Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1734/19.1T8SNT-B.L1-7
Relator: CONCEIÇÃO SAAVEDRA
Descritores: EXECUÇÃO
OBRIGAÇÃO PRINCIPAL
DESISTÊNCIA DO PEDIDO
EXECUTADO FIADOR
EXTINÇÃO DA INSTÂNCIA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/30/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I - A extinção da obrigação principal determina a extinção da fiança;
II - Ao considerar-se, no despacho recorrido, que a exequente desistira do pedido quanto ao 1º executado, mutuário no contrato dado em execução, julgando-se, em consequência, extinta a instância quanto ao mesmo, julgou-se, forçosamente, que ficara extinto o direito que se pretendia fazer valer contra aquele executado;
III - Julgada extinta, desse modo, a obrigação principal no contrato, não pode a execução prosseguir contra o 2º executado que foi demandado na qualidade de fiador do mutuário.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa.

I- Relatório:
A [ ….Finance Gmbh ]  veio propor contra B [ Joaquim ….]  e C [ Emanuel …..]  execução ordinária para pagamento de quantia certa, atribuindo à execução o valor de € 16.130,17. Invoca que lhe foi cedido o crédito do Banco Santander Totta, S.A., sobre os executados e apresenta como título executivo contrato de mútuo celebrado com o 1º executado, pelo valor de Esc. 12.000.000$00 (cerca de € 59.855,82), no qual o 2º executado intervém na qualidade de fiador. Diz que o mutuário deixou de cumprir as obrigações emergentes do contrato em 16.8.2011 que foi, por isso, resolvido, tendo-se vencido todas as prestações devidas.
Em 24.7.2019, veio a exequente “desistir do pedido” contra o executado B, invocando, em 1.8.2019, na sequência de requerimento apresentado pelo executado C, que incorreu em manifesto lapso de escrita, uma vez que pretendia “desistir da instância” e não do pedido.
Em 7.10.2019, foi proferido o seguinte despacho: “A exequente desistiu do pedido quanto ao executado B, não sendo necessária a aceitação por parte dos restantes co-executados, assim, julgo extinta a instância quanto ao referido executado.
Notifique.”
Inconformado, interpôs recurso o 2º executado, C, apresentando alegações que culmina com as seguintes conclusões que se transcrevem([1]):

91. Vem C recorrer da decisão exarada em 07.10.2019 pela Mm.ª Juiz que absolveu da instância B , devedor originário da obrigação, falecido em 29.12.2006, despacho esse, proferido a 07.10.2019, com a seguinte formulação: "A exequente desistiu do pedido quanto ao executado B , não sendo necessária a aceitação por parte dos restantes co-executados, assim, julgo extinta a instância quanto ao referido executado.
Notifique.”
92. Na sequência do pedido de aclaramento/reformulação do despacho, apresentado logo de seguida pelo Apelante, ali Executado, a Mma. Juiz emitiu o seguinte despacho aclarador, segunda pronúncia juridicamente integrante do primeiro despacho, a 29.10.2019: “Atento o já referido no despacho antecedente, e tendo o executado a qualidade de fiador no contrato de mútuo dado à execução, a extinção da instância quanto ao executado/mutuário - entretanto falecido, não extingue a responsabilidade do executado/fiador, o qual, nos termos do nº 1 do artigo do Código Civil, garante "a satisfação do direito de crédito, ficando pessoalmente obrigado[s] perante o credor." Assim, nada mais tenho a decidir, quanto ao alegado, mantendo o já decidido. Notifique.”
93. O despacho recorrido, sem alguma vez ter havido suspensão da instância e consequente habilitação de sucessores, retirou como consequência da desistência do pedido contra o devedor originário/mutuário/1.º Executado uma mera extinção da instância contra o devedor originário da obrigação, com o que o Apelante não se conforma.
94. Assim, perante as conclusões do tribunal, o objeto do presente recurso consiste na apreciação das seguintes questões:
- Da nulidade do parte final do despacho proferido em 7 de outubro de 2019, que começou por homologar a desistência do pedido da Apelada/Exequente relativamente ao Executado/mutuário B, parte que o Apelante declara expressamente aceitar e sobre a qual não deseja recorrer, mas que em consequência determinou apenas a extinção da instância relativamente a esse Executado, e prosseguimento dos autos relativamente ao Apelante, fiador da obrigação principal, e consequente nulidade do despacho que o confirma, despacho esse de 29.10.2019;
- Da repercussão da eventual nulidade da parte final do despacho recorrido, e daquele que a confirma em 29.10.2019, na extinção do pedido também em relação ao Apelante/Executado/fiador, C.
