Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
424/22.2PBCSC-A.L2-9
Relator: PAULA PENHA
Descritores: OBRIGAÇÃO DE PERMANÊNCIA NA HABITAÇÃO COM VIGILÂNCIA ELECTRÓNICA
AUTORIZAÇÃO DE AUSÊNCIA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/20/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I – A medida de coação de obrigação de permanência na habitação com vigilância electrónica (abreviadamente designada como de OPHVE) é a segunda mais gravosa no leque das medidas de coacção taxativamente previstas pela nossa legislação penal e cuja constitucionalidade deriva do facto de ser um “minus” relativamente à prisão preventiva (a mais restritiva do direito fundamental à liberdade ambulatória e consentida, expressamente, nos art.ºs 27º, nº 3, al. b), e 28º da Constituição da República Portuguesa).
II – Aliás, o legislador pretendeu realçar o cariz privativo da liberdade pessoal e deambulatória inerente à OPHVE a tal ponto que consignou, expressamente, que o período de permanência na habitação é (tal como o período de prisão preventiva) descontado por inteiro no cumprimento da pena de prisão que porventura venha a ser aplicada ao arguido (art.º 80º, nº 1, do CP).
III – Pois, a OPHVE (também vulgarmente designada “prisão domiciliar”) pressupõe que o arguido fique obrigado a permanecer na habitação (que pode ser a sua residência ou a residência de outrem ou uma instituição adequada a prestar-lhe apoio social ou de saúde) e só mediante, prévia, autorização judicial é que o arguido poderá ausentar-se da mesma (do respectivo espaço físico a que está confinado).
Esta possibilidade de autorização para sair/ausentar-se da habitação constitui uma excepção, aquando da sua execução e, como tal, só justificada por razões/motivos (também eles) excepcionais, ponderosos e pontuais – tais como, para consultas ou tratamentos médicos (que não justifiquem a obrigação de permanência do arguido numa instituição de saúde), a visita a cônjuge, ascendente ou descendente em risco de morrer ou a comparência em velório ou funeral de um daqueles.
IV – Por isso, uma regular ausência do arguido quer para estudar fora de casa e/ou quer para desempenhar uma actividade profissional fora de casa não se enquadram naquelas justificações pontuais, de curta duração, excepcionais, anormais, ponderosas e de muita importância ou gravidade.
A natureza e a forma de execução da OPHVE não se compaginam com as pretendidas saídas ou ausências do arguido que enfraqueceriam o carácter cautelar desta medida de coacção, esvaziariam grande parte do seu conteúdo e finalidades, desvirtuando parte da sua essência detentiva cautelar.
V - Por último e não menos importante, as medidas de coacção estão sujeitas à condição/cláusula/princípio “rebus sic standibus”, isto é, a sua alteração apenas se justifica quando ocorrer uma atenuação das exigências cautelares que tiverem determinado a sua aplicação. Caso contrário, enquanto as coisas estiverem ou permanecerem como estão, não haverá alteração da decisão cautelar.
Não tendo o arguido/requerente cumprido o ónus de alegar e provar que sequer ocorrera uma atenuação das exigências cautelares do caso em apreço e em que medida tal sucedera, nomeadamente através de elementos factuais novos.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 9ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa

RELATÓRIO
No âmbito do processo nº 424/22.2PBCSC que corre termos no Juízo Central Criminal de Cascais - J2, o arguido, A, viera peticionar (em 23/12/2022) a alteração da medida de coação de obrigação de permanência na habitação com vigilância eletrónica por outra menos gravosa, designadamente de obrigação de apresentações periódicas ou, subsidiariamente, que lhe fosse concedida a autorização para se ausentar da habitação estritamente com destino ao local de trabalho que lhe vier a ser designado e às consultas médicas que careça realizar (nos temos constantes das actuais fls. 63-67 aqui dadas por reproduzidas).
Foi proferido despacho (em 5/1/2023 nos termos constante das actuais fls. 70-71 verso):
« O arguido A, sujeito à medida de coacção de obrigação de permanência na habitação com vigilância electrónica, veio requerer a alteração da medida e coação por outra menos gravosa, para poder reiniciar a sua actividade laboral, ou em alternativa, que tal lhe seja autorizado a ausentar-se da sua habitação, estritamente com destino ao local de trabalho que lhe venha a ser designado e às consultas médicas que careça de realizar.
