Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
4107/2005-4
Relator: MARIA JOÃO ROMBA
Descritores: COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
IMUNIDADES
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/21/2005
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: PROVIDO PARCIALMENTE
Sumário: I - Configura acção de indemnização fundada em responsabilidade civil, emergente do incumprimento de uma obrigação acessória do contrato de trabalho – como é a obrigação contributiva perante a Segurança Social – ou, pelo menos, fundada no enriquecimento sem causa (art. 473º e segs. do CC), e não execução para pagamento coercivo das contribuições à Segurança Social, como à primeira vista se poderia pensar, aquela em que um trabalhador demanda a entidade patronal pedindo a respectiva condenação a pagar à Segurança Social as contribuições relativas à actividade prestada ao seu serviço durante certo período, como forma de obter a reparação, por reconstituição natural, do prejuízo causado ao A. pelo comportamento da R. que consiste na omissão de tal pagamento, o que, pela repercussão que necessariamente terá no valor da pensão de velhice a que o A. terá direito, é causa adequada do prejuízo que se traduz na diferença entre o valor da pensão calculada com base em todos os salários que auferiu ao longo da sua carreira profissional e da pensão calculada sem considerar os salários do período em causa.
II- Porque a competência do Tribunal se afere pelos termos em que o A. delineia a causa, é competente para esta acção o Tribunal do Trabalho, por se tratar de uma acção emergente de uma relação de trabalho subordinado, já que, subjacente ao comportamento ilícito e culposo imputado ao R., ou pelo menos ao enriquecimento ilegítimo do mesmo, está uma obrigação legal que só existe porque entre as partes vigorou um contrato de trabalho.
III- Face ao objecto da acção tal como ficou delineado, o prazo de prescrição a considerar é o previsto para os créditos resultantes do contrato de trabalho e da sua violação ou cessação (art. 38º nº 1 da LCT) e não o previsto no art. 49º da Lei de Bases da Segurança Social (L. nº 32/2002 de 20/12).
IV- A imunidade jurisdicional dos Estados é um princípio de direito internacional público, corolário da igualdade dos Estados, que visa garantir o respeito pela soberania.
V- Se alguma vez tal princípio teve carácter absoluto, tem vindo a perdê-lo, sendo hoje dominante na doutrina e na jurisprudência internacionais a concepção restrita da imunidade judiciária dos Estados.
VI- De acordo com a teoria restrita da imunidade, importa saber se o caso em litígio diz respeito à actividade soberana do Estado (jure imperii) ou a actos de natureza privada, que poderiam ser de igual modo praticados por um particular (jure gestionis).
VII- A actuação do Estado estrangeiro que, enquanto empregador, omitiu o pagamento à Segurança Social) das contribuições relativas a um seu trabalhador subordinado, sem funções de responsabilidade no serviço público prestado pelo Consulado, configura um acto jure gestionis, não beneficiando, pois, de imunidade jurisdicional.
VIII- O mesmo não vale relativamente às acções de impugnação de despedimento colectivo, na medida em que o fundamento para o despedimento se enquadre numa reestruturação dos serviços consulares, em conformidade com orientações do respectivo Ministério das Relações Exteriores, por esse acto configurar um verdadeiro acto de soberania (jure imperii) relativamente ao qual tem cabimento a invocação da imunidade jurisdicional, falecendo assim à jurisdição portuguesa competência internacional para conhecer do litígio.
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Lisboa

(A) propôs em 8/10/2003, no Tribunal do Trabalho do Funchal, a presente acção declarativa de condenação, sob a forma de processo comum contra República Bolivariana da Venezuela alegando, em síntese, ter sido admitida,  em 1/11/77, para trabalhar sob a autoridade e direcção da R. no respectivo consulado na cidade do Funchal, com a categoria profissional de Secretária, tendo sido despedida com efeitos a partir de 12/10/2002. A R. não procedeu ao pagamento das contribuições à Segurança Social relativas ao período de 1977 a 1993, fazendo-lhe crer, erroneamente, que as deduções efectuadas no seu vencimento a título de contribuições à Segurança Social estavam a ser pagas a esta entidade. Com a retenção das contribuições em dívida, no valor de 2.692.018$00, equivalente em € a 13.427,73, a R. prejudica a A. no seu direito à reforma, pois como beneficiária nº 0342021007 da Segurança Social não poderá auferir a reforma por velhice correspondente aos 26 anos em que esteve ao seu serviço. Existe, pois, um enriquecimento da R. à conta do prejuízo causado à A., sendo que a R. tinha pleno conhecimento da sua situação de incumprimento perante a segurança social. A A. é parte terceira no que concerne à obrigação legal estabelecida entre a R e a Segurança Social.

