Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
9065/12.1TCLRS.L1-6
Relator: TOMÉ ALMEIDA RAMIÃO
Descritores: ARRENDAMENTO
DIREITO DE PREFERÊNCIA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/26/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: - À luz do novo regime do arrendamento urbano, decorrente do art.º 1091.º, n.º1, alínea a), do C. Civil, na redação que lhe foi dada pela Lei n.º 6/2006 de 27 de fevereiro, o direito de preferência atribuído ao arrendatário coincide e está limitado ao local arrendado, enquanto bem jurídico autónomo, pelo que sendo arrendatário de parte do imóvel não sujeito ao regime de propriedade horizontal não beneficia desse direito relativamente ao locado, por não constituir um bem jurídico autonomizável, nem em relação a todo o imóvel, em caso de venda ou dação em cumprimento.
(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:

                                                          
I. Relatório:

A... e mulher, M..., residentes ..., intentaram contra J... e mulher, M..., residentes …. J..., residente ..., e  J..., residente ..., a presente ação declarativa, sob a forma de processo ordinário, pedindo que lhe seja reconhecido o direito de haverem para si, pelo valor proporcional de € 40.000,00, o 1º andar do prédio sito na Rua dos Combatentes da Grande Guerra nº 6, em Loures, andar do qual o A. é arrendatário desde 1968; ou caso assim se não entenda, por o prédio não estar constituído em propriedade horizontal, pedem que lhes seja reconhecido o direito de haverem para si a totalidade do prédio que os 2º e 3º RR. venderam ao 1º R. marido pelo valor de € 200.000,00.
Procederam ainda os AA. ao depósito do valor para pagamento do preço e despesas, no montante de € 207.917,27.
Citados, contestaram os RR., por impugnação, alegando que os AA. rejeitaram o projeto de venda que os RR. senhorios lhes deram a conhecer para preferência, tendo-lhes aqueles comunicado pretenderem preferir apenas relativamente ao andar de que são arrendatários, sendo certo que o prédio não está constituído em propriedade horizontal e o projeto de venda em causa tinha, naturalmente, por objeto todo o prédio, tendo desse modo os AA. Renunciado ao direito de preferência.
Foi proferido saneador sentença que julgou a ação improcedente e absolveu os RR. dos pedidos.
Inconformados recorreram os Autores, apresentando as alegações e concluindo nos termos seguintes:
1ª – Além dos factos elencados na fundamentação da sentença apelada, os AA. Alegaram (art. 30º da P.I.) que a licença de utilização do prédio dos autos só foi emitida em 18 de Maio de 2012 e alegaram, também que, depois da carta de 27 de Junho de 2011 do R. João Miguel Cosme Saiote, o 2º andar do prédio ficou devoluto (art. 33º da P.I.).
2ª – Estes factos estão admitidos por acordo e, como os demais elencados, têm relevo para a boa decisão da causa, pelo que devem acrescer à matéria de facto assente.
3ª – Não vindo assim entendido, a douta sentença apelada violou o disposto nos arts. 574º, n.º 2 e 607º, n.º 3 do C.P.C.
4ª – Os factos alegados pelos AA. são suficientes para permitirem ao Tribunal, por via de interpretação extensiva do disposto no art. 1417º do C.C., decretar a constituição da propriedade horizontal relativamente ao prédio dos autos e, com tal base, julgar procedente o pedido principal, nos termos do art. 1091º, n.º 1, al. a) e n.º 4 do C.C.
5ª – O andar de um prédio, ainda não submetido ao regime da propriedade horizontal, é “coisa” para os efeitos do disposto no art. 417º, n.º 1 do C.C., como são “coisas outras” os demais andares do mesmo prédio, atento o previsto nos arts. 202º, n.º 1,
6ª – O evoluir histórico do instituto da preferência do locatário habitacional (desde a Lei n.º 63/77 até à atual redação do art. 1091º do C.C.) não pode ser havido como “correção dogmática” desse instituto, visando restringir o exercício da preferência aos casos em que a coisa locada tenha individualidade jurídica própria.
7ª – A ordem jurídica nacional criou os meios que permitem exercer o direito de preferência do locatário habitacional, alargando-o a todo o prédio, no caso de o locado não se achar legalmente autonomizado, como é Jurisprudência quase uniforme e como decorre do art. 1029º do C.P.C.
8ª – Entender o nosso ordenamento jurídico, no plano da lei ordinária, como restringindo ou visando restringir esse direito, quando, nos termos da sentença apelada, o mesmo “não se pode exercer”, seria propósito ou interpretação gravemente ofensiva do nosso ordenamento constitucional, já que o imperativo constitucional, de acesso à habitação própria, que presidiu à criação da preferência na locação habitacional, se mantém em vigor, atualmente, na alínea c) do n.º 2 do art. 65º da C.R.P. (vide o n.º 3 do mesmo normativo constitucional).
 9ª – A factualidade provada permite concluir, se não pela procedência do pedido principal, pela procedência do pedido subsidiário.
10ª – Porque não vem assim entendido, pela sentença apelada, a mesma violou as normais legais supra citadas.
Nestes termos ou noutros melhores que V.Exas. doutamente se dignarão suprir, deve o presente recurso ser provido e, em consequência, ser revogada a decisão apelada e substituída por outra que julgue procedente o pedido principal ou o subsidiário.