95. A ação esteve a correr, desde o início, contra um morto, até que a Apelada/Exequente, A, declarou, de forma inequívoca, clara e sem margem para dúvidas, no passado dia 24.07.2019, que desistia do pedido contra B, num primeiro de atos processuais que nos trouxeram até aqui, os quais ocorreram de acordo com a seguinte linha temporal:
96. Em 24.07.2019, a Apelada/Exequente declarou desistir do pedido contra o devedor originário, B.
97. A 01.08.2019, o Apelante, ali Executado/Embargante/Fiador C informa o processo que aceita, para não mais ser retirada, a desistência do pedido apresentada pela Apelada/Exequente relativamente ao Executado/devedor originário B, e pede a devolução das quantias entretanto penhoradas.
98. A 01.08.2019, umas horas mais tarde, a Apelada/Exequente responde, declarando que, por lapso de escrita, escreveu "pedido", quando queria dizer "instância", diga-se, "desistência da instância", que era o que queria apresentar.
99. A 06.08.2019, o aqui Apelante/Executado/fiador requer ao douto tribunal que dê por extinto o pedido contra o Executado/mutuário/devedor principal B, e por consequência, contra o fiador C/aqui Apelante, e que mantenha nos autos o requerimento do Requerente/Executado, de dia 01.08.2019, e que a desistência do pedido contra o B produza na plenitude os seus efeitos.
100. A 07.08.2019, a Apelada/Exequente reitera que se referia à desistência da instância em relação ao Executado B, devendo os autos prosseguirem em relação ao Executado/fiador C.
101. A 07.10.2019, a Mma. Juiz proferiu despacho em que determina que: "A Exequente desistiu do pedido quanto ao Executado B, não sendo necessária a aceitação por parte dos restantes co-executados, assim, julgo extinta a instância quanto ao referido executado.
Notifique. (...)"
102. A 10.10.2019, o Apelante/Executado/fiador pede ao Tribunal que "diligencie no sentido de completar o despacho de V. Exa. de 07.10.2019 de acordo com o segmento normativo aplicável, isto é, retirando as consequências da desistência do pedido apresentada pela Exequente, ou seja, extinguindo a causa por extinção do direito de crédito que era seu objeto, no sentido de ser dado por extinto o pedido contra o fiador C."
103. A 29.10.2019, a Mma. Juiz proferiu despacho determinando que: "Atento o já referido no despacho antecedente, e tendo o executado a qualidade de fiador no contrato de mútuo dado à execução, a extinção da instância quanto ao executado/mutuário - entretanto falecido, não extingue a responsabilidade do executado/fiador, o qual, nos termos do n.º 1 do artigo 627.º do Código Civil, garante "a satisfação do direito de crédito, ficando pessoalmente obrigado[s] perante o credor." Assim, nada mais tenho a decidir, quanto ao alegado, mantendo o já decidido. Notifique.”
104. Ora, o Apelante não se conforma com o teor do despacho exarado, por duas ordens de razões que passa a explicitar:
- omissão de pronúncia, por falta de apreciação de questões que devia analisar e decidir, tal como os efeitos da retirada do pedido; e
- erro na apreciação e aplicação do direito, ao considerar extinta a instância apenas quanto ao devedor originário.
105. Uma vez que:
106. O mutuário/devedor originário é B.
107. Que faleceu no dia 29.12.2006.
108. A ação foi proposta contra ele e contra o fiador C, aqui Apelante.
109. Nos presentes autos não foi emitido despacho judicial que suspendesse a instância, o que se exige, tal como releva a anotação 5 ao artigo 270.º do Novo CPC Anotado (Abílio Neto, 4.ã edição, Abril de 2017), ao citar o Ac. STJ, de 12.1.1999; BMJ, 483.9 -167.
110. Nos presentes autos não foi requerida a habilitação dos sucessores do l.º Executado.
111. Concretizando, a alínea a) do n.º l do artigo 269.º determina que a instância se suspende quando falece ou se extinguir alguma das partes, e o n.º 1 do artigo 270.º determina que, junto ao processo documento que prove o falecimento ou a extinção de qualquer das partes, suspende-se imediatamente a instância, salvo se já tiver começado a audiência de discussão oral ou se o processo já estiver inscrito em tabela para julgamento.
112. Já o artigo 54.º do CPC, sob a epígrafe "Desvios à regra geral da determinação da legitimidade", determina que, tendo havido sucessão no direito ou obrigação, deve a execução correr entre os sucessores das pessoas que no título figuram como credor ou devedor da obrigação exequenda.