Após a entrada em vigor da Convenção sobre Segurança Social entre a República Portuguesa e a República Venezuelana aprovada pelo Decreto nº 27/92 de 2/6 a A. não fez opção  pela legislação de segurança social de um dos Estados, aplicando-se-lhe a legislação portuguesa.

Pede a condenação da R. a pagar à Segurança Social Portuguesa o montante de € 13.427,73, acrescido dos juros legais e demais encargos.

Frustrada a tentativa de conciliação realizada na audiência de partes, a R. contestou alegando nada dever à Segurança Social por a obrigação de pagamento das quotizações solicitadas nos autos se encontrar prescrita (art. 63ºnº 2 da lei de Bases do Sistema de Solidariedade e Segurança Social). A A. é parte ilegítima nos autos, por a referida lei apenas admitir como partes a própria Segurança Social e a entidade empregadora. O Tribunal é incompetente por a R., como estado soberano, gozar de imunidade de jurisdição ao abrigo do Direito Internacional Consuetudinário. E defende-se também por impugnação, alegando que a A. se encontrava integrada no sistema de Segurança Social da Venezuela antes de 1993.

A A. respondeu às excepções concluindo pela respectiva improcedência.

A requerimento das partes foi suspensa a instância até à data designada para a audiência final de uma providência cautelar de suspensão do despedimento colectivo em que era requerente a aqui A. e (B).
A fls. 136 foi ordenada a apensação do procedimento cautelar referido “nos termos do art. 383º nº 2 do CPC”.

Mostram-se efectivamente apensos a estes autos - não obstante a diferente forma de processo e o preceituado pelo art. 31º, conjugado com o art. 275º, ambos do CPC, para que remete o art. 31º do CPT - dois processos de impugnação de despedimento colectivo, ao primeiro dos quais (nº 509/2002) - proposto contra a R. pelo referido (B)  - fora, pelo despacho de fls. 25, mandado apensar o já aludido procedimento cautelar e no outro (nº 510/2002) - proposto pela aqui A.- fora, pelo despacho de fls. 23, ordenada a apensação ao Pº nº 509/2002, por ser o mais antigo onde se impugnava o despedimento.

No processo nº 509/2002, o A. (B) alega ter sido admitido ao serviço da R. em 1977 e ter sido despedido em 12/10/2002, no âmbito de um processo de despedimento colectivo que abrangeu também a colega Leocádia Rodrigues Nunes de Carvalho, por comunicação recebida em 23/8/2002, sendo que a comunicação inicial da intenção de proceder ao despedimento colectivo fora recebida em 11/7/2002. Além de violação das alíneas a), c) e d) do art. 24º da LCCT alega também que não procedem os fundamentos invocados  na comunicação de despedimento, pelo que o mesmo é ilícito.

Também no processo 510/2002 a A. (A)  impugna o despedimento colectivo que a abrangeu, reputando-o de ilícito por o motivo invocado (redução de custos e redimensionamento do consulado) não se enquadrar nas definições legais de motivos económicos ou de mercado, tecnológicos ou estruturais, os critérios adoptados não obedecerem aos critérios legais e terem sido violadas as al. a), c) e d) do art. 24º da LCCT.

Nas contestações juntas aos processos de despedimento colectivo a R. excepcionou de novo a incompetência do Tribunal por a R. gozar de imunidade jurisdicional e defendeu-se também por impugnação.

Os AA responderam à excepção.

Foi seguidamente proferido despacho saneador de fls. 139 e seg., que julgou improcedente as excepções de prescrição, de ilegitimidade e de  incompetência, seleccionou os factos assentes e a base instrutória.

Deste despacho agravou a R., que conclui as respectivas  alegações com as seguintes conclusões:

“Quanto à excepção de prescrição

1° - A decisão ora recorrida, viola o disposto n.° 2 do art. 63º da Lei de Bases da Segurança Social.