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Contra-alegaram os recorridos, defendendo a bondade da decisão e pugnando pela sua manutenção.
O recurso foi admitido como de apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.

Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

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II – Âmbito do Recurso.
Perante o teor das conclusões formuladas pelos recorrentes – as quais (excetuando questões de conhecimento oficioso não obviado por ocorrido trânsito em julgado) definem o objeto e delimitam o âmbito do recurso - arts. 608.º, nº2, 609º, 620º, 635º, nº3, 639.º/1, todos do C. P. Civil em vigor, constata-se que as questões essenciais decidendas são as seguintes:
a)  Ampliação dos factos assentes.
b)  Saber se os Autores têm direito de preferência na aquisição do imóvel.
c)  Se a resposta for afirmativa, saber se ocorreu a caducidade ao exercício desse direito.

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III – Fundamentação fáctico-jurídica:
1. Matéria de facto.
1.1. Na decisão recorrida foram considerados assentes os factos seguintes:
1 – Por acordo verbal de 01/04/1968, J... cedeu ao A., para habitação, o uso e fruição do 1º andar do prédio sito na Rua dos Combatentes da Grande Guerra nº 6, em Loures, inscrito na matriz predial urbana da freguesia de Loures sob o artº 2425 e descrito na 1ª C. R. Predial de Loures sob o nº 1493 da freguesia de Loures.
2 – O dito prédio não se encontra constituído em propriedade horizontal e é composto de rés-do-chão para comércio e 1º, 2º e 3º andares para habitação.
3 – A propriedade relativamente àquele prédio chegou à titularidade dos 2º e 3º RR. por herança e subsequente partilha.
4 – O R. J ... dirigiu ao A. carta datada de 14/06/2011 que se encontra a fls. 20, na qual refere:

5 – O A. respondeu a essa missiva pela sua carta datada 20/06/2011 que se encontra a fls. 21 dos autos e cujo teor se dá por reproduzido, na qual refere:
“-que o meu direito de preferência radica no art.º 1091.º, n.º1, al. a) e não no disposto no art.º 1380.º do C. Civil,
- que, através da carta a que respondo, não me é comunicado o projeto de venda e as cláusulas do respetivo contrato, nomeadamente a identidade do interessado comprador, como exige o disposto no art.º 416.º n.º1 do C. Civil;
- que não me é dito se o prédio tem inquilinos no r/c, no  2.º e 3.º andares e, na afirmativa, quais as rendas por elas pagas”.
6 – A essa carta do A. respondeu o R. J... pelo escrito datado de 27/06/2011, que se encontra a fls. 22 dos autos, dizendo:


7 – De novo respondeu o A. ao R. J... pela carta datada de 04/07/2011 que se encontra a fls. 23, nela dizendo:
Como inquilino do 1.º andar do prédio n.° 6 da Rua dos Combatentes da Grande Guerra em Loures, de que é comproprietário (ou co-herdeiro), venho declarar-lhe quer pretendo exercer o meu direito de preferência na venda que pretende fazer desse prédio, mas só relativamente ao andar que me está arrendado.
É que, só conseguindo eu reunir a quantia de 150.000,00 € e não a de 200.000,00 € que o Sr. J... oferece por todo o prédio, vejo-me forçado a lançar mão da faculdade consignada no art.º 417.°, n.° 1 do Código Civil, ou seja, exercer preferência só relativamente ao 1.º andar, "pelo preço que proporcionalmente lhe foi atribuído".
Sem outro assunto e aguardando notícias subscrevo-me, com cumprimentos.
8 - O R. J... dirigiu então ao A. a carta datada de 11/07/2011 que se encontra a fls. 24 dos autos, onde refere:
Ex. Sr. A...
Em resposta à carta datada de 4 de Julho de 2011 na qual acusa a receção a 6 de Julho de 2011. Venho a informar que o direito de preferência que exerce não se aplica à venda que eu e meu irmão (Proprietários) estamos para fazer.
O Imóvel não se encontra em Propriedade Horizontal.
A venda está a ser efetuada pela sua totalidade por um valor de 200.000,00€ e não pelo valor de 150.000,00€ que o senhor reúne.
O senhor lança mão da faculdade consignada no Artigo: 417.º - Venda da coisa juntamente com outras:
1 - Se o obrigado quiser vender a coisa juntamente com outra ou outras, por um preço global, pode o direito ser exercido em relação àquela pelo preço que proporcionalmente lhe for atribuído, sendo lícito, porém, ao obrigado exigir que a preferência abranja todas as restantes, se estas não forem separáveis sem prejuízo apreciável.
Em resposta e para que fique compreendido. A haver a realização da Propriedade Horizontal para que lhe possa efetuar a venda unicamente do 1.º andar fica a haver um prejuízo em despesas com a mesma e ao ficar com as restantes habitações em frações sem a possibilidade de vender a totalidade do imóvel. O valor de contribuição das frações a se consignarem passa a ser outro e as mesmas passam a ter a obrigatoriedade de terem seguros individuais, bem como para a parte comum.
Por este motivo o direito de exercer a preferência sobre o Imóvel fica sem efeito.
Cumprimentos,
9 – Em 10/07/2012 os 2º e 3º RR. venderam ao 1º R., pelo preço de € 200.000,00, o prédio sito na Rua dos Combatentes da Grande Guerra nº 6, em Loures (acima identificado em 1), encontrando-se a aquisição a seu favor registada pela Ap. 1949 de 11/07/2012.

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Nos termos dos art.ºs 607.º/4 e 663.º/2 do C. P. Civil, acrescenta-se ainda a seguinte factualidade:
10 – O Alvará de Autorização de Utilização do prédio dos autos foi emitida pela Câmara Municipal de Loures em 18 de Maio de 2012 ( fls.83 a 85, e confissão das partes – art.º 30 da p.i e 13.º da contestação).
11 – Os Autores, em 19/11/2012, depositaram a quantia de € 207.917,27, discriminando esse montante nos seguintes termos:
- preço: € 200.000,00;
- IMT: €5.836,88;
- Imposto de Selo: € 1.600,00;
- Emolumentos do registo predial: € 250,00
- Despesas com o contrato e o termo de autenticação, com Iva incluído: € 230,39 ( fls. 39 e 40).

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1.2. Ampliação da matéria de facto.
Pretendem os recorrentes terem alegado no art. 30º da P.I que a licença de utilização do prédio dos autos só foi emitida em 18 de Maio de 2012 e alegaram, também que, depois da carta de 27 de Junho de 2011 do R. J..., o 2º andar do prédio ficou devoluto (art. 33º da P.I.), factos que estão admitidos por acordo e, como os demais elencados, têm relevo para a boa decisão da causa, pelo que devem acrescer à matéria de facto assente.
Ora, quanto ao primeiro facto, já se mostra acrescentado no n.10 dos factos assentes.
E quanto à questão se saber se depois 27 de Junho de 2011 o 2º andar do prédio ficou devoluto (art. 33º da P.I.), para além de não estar assente por confissão, não se vê qual a sua relevância para a boa decisão da causa, razão pela qual improcede a pretendida alteração.