113. Novamente, nos presentes autos não foi requerida a habilitação dos sucessores do l.º Executado.
114. Subsequentemente, a ação não se extingue contra o morto, nem prossegue quanto aos outros, sem mais: tem de ser impulsionada pela parte interessada na sucessão na ação através do incidente de habilitação de herdeiro - nada disto ocorreu em clara violação da disciplina do processo - a necessidade de intentar o incidente.
115. Nesta sequência, quando, em resposta à desistência do pedido apresentada pela Apelada/Exequente relativamente ao devedor principal B, parte na ação, o douto tribunal emite despacho determinando que: "A Exequente desistiu do pedido quanto ao Executado B, não sendo necessária a aceitação por parte dos restantes co-executados, assim, julgo extinta a instância quanto ao referido executado." [sublinhado nosso], o Apelante, vendo acontecer um salto lógico que viola o processo e o procedimento, visto o exposto supra, não encontra outra solução que não seja recorrer do referido despacho, visto que é de concluir que:
116. Se não houve aqui lapso de escrita da Apelada/Exequente, e a desistência fez operar os efeitos concretos de uma desistência do pedido,
117. No processo à margem identificado ocorreu a omissão indevida de um ato, tendo a Mma. Juiz retirado uma consequência processual que apenas poderia ter ocorrido, eventualmente (questão que não compete agora apreciar), na sequência da suspensão da instância e habilitação de sucessores, nos termos conjugados do n.º 1 do artigo 270.º, a alínea a) do n.9 1 do artigo 269.º, do artigo 54.º e do artigo 351.º, todos do CPC, negando que, se a ação no momento decorria contra o Executado/mutuário B, se dentro do processo ninguém "entregou a tocha" aos sucessores, o mesmo Joaquim Carmo permaneceu no processo, e se o mesmo era o devedor principal, e se a essa obrigação se encontra umbilicalmente ligada a fiança, ocorrida a desistência do pedido extingue-se o direito que se pretendia fazer valer (285.º, n.º 1 CPC).
118. Ou seja, não podia vir agora o Tribunal retirar os efeitos da conduta processual da Apelada/Exequente, tendo incorrido no previsto no n.º 1, alínea d) do artigo 615.º do CPC, uma vez que não houve suspensão da instância, nem habilitação dos sucessores, tudo devendo passar-se como se B permanecesse como l.º Executado.
119. Apesar de morto.
120. Pois não basta todos sabermos que o B morreu.
121. É preciso que tal facto tenha tido o seu reflexo no processo, e nos procedimentos, e não teve.
122. E não podia a Mma. Juiz ter retirado os efeitos do exposto nos pontos acima, extinção da instância quanto ao Executado/mutuário, e prosseguimento contra o Apelante também porque:
123. Quanto às finalidades e efeitos do requerimento de desistência do pedido apresentada pela Apelada/Exequente, no que ao Apelante/Executado/fiador C diz respeito, a obrigação deste executado decorre da fiança prestada à obrigação principal.
124. Ora, o regime da fiança determina, nos termos do n.º 2 do artigo 627.º do Código Civil, que a fiança é o garante da obrigação principal.
125. O regime da fiança determina que a sua obrigação é acessória e subordinada à obrigação principal, ou seja, a partir do momento em que há uma desistência do pedido principal, arrasta consigo a desistência relativamente à obrigação do afiançado, dado que a fiança está simbiótica e geneticamente correlacionada com a obrigação do afiançado, na linha do decidido nos Acórdãos cujos sumários foram transcritos supra.
126. Isto é, a desistência do pedido dá extinção da fiança.
127. O que contraria a conclusão da Mma. Juiz na pronúncia/aclaração feita no seu despacho de 29.10.2019.
128. Mesmo que tivesse sido por lapso ou acidente da Apelada/Exequente (o que já declarámos não aceitar).
129. Assim, o signatário deste recurso tomou, logicamente, posição relativamente à desistência do pedido, porque a desistência do pedido principal, acidental ou não, implica obrigatoriamente a desistência quanto ao pedido do Apelante/Executado/fiador C.
130. Ora, se a parte do artigo 285.º CPC que se aplica à desistência do pedido é a seguinte:
131. "A desistência do pedido extingue o direito que se pretendia fazer valer.”
132. Quanto às finalidades e efeitos do requerimento de desistência do pedido apresentada pela Apelada/Exequente, no que ao Apelante/Executado/fiador C diz respeito, a obrigação deste executado decorre da fiança prestada à obrigação principal.