2° - Na verdade, esta disposição legal diz expressamente:

"A obrigação do pagamento das cotizações e das contribuições prescreve no prazo de cinco anos ....".

3° - Sem esquecer que "a cobrança coerciva de valores relativos às cotizações e contribuições, é efectuada através de processo executivo e de secção de Processos da Segurança Social"  - art. 63º, n.° 1 da referida Lei de Bases.

Quanto a Convenção de Viena

4° - A decisão recorrida, ofende o n.° 1 do art. 43º da Convenção de Viena, Convenção esta subscrita por Portugal em 1993 e também pela subscrita pela República Bolivariana da Venezuela.

Ofende ainda:

5° - O Direito Internacional Consuetudinário aceite pelo n.° 1 do art. 8º da Constituição Portuguesa quando diz:

"As normas de Direito Internacional geral ou comum fazem parte integrante do Direito Português".

6a - O n.° 1 do art. 43º da Convenção de Viena diz o seguinte:

"Os funcionários consulares e os empregados consulares não estão sujeitos à jurisdição das autoridades judiciárias e administrativas do Estado receptor pelos actos realizados no exercício das funções consulares".

7a - Mas os recorridos sempre trabalharam como administrativos do Consulado da R. na R.A.M..

8° - Logo, os recorridos não poderão ficar sujeitos à jurisdição das autoridades judiciárias e administrativas do Estado receptor – Portugal -  pelos actos realizados no exercício das funções consulares.
9° - Consequentemente a Lei Portuguesa, também não é aplicável no caso "sub judice".

Quanto à excepção de incompetência do Tribunal

10° - A República Bolivariana da Venezuela é um estado soberano.
11° - Consequentemente goza de imunidade de jurisdição – par in parem non habet imperium.

120 - A República Bolivariana da Venezuela é R. nos presentes autos.

13° - Ora segundo o Direito Internacional Consuetudinário os Estados Estrangeiros gozam de imunidade de jurisdição com fundamento no princípio da sua igualidade "par in parem non habet imperium".

14° - Esta norma é consagrada na Constituição da República Portuguesa.

Finalmente
15° - A decisão recorrida viola o n.° 1 do art. 8º da Constituição da República Portuguesa.

Em face do exposto, deverá esse Venerando Tribunal dar sem efeito a decisão recorrida, substituindo-a por uma outra que considere procedente as excepções invocadas, absolvendo da instância a R. República Bolivariana da Venezuela, ora agravante, em qualquer dos casos

E assim esse Venerando Tribunal, como sempre, fará justiça”.

Os agravados contra-alegaram.

Subidos os autos a este tribunal, foi emitido pelo M.P. o parecer de fls. 213 vº, favorável à confirmação da decisão recorrida.

Delimitado o objecto do recurso pelo teor das conclusões das alegações do recorrente, verifica-se no caso, que vem suscitada a reapreciação das seguintes questões:

- incompetência internacional do tribunal recorrido, por força da imunidade jurisdicional de que goza o estado recorrente;

- sujeição dos recorridos, enquanto trabalhadores administrativos do Consulado da recorrente na Madeira, à jurisdição do Estado Português, face ao preceituado pelo art. 43º nº 1 da Convenção de Viena sobre Relações Consulares e ao disposto pelo art. 8º nº 1 da Constituição e aplicabilidade ao caso do direito português;

- prescrição das contribuições à Segurança Social (objecto do pedido formulado no processo principal).

Cumpre apreciar e decidir

Na conclusão 3ª parece a R. pretender suscitar a questão da incompetência em razão da matéria do Tribunal do Trabalho ao invocar o disposto pelo art. 63º nº 1 da Lei de Bases da Segurança Social (nº 17/2000 de 8/8, que, aliás à data da propositura já fora revogada, vigorando desde 19/1/2003, a nova Lei de Bases da Segurança Social, nº 32/2002 de 20/12, encontrando-se a matéria em causa consignada no art. 48º nº 1, nos termos da qual “a cobrança coerciva dos valores relativos às quotizações, às contribuições e às prestações indevidamente pagas é efectuada através de processo executivo e de secção de processos da segurança social”).

Tal questão, a verificar-se, seria até de conhecimento oficioso.

