e modificam a sua personalidade e maturidade muito rapidamente, sendo por isso fundamental que as situações jurídicas que os envolvam não se possam eternizar e devam ser, muito regularmente e em muito curto espaço de tempo, reavalidadas ou, em certas situações mesmo consideradas caducadas logo que decorrido o prazo legal estabelecido.
Daí que estatua, designadamente o art. 37º da citada LPCJP, sob a epígrafe “Medidas provisórias” que “As medidas provisórias são aplicáveis nas situações de emergência ou enquanto se procede ao diagnóstico da situação da criança e à definição do seu encaminhamento subsequente, não podendo a sua duração prolongar-se por mais de seis meses

Ora, no caso concreto a medida de entrega da menor A aos avós maternos foi imposta por decisão provisória proferida no dia 20.10.2003, esteve em execução durante quatro meses, isto é, até 20.02.2004, data em que a mãe da menor ilegalmente a levou para fora do país, passando aquela a viver com os pais na Dinamarca, país de que tanto o pai da menor como esta são naturais.
E aí permaneceu até ao início de Fevereiro do corrente ano, pois não obstante os avós terem tentado que a Dinamarca a devolvesse a Portugal, aquele Estado, invocando normas da legislação internacional a cujo cumprimento estava obrigado, recusou-se a devolver a menor para execução da medida provisória imposta, invocando que a A, depois de ponderada toda a situação familiar e a sua integração naquele país, iria “sofrer prejuízos graves ao nível da sua saúde psíquica e física se fosse entregue aos avós maternos”.

Como já se deixou dito no acórdão deste Tribunal de 14.12.2004, acima referido, embora no Conselho Europeu de Tampere, os Estados-membros tenham defendido a aplicação do princípio de reconhecimento mútuo das decisões judiciais em todo o território da União Europeia e a partir daí tenham sido adoptados numerosos actos, designadamente o Regulamento (CE) nº 1347/2000 e o Regulamento (CE) nº 2201/2003 do Conselho, que revogou o primeiro, a Dinamarca, em conformidade com o protocolo anexo ao Tratado da União Europeia e ao Tratado que instituiu a Comunidade Europeia, não esteve nem está vinculado pelos ditos Regulamentos Comunitários.
E, não obstante a Dinamarca e Portugal terem assinado, em 1.04.2003, a Convenção da Haia de 1996, a mesma não se encontra em vigor em nenhum desses países, porque não foi ainda aprovada e ratificada em qualquer deles.
É certo que, no que respeita à determinação das autoridades competentes para decretar medidas de protecção da criança a Convenção de 1996, (na peugada da anterior convenção sobre a matéria – a Convenção da Haia de 1961) seguiu, por princípio, a solução de atribuir competência às autoridades (administrativa ou judiciária) do Estado Contratante da residência habitual da criança para decretarem medidas de protecção da sua pessoa ou bens.
E por razões de óbvia coerência e razoabilidade, no caso da deslocação ou retenção ilícita de qualquer criança de um Estado-Membro para outro Estado-Membro - situação que se verifica quando é violado o direito de guarda conferido por lei, decisão judicial ou acordo entre os titulares da responsabilidade parental, e no momento destes factos, o direito de guarda estivesse efectivamente a ser exercido pelo respectivo(s) titular(es) – a Convenção da Haia de 1996, movida por um objectivo de compatibilização e harmonização com as normas da Convenção sobre os Aspectos Civis do Rapto Internacional de crianças, concluída na Haia em 25.10.1980,e aprovada pelo Decreto do Governo nº 33/83, de 11 de Maio, continua a atribuir a competência para as medidas de protecção às autoridades do Estado Contratante em cujo território a criança tinha a sua residência habitual antes da sua deslocação ou retenção ilícita. Mas isto só até que a criança tiver adquirido residência habitual noutro Estado (cfr. artigo 7º nº 1 da Convenção de 1996) e desde que a pessoa, a instituição ou o organismo com direito de guarda tenha dado o seu acordo à deslocação ou retenção, ou a criança tenha residido nesse outro Estado-Membro durante pelo menos um ano a contar da data em que aquelas mesmas pessoas ou organismos tivessem ou devessem ter tido conhecimento do local onde ela se encontrava e desde que não estivesse pendente de apreciação qualquer pedido de entrega apresentado nesse período e a criança estivesse integrada no seu novo meio.
A nova residência habitual estabelecida na sequência de uma deslocação ou retenção ilícitas não atribui, portanto, nos termos da dita Convenção da Haia de 1996, competência às autoridades desse Estado para tomarem medidas de protecção, salvo se os titulares do direito nisso hajam consentido, se mantenham inactivos durante um ano a contar da data do conhecimento da nova residência da criança ou fracassem na pretensão de a reaver nesse mesmo período e aquela esteja integrada no seu novo meio.

