Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1889/20.2T8OER-A.L1-7
Relator: ISABEL SALGADO
Descritores: INVENTÁRIO JUDICIAL
CABEÇA DE CASAL
PRESTAÇÃO DE CONTAS
MEIO PROCESSUAL ADEQUADO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/13/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: 1. - Na pendência de inventário judicial o meio adequado para a prestação de contas pelo cabeça-de-casal é o previsto no artigo 947º do CPC, constituindo a conexão  garantia de agilidade e economia de actos na resolução da causa.
2. Não se descortina motivo, para que em tal situação, o interessado deva instaurar acção autónoma com vista a reclamar a prestação de contas ao cabeça de casal, ainda que por referência a um espaço temporal anterior ao inventário e à sua nomeação pelo menos, na circunstância em que a administração de facto coincide com o cabeça de casal investido, e que na maioria das vezes, diz respeito aos mesmos bens e compreende receitas ou despesas que se repetem anualmente.
3. De outro passo, não parece também de acolher o argumento da complexidade da matéria da prestação das contas atenta a natureza e fins próprios do processo de inventário, reservando o tribunal a possibilidade de remeter os interessados para os meios comuns.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes da 7ªSecção do Tribunal da Relação de Lisboa

I.RELATÓRIO
1.Da Instância subjacente
No decurso do processo de inventário judicial acima identificado, que corre por óbito de M….., veio a interessada C… requerer a prestação de contas pelo cabeça de casal e relativa à administração dos bens da herança.
A pretensão não suscitou pronúncia por parte dos demais interessados.
O tribunal a quo indeferiu a pretensão nos termos e fundamentos do despacho que se transcreve: «A interessada C… veio apresentar requerimento de prestação de contas da herança. A prestação de contas da herança não é um incidente do processo de inventário, é uma acção declarativa especial, onde o interessado alega e prova a administração de bens alheios, e solicita a devolução à herança do saldo apurado, relativamente ao período da sua administração. A prestação de contas não é assim, uma questão susceptível de ser conhecida incidentalmente no âmbito do presente inventário, não cumprindo o presente requerimento, as formalidades de uma petição inicial, que permitam o seu aproveitamento para acção própria. Pelo supra exposto, indefiro o requerido por inadmissibilidade legal. Custas pela interessada.»
2. Do Recurso       
Inconformada, a requerente interpôs recurso da decisão, propugnando pela revogação daquela decisão e a sua substituição por outra que decida favoravelmente a admissão do incidente de prestação de contas pelo cabeça de casal no âmbito do processo de inventário em curso.
As suas alegações finalizam com as conclusões seguintes:
«A. O Tribunal a quo não estriba a sua decisão em qualquer disposição legal, limitando-se a determinar que a prestação de contas teria de ocorrer numa ação autónoma, ficando a ora recorrente sem saber qual o racional dessa decisão e, inclusive, impedida de a poder diretamente rebater.
B. O pedido de prestação de contas por parte do cabeça de casal apresentado pela ora recorrente nos presentes autos foi devidamente fundamentado no disposto no artigo 947º do Código de Processo Civil (CPC).
C. De acordo com o mesmo artº 947.º do CPC prestação de contas devidas pelo cabeça de casal são prestadas por dependência do processo em que a nomeação haja sido feita.
D. A nomeação do cabeça de casal foi feita em 08/11/2019 nos presentes autos -auto de nomeação de cabeça de casal junta aos autos com a referência 125512057.
E. O legislador excepcionou as contas a prestar pelo cabeça de casal da necessidade da interposição de uma nova ação, determinando expressamente que essas contas devem ser prestadas por dependência, in casu, do processo de inventário e não num processo autónomo.
F. Aliás, trata-se de uma disposição que mais não faz que traduzir os princípios da economia e da adequação processual, orientadores do processo civil, secundada pela jurisprudência.
G. Deste modo, não assiste qualquer razão ao douto Tribunal a quo quando decidiu que a prestação de contas não é questão susceptível de ser conhecida incidentalmente no âmbito do presente inventário, ignorando, em absoluto o expressamente disposto no supracitado artigo 947º do CPC. Termos em que deve o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência, revogado o douto despacho recorrido, ordenando-se a prossecução dos autos de prestação de contas por dependência do processo de inventário, assim se fazendo Justiça.» 
*
Não foram produzidas contra-alegações.
O recurso foi regularmente admitido como apelação autónoma e efeito devolutivo.  
Corridos os Vistos, cumpre decidir.