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2. O Direito.
2.1. A questão essencial a decidir consiste em saber se os Autores têm ou não direito a preferir na venda do imóvel em causa.
Os recorrentes pediram, a título principal, o reconhecimento de que têm o direito de preferência na venda, que os 2º e 3º RR. fizeram, ao 1º R., do 1º andar do prédio do prédio situado na Rua dos Combatentes da Grande Guerra, nº. 6, em Loures, descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial de Loures sob a ficha nº. 1493, da freguesia de Loures e, consequentemente, de haverem para si essa “fração” (já que são, há mais de 40 anos, arrendatários habitacionais desse andar), pelo preço de € 40.000,00 (proporcional) e com a percentagem de 20% do valor total do prédio.
E, subsidiariamente, por o prédio não se achar submetido ao regime de propriedade horizontal, nem ser possível a constituição desse regime por decisão judicial, pediram que seja reconhecido o direito de preferência em relação à venda de todo o prédio e, em consequência, o direito de haver para si a totalidade do mesmo (por serem arrendatários habitacionais do 1º andar).
Na sua contestação, os Réus invocaram a caducidade do direito de preferência do imóvel, já que deram ao conhecer ao Autor marido, por cartas de 20 de junho de 2011 e 27 de junho de 2011, dos elementos essenciais para que pudesse exercer o direito de preferência, esclarecendo que a venda teria de ser em relação ao imóvel e não à fração por ele arrendada, por o prédio não estar constituído em propriedade horizontal, tendo o A. marido respondido que apenas pretendia preferir relativamente ao andar que lhe estava arrendado, só conseguindo € 150 000,00 e não os € 200 000,00. 
Ora, vem provado que os recorrentes são arrendatários do 1º andar do prédio sito na Rua dos Combatentes da Grande Guerra nº 6, em Loures, desde 01/04/1968, e que o dito prédio não se encontra constituído em propriedade horizontal, sendo composto por rés-do-chão para comércio, 1º, 2º e 3º andares para habitação.
Na decisão recorrida considerou-se que os Autores  não beneficiam do direito de preferência na compra do imóvel, porque a preferência está limitada ao arrendado, tem a extensão deste, não podendo exceder o local arrendado.
Com efeito, aí se refere::
“(…) Temos assim que a solução legal vai no sentido da restrição do exercício da preferência aos casos em que há autonomização jurídica do local arrendado.
E é também a solução racional. A preferência do arrendatário de um local não pode ser transformada em mecanismo para a aquisição de todo o prédio. A preferência não é um imperativo inderrogável: é um instituto que funciona dentro das possibilidades, numa conjugação ótima dos interesses em presença. E se a razão de ser da concessão do direito de preferência é a existência de um direito de arrendamento, parece justo e proporcionado que o direito de preferência apenas tenha a extensão do direito ao arrendamento, pois radicando o fundamento do direito de preferência no direito ao arrendamento, aquele deve ter a mesma extensão material que este”.
E não podemos deixar de acompanhar a fundamentação exposta na decisão recorrida, como se tentará demonstrar.
O direito de preferência atribuído ao locatário habitacional de imóvel ou de fração autónoma, em caso de compra e venda ou dação em cumprimento da coisa locada foi consagrado legalmente, pela primeira vez, com a Lei n.º63/77, de 25 de agosto, prevendo-se que no caso de haver mais de um locatário habitacional a exercer o direito de preferência mandava-se proceder a licitação entre eles, revertendo o excesso para o alienante ( seu art.ºs 1.º e 2.º).
Com efeito, prescrevia o n.º1 do seu art.º 1.º”: O locatário habitacional de imóvel urbano tem o direito de preferência na compra e venda ou dação em cumprimento do mesmo”. E adiantava o seu n.º2: “ O locatário habitacional de fração autónoma de imóvel urbano goza do direito de preferência na compra e venda ou daçõ em cumprimento da respetiva fração”.
Por sua vez estabelecia o seu art.º 2.º, n.º1: “ Quando mais de um locatário habitacional exercer o direito de preferência, abrir-se-á entre eles licitação, revertendo o excesso para o alienante”.