133. Sendo no caso, a obrigação principal aquela que foi assumida pelo B, pai do aqui Requerente, que morreu em 2006.
134. Ora, o regime da fiança determina, nos termos do n.º 2 do artigo 627.º do Código Civil, que a fiança é o garante da obrigação principal.
135. O regime da fiança determina que a sua obrigação é acessória e subordinada à obrigação principal, ou seja, a partir do momento em que há uma desistência do pedido principal, arrasta consigo a desistência relativamente à obrigação do afiançado, dado que a fiança está simbiótica e geneticamente correlacionada com a obrigação do afiançado.
136. Isto é, a desistência do pedido dá extinção da fiança.
137. Donde devia ter sido declarado extinto o pedido também contra o Apelante/Executado/fiador, uma vez que, de acordo com o segmento normativo aplicável, isto é, retirando as consequências da desistência, devia ter sido proferido despacho no sentido de extinguir a causa por extinção do direito de crédito que era o seu objeto, no sentido de ser dado por extinto o pedido contra o Apelante/Executado/fiador C.
138. O que não aconteceu e o que o Apelante tem vindo a dizer que não aceita.”
Pede a revogação do decidido, julgando-se extinta a instância contra o 1º executado e, por consequência, contra o apelante.
Não se mostram oferecidas contra-alegações.
O recurso foi admitido como de apelação, com subida em separado e efeito meramente devolutivo.
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
***
II- Fundamentos de Facto:
Para além do que acima consta do relatório, tem-se por assente, em face dos autos e por consulta do processo principal via Citius, com interesse para a apreciação do recurso, que:
1) Em 7.2.2019, o A.E. suspendeu a execução contra o executado B, “nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 270.º do C.P.C., uma vez que o executado faleceu”;
2) Em 28.3.2019, veio o executado C juntar procuração forense no processo principal;
3) Por requerimento de 24.7.2019, veio a exequente informar: “que pretende desistir do pedido deduzido contra B, nos presentes autos, o que faz nos termos do disposto no art. 283 nº 1 e do art. 285 do Código de Processo Civil”;
4) Em 1.8.2019, veio o 2º executado, C, informar “que aceita, para não mais ser retirada, a desistência do pedido apresentada pela Exequente/Embargada”, referindo ainda que, caso seja homologada essa desistência do pedido, desiste também do pedido de litigância de má fé deduzido nos embargos, e pedindo ainda a devolução dos montantes entretanto penhorados;
5) Ainda na mesma data, em 1.8.2019, veio a exequente responder, declarando que, “por mero lapso de escrita, escreveu «pedido», quando pretendia efetivamente dizer «instância», diga-se, «desistência da instância»”, requerendo a respetiva retificação;
6) Mais esclarece que no aludido requerimento de 24.7.2019 pretendia desistir da instância unicamente em relação ao executado B, devendo os autos prosseguir quanto ao executado C;
7) Em 6.8.2019, veio o 2º executado opor-se à retificação pretendida, uma vez que aceitou expressamente a desistência do pedido, pedindo se dê por extinto o pedido contra o executado B, e por consequência, contra o fiador C, mantendo-se nos autos o requerimento deste de 1.8.2019, produzindo os seus efeitos;
8) Em 7.8.2019, veio a exequente afirmar que assim que se apercebeu do lapso de escrita imediatamente pediu a sua retificação, ainda antes do Tribunal se ter pronunciado sobre a questão, pelo que o fez em tempo, reiterando que a desistência da instância deve operar apenas em relação ao executado B, devendo os autos prosseguir contra o executado C;
9) Em 7.10.2019, foi proferido o despacho recorrido, nos seguintes termos: “A exequente desistiu do pedido quanto ao executado B, não sendo necessária a aceitação por parte dos restantes co-executados, assim, julgo extinta a instância quanto ao referido executado.
Notifique.”
10) Em 11.10.2019, veio o 2º executado invocar que, dadas as características da fiança, a desistência do pedido contra o obrigado principal implica a desistência do pedido contra o fiador, requerendo ao Tribunal “diligencie no sentido de completar o despacho de V. Exa. de 07.10.2019 de acordo com o segmento normativo aplicável, isto é, retirando as consequências da desistência, ou seja, extinguindo a causa por extinção do direito de crédito que era o seu objeto, no sentido de ser dado por extinto o pedido contra o fiador Emanuel Carmo.”