Daí que, apesar dos avós da menor terem tempestivamente pedido a entrega da menor A ao Reino da Dinamarca, tendo tal pretensão lhes sido indeferida pelos tribunais daquele país, com carácter definitivo, em Julho de 2005, mantendo-se a A a residir com carácter habitual na Dinamarca, integrada nesse novo meio, que é o da naturalidade da família paterna e dela própria e onde as respectivas autoridades lhe deram o acompanhamento necessário em termos de se poder considerar não só integrada nessa comunidade, como aí devidamente acompanhada, conforme atestam as decisões dos Tribunais Dinamarqueses juntas aos autos e das quais não se vê razão para duvidar (1), contrariamente ao que defendem quer os recorridos quer o Mº Pº, não obstante os tribunais portugueses serem competentes para a aplicação da medida provisória de acolhimento familiar prevista no art. 35º al. e) e 37º da Lei nº 147/99, uma vez que a A foi ilegalmente, levada para Dinamarca, como o pedido de entrega da menor veio a ser recusado por aquele país ao abrigo de legislação interna de conteúdo idêntico ao constante do art. 7º da dita Convenção da Haia de 1996, os Tribunais portugueses, se estivesse já em vigor a Convenção Internacional invocada por todos os intervenientes processuais, teriam já perdido a competência para a manutenção e execução da medida provisória imposta.
Só que, como se disse, a Convenção da Haia de 1996, em vigor no plano internacional desde 1.01.2002, apesar de ter sido assinada por variadíssimos países, designadamente por todos os Estados da União Europeia (com excepção de Malta) continua a vigorar apenas em alguns desses Estados (poucos), não se encontrando entre esses nem Portugal nem a Dinamarca.
Pelo que a apreciação das questões suscitadas tem de ser feita com base em instrumentos internacionais anteriores, devidamente aprovados na ordem interna, nomeadamente a Convenção de 25 de Outubro de 1980, sobre os Aspectos Civis do Rapto Internacional de Crianças, aprovada como se disse pelo Decreto do Governo nº 33/83 de 11 de Maio, e em vigor em Portugal desde 1.12.1983, bem como nos diplomas internos atinentes à matéria, mais precisamente a Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo, aprovada pela Lei nº 147/99, de 1 de Setembro e particularmente nos seus já citados artigos 4º e 37º.