Afigura-se-nos, todavia, e salvo o devido respeito pela orientação contrária, que embora num primeiro momento possa parecer que o objecto da acção principal  (em que é pedida a condenação da R. a pagar à Segurança Social as contribuições relativas à actividade laboral prestada pela A. (A) , ao seu serviço no período de 1977 a Dezembro de 1992) visa obter a cobrança  das contribuições relativas à A. do período referido, recaindo na previsão do aludido normativo da LBSS (que remete tal cobrança para as execuções fiscais, da competência dos tribunais tributários – cfr. art. 62º nº 1 al. o) do ETAF aprovado pelo DL 129/84 de 27/4, uma vez que o novo ETAF aprovado pela L. 13/2002 de 19/2, apenas entrou em vigor em 1/1/2004, cfr. art. 4º da L. 107-D/2003, de 31/12), uma leitura mais atenta da petição, com os esclarecimentos resultantes do articulado de resposta às excepções, revela que o pedido é efectuado naqueles moldes visando obter a reparação, por reconstituição natural, do prejuízo causado à A. pelo comportamento da R. que consiste na omissão de pagamento das referidas contribuições à Segurança Social, o que, pela repercussão que necessariamente terá no valor da pensão de velhice a que a A. terá direito, é causa adequada do  prejuízo que se traduz na diferença entre o valor da pensão calculada com base em todos os salários que auferiu ao longo da sua carreira profissional e o da pensão calculada sem considerar os salários do período de Novembro de 1977 a Dezembro de 1992.

Em bom rigor estamos perante uma acção de indemnização fundada na responsabilidade civil emergente do incumprimento de uma obrigação acessória do contrato de trabalho, como é a obrigação contributiva perante a Segurança Social, ou, pelo menos, fundada no enriquecimento  sem causa (art. 473º e seg. do CC) e não perante uma execução para pagamento coercivo das contribuições à Segurança Social, como poderia parecer.

O incumprimento de tal obrigação contributiva para com a Segurança Social, porque só existe na medida em que havia um contrato de trabalho, sendo tal incumprimento causal de danos na esfera jurídica da outra parte dessa relação de trabalho, por ver diminuídas prestações da Segurança Social, maxime da pensão de velhice, constituindo ilícito, pode, havendo culpa, fundamentar, nos termos do art. 483º e seg. do CC, o direito à reparação, sendo a reconstituição da situação que existiria se não se tivesse verificado o evento (a omissão das contribuições devidas)  a forma mais correcta e rigorosa de reparação desse dano (art. 562º do CC). Mas ainda que não haja responsabilidade civil, haverá pelo menos um enriquecimento ilegítimo do R. e um correlativo empobrecimento da A., gerador da obrigação de indemnizar.

Assim equacionada a acção (como a A. a equacionou), enquadra-se na previsão do art. 85º nº 1 al. b) da L. 3/99, de 13/1, com as alterações resultantes da L. 101/99 de 26/7, ou seja uma acção emergente de uma relação de trabalho subordinado, já que subjacente ao comportamento ilícito e culposo imputado à R. ou pelo menos ao enriquecimento ilegítimo da mesma, que serve de fundamento ao pedido, está uma obrigação legal que só existe porque entre as partes existia um contrato de trabalho subordinado.

Assim sendo e tendo em atenção que a competência do tribunal se afere pelos termos em que o A. delineia a acção, não podemos deixar de concluir que o Tribunal do Trabalho é competente em razão da matéria para conhecer das questões nela suscitadas.

Mas, porque o demandado é um Estado estrangeiro, cabe, antes de mais, apreciar se o Tribunal é internacionalmente competente, o que passa por analisar a questão da invocada imunidade jurisdicional.

A imunidade jurisdicional de Estados estrangeiros é um princípio de direito internacional público, corolário do princípio da igualdade dos Estados, que traduz a velha máxima par in parem non habet iurisdictionem. Visa garantir o respeito pela soberania. De acordo com ele nenhum Estado pode julgar, através dos seus tribunais, os actos de um outro Estado, a não ser com o respectivo consentimento.

Reconhecida, através do Direito Internacional Consuetudinário que, nos termos do art. 8º nº 1 da CRP, faz parte integrante do direito português, discute-se na doutrina se tal imunidade alguma vez teve carácter absoluto[1], isto é, que se considerasse aplicável a qualquer que fosse a actividade do Estado. Ainda que se admita que alguma vez tivesse tido carácter absoluto, é indiscutível que tem vindo progressivamente a perdê-lo, quer na jurisprudência dos diversos países[2] - que, distinguindo entre actos de gestão pública (acta jure imperii) e actos de gestão privada (acta jure gestionis), limita a imunidade apenas aos primeiros – quer, em alguns casos, em países de commun law, através da adopção de  legislação especial (caso da Grã Bretanha[3] e dos Estados Unidos da América[4]).