O Ministério Público, nos termos e com os fundamentos que antecedem, opôs-se à pretensão do arguido.
Cumpre decidir.
O arguido foi sujeito à medida de coacção de prisão preventiva em 02/05/2022 e, em 23/06/2022, foi tal medida substituída pela medida de OPHVE.
Entretanto, foi deduzida acusação contra o arguido, sendo-lhe imputada a prática, em autoria material, de (um) crime de violação, na forma agravada, previsto e punido pelos artigos 164.º, n.º 2, alínea a) do Código Penal, 1 (um) crime de roubo, previsto e punido pelo artigo 210.º, n.º 1, do Código Penal e 2 (dois) crimes de ameaça agravados, previstos e punidos pelas disposições conjugadas dos artigos 153.º, n.º 1, e 155.º, n.ºs 1, alíneas a) e c), com referência ao disposto no artigo 132.º, n.º 2, alínea l), todos do mesmo diploma.
O estatuto coactivo do arguido tem vindo a ser reapreciado nos termos legais, mantendo-se inalterados os pressupostos, de facto e de direito, que estiveram subjacentes à aplicação ao arguido da mencionada medida de coacção, vindo aliás, com a dedução da acusação e, posteriormente, do despacho de pronúncia, a ser reforçados.
A medida de coacção de obrigação de permanência na habitação visa, como aliás, todas as demais medidas de coacção, com excepção do termo de identidade e residência, prevenir os perigos enunciados no artigo 204º do C.P.P..
É requisito específico da sua aplicação a existência de fortes indícios da prática de crime doloso punível com pena de prisão de superior a três anos (artigo 201º, nº 1 do C.P.P.), sendo ainda necessário, para o mesmo efeito, como requisito geral, a verificação, no caso concreto, de um ou mais do que um dos perigos elencados no referido artigo 204º do C.P.P..
A medida de coacção de OPHVE é a segunda mais grave ou onerosa das medidas de coacção legalmente admissível, por contender, além do mais, com a liberdade dos cidadãos – obviamente, com menos intensidade do que a prisão preventiva – prevendo a obrigação do arguido não se ausentar do domicílio, que constitui o objecto da medida.
Nos termos do preceituado no artigo 11.º da Lei nº. 33/2010, de Setembro, as ausências do local determinado para vigilância electrónica são autorizadas pelo juiz, mas em situações excepcionais, quando estejam em causa motivos imprevistos e urgentes. E, apenas nestas circunstâncias, deve ser solicitada previamente aos serviços de reinserção social, nos termos do disposto na alínea f) do artigo 6.º, que decidem tendo em conta os fundamentos invocados, a segurança da comunidade e o controlo de execução da medida.
Temos por certo que nestas circunstâncias, que, repete-se, são excepcionais, incluem-se, entre outras, necessidades pontuais como as de tratamento médico inadiável do arguido e de familiares consigo residentes e que necessitem de acompanhamento para esse efeito, ou o cumprimento de relevantes obrigações sócio-familiares, como sejam, a visita de ascendente ou descendente gravemente doente ou a comparência em cerimónias fúnebres de tais familiares.
Ora, a circunstância invocada pelo arguido, que pretende autorização para fins do exercício de uma actividade profissional regular, não pode considerar-se de natureza excepcional, não apenas por se tratar de uma actividade duradoura, como também, e sobretudo, porque pode pôr em causa os fins que a medida de coacção visava acautelar quando foi decretada, e que ainda, evidentemente, subsistem, já que a pretendida autorização para exercer actividade profissional, facultaria ao arguido a oportunidade necessária para continuar a actividade criminosa e, consequentemente, de perturbar a ordem pública, perigos que sustentaram a medida de coacção à qual se encontra sujeito, tanto mais que as características da proposta apresentada, nomeadamente a mobilidade geográfica decorrente das funções que pretende exercer, associadas à ausência de um interlocutor imparcial, introduzem sérios constrangimentos em termos de controlo, não tendo a DGRSP forma de assegurar o controlo dos períodos de ausência, nem tão pouco assegurar que o arguido não venha a utilizar parte dos períodos de ausência para fins e locais não previstos.