Com o declarado objectivo de “proteger a criança, no plano internacional, dos efeitos prejudiciais resultantes de uma mudança de domicílio ou de uma retenção ilícita e estabelecer formas que garantam o regresso imediato da criança ao Estado da sua residência habitual”, mas sem conter, como a Convenção da Haia de 1996 (2), regras claras sobre a atribuição de competência aos diversos Estados eventualmente envolvidos na protecção e promoção das crianças e jovens em perigo, em caso de mudança de residência (lícita ou ilícita) dos mesmos, consta dos artigos 12º e 13º da Convenção sobre os Aspectos Civis do Rapto Internacional de Crianças, acima identificada, o seguinte:
Artigo 12º
“Quando uma criança tenha sido ilicitamente transferida ou retida nos termos do artigo 3.° e tiver decorrido um período de menos de 1 ano entre a data da deslocação ou da retenção indevidas e a data do início do processo perante a autoridade judicial ou administrativa do Estado contratante onde a criança se encontrar, a autoridade respectiva deverá ordenar o regresso imediato da criança.
A autoridade judicial ou administrativa respectiva, mesmo após a expiração do período de 1 ano referido no parágrafo anterior, deve ordenar também o regresso da criança, salvo se for provado que a criança já se encontra integrada no seu novo ambiente. (…)”.
Artigo 13º
“Sem prejuízo das disposições contidas no artigo anterior, a autoridade judicial ou administrativa do Estado requerido não é obrigada a ordenar o regresso da criança se a pessoa, instituição ou organismo que se opuser ao seu regresso provar:
a) Que a pessoa, instituição ou organismo que tinha a seu cuidado a pessoa da criança não exercia efectivamente o direito de custódia na época da transferência ou da retenção, ou que havia consentido ou concordado posteriormente com esta transferência ou retenção; ou
h) Que existe um risco grave de a criança, no seu regresso, ficar sujeita a perigos de ordem física ou psíquica, ou, de qualquer outro modo, a ficar numa situação intolerável.
A autoridade judicial ou administrativa pode também recusar-se a ordenar o regresso da criança se verificar que esta se opõe a ele e que a criança atingiu já uma idade e um grau de maturidade tais que levem a tomar em consideração as suas opiniões sobre o assunto.
Ao apreciar as circunstâncias referidas neste artigo, as autoridades judiciais ou administrativas deverão ter em consideração as informações respeitantes à situação social da criança fornecidas pela autoridade central ou por qualquer outra autoridade competente do Estado da residência habitual da criança”
Foi precisamente com o fundamento de que a A iria “sofrer prejuízos graves ao nível da sua saúde psíquica e física” se fosse entregue aos avós maternos, que os Tribunais da Dinamarca recusaram devolver a menor a Portugal
Ou seja, o Estado da Dinamarca, fazendo apelo à Lei que introduziu na ordem jurídica dinamarquesa os transcritos artigos da Convenção sobre o rapto de crianças - ponto 11 da Parte 4 do “Act nº 793 (International Child Adduction), de 27.11.1990 – recusou a entrega da menor a Portugal com base no dito fundamento, por decisão judicial que se tornou definitiva, por não ter sido objecto de recurso, em Julho de 2005.
E essa decisão definitiva, foi aceite - como não podia deixar de ser entre Estados internacionalmente obrigados pela mesmo instrumento – em termos de não poder questionar-se a competência para a dita recusa (3), tendo a partir daí de se considerar caducada a medida provisória imposta, não só pelo decurso do período de tempo legalmente fixado para esse tipo de medidas, como também por causa de uma verdadeira impossibilidade de execução da mesma, voluntariamente aceite por Portugal com a aprovação da citada Convenção.
Efectivamente, coisa diversa não faria sentido. Admitir que, durante o período de impossibilidade de execução da medida aplicada, o prazo a que a que alude o art. 37º da LPCJP devesse considerar-se suspenso, como defende o Mº Pº, seria esquecer, contra uma realidade evidente, que no caso dos menores a circunstância tempo, só por si, implica alterações profundas no processo de desenvolvimento e evolução dos mesmos.
Atente-se que a A tinha, ao tempo da aplicação da primeira medida de acolhimento junto dos avós maternos quase três anos e que voltou a ser-lhes entregue, pretensamente no âmbito de execução da mesma medida, ainda provisória, no dia 10.02. 2007, ou seja, quando tinha já mais de seis anos e estivera durante cerca dos últimos três anos a residir habitualmente na Dinamarca, longe dos avós maternos, cujas condições também parece se terem alterado, em termos de lhes não permitir um devido acompanhamento da menor, integrada na comunidade dinamarquesa e acompanhada pelas autoridades dinamarquesas, que concluíram mesmo ser prejudicial para a A a sua entrega aos avós maternos.
Acresce que, para além deste Tribunal estar limitado às questões suscitadas, por razões que obviamente se prendem com o superior interesse da menor A há que realçar que o âmbito de apreciação dos presentes recursos respeita a uma medida, ainda tida como provisória, e que o país onde ela passou a ter residência habitual é um Estado nosso parceiro da Comunidade Europeia e subscritor de Convenções Internacionais de que Portugal é igualmente subscritor e que tal como o nosso país compartilha de legislação e meios capazes de promover e proteger os interesses de qualquer criança ou jovem em perigo.
Assim e visto o disposto essencialmente nos artigo 13º da Convenção sobre os Aspectos Civis do Rapto Internacional de Crianças, aprovada na Haia em 25 de Outubro de 198º e no art. 37º da LPCJP não só a competência dos Tribunais portugueses foi restringida, como a medida provisória de acolhimento familiar da menor A imposta pelo Tribunal tinha já caducado quando aquela foi, em Fevereiro deste ano, localizada e retida no aeroporto de Lisboa, o que torna ilegal a sua retenção e entrega aos avós maternos, impondo-se, por isso, conceder provimento aos agravos apreciados e revogar os despachos recorridos, inclusive o de 28.02.2007, que fundamentalmente assentou no pressuposto de continuar a caber às autoridades portuguesas a competência para a protecção da menor o que, como se viu, se não verificava.
Procede, desta forma o núcleo central das conclusões da alegação dos agravantes, ficando o conhecimento das restantes questões suscitadas prejudicado nos termos do art. 660º nº 2 do CPC.

Decisão.
4. Termos em que acordam os juízes que compõem este Tribunal em conceder provimento aos presentes agravos e revogar os despachos recorridos.
Custas pelos agravados.
Comunique-se, de imediato e por fax, o teor deste acórdão ao Tribunal das Caldas da Rainha.
Lisboa, 20 de Julho de 2007.
(Maria Manuela B. Santos G. Gomes)
(Olindo Geraldes)
(Ana Luísa Passos G.)
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1 Não só porque se trata de decisões emanadas de país que, como o nosso, faz parte da Comunidade Europeia, como também porque respeita a criança que também é nacional desse mesmo Estado.
2 Cfr. o seu Capítulo II.
3 A opção constante do citado art. 13º foi uma opção justificada e livremente aceite pelos Estados contratantes, porque através das convenções internacionais esses Estados muitas vezes acordam em regras de competência internacional restritivas, que são conjugadas com mecanismos de cooperação entre os tribunais e as autoridades administrativas de cada um deles, precisamente por causa da unidade de objectivos – no caso claramente o superior interesse da criança - e da falada relação de confiança entre os Estados subscritores.