A matéria encontra-se em vias de codificação internacional.

Impondo-se a exigência de uma solução internacional unívoca sobre as hipóteses em que o exercício da jurisdição seria admissível, o Conselho da Europa, em 16/5/72, em Basileia, abriu à assinatura dos Estados membros e à adesão dos Estados não membros a Convenção Europeia sobre a Imunidade dos Estados, que adopta o critério de enunciar de modo específico (nos art. 1º  a 14º) as situações e relações jurídicas relativamente às quais é aplicável a excepção ao princípio da imunidade dos Estados estrangeiros. Assinada por Portugal em 10/5/79, mas ainda não ratificada, esta Convenção foi ratificada por oito Estados (Alemanha, Áustria, Bélgica, Chipre, Luxemburgo, Holanda, Reino Unido e  Suiça).

No seu artigo 5º  dispõe

“1- Um Estado contratante não pode invocar imunidade de jurisdição perante um tribunal de um outro Estado contratante se o processo se relacionar com um contrato de trabalho celebrado entre o Estado e uma pessoa singular, se o trabalho dever ser realizado no território do Estado do foro.

2 – O parágrafo 1 não se aplica :

a) se a pessoa física tiver a nacionalidade do Estado empregador na altura em que o processo foi instaurado;

b) se na altura da celebração do contrato a pessoa singular não tinha a nacionalidade do Estado do foro nem residia habitualmente nesse Estado; ou

c) se as partes do contrato acordaram em sentido contrário, por escrito, a menos que, de acordo com a lei do Estado do foro, os tribunais desse Estado tivessem jurisdição exclusiva em virtude do objecto do processo

3...”.

A nível mundial, no âmbito das Nações Unidas, a Comissão de Direito Internacional (CDI) iniciou em 1978 os trabalhos de codificação sobre imunidades jurisdicionais dos Estados de que resultou  a  elaboração de  um projecto sobre imunidades jurisdicionais dos Estados e da sua propriedade (Draft Articles  on Jurisdictional Immunities of States and Their Property, o atrás referido projecto de Artigos sobre as Imunidades Jurisdicionais dos Estados e dos seus Bens), que adoptou também o critério de enunciar, nos art. 10º a 16º, os actos sujeitos a restrição à imunidade, cujo princípio é formulado no art. 5º.

O respectivo art. 11º é do seguinte teor:

“1 – Salvo acordo contrário entre os Estados envolvidos, um Estado não pode invocar imunidade de jurisdição perante o tribunal de outro Estado que de outro modo seria competente para um processo relacionado com um contrato de trabalho entre o Estado e uma pessoa singular para trabalho prestado, no todo ou em parte, no território desse Estado.

2- O parágrafo 1 não se aplica se:

a) O trabalhador foi recrutado para desempenhar funções estreitamente relacionadas com o exercício de autoridade governamental;

b) O objecto do processo é o recrutamento, renovação do contrato ou reintegração de uma pessoa singular;

c) O trabalhador não era nacional nem residente habitual do Estado do foro ao tempo em que o contrato foi celebrado;

d) O trabalhador era nacional do Estado empregador na altura em que o processo foi instaurado; ou

e) O Estado empregador e o trabalhador acordaram, por escrito, em sentido diverso, salvo considerações de ordem pública que confiram aos tribunais do foro jurisdição exclusiva em virtude do assunto objecto do processo”

Como refere Jónatas E. M. Machado[5] “...a CDI decidiu em 7/5/99 criar um grupo de trabalho para retomar a questão das imunidades dos Estados e da sua propriedade. Por seu lado a AG da ONU, na sua resolução 55/150, de 12/12/2000, decidiu estabelecer um comité ad hoc para aprofundar o estudo da questão da imunidade de jurisdição dos Estados e da sua propriedade e o trabalho até agora feito. O seu relatório (A/57/22) foi produzido em 13/2/2002, tendo apresentado algumas alterações aos Draft Articles da CDI da ONU.”