Os factos pelos quais o arguido se encontra acusado, e que já se encontravam indiciados aquando da aplicação ao mesmo das medidas de coacção supra referidas, são graves, inscrevem-se no conceito de criminalidade violenta e especialmente violenta (cfr. artigo 1º, als. j) e l) do C.P.P.) e o perigo de continuação da actividade criminosa e de perturbação da ordem e tranquilidade públicas foram uns dos fundamentos que sustentaram a aplicação ao arguido do estatuto coactivo em que se encontra.
Em face do exposto, por não se verificarem preenchidos os seus pressupostos legais, e mantendo-se inalterados os pressupostos de facto e de direito que estiveram subjacentes à aplicação ao arguido da medida de coacção a que se encontra sujeito, indefiro o requerido.
Notifique.»
*
Inconformado com esse despacho, em 13/1/2023 o arguido interpôs o recurso a que se reportam os presentes autos, concluindo a sua motivação e respectivo petitório do seguinte modo (transcrição):
« a) A decisão recorrida é nula, por omissão de pronúncia, atendendo a que requereu «que seja concedida ao Arguido autorização para se ausentar da sua habitação, estritamente com destino ao local de trabalho que lhe venha a ser designado e às consultas médicas que careça de realizar», não se tendo o Tribunal a quo pronunciado senão relativamente à autorização para se ausentar da sua habitação, estritamente com destino ao local de trabalho, omitindo qualquer pronúncia, quer quanto à situação (gravíssima, de perigo eminente de morte) que aliás determinou que a medida de prisão preventiva fosse alterada para permanência na habitação, quer quanto à incapacidade dos serviços da DGRSP para dar resposta aos pedidos de deslocação a consultas médicas.
b) De facto, o Arguido está privado de comparecer às consultas da especialidade de Cardiologia, tendo faltado àquela que lhe foi agendada em 21 de Julho de 2022 (!), apesar de o Tribunal e os serviços da DGRSP saberem que padece de miocardiopatia dilatada, uma disfunção miocárdica que provoca insuficiência cardíaca, de resto, já suficientemente caracterizada através dos relatórios juntos aos autos (convém no entanto recordar que 20% dos pacientes diagnosticados com esta condição, morrem no primeiro ano e cerca de 10% um ano depois; aproximadamente 40 a 50% das mortes são repentinas em decorrência de arritmia maligna ou evento embólico), sendo tal condição agravada pelo facto de sofrer de disritmia sintomática, por taquicardia supra ventricular paroxística, extrosistolia supra ventricular, e extrasistolia ventricular monfórmica, e associadas e como agravantes desta condição, uma frágil condição imunológica, caracterizada por pneumonias repetitivas, rinite, bronquiolites, amigdalites e otites de repetição.
c) Se a decisão recorrida não é nula por omissão de pronúncia, então, parece dela resultar que a situação supra descrita, não se subsume a situações «excepcionais, incluem-se, entre outras, necessidades pontuais como as de tratamento médico inadiável do arguido», que o Tribunal a quo entente serem as únicas que podem  determinar a autorização de saída quando exista uma medida de coação de obrigação de permanência na habitação.
d) Mal: porque, cfr. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 17-02-2010 (Processo 42/06.2TAOVR-C.P1): «Posto que a lei penal não previna relativamente ao regime de permanência na habitação os objectivos e saídas que consagrou para o regime de semidetenção, não resulta daí que a lei pretenda afastar que o condenado segundo aquele regime possa prosseguir a sua actividade profissional, a sua formação profissional ou os seus estudos, salvaguarda que se mostre a compatibilidade com as finalidades de prevenção.».
e) Aliás, nos termos do Artigo 11.º, da Lei n.º 33/2010, de 02 de Setembro, que regula a utilização de meios técnicos de controlo à distância (vigilância electrónica), apenas impõe que «as ausências do local determinado para a vigilância eletrónica são autorizadas pelo juiz, mediante informação prévia dos serviços de reinserção social quanto ao sistema tecnológico a utilizar, podendo o despacho ter natureza genérica.», sem fazer qualquer alusão às respectivas razões.