11) Em 29.10.2019, foi proferido o seguinte despacho: “Atento o já referido no despacho antecedente, e tendo o executado a qualidade de fiador no contrato de mútuo dado à execução, a extinção da instância quanto ao executado/mutuário - entretanto falecido, não extingue a responsabilidade do executado/fiador, o qual, nos termos do n.º 1 do artigo 627.º do Código Civil, garante "a satisfação do direito de crédito, ficando pessoalmente obrigado[s] perante o credor."
Assim, nada mais tenho a decidir, quanto ao alegado, mantendo o já decidido. Notifique.”                                            ***
III- Fundamentos de Direito:

Como é sabido, são as conclusões que delimitam o âmbito do recurso. Por outro lado, não deve o tribunal de recurso conhecer de questões que não tenham sido suscitadas no tribunal recorrido e de que, por isso, este não cuidou nem tinha que cuidar, a não ser que sejam de conhecimento oficioso.
De acordo com as conclusões acima transcritas, são as seguintes as questões a apreciar:
- da nulidade dos despachos de 7.10.2019 e de 29.10.2019;
- da suspensão da instância e da habilitação dos sucessores do 1º executado, B (da nulidade prevista no art. 615, nº 1, al. d), do C.P.C.);
- da desistência requerida e do pedido de retificação do lapso de escrita;
- da extinção da instância contra o 1º executado, B, e seus efeitos com relação ao 2º executado, C (do regime da fiança).
A) Da nulidade dos despachos de 7.10.2019 e de 29.10.2019:
Diz o apelante que o despacho de 7.10.2019 é nulo porque começa por homologar a desistência do pedido da exequente relativamente ao executado/mutuário B, mas determina apenas a extinção da instância relativamente a esse executado, prosseguindo a execução relativamente ao fiador da obrigação principal, sendo também nulo o despacho de 29.10.2019 que o confirma.
O despacho de 7.10.2019 tem o seguinte teor: “A exequente desistiu do pedido quanto ao executado B, não sendo necessária a aceitação por parte dos restantes co-executados, assim, julgo extinta a instância quanto ao referido executado.
Notifique.”
Já no despacho de 29.10.2019, e apreciando-se requerimento do 2º executado C, completou-se: “Atento o já referido no despacho antecedente, e tendo o executado a qualidade de fiador no contrato de mútuo dado à execução, a extinção da instância quanto ao executado/mutuário - entretanto falecido, não extingue a responsabilidade do executado/fiador, o qual, nos termos do n.º 1 do artigo 627.º do Código Civil, garante "a satisfação do direito de crédito, ficando pessoalmente obrigado[s] perante o credor."
Assim, nada mais tenho a decidir, quanto ao alegado, mantendo o já decidido.
Notifique.”
Vejamos.
As nulidades da decisão encontram-se previstas no art. 615 do C.P.C. de 2013 – à semelhança do que sucedia com as antes consagradas no art. 668 do C.P.C. de 1961 – e constituem deficiências da sentença (ou do despacho, nos termos do art. 613, nº 3) que não podem confundir-se com o erro de julgamento.
O erro de julgamento corresponde a uma desconformidade entre a decisão e o direito (substantivo ou adjetivo) aplicável. Haverá erro de julgamento, e não deficiência formal da decisão, se o tribunal decidiu num certo sentido, embora mal à luz do direito.
Assim, haverá nulidade da sentença quando esta “Não contenha a assinatura do juiz” (al. a) do nº 1 do art. 615), “Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão” (al. b) do nº 1 do art. 615), quando “Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível” (al. c) do nº 1 do art. 615), quando “O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento” (al. d) do nº 1 do art. 615), ou quando “O juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido” (al. e) do nº 1 do art. 615).
Ora, não ocorre no caso qualquer das nulidades arguidas, nem o apelante concretamente identifica qualquer delas, limitando-se a referir que as decisões de 7.10.2019 e de 29.10.2019 são nulas, porque determinando a extinção da instância contra o executado/mutuário B, não o determinam também, como competia, contra o executado/fiador, C.
É certo que o apelante alude à omissão de pronúncia “por falta de apreciação de questões que devia analisar e decidir, tal como os efeitos da retirada do pedido” (ver conclusão 104ª do recurso).
Porém, não está nesta alusão em causa a nulidade prevista na al. d) do nº 1 do art. 615 do C.P.C..
Com efeito, ao juiz cabe resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras. Nessa medida, se o mesmo deixar de pronunciar-se sobre questões que, nos moldes indicados, devia apreciar, a sentença é nula.