Se bem que o referido processo de codificação internacional ainda não esteja concluído, ele é revelador do crescente peso que vem assumindo, tal como na doutrina e na jurisprudência dos diversos países, a concepção restrita da imunidade judiciária dos Estados.

Temos pois como adquirido que a teoria restritiva da imunidade é hoje dominante.      

Com a adopção desta teoria, a questão essencial passa por saber se a actividade a que se refere o litígio é ou não soberana, ou seja, se se estamos perante actos jure imperii ou jure gestionis.

Todavia, não é pacífico o critério distintivo entre actos jure imperii e actos jure gestionis.

Dominante é o critério que atende à natureza do acto, de acordo com o qual  actos jure imperii são, sem dúvida, os actos de autoridade, de poder público, manifestação de soberania e actos jure gestionis, actos de natureza privada, que poderiam ser de igual modo praticados por um particular. É certo que alguns Estados defendem que se dê idêntico valor ao critério do fim, como refere Eduardo Correia Batista na obra “Direito Internacional Público”, Almedina, 2004, II vol., a pag. 144. Na nota 279 refere este autor que o art. 2º nº 1 al. c) do Projecto da Comissão de Direito Internacional  define “transacção comercial” em função da sua natureza e não do fim a que se destina e, mais adiante, acrescenta “depois de uma cuidadosa resenha da jurisprudência interna sobre a questão, o grupo de trabalho da CDI, na sua reapreciação da questão, reconheceu que o critério da natureza era predominante, embora, por vezes, o do fim ainda recebesse algum acolhimento.”

Segundo Jónatas Machado (obra referida, pag. 163) “A imunidade relativa, imposta pelo recurso crescente ao direito privado por parte dos Estados, é considerada por uma parte substancial da doutrina como a mais consentânea com a tendência actual no sentido da responsabilização dos poderes públicos por danos, contratuais ou extra-contratuais, causados aos particulares. Com efeito, tende a considerar-se que a imunidade não pode ser invocada, nomeadamente no caso de transacções comerciais, contratos de trabalho, responsabilidade civil por acções ou omissões danosas[6], questões de propriedade imobiliária, mobiliária ou intelectual, participações sociais, utilização de embarcações para fins não oficiais, sempre que os elementos de conexão relevantes se encontrem localizados no território do Estado do foro.”

Também na jurisprudência portuguesa, designadamente no foro do trabalho, a teoria da imunidade restrita tem vindo, ultimamente, a obter acolhimento mais alargado (cfr. ac. STJ 11/5/84, BMJ 337, pag. 305; STJ 30/1/91, BMJ 403, pag.267; STJ 4/2/97, CJ STJ, ano V, T.I, pag. 87; STJ 13/11/2002, CJ STJ ano X, T. III, pag. 276; ac. RL de 13/10/2000, disponível na Internet  e RL 26/6/2004, disponível na Internet).

Merece-nos referência especial o ac. do STJ de 13/11/2002, publicado no CJ STJ como referido e no site do ITIJ, que relativamente à questão de saber se, num determinado litígio laboral, está em causa um acto de soberania ou um acto de gestão, chama a atenção para a relevância das funções desenvolvidas pelo trabalhador em causa, importando saber se se trata de funções subalternas ou, de algum modo, funções de direcção na organização do serviço público do Estado demandado, funções de autoridade ou de representação. “A natureza das actividades a que há que atender são as que integram as funções do trabalhador em causa, interessando apurar se o regime legal aplicável à relação laboral estabelecida é substancialmente diferente do que liga qualquer trabalhador com as mesmas funções a um qualquer particular.” É que, como refere Isabelle  Pingel Lenuzza (obra citada, pag. 134) “um serviço do Estado, investido de uma missão de soberania pode empregar certas pessoas que não participam, de forma alguma, no cumprimento dessa missão”

No caso em apreço, temos, por um lado, a acção principal em que a A. pede a condenação da R., a título de indemnização por responsabilidade civil ou por enriquecimento sem causa (por ter omitido o cumprimento da obrigação contributiva à Segurança Social no período de 11/77 a 12/92), a pagar tais contribuições, como forma de reparar, por restauração natural, o prejuízo daí adveniente à A., consubstanciado na diminuição das prestações de segurança social, mormente a pensão de velhice a que terá direito. A actuação (ou melhor, a omissão) do Estado demandado que está na origem do pedido, conexiona-se estreitamente com a sua posição de empregador no contrato de trabalho que o vinculava à  A. que, tal como o outro A. nos processos de impugnação de despedimento colectivo, que foram  apensados, desempenhava funções de empregado de escritório, mais precisamente de “secretária”.