f) Como se nos afigura manifesto, o despacho recorrido deveria fazer referência ao facto de existir uma alteração substancial do circunstancialismo em que a prisão preventiva foi determinada, tendo sido já deduzida acusação, estando ultrapassado o prazo de abertura de instrução e tendo sido retirada ao Arguido a “pulseira electrónica”, por erro dos Serviços da DGRSP, tendo-se mantido na sua habitação, consciente de que se trataria de um erro, sem disso sequer tentar retirar qualquer proveito.
g) É de resto neste quadro que a decisão recorrida procura justificar, à luz um periculum libertatis que não concretiza, nem pelos conceitos, nem com base em qualquer facto concreto, manter a privação de liberdade, em termos de não permitir sequer a saída para trabalhar, como se, porventura, fizesse algum sentido, salvo o devido respeito, pressupor com base num juízo de mera possibilidade – nem sequer de probabilidade – que o Arguido, acusado de ter violado uma prostituta, tentado roubá-la, e posteriormente ameaçado agentes da PSP, num “quadro” que não é minimamente compaginável com o seu percurso de vida, aproveitasse a autorização para se deslocar para o local de trabalho que lhe for designado, para cometer novos crimes de violação, roubo e ameaças a agentes da autoridade.
h) O perigo de continuação da actividade criminosa - que não se confunde, necessariamente, com a consumação de novos actos criminosos- deverá ser aferido (como ocorre de resto com todos os periculum libertaús - a partir de elementos factuais que o revelem ou o indiciem e não de mera presunção (abstracta ou genérica), devendo ser apreciado caso a caso, em função da contextualidade de cada situação, pelo que não cabem aqui juízos de mera possibilidade, no sentido de que só o risco real (efectivo) de continuação da actividade delituosa pode justificar a aplicação das medidas de coacção, maxime a privação da liberdade.
i) Destarte, a privação de liberdade do arguido, é fundada, exclusivamente, no alarme social causal à natureza do crime indiciado – pois outro fundamento, é manifesto, não há! -, o que pressupõe uma interpretação da alínea c) do artigo 204° que conflitua de uma forma clara com a presunção de inocência do arguido constitucionalmente consagrada (artigo 32°, n° 2, da Constituição da República Portuguesa) uma vez que atribui às medidas de coacção em geral, e à prisão preventiva em particular, finalidades próprias das penas e não finalidades estritamente processuais como exige o artigo 191° do Código de Processo Penal, ao pressupor que se atribua à medida de coacção um efeito de pacificação social que é um dos que se compreendem no conceito de prevenção geral positiva e se reconhecem ser co-naturais à aplicação das penas.
j) O Arguido, que sempre esteve socialmente inserido, jamais ter sido indiciado, sequer referenciado, por qualquer facto criminos, alegou e demonstrou documentalmente o ao Tribunal, que vem prosseguindo os estudos em “prisão domiciliária”, tendo beneficiando de licença sem vencimento durante o período em que está nessa condição, procurando apenas manter-se como um elemento útil à sociedade.
k) E diga-se de passagem, não foi ainda julgado; E como demonstrará em sede de audiência de julgamento, sendo-lhe imputada a prática, em autoria material, de (um) crime de violação, os factos não podem ter ocorrido como a “Ofendida” os relata, pela simples razão de que a condição de saúde grave e a medicação que lhe está associada, causou ao Arguido impotência sexual, que se mantém há largos anos e é potencialmente irreversível...
l) Por tudo isto, o indeferimento da autorização requerida pelo Arguido – para se deslocar da respectiva habitação, estritamente com destino ao local de trabalho que lhe venha a ser designado e às consultas médicas que careça de realizar, não dá respaldo aos princípios da legalidade (art.ºs 29.º, n.º 1, da CRP e 191.º, do CPP), excepcionalidade e necessidade (art.ºs 27.º, n.º 3 e 28.º, n.º 2, da CRP e 193.º, do CPP), adequação e proporcionalidade (art.º 193.º do CPP).