A justificação para a concessão desse direito ao arrendatário consta da breve exposição de motivos que acompanha esse diploma legal, e que constitui a fonte histórica do artigo 47º, nº 1 e 2 do RAU (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15 de Outubro), aí se referindo: "No domínio dos direitos e deveres sociais, dispõe a Constituição da República que ao Estado compete, além do mais, adotar uma política de acesso à habitação própria (artigo 65º, nº 2 da Constituição). Poderá contribuir para a referida política, ainda que em grau reduzido, conferir aos arrendatários habitacionais direito de preferência na compra e venda ou dação em cumprimento dos imóveis respetivos".
Assim, a resposta à questão de saber se a preferência do arrendatário na compra e venda ou dação em cumprimento da totalidade de imóvel não sujeito ao regime da propriedade horizontal, ocupando o locatário apenas uma parte desse imóvel, como é o caso dos autos, merecia uma resposta positiva, quer pela jurisprudência quer por parte significativa da doutrina, no âmbito do regime previsto no art.º 47.º/1 do RAU (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15 de Outubro), sucessor do regime instituído pelo pela Lei 63/77, o qual manteve, em termos idênticos, essa solução, utilizando uma redação sem alteração relevante.
Com efeito, previa-se no art.º 47.º/1 do RAU: “ O arrendatário de prédio urbano ou de sua fração autónoma tem direito de preferência na compra e venda ou na dação em cumprimento do local arrendado há mais de um ano”. E acrescentava-se no seu n.º2:” Sendo dois ou mais os preferentes, abre-se entre eles licitação, revertendo o excesso para o alienante”.
Face às designações utilizadas pelo legislador para conferir o direito de preferência, “prédio urbano” e “fração autónoma” no citado art.º 47º n.º 1, transmitindo a ideia de que a preferência era limitada ao local arrendado mas apenas nos casos de venda de prédio já constituído em propriedade horizontal, e o facto de o seu n.º2 admitir expressamente o recurso à licitação entre dois ou mais preferentes, sustentou-se o direito de preferência do arrendatário de uma parte do imóvel não constituído em propriedade horizontal relativamente a todo o imóvel em caso de venda ou dação em cumprimento.
Neste sentido se pronunciava Jorge Alberto Aragão Seia, em anotação ao artigo 47º do RAU, Anotado e Comentado, 4ª edição, Almedina, 1998, pp. 261 e 262, afirmando: “ Convém lembrar que, com a preferência do arrendatário, se pretende eliminar um intermediário que, em princípio, faz aumentar os encargos com a habitação…” E acrescentava, “por que razão o arrendatário de uma fração terá direito de fazer sua, tanto por tanto, mas já não poderá preferir na venda do imóvel em que ele se integra e que é vendido a um terceiro que nenhuma relação poderá ter com esse mesmo imóvel? A extensão da preferência a todo o prédio não se fundamentará no interesse do preferente?” ([1]).
Caminho que vinha sendo seguido pela jurisprudência, em particular pelo Supremo Tribunal de Justiça, nomeadamente no seu Acórdão de 12/11/2009, Proc. n.º 1842/04.3TVPRT ( disponível em www.dgsi.pt), onde se pode ler:
 “ Vem sendo entendido que se o arrendamento incide sobre imóvel não constituído em propriedade horizontal, o arrendatário tem direito de preferência na alienação do prédio – e, aqui, obviamente – ou seja, quer de todo o imóvel quer apenas de parte dele.
Assim, se o prédio foi arrendado em frações embora não juridicamente autónomas, a preferência de cada arrendatário não pode incidir sobre a parcela que arrendou por a mesma não poder ser, em si mesma, objeto do negócio de venda ou dação em cumprimento.
Mas pode exercer, em concorrência com os outros arrendatários, também preferentes, aquele direito precedido da via dos artigos 1464.º e 1465.º do Código de Processo Civil (cf., v.g., o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21 de Abril de 2009 – 09 A0455 – também subscrito pelo aqui Relator e 1.º Adjunto) sendo que, como se diz no Acórdão do mesmo Tribunal de 8 de Janeiro de 2009 – 08B2772 – “o direito de preferência, antes apenas virtual, só se radica na esfera jurídica do seu titular (preferente) quando se concretiza a alienação da coisa que constitui objeto do dito direito de preferência, e não antes, nomeadamente naquela fase preambular em que meramente se oferece a preferência e a mesma é, ou não, aceite.” (cf., no mesmo sentido, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15 de Janeiro de 2004 – 03B3832)”.