Com efeito, cfr. al. A) e B) dos Factos Assentes (a fls. 149), os AA. foram admitidos para trabalhar no Consulado da República da Venezuela, por conta sob a autoridade e direcção da R, em Julho e em 1 de Novembro de 1977, respectivamente, com a categoria de “secretária, desempenhando diversos serviços de escritório até ao mês de Setembro de 2002.

Não consta que as funções por eles desenvolvidas fossem, de algum modo, de responsabilidade na direcção do serviço público prestado pelo Consulado. Os contratos de trabalho celebrados entre elas e o R. não são, pois, actos jure imperii, mas actos jure gestioni, nos quais o R. interveio como qualquer particular que celebra um contrato de trabalho como empregador. Também  são actos jure gestioni a omissão repetida ao longo do período de 1977 a 1992 do cumprimento da obrigação contributiva à Segurança Social, derivada da posição de empregador  relativamente à A. Leocádia.

Daí que entendamos que o R. não beneficia da imunidade jurisdicional relativamente à acção principal.

No que se refere às acções apensas, de impugnação de despedimento colectivo, embora os contratos de trabalho celebrados com os AA. configurem, como atrás se referiu, face ao carácter subalterno das funções desempenhadas pelos AA., meros actos de gestão privada, idênticos aos que qualquer empregador  pudesse celebrar, já o despedimento colectivo, na medida em que se enquadra numa reestruturação dos serviços consulares, em conformidade com orientações definidas pelo Ministério das Relações Exteriores da República Bolivariana da Venezuela a todas as Missões Diplomáticas da Venezuela no Exterior, conforme resulta do doc. junto por cópia a fls. 49 do processo apenso nº 509/2002, com tradução a fls. 50, afigura-se-nos constituir um verdadeiro acto de soberania, relativamente ao qual tem cabimento a invocação da imunidade jurisdicional. Com efeito, constituiria uma ingerência intolerável face ao princípio da igualdade soberana dos Estados, que um tribunal de um outro Estado pudesse julgar a decisão de um Estado relativamente à sua própria organização interna, como é a reestruturação dos serviços consulares.

Deste modo, constituindo o despedimento colectivo um acto jure imperii, é lícita a invocação da imunidade jurisdicional, pelo que falece à jurisdição portuguesa competência internacional para conhecer da impugnação desse despedimento.

Consequentemente não se acompanha, nesta parte, a decisão recorrida, que nessa parte deve ser revogada e substituída por outra que, nos termos das disposições conjugadas dos art. 101º e 105º nº 1 do CPC, absolva o R. dos pedidos formulados nas acções de impugnação de despedimento colectivo apensadas à acção principal.

Ao prosseguimento da acção principal, relativamente à qual não procede a imunidade judiciária da R., não obsta o disposto pelo art. 43º nº 1 da Convenção de Viena sobre Relações Consulares, aprovada pelo DL 183/72, de 30/5, que dispõe:

“1- Os funcionários consulares e os empregados consulares não estão sujeitos à jurisdição das autoridades judiciárias e administrativas do Estado receptor pelos actos realizados no exercício de funções consulares.”

A A. era, efectivamente, empregado (a) consular, conceito definido no art. 1º nº 1 al. e) da referida Convenção como “toda a pessoa empregada nos serviços administrativos ou técnicos de um posto consular”. Mas, para além de não ser demandada, mas demandante, não se vislumbra que, ao peticionar indemnização pela incumprimento da obrigação contributiva à Segurança Social, geradora de danos na sua esfera jurídica, estejam em causa actos realizados no exercício de funções consulares, tais como definidas em qualquer das alíneas do art. 5º da mesma Convenção.

Improcede, pois, o recurso nesta parte.

Por último cabe reapreciar a questão da prescrição.

Também quanto a esta questão a recorrente não tem razão.