Termos em que deverá o presente recurso ser admitido e em consequência ser a decisão recorrida ser revogada, sendo deferida a autorização requerida pelo Arguido, para se deslocar da respectiva habitação, estritamente com destino ao local de trabalho que lhe venha a ser designado e às consultas médicas que careça de realizar,
Assim se fazendo sã e serena
JUSTIÇA!»
*
A Digna Magistrada do Ministério Público junto da primeira instância respondeu ao recurso, concluindo pela sua improcedência nos seguintes termos (transcrição):
 «1. Pede o recorrente que a decisão recorrida seja revogada e substituída por outra que autorize o recorrente a ausentar-se da sua habitação com destino ao local de trabalho que lhe venha a ser designado e às consultas médicas que careça de realizar.
2. Alega para o efeito que:
- a decisão recorrida é nula por omissão de pronúncia pois apenas se pronunciou quanto à autorização de saída da habitação pelo recorrente para ir trabalhar, não se pronunciando quanto à autorização requerida pelo recorrente para saída da habitação para realização de consultas médicas;
- ao manter a medida de coacção de OPHVE, a decisão recorrida viola os princípios da legalidade, excepcionalidade, necessidade, adequação e proporcionalidade;
- não estando proibido por lei que um arguido sujeito à medida de coacção de obrigação de permanência na habitação com vigilância electrónica não possa prosseguir com a sua actividade profissional, deveria ter sido autorizada a saída do recorrente da sua habitação para exercer actividade profissional.
3. A omissão de pronúncia é um vício gerador de nulidade da decisão judicial que ocorre quando o tribunal não se pronuncia sobre questões com relevância para a decisão de mérito e não quanto a todo e qualquer motivo ou argumento aduzido pelas partes.
4. Ora, no caso em análise, a decisão recorrida não padece de qualquer vício de omissão de pronúncia.
5. Com efeito, tal decisão estabelece que as ausências do local determinado para vigilância electrónica deverão ser autorizadas pelo juiz em situações excepcionais, quando estejam em causa motivos imprevistos e urgentes, incluindo-se nestes casos, entre outras, as necessidades pontuais como as de tratamento médico inadiável do arguido.
6. Significa isto que, não obstante a decisão recorrida ter indeferido a pretensão do recorrente de se ausentar da sua habitação para exercer actividade profissional, admite como possível a sua ausência para tratamentos médicos que se imponham necessários, desde que, claro está, cumprido pelo recorrente o exigido na alínea f) do art.º 6.º da Lei 33/2010, de 2 de Setembro.
7. Nesta conformidade, não tendo a decisão recorrida deixado de se pronunciar quanto ao requerido pelo recorrente, a mesma não padece de qualquer vício por omissão de pronúncia, devendo ser mantida.
8. O recorrente foi sujeito à medida de coacção de prisão preventiva no dia 02.05.2022, tendo a mesma sido substituída pela medida de coacção de OPHVE no dia 23.06.2022.
9. No dia 27.09.2022, foi deduzida acusação contra o recorrente, sendo-lhe imputada a prática, em autoria material, de um crime de violação, na forma agravada, p. e p. pelo art.º 164, n.º 2, al. a) do Código Penal, um crime de roubo, p. e p. pelo art.º 210º, n.º 1 do Código Penal e dois crimes de ameaça agravados, p. e p. pelas disposições conjugadas dos art.ºs 153º, n.º 1 e 155º, n.º 1, als. a) e c), com referência ao disposto no art.º 132º, n.º 2, al. l), todos do mesmo diploma legal.
10. O estatuto coactivo do recorrente tem vindo a ser sucessivamente reapreciado, sendo que, desde a data em que se operou a alteração da medida de coacção de prisão preventiva para a medida de coacção de OPHVE não se verificou qualquer alteração fáctica ou jurídica susceptível de infirmar os pressupostos de que depende a aplicação da referida medida de coacção, subsistindo os perigos que determinaram a sua aplicação, situação, igualmente, confirmada pelo douto despacho de 28.12.2022 e pelo despacho agora recorrido.