3.O Objecto do recurso
Consabido que a actuação do tribunal de recurso está delimitada pelas conclusões do recorrente, haverá que decidir se, é de admitir a prestação de contas do cabeça de casal no âmbito do inventário judicial em curso.  
II.FUNDAMENTAÇÃO
A. Os Factos
A matéria factual a atender consta do relatório, estando  ainda adquirido nos autos que em 8.11.2019  foi nomeado cabeça de casal, o interessado J…, no inventário iniciado no cartório notarial e, entretanto remetido ao tribunal judicial para subsequente tramitação, ao abrigo do nº 3 do artigo 12º da Lei 117/2019 de 13 de Setembro;[1] mais resulta  que o cabeça de casal apresentou  em juízo a relação de bens em 5.08.2020.     
 B. O mérito do recurso
 Nos autos de inventário judicial, a interessada Cristina e ora apelante, requereu por via da acção incidental prevista no artigo 947º CPC, que o cabeça de casal preste contas, alegando que existem desconformidades nos elementos remetidos no que respeita às  quantias e documentos suporte dos rendimentos da herança.[2]
Concretamente, alegou  : “(…)3. O cabeça de casal tem-se recusado a prestar contas de forma clara, transparente e completa, tendo apenas enviado em Janeiro do corrente ano os ficheiros excel alegadamente organizados por movimentos das contas bancárias da inventariada (Verbas 1 e 2 da Relação de Bens) documentos que ora se juntam (Docs 1 a 4).4. Tais listagens, da autoria do cabeça de casal, desacompanhadas dos documentos de suporte relevantes, não permitem apurar a veracidade desses registos. 5. No entanto, é desde já possível constatar que há movimentos a débito realizados na conta da inventariada que respeitam a despesas exclusivas do cabeça de casal (….) Face ao acima exposto resulta evidente que deve o cabeça de casal ser notificado para, com urgência, prestar contas da sua administração da herança desde a data do óbito da 2ª inventariada (26/06/2018) até à presente data, (…).”
O tribunal a quo não admitiu a pretensão com o fundamento que tal deverá ser objecto de acção própria e autónoma de prestação de contas. 
Apreciando.
Constitui entendimento pacífico, que se iniciando as funções do cabeça-de-casal com a abertura da herança, constitui sua obrigação prestar contas anualmente, conforme resulta dos artigos 2079º e 2093.º do Código Civil.
Nessa medida, o cabeça-de-casal de facto, a pessoa que se encontra realmente na posse e administração dos bens da herança por assentimento dos herdeiros e exerce, em relação a esses bens (cfr. arts. 2080º a 2082 e 2084º do Cód. Civil), tem a obrigação de prestar contas.
Na situação ajuizada, não oferece dúvida que, na pendência do processo de inventário judicial, a interessada e ora apelante, veio requerer a prestação de contas da administração de bens da herança realizada pelo cabeça de casal nomeado, e que anteriormente exercia  os poderes de cabeça de casal de facto.    
A questão em equação consiste em aferir se, correndo termos processo de inventário judicial para a partilha de bens da herança, já investido o cabeça de casal, a requerida prestação de contas deve, ou não, realizar-se pela via incidental, em face do disposto no artigo 947º do CPC, ou, se exige a instauração de acção autónoma de prestação de contas.
Pese embora o despacho recorrido não alargue a respectiva fundamentação, trata-se, na verdade, de matéria há muito debatida pela doutrina e jurisprudência, subsistindo no actual quadro normativo a base da argumentação. Note-se que, as alterações legislativas  mantiveram idêntica estrutura no novo Código de Processo Civil, prevendo no artigo 947º, a solução já antes consagrada no anterior artigo 1019º, inclusive na redacção anterior ao Dec.Lei n.º 180/96, de 25 de Setembro.
 Acerca do tema identificam-se duas posições principais, cuja divergência relevante se prende com a fixação do período temporal das contas a prestar pelo cabeça de casal.
Assim, para uns, o processo incidental especialíssimo no decurso do inventário a previsto no actual artigo 947º do CPC, correspondente ao anterior artigo 1019 - restringe-se à prestação das contas da administração da herança no período temporal decorrido após a investidura judicial no cargo de cabeça-de casal; quanto ao hiato temporal anterior, deverá seguir através de acção autónoma.
Para outra corrente, a aplicação do processo incidental e dependência do processo de inventário, não compreende qualquer baliza temporal, pelo que não se afigura curial que a prestação de contas pelo cabeça de casal nomeado no inventário, siga tramitação autónoma, ainda que respeito a período anterior da administração da herança.          