Tais questões são, por sua vez, os problemas concretos a decidir e não os argumentos utilizados pelas partes na defesa das suas posições. Diz-nos J. Alberto dos Reis a tal propósito([2]): “(…) São, na verdade, coisas diferentes: deixar de conhecer de questão de que devia conhecer-se, e deixar de apreciar qualquer consideração, argumento ou razão produzida pela parte. Quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se, a cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer o seu ponto de vista; o que importa é que o tribunal decida a questão posta; não lhe incumbe apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar a sua pretensão.”
Como vimos, o Tribunal julgou extinta a instância quanto ao 1º executado, em 7.10.2019, e concretizou, no despacho seguinte de 29.10.2019, que tal decisão não abrangia o 2º executado/fiador.
É evidente que o juiz apreciou as questões concretamente colocadas sobre o prosseguimento da execução contra cada um dos executados, pelo que, nessa medida, não deixou de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar.
O que sucede é que o apelante discorda do decidido na parte em que não foi julgada também extinta a instância contra si, mas tal reporta-se a um eventual erro de julgamento e não a qualquer deficiência formal da decisão respetiva.
Em suma, não se verifica a arguida nulidade dos despachos de 7.10.2019 e de 29.10.2019.
B) Da suspensão da instância e da habilitação dos sucessores do 1º executado, B (da nulidade prevista no art. 615, nº 1, al. d), do C.P.C.):
Invoca o apelante, em síntese, que foi cometida a nulidade prevista no art. 615, nº 1, al. d), do C.P.C., porque não houve suspensão da instância nem habilitação dos sucessores do 1º executado, B, falecido em 29.12.2006, contra o que dispõem os arts. 269, nº 1, al. a), e 270 do C.P.C., pelo que não podia concluir-se pela extinção da instância contra o mesmo e pelo prosseguimento da execução contra o 2º executado.
Embora não se entenda exatamente o raciocínio e a conclusão que se extrai do invocado incumprimento dos normativos citados, cumpre desde logo observar que o apelante se reportará a uma nulidade processual, nos termos do art. 195 do C.P.C, e não a qualquer nulidade da decisão, nos termos do art. 615 do C.P.C., pois esta, como acima vimos, respeita a vícios formais da decisão e não à preterição de formalidades essenciais no processo.
Assim, de acordo com o disposto no art. 195, n.º 1, do C.P.C., “(...) a prática de um ato que a lei não admita, bem como a omissão de um ato ou de uma formalidade que a lei prescreva, só produzem nulidade quando a lei o declare ou a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa”.
Feito este esclarecimento, verificamos, todavia, que não ocorre a arguida nulidade processual, nem a mesma poderia ser invocada no presente recurso.
Detalhando.
A nulidade processual a que se refere este art. 195 do C.P.C. pode ser arguida pela parte interessada na prática do ato omitido, nos termos do art. 197, nº 1, do C.P.C..
Quanto ao prazo de arguição dispõe o art. 149, nº 1, do C.P.C., que: “Na falta de disposição especial, é de 10 dias o prazo para as partes requererem qualquer ato ou diligência, arguirem nulidades, deduzirem incidentes ou exercerem qualquer outro poder processual; e também é de 10 dias o prazo para a parte responder ao que for deduzido pela parte contrária.”
Assim, no que toca ao prazo em que deve ser arguida a nulidade, será este, na falta de disposição especial, de 10 dias (art. 149 do C.P.C.) contados (se a parte não estiver presente no momento em que for cometida) “do dia em que, depois de cometida a nulidade, a parte interveio em algum ato praticado no processo ou foi notificada para qualquer termo dele, mas neste último caso só quando deva presumir-se que então tomou conhecimento da nulidade ou quando dela pudesse conhecer, agindo com a devida diligência” (art. 199, nº 1, do C.P.C.).
Por conseguinte, e em princípio, as nulidades devem ser arguidas perante o juiz da causa, de cuja decisão, por seu turno, cabe recurso nos termos gerais.
Ora, que se saiba, o aqui apelante não arguiu no processo, em devido tempo e após a sua intervenção nos autos, qualquer nulidade emergente de não ter havido suspensão da instância nem habilitação dos sucessores do 1º executado, B, falecido ainda antes de instaurada a execução.
Pelo que não poderia no presente recurso invocar uma tal nulidade.
Em todo o caso, sempre se dirá que, em 7.2.2019, o A.E. suspendeu a execução contra o executado B, “nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 270.º do C.P.C., uma vez que o executado faleceu” (ver ponto 1 supra), no âmbito do poder geral de direção da instância executiva que lhe confere o art. 719, nº 1, do C.P.C..