Assim, ao abrigo do disposto no art.º 47.º/1 do RAU, e tendo em conta a origem do preceito legal, em caso de não constituição de propriedade horizontal, defendia-se que qualquer dos arrendatários tinha de exercer o direito de preferência em relação a todo o imóvel e não apenas à parte arrendada ( vide, entre outros, neste sentido, Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 6/4/1992, Bol, 416.º-709, e de 3/11/1992,  Col. Jur. XVII, T-5, pág. 205; Acórdãos  do Supremo Tribunal de Justiça de 26/9/1991, Bol. 409.º-779, de 28/01/1997, Col. Jur. STJ, T-V, Ano I, pág. 77, e de 13/2/1997,  Col. Jur. STJ, T-V, Ano I, pág. 104; de 13/01/2000, Revista n.º 991/99-2.ª, Sum. Ac., www.stj.pt, de 29/04/2003, Revista n.º 706/2003-6.ª, Sum. Ac., www.stj.pt, de 31/5/2207, Proc. n.º 07B1554 e de 24/6/2008, Proc. n.º 08A1469, e de 25/03/2010, proc. n.º 5541/03.5TBVFR.P1.S1, in www.dgsi.pt) ([2]) ([3]).
Todavia, a questão vem colocar-se de novo face à atual redação do art.º 1091.º, alínea a) do C. Civil, na sequência das alterações introduzidas ao arrendamento pela Lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro, (regime aplicável à preferência à data da venda do imóvel – 10/7/2012) ([4]), que parece não permitir continuar a defender-se semelhante solução.
Com efeito, reza esta disposição legal: “O arrendatário tem direito de preferência na compra e venda ou dação em cumprimento do local arrendado há mais de três anos”.
E adianta o seu n.º4 ser aplicável, com as necessárias adaptações, o disposto nos artigos 416º a 418º e 1410º.
Mas este preceito legal não contém regra idêntica à prevista  no n.º2 do art.º 47.º do RAU.
Ora, eliminada que foi a referência a “prédio urbano” e “fração autónoma”, tal como era plasmada no art.º 47º n.º 1 do RAU, bem como à ausência de disposição idêntica à do seu n.º2, que previa a licitação entre arrendatários e não transposta para o art.º 1091.º do C. Civil, urge concluir que o legislador tomou posição sobre a anterior querela doutrinária e jurisprudencial, limitando e fazendo coincidir o conteúdo do direito de preferência ao local arrendado, não a todo o prédio em caso de arrendamento de parte do prédio não constituído em propriedade horizontal.
É certo que foi mantida a referência a “local arrendado” enquanto objeto da preferência. Mas a finalidade desta manutenção e inclusão no art.º 1091.º do C. Civil aponta apenas no sentido de excluir quaisquer dúvidas quanto à extensão do objeto do direito de preferência do arrendatário, designadamente nos casos em que o arrendado habitado pelo inquilino é uma fração autónoma de prédio constituído em propriedade horizontal.
Na realidade, flui da alínea a), do n.º1, do C. Civil, que a obrigação de preferência do senhorio só existe em caso de venda ou dação em cumprimento do local arrendado, pelo que o correspondente direito de preferência também só pode ser exercido em relação ao local arrendado. E, não estando o prédio constituído em propriedade horizontal, o local arrendado não goza de autonomia jurídica, não constitui um bem jurídico autónomo. Logo, o senhorio, no caso de venda ou dação em cumprimento do prédio, tem por objeto todo o prédio, único bem jurídico que pode ser individualizado, não uma parte desse imóvel.
Por isso, nessa circunstância, não se pode falar em direito de preferência do arrendatário, ou da atribuição de um direito de execução difícil, mas de um não direito.
A esta alteração legislativa ao novo regime do arrendamento urbano e seu significado se refere Abílio Neto, in “Código Civil Anotado”, 16.ª Edição, 2009, pág. 970, em anotação ao art.º 1901.º, referindo:
Confrontando este regime com o pretérito ( art.ºs 47.º a 49.º do RAU), há duas alterações merecedoras de registo: primeiro, o prazo mínimo de duração do contrato para conferir o direito de preferência passou de 1 para 3 anos,...; segundo, deixou de se fazer menção ao “arrendatário de prédio urbano ou de sua fração autónoma” (art.º 47.º/1 do RAU) e de prevenir a hipótese de que, “sendo dois ou mais os preferentes, abre-se entre eles licitação, revertendo o excesso para o alienante” (art.º 47.º/2 do RAU), o que pode ser havido como significando que só o arrendatário de fração autónoma goza do direito de preferência, e não o arrendatário de um  fogo em prédio não submetido ao regime de propriedade horizontal, o qual deixa de exercer a preferência em relação à totalidade do prédio, só então podendo haver “ dois ou mais preferentes”, ou seja, nesta matéria ter-se-á optado por uma solução intermédia entre a consagrada no RAU e a defendida por alguns, que rejeitavam toda a preferência do arrendatário”.