Precursores da primeira corrente, figuram José António Lopes Cardoso e  Vaz Serra,[3] com expressão em diversos acórdãos dos tribunais de segunda instância.[4]
Certo é que, já no domínio do anterior CPC, e expressamente na vigência do actual quadro processual, afigura-se que a interpretação prevalecente vai no sentido do emprego invariável do processo por dependência do inventário judicial, conforme à previsão do artigo 947º, cuja conexão constitui garantia de agilidade e economia de actos na resolução da causa.
Razões que, a nosso ver, no quadro processual descrito, levam à consideração de que o meio adequado para a prestação de contas pelo cabeça-de-casal é o previsto no artigo 947º do CPC.
Neste sentido , referem  Carla Câmara, C.Castelo Branco, João Correia e Sérgio Castanheira,  « (…)o meio adequado para a prestação de contas pelo cabeça-de-casal é o aqui previsto, deixando de se justificar acção especialmente intentada para tal efeito em processo autónomo”, defendendo o recurso a tal acção apenas para as situações em que o cabeça-de-casal, tendo exercido e cesse funções antes da instauração do processo de inventário.[5]
Com efeito, salvo melhor opinião, não se descortina motivo, para que, na pendência do inventário judicial, o interessado deva instaurar acção autónoma com vista a reclamar a prestação de contas ao cabeça de casal, ainda que por referência a um espaço temporal anterior ao inventário e à nomeação do cabeça de casal , pelo menos, na situação, como a dos autos, em que a administração de facto coincide com o cabeça de casal investido , e que na maioria das vezes, diz respeito aos mesmos bens e compreende receitas ou despesas que se repetem anualmente.
De outro passo, também não parece colher o argumento da complexidade da matéria da prestação das contas, dada a natureza e fim próprios do processo de inventário, reservando o tribunal a possibilidade, de em tal situação, remeter os interessados para os meios comuns.           
Voltando à situação em juízo.
A apelante usou do procedimento processual adequado - artigo 947º do CPC- com vista a exigir do cabeça de casal empossado a prestação de contas da administração dos bens da herança da inventariada.  Donde, deverá o tribunal a quo, ordenar a respetiva autuação por apenso e, caso entenda conveniente, exercer os poderes de gestão processual (artigo 6º, nº1, do CPC) quanto ao conteúdo do articulado.   
               
III. DECISÃO
Pelo exposto, acordam os Juízes em julgar procedente a apelação, e em consequência:
a) Revogar o despacho recorrido;
b) Devendo o requerimento da apelante ser admitido e autuado por apenso a fim de prosseguir como prestação de contas e a tramitação prevista nos artigos 941º a 947º do CPC., se outra causa a isso não obstar.
Não são devidas custas - artigo 527º, nºs 1 e 2, do C PC.

Lisboa, 13.09.2022
ISABEL SALGADO
CONEIÇÃO SAAVEDRA
CRISTINA COELHO
_______________________________________________________
[1] Por despacho notarial de 22.05.2020.
[2] Requerimento de 20.09.2020.
[3] In “Partilhas Judiciais”, vol. III, págs. 56/ e in “Revista de Legislação e Jurisprudência”, ano 85, pág. 294. 
[4] Cfr. entre outros o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 14-01-2010, proc. nº 2645/07.9TBTVD.L1-8, in www.dgsi.pt, e os Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 09-06-2009 Revista n.º 225-A/2000.S1 - 07-01-2010, Revista n.º 642/06.0YXLSB-A. S1 -   in O Processo Judicial de Inventário na jurisprudência das Secções Cíveis do Supremo Tribunal de Justiça (Sumários de Acórdãos de 2007 a Setembro de 2012).
[5] In “Regime Jurídico do Processo de Inventário Anotado”,  2017-3ª ed., págs. 200/01; na jurisprudência inter alia o Acórdão do TRL de 2.03.2017 , no proc. nº 5309/07.0TCLRS-A.L1-8 “-O artigo 947º do CPC limita-se a estabelecer uma regra especial de competência por conexão, dispondo que as contas a prestar por representantes legais de incapazes, pelo cabeça-de-casal e por administrador ou depositário judicialmente nomeados são prestadas por dependência do processo em que a nomeação haja sido feita.”; e, o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 08-04-2019, no proc. nº 1971/18.6T8LRA.C1 , disponíveis  in www.dgsi.pt.