Como atrás se referiu a propósito da questão da competência material do tribunal, o objecto da acção não é constituído directamente pelo direito da Segurança Social ao pagamento das contribuições relativas às retribuições auferidas pela A., no período de 1/11/77 a 31/12/92, ao serviço da R., mas antes o direito da A. a ser indemnizada pela R. pelo prejuízo causado pela falta de pagamento de tais contribuições à Segurança Social – traduzido na diminuição das prestações de Segurança Social que são calculadas com base em todo o tempo de trabalho, como é o caso da pensão de velhice e invalidez (art. 63º nº 4 da CRP).

Radicando tal direito na prévia existência de um contrato de trabalho que vigorou entre as partes, a prescrição a considerar será a prevista para os créditos resultantes do contrato de trabalho e da sua violação (no caso será resultante da violação de uma obrigação conexa e acessória do contrato de trabalho, como é a obrigação contributiva), ou cessação, isto é, a prescrição de um ano a contar do dia seguinte ao da cessação do contrato, cfr. art. 38º nº 1 da LCT.

Ora o contrato de trabalho cessou em 12/10/2002, através do despedimento colectivo e a acção entrou em juízo em 8/10/2003, conforme carimbo aposto na p.i., pelo que não ocorreu a prescrição do crédito invocado.

E embora a obrigação para com a Segurança Social de pagamento das contribuições em causa possa estar prescrita, face ao decurso dos prazos de prescrição previstos no art. 49º da L. nº 32/2002, de 20/12, no art. 63º nº 2 da L. 17/2000 de 8/8 ou art. 53º nº 2 da L. 28/84 de14/8, o direito à indemnização da A.- e é disso que se trata nos autos - não o está.

Decisão

Pelo que antecede se acorda em dar parcial provimento ao agravo, julgando procedente a invocada imunidade judiciária da R. relativamente aos processos de despedimento colectivo apensos, declarando a incompetência internacional dos tribunais portugueses para deles conhecer e, consequentemente, absolvendo a R. dos pedidos neles formulados, nessa medida revogando o despacho recorrido.

No demais julgar improcedente o agravo, confirmando a decisão recorrida, pelo que os autos devem prosseguir termos a fim de conhecer de mérito relativamente à acção principal.

Custas do agravo a meias e pelos AA., na 1ª instância, relativamente aos processos de despedimento colectivo apensos.

  Lisboa, 21 de Setembro de 2005 

Maria João Romba

Paula Sá Fernandes

José Feteira

_______________________________________________________________________________
[1] Isabelle Pingel-Lenuzza na sua obra “Les Imunités des États en Droit International”, Editions Bruylant, Bruxelles, 1997,  afirma, a pag. 135 que “ por falta de uma aplicação suficientemente constante e uniforme, a regra de jurisdição absoluta do Estado estrangeiro, contrariamente ao que por vezes é afirmado, nunca pode tornar-se um princípio costumeiro de direito internacional”. Na nota 3 dessa página cita Ogiso, relator do “Projecto de artigos sobre as Imunidades Jurisdicionais dos Estados e dos seus Bens” no âmbito da Comissão de Direito Internacional da ONU, segundo o qual “já não existe, em direito internacional costumeiro, regra exigindo automaticamente que um Estado conceda, em quaisquer circunstâncias, imunidade de jurisdição aos outros Estados”.
[2] Como é referido por Nguyen Quoc Dinh, Patrick Daillier  e Alain Pellet, in Direito Internacional Público, Fundação Calouste Gulbenkian, 1999, pag. 408 “As jurisprudências nacionais já não confirmam o sistema das imunidades absolutas dos Estados, que tinha o inconveniente de remeter para as administrações dos Negócios Estrangeiros a solução dos problemas  suscitados  aos particulares pela recusa de julgar dos tribunais internos.”
[3] State Immunity Act, de 1978. Segundo vem referido por Malcom N. Show, in International Law, Cambridge University Press, 4th edition,  pag. 511 “As secções 4-11 do State Immunity Act do Reino Unido especificam o resto das muito abrangentes áreas de não imunidade e incluem contratos de trabalho feitos no Reino Unido, ou em que o trabalho deva ser realizado no todo ou em parte do Reino Unido...”
[4] US Foreign Sovereign Immunities Act, 1976.
[5] Direito Internacional  - Do Paradigma Clássico ao pós 11 de Setembro, Coimbra Editora, 2003, pag. 162, nota 82.
[6] Sublinhado da nossa responsabilidade.