Interpretação idêntica é defendida por Laurinda Gemas, Albertina Pedroso e João Caldeira Jorge, in “Arrendamento Urbano”, Novo Regime Anotado, 3.ª Edição, Quid Juris, 2009, pág. 435, onde referem: “Com efeito, a preferência consagrada no art.º 109.º  do C. C., por ser legal, reveste-se de natureza excecional e injuntiva, obrigando o intérprete a confiná-la imperativamente aos casos expressamente contemplados na lei. Acresce que não se pode perder de vista a (tendencial) coincidência entre o objeto do direito de preferência com o do direito que a justifica”. E justificam este princípio de coincidência no novo texto legal, acrescentando que perante estes elementos interpretativos “parece, pois, apontar no sentido de que o arrendatário de locado que apenas ocupa parte do imóvel não constituído em propriedade horizontal não tem preferência na venda ou dação em cumprimento de todo o prédio, já que tal direito não cabe na letra da alínea a) do n.º1 do art.º 1091.º do CC, a qual se refere unicamente ao “local arrendado”, nem satisfaz o apontado princípio da coincidência”.
Mais referem os Autores que “a desconsideração de tal princípio levaria, no limite, à concessão do direito de preferência do locatário que arrendou o telhado para colocação de um cartaz publicitário ou uma antena retransmissora (!), dado que tal arrendamento encontra-se agora sujeito à disciplina do arrendamento urbano” (Idem).
Posição que também é partilhada por José Pedro Carneiro Cadete, in “ Da Preferência do Arrendatário Habitacional”, onde conclui: “Atualmente, portanto, a questão da preferência de um arrendatário de fração sobre a totalidade do prédio não constituído em propriedade horizontal já não se coloca, tendo vingado a tese de Oliveira Ascensão: se o local arrendado não for um bem juridicamente autonomizável, não há lugar ao exercício da preferência” ([5]).
O Autor justifica esta opção legislativa do seguinte modo: “Embora seja questionável, percebe-se a decisão do legislador. A extensão do objeto da preferência a todo o prédio indiviso levantava vários problemas, nomeadamente nos casos em que existia mais do que um arrendatário de uma parte daquele. Por outro lado, extrapolava o objetivo da preferência no arrendamento, na medida em que não se limitava a conceder ao arrendatário a propriedade da sua habitação, mas sim de todo um prédio, o que não se revela no seu interesse” (Idem).
Resumindo, à luz do novo regime jurídico do arrendamento urbano tal como decorre do art.º 1091.º do C. Civil (na redação que lhe foi dada pela Lei n.º 6/2006 de 27 de fevereiro), o direito de preferência atribuído ao arrendatário coincide e está limitado ao local arrendado, pelo que sendo arrendatário de parte do imóvel não sujeito ao regime de propriedade horizontal não pode beneficiar desse direito relativamente ao locado, por não constituir um bem jurídico autonomizável, nem a todo o imóvel, em caso de venda ou dação em cumprimento ([6]).
Considerando a história e fundamento desse direito, o novo enunciado normativo e o seu espírito, e bem assim que se deve presumir que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados ( art.º 9.º do C. Civil), não se pode sustentar outra solução, sob pena de se considerar totalmente irrelevante os termos e sentido da alteração legislativa.
E não se invoque como fundamento para preferir na compra do imóvel, como fazem os recorrentes na 5.ª conclusão, o disposto no art.º 417.º do C. Civil, que prevê os casos em que o obrigado à preferência pretenda vender a coisa juntamente com outra ou outras, por um preço global, em que o direito pode ser exercido em relação àquela pelo preço que proporcionalmente lhe for atribuído, já que esta disposição legal, como refere, e bem, Américo Joaquim Marcelino ([7]) apenas é aplicável quando sejam vendidos vários bens juridicamente autonomizados por um preço global, não se reportando a casos em que o objeto a preferir é parte de um bem jurídico autónomo que o engloba ([8]).
Assim, a resposta à questão colocada será negativa, pelo que prejudicada fica o conhecimento da eventual renúncia ou caducidade do direito a preferir.
 Em consequência, quer o pedido principal, quer o pedido subsidiário, teriam de improceder, razão pela qual improcede igualmente a apelação, não merecendo censura a decisão recorrida, a qual deve ser mantida.
Vencido no recurso, suportarão os apelantes as custas respetivas – art.º 527.º/1 e 2 do C. P. Civil.