Na verdade, as competências do agente de execução na ação executiva serão aquelas que a lei não confere especialmente ao juiz e à secretaria (cfr. arts. 719 e 723 do C.P.C.), sendo certo que cabe ao agente de execução também proferir decisões que podem ser impugnadas perante o juiz (art. 723, nº 1, al. c), do C.P.C.)([3]).
Constatamos, assim, que foi determinada nos autos, contra o que afirma o apelante, a suspensão da instância quanto ao executado falecido, nos termos do art. 270 do C.P.C.
Por sua vez, se à exequente caberia promover a habilitação dos respetivos sucessores, nos termos dos arts. 276, nº 1, al. a), e 351 do C.P.C., se contra os mesmos pretendesse fazer seguir a execução, não estava a mesma impedida de desistir da instância ou do pedido quanto ao executado falecido, extinguindo-se a instância quanto ao mesmo, e tornando-se, assim, logicamente injustificada a referida habilitação.
Questão diferente é a de saber das consequências da desistência quanto aos demais executados, especialmente no concreto caso dos autos, mas isso é matéria que adiante apreciaremos.
Concluindo, não ocorre a nulidade processual invocada.
C) Da desistência requerida e do pedido de retificação do lapso de escrita; da extinção da instância contra o 1º executado, B, e seus efeitos com relação ao 2º executado, C (do regime da fiança):
Detém-se o apelante, longamente no recurso, sobre a cronologia dos requerimentos que se seguiram ao apresentado pela exequente em 24.7.2019 e sobre a oportunidade da retificação solicitada por esta em 1.8.2019 (cfr. pontos 3 a 9 supra).
Sucede, porém, que, salvo o devido respeito, tal exercício se revela inteiramente desnecessário.
Com efeito, se atentarmos na sequência de factos descrita nos pontos 3 a 9 supra julgados assentes, verificamos que o despacho recorrido parece não ter considerado o pedido de retificação formulado pela exequente em 1.8.2019, concluindo apenas: “A exequente desistiu do pedido quanto ao executado B, não sendo necessária a aceitação por parte dos restantes co-executados, assim, julgo extinta a instância quanto ao referido executado. Notifique.”
Ou seja, na dita decisão de 7.10.2019, não se faz qualquer menção à solicitada retificação de lapso de escrita, e considera-se a desistência do pedido quanto ao executado B, conforme constava do requerimento da exequente de 24.7.2019, e não a desistência da instância que a mesma exequente veio depois invocar em 1.8.2019.
Certo é, porém, que a exequente não reagiu ao aludido despacho nem dele recorreu, pelo que, nessa parte, o mesmo transitou em julgado.
Quer isto significar que se tornou irrelevante saber agora se era válida e/ou tempestiva a retificação solicitada pela exequente em 1.8.2019 e se esta pretendia, afinal, desistir da instância e não do pedido.
O Tribunal a quo não teve em conta qualquer pedido de retificação, para todos os efeitos, e considerou, no despacho de 7.10.2019, que “A exequente desistiu do pedido quanto ao executado B” julgando, com base nesse pressuposto, extinta a instância quanto ao mesmo executado.
Nessa parte a decisão não foi aqui impugnada, insurgindo-se apenas o apelante/2º executado contra o facto da execução prosseguir, apesar disso, contra si.
Assente, por isso, que foi julgada extinta a instância quanto ao 1º executado, B, em consequência da desistência do pedido por parte da exequente, chegamos à última questão suscitada no recurso, respeitante aos efeitos de uma tal decisão relativamente ao 2º executado, C.
No despacho de 29.10.2019, que completou o anterior de 7.10.2019, afirmou-se expressamente que tendo o 2º executado a qualidade de fiador no contrato de mútuo dado à execução, a extinção da instância quanto ao executado/mutuário, entretanto falecido, não extingue a sua responsabilidade, invocando-se o nº 1 do artigo 627 do C.C..
Não podemos, todavia, concordar com tal asserção.
Conforme dispõe o art. 285 do C.P.C., sob a epígrafe “Efeito da desistência”:
“1 - A desistência do pedido extingue o direito que se pretendia fazer valer.
2 - A desistência da instância apenas faz cessar o processo que se instaurara.”
Deste modo, ao considerar-se no despacho recorrido que a exequente desistira do pedido quanto ao 1º executado, julgando-se, em consequência, extinta a instância quanto ao mesmo (art. 277, al. d), do C.P.C.), julgou-se, forçosamente, que ficara extinto o direito que se pretendia fazer valer contra aquele executado (art. 285, nº 1).