11. O recorrente não trouxe aos autos quaisquer factos novos que permitam concluir pela diminuição das exigências cautelares que determinaram a aplicação da medida de coacção em causa.
12. Assim, bem andou o despacho recorrido ao manter o recorrente sujeito à medida de coacção de OPHVE, sendo que a necessidade, adequação e a proporcionalidade da medida de coacção de obrigação de permanência na habitação com vigilância electrónica estão verificadas e resultam quer das exigências cautelares que o caso requer, quer da gravidade dos crimes e personalidade do agente, revelada nos factos, que a justificam e impõem.
13. No âmbito do recurso ora interposto, o recorrente invoca que, não estando proibido por lei que um arguido sujeito à medida de coacção de obrigação de permanência na habitação com vigilância electrónica não possa prosseguir com a sua actividade profissional, deveria ter sido autorizada a saída do recorrente da sua habitação para exercer actividade profissional.
14. Salvo o devido respeito por entendimento diverso, não podemos concordar com a posição do recorrente, com efeito, tal como preceituado no art.º 11º da Lei n.º 33/2010, de 2 de Setembro, e reforçado na decisão recorrida, apenas deverão ser autorizadas ausências do local determinado para vigilância electrónica em situações excepcionais, quando estejam em causa motivos imprevistos e urgentes, o que não se verifica quanto ao pedido de autorização para fins do exercício de uma actividade profissional regular, desde logo porque se trata de uma actividade duradoura.
15. Acresce que, mesmo que assim não se entenda, a ausência da habitação requerida pelo recorrente para exercício da sua actividade profissional deverá, ainda, ser indeferida porque pode pôr em causa os fins que a medida de coacção visava acautelar quando foi decretada.
16. A monitorização electrónica contínua da medida coactiva de OPHVE restringe-se apenas ao espaço habitacional, sendo os períodos de ausência fiscalizados por meios adicionais de controlo, mormente contactos telefónicos, sendo que este tipo de fiscalização, pelo seu carácter intermitente, acarreta uma significativa diminuição do controlo proporcionado pelos meios electrónicos e pressupõe um certo grau de confiança nos arguidos.
17. Pelo que a autorização de deslocação diária para o local de trabalho pretendida acarretaria acentuadas reservas quanto à eficácia dos aludidos meios adicionais de controlo, não podendo a DGRSP assegurar que, caso viessem a ser autorizadas ao recorrente ausências da habitação de carácter diário, o mesmo não viesse a utilizar parte do tempo para fins não previstos nem autorizados, mormente aproximar-se da vítima.
18. Assim, subsistindo os perigos que levaram à sujeição do recorrente à medida de coacção de OPHVE e encontrando-se o recorrente acusado por factos graves, integradores do conceito de criminalidade violenta e especialmente violenta, consideramos que nenhuma censura merece o douto despacho recorrido ao indeferir a autorização de saída da residência do recorrente para exercer actividade profissional.
Termos em que se conclui que o recurso não merece provimento.
 Porém, V. Exas., como sempre, farão
JUSTIÇA.»
*
Neste Tribunal, o Digno Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, acompanhando aquela resposta da Exmª colega junto da 1ª instância, no sentido de improceder o recurso, mantendo-se o despacho recorrido.
*
Notificado deste parecer, nos termos e para os efeitos do art.º 417º, nº 2, do C.P.P., o arguido nada disse.
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Colhidos os vistos, o processo foi à conferência e cumpre decidi-lo.

FUNDAMENTAÇÃO
Delimitação do objecto do recurso
O âmbito do recurso é dado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, delimitando para o tribunal superior (ad quem) as questões a decidir e as razões pelas quais devem ser decididas em determinado sentido, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso que eventualmente existam – cfr. os arts. 410º e 412º do CPP e Germano Marques da Silva (em Curso de Processo Penal, Vol. III, 1994, pág.340), Paulo Pinto de Albuquerque (em Comentário do Código de Processo Penal, 3ª edição, 2009, págs.1027-1122) e Simas Santos (em Recursos em Processo Penal, 7ª edição, 2008, pág.103).