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IV. Sumariando, nos termos do art.º 663.º/7 do C. P. C.
À luz do novo regime do arrendamento urbano, decorrente do art.º 1091.º, n.º1, alínea a), do C. Civil, na redação que lhe foi dada pela Lei n.º 6/2006 de 27 de fevereiro, o direito de preferência atribuído ao arrendatário coincide e está limitado ao local arrendado, enquanto bem jurídico autónomo, pelo que sendo arrendatário de parte do imóvel não sujeito ao regime de propriedade horizontal não beneficia desse direito relativamente ao locado, por não constituir um bem jurídico autonomizável, nem em relação a todo o imóvel, em caso de venda ou dação em cumprimento.

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V. Decisão:

Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente a apelação, mantendo a decisão recorrida.
Custas da apelação pelos apelantes.

Lisboa, 2015/03/26

Tomé Almeida Ramião (Relator)                                              
Vítor Amaral                                               
Regina Almeida


 ([1]) Também Luís Miguel Monteiro [Direitos e Obrigações Legais de Preferência no Novo Regime Jurídico do Arrendamento Urbano – RAU], Lisboa, 1992, pág. 17, a propósito desta questão, refere:
 “O novo regime jurídico refere-se ao "local arrendado" (RAU, art.47.º).
  A expressão legal parece harmonizar-se de modo mais correto com um princípio subjacente ao direito de preferência: o de que este instituto "incide sobre o objeto do direito preexistente que o justifica", resultando na rigorosa articulação entre "local arrendado" e direito de preferência.
  A alteração da linguagem legal, confirmando o direito de preempção do arrendatário de fração autónoma na alienação desta, determinaria assim que a preferência na venda de todo o imóvel só existiria quando todo ele estivesse arrendado ao preferente.
  Não se perfilha esta interpretação.
 Por um lado, o argumento literal referido não é determinante, pois a lei continua a falar em "prédio urbano" e "fração autónoma" (cfr. RAU, art. 47.º), não se vendo, assim, que a alteração linguística seja tão significativa.
Por outro lado, a lei, ao criar o mecanismo da licitação, pressupõe que o exercício do direito de preferência abrange todo o prédio, apesar de diversos locatários o ocuparem.
   Se cada um dos arrendatários fosse admitido a preferir só quanto à parte que arrenda (ou, perante a impossibilidade de autonomização jurídica desta, se o exercício deste direito fosse impossível("), nó haveria que escolher um preferente através de licitação.
  Seguindo idêntica linha de raciocínio, se existir apenas um arrendatário, ocupando parte do prédio, e todo este for alienado, o seu direito de preferência abrangerá igualmente todo o imóvel.
   Em suma, o quadro de soluções propiciado pelo anterior regime jurídico parece, neste âmbito, transponível para o novo regime”.
([2]) Na Doutrina, perfilhando idêntico entendimento, Pinto Furtado, in “ Manual de Arrendamento Urbano, 3.ª Edição, Almedina, pág. 639 e 640, e Vol. II, 4.ª Edição, pág. 790; Januário Gomes, in “Arrendamentos Comerciais, 2.ª Edição, Almedina, pág. 204, Pedro Romano Martinez, in “Direito das Obrigações, Parte Especial, Contratos”, 2.ª Edição, Almedina, pág. 266.
Posição contrária defendia Oliveira Ascensão, “Subarrendamento e Direitos de Preferência no Novo Regime do Arrendamento Urbano”, in Revista da Ordem dos Advogados, n.º 51, Lisboa, 1991, pág. 67 e segs., in  http://www.oa.pt/upl/%7B91246cf0-888c-4a2f-b64a-38b0f5835d69%7D.pdf., considerando que com a inclusão, no RAU, da expressão “local arrendado”, o legislador tinha pretendido a coincidência entre o objeto da preferência com o da habitação, pelo que não sendo esta juridicamente autonomizável, o direito de preferência não se poderia exercer, ou seja, seria impossível o seu exercício. E aí conclui:
  “O direito de preferência limita-se ao local arrendado. Se é alienada uma coisa global - um prédio - em que o local arrendado tenha autonomia jurídica, o direito de preferência não se pode exercer.
   Em suma: perante a nova lei, ou o direito de preferência se pode exercer apenas em relação ao local arrendado, o que supõe a possibilidade de autonomização jurídica deste, ou o seu exercício é impossível”.
 [3]) Sobre esta concreta questão e sua eventual inconstitucionalidade se pronunciou negativamente o Tribunal Constitucional, no Acórdão nº 225/00, de 5/4/2000, Proc. nº 43/98, dizendo:
  “ Ora, se não estiver constituída a propriedade horizontal, o direito de preferência, a existir, só pode exercer-se sobre a totalidade do prédio”.
  ([4]) A lei aplicável à regulamentação do direito de preferência do arrendatário é a que vigorava aquando da alienação do locado e onde se prevê o tipo de negócio, a duração do contrato de arrendamento e a oportuna aceitação pelo presente das condições que o senhorio acordaria com o terceiro – Ac. do S. T. T., de 12-11-2009, Revista n.º 1842/04.3TVPRT.S1 - 1.ª Secção ( Sebastião Póvoas).
([5]) Tese de Mestrado em Direito – Ciências Jurídico-Privatísticas, Universidade do Porto, Faculdade de Direito, em 29 de Julho de 2011, pág. 12, acessível em http://repositorio-aberto.up.pt/bitstream/10216/63905/2/Relatorio%20de%20Mestrado.pdf.
([6]) Pinto Furtado, in “ Manual do Arrendamento Urbano”, Vol. II, 5.ª Edição, 2011, Almedina, pág. 817, continua a sustentar, apesar das referidas alterações, que o art.º 1091.º do C. Civil permite manter o anterior regime, invocando os antecedentes históricos desse direito, ou seja, confere ao arrendatário de parte do prédio não constituído em propriedade horizontal a preferência sobre a totalidade do prédio em caso de venda ou dação em cumprimento. Porém, e mercê da ausência do preceito semelhante ao do n.º2 do art.º 47.º do RAU, respeitante à licitação de dois ou mais preferentes, reconhece as dificuldades e aponta várias soluções.
([7]) In “ Da Preferência “ [Estudos, Notas da Doutrina e Jurisprudência e Legislação Mais Comum], 3ª Edição, Coimbra Editora, 2007, pág. 133.
  ([8])  No mesmo sentido, Pires de Lima e Antunes Varela, CC Anotado, Vol. I, 4.ª Edição, pág. 393, afirmando 2(…), é de supor que ela possa ser alienada separadamente e que, portanto, possa ser fixado, para ela, um preço proporcional”.