“A desistência do pedido tem o mesmo efeito que teria uma sentença desfavorável ao autor, formando a sentença homologatória caso julgado material impeditivo da invocação do mesmo direito noutra ação entre os mesmos sujeitos. (…).”([4])
Dito de outra forma, o nº 1 do art. 285 do C.P.C. constitui “a afirmação da direta atuação do negócio de autocomposição do litígio sobre a situação jurídica (material) que é objeto do pedido, a qual, quer existisse quer não, anteriormente, é objeto dum negócio que opera como um facto extintivo, precludindo a questão da sua existência e conformação anteriores. A subsequente sentença homologatória (art. 290-3) é, por conseguinte, proferida perante uma realidade jurídica que o autor livremente alterou na pendência da instância.(…).”([5])
Ainda que com as especificidades próprias da ação executiva, não pode deixar de aplicar-se tal disciplina ao caso.
Temos, por isso, de concluir que, com a homologada desistência do pedido quanto ao 1º executado, se extinguiu, afinal, a obrigação principal do mutuário no contrato dado em execução, ficando a exequente impedida de reclamar o seu pagamento designadamente junto dos seus sucessores.
Tendo o 2º executado, e aqui apelante, sido demandado enquanto fiador do 1º executado e obrigado principal, necessário se torna então averiguar se, finda aquela obrigação principal, se mantém a obrigação do garante.
Analisando brevemente o regime da fiança, constatamos que, através da mesma, um terceiro, o fiador, assegura, com o seu património([6]), uma obrigação alheia, ficando pessoalmente obrigado perante o credor (art. 627, nº 1, do C.C.).
Esta sua obrigação é acessória da que recai sobre o principal devedor (art. 627, nº 2, do C.C.).
A fiança tem, por outro lado e nos termos do art. 634 do C.C., o conteúdo da obrigação principal, cobrindo “as consequências legais e contratuais da mora ou culpa do devedor”.
Decorre ainda da sua natureza acessória que a vontade de prestar fiança deve ser declarada pela forma exigida para a obrigação principal (art. 628, nº 1, do C.C.), que a fiança será nula se exceder a dívida principal ou for contraída em condições mais onerosas (art. 631), que a sua validade depende da obrigação principal (art. 632) e que a extinção da obrigação principal determina a extinção da fiança (art. 651).
Assim, a obrigação do fiador mantém-se enquanto não se extinguir a obrigação do devedor principal.
Já diferentemente, no caso do aval, o seu fim próprio, a sua função específica, é garantir ou caucionar a obrigação de certo obrigado cambiário, dando origem a uma obrigação materialmente autónoma, pelo que o dador de aval não se limita a responsabilizar-se pela pessoa garantida, antes assumindo a responsabilidade abstrata e objetiva pelo pagamento da obrigação correspondente([7]).
É, por isso, mister concluir que uma vez julgado extinto o direito que se pretendia fazer valer contra o 1º executado/mutuário, e extinta, desse modo, a obrigação principal no contrato dado em execução – como inevitavelmente decorre do despacho de 7.10.2019 – não pode a execução prosseguir contra o 2º executado, C, demandado na qualidade de fiador do mutuário no âmbito do mesmo contrato.
E, assim sendo, deve julgar-se consequentemente extinta a execução contra o mesmo, procedendo o recurso.
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IV- Decisão:
Termos em que e face do exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar procedente a apelação e alterar a decisão de 7.10.2019 e a de 29.10.2019 que a complementou, determinando a extinção da instância também quanto ao executado C.
Custas pela exequente.
Notifique.
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Lisboa, 30.6.2020
Maria da Conceição Saavedra
Cristina Coelho           
Luís Filipe Pires de Sousa
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[1] As conclusões que encerram a alegação apresentam numeração sequencial à antes indicada no texto, tendo a primeira conclusão o número “91”. Para melhor compreensão, reproduzimos aqui a referida numeração.
[2] “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. V, pág. 143.
[3] Cfr. Rui Pinto, “A Ação Executiva”, 2019, AAFDL, págs. 105 e ss..
[4] Cfr. António Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, “Código de Processo Civil Anotado”, Almedina, 2018, Vol. I, pág. 332.
[5] J. Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. I, 4ª ed., págs. 577/578.
[6] Sem prejuízo do disposto no art. 602 do C.C., também aplicável ao fiador, que permite a limitação convencional da responsabilidade a certos bens.
[7] Cfr., Abel Delgado, “Lei Uniforme Sobre Letras e Livranças, Anotada”, 7ª ed., págs. 167 a 176, e Ferrer Correia, “Lições de Direito Comercial”, vol. III, 1975, págs. 205 a 219.