No caso vertente, atentas as conclusões apresentadas pelo arguido/recorrente, impõe-se decidir a seguinte questão: Deve conceder-se ao arguido a pretendida autorização para trabalhar e para as consultas médicas de que careça?
*
 Importa ter em conta os seguintes elementos constantes dos autos e que se nos afiguram relevantes para a decisão a proferir:
- Em 2/5/2022 foi decretada a prisão preventiva deste arguido no âmbito do seu 1º interrogatório judicial como arguido detido, nos termos constantes das actuais fls. 14-20 verso (aqui dados como reproduzidos na íntegra);
- Em 23/6/2022, na sequência de um requerimento do arguido, foi proferido despacho a substituir a prisão preventiva por obrigação de permanência na habitação sob vigilância electrónica, tudo nos termos constantes das respectivas e actuais fls. 35-37 e 41 e verso (aqui dados por reproduzidos na íntegra);
- Em 28/12/2022 foi proferido despacho de recebimento da acusação penal do arguido, tudo nos termos das respectivas e actuais fls. 57-61 verso e 68 (aqui dados por reproduzidos na íntegra);
- Em 5/1/2023, na sequência de um requerimento do arguido, foi proferido o despacho recorrido, tudo nos termos constantes das respectivas e actuais fls. 63-67 e 70-71 verso (aqui dados por reproduzidos na íntegra e estando os destas últimas já supra transcritos);
- Em 13/1/2023 foi apresentado o recurso nos termos constantes das actuais fls. 11-12 (já supra transcritos)
- Em 17/1/2023, precedendo a admissão do recurso, também foi proferido despacho nos termos constantes das actuais fls. 11-12 que são os seguintes:
«Acto da DGRSP junto em 09/01/2023: Atentos os fundamentos expostos, e a não oposição do Ministério Público, defere-se a requerida deslocação pelo tempo estritamente necessário e sujeita a monitorização da DGRSP.
Notifique.
DN
Autoriza-se, desde já, a título genérico, as saídas excepcionais do arguido que se relacionem com as seguintes finalidades:
a) Comparência em actos processuais;
b) Actos ou tratamentos médicos;
tudo sempre mediante prévio contacto com o técnico de reinserção social (com, pelo menos, 24 horas de antecedência) e autorização deste mediante análise da situação concreta que fundamenta o pedido de saída.
Dê conhecimento à DGRSP.»
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Questão prévia: Este Tribunal ad quem considera que, aquando do despacho recorrido, a Exmª Juiz a quo, efectivamente, não se pronunciou sobre aquela parte do pedido do arguido relativa à autorização para se ausentar da habitação para consultas médicas que careça realizar.
Mas, na sequência do recurso em apreço, a Exmª Juiz a quo veio pronunciar-se, deferindo essa parte do pedido, autorizando saídas excepcionais do arguido relacionadas com actos ou tratamentos médicos, desde que, previamente solicitadas com antecedência mínima de 24 horas, ao técnico de reinserção social e autorizadas por este mediante a análise concreta do fundamento de cada pedido (cfr. actual fl. 11 supra transcrita).
Pelo que, tendo sido sanada tal omissão, de forma a deferir tal pretensão do arguido – e até ampliando-a por forma a abranger, para além de consultas médicas, outros actos médicos ou tratamentos médicos – ficou prejudicada a apreciação dessa parte do recurso.
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Questão que resta decidir:  Deve conceder-se ao arguido a pretendida autorização para trabalhar ?
O arguido/recorrente veio pedir que lhe seja autorizada a saída da habitação estritamente com destino ao local de trabalho. Para o efeito (em suma) alega, por um lado, não ter praticado os factos imputados pela ofendida, por outro lado, inexistirem os perigos concretos de perturbação da ordem e tranquilidade públicas, continuação da actividade criminosa e de fuga e, para além disso, pretende manter-se útil à sociedade onde está inserido e aproveitar a confiança da sua entidade empregadora. Mais alega que o Tribunal recorrido atentou contra os princípios da legalidade, excepcionalidade, necessidade, adequação e proporcionalidade previstos nos art.ºs 29º, nº 1, 27º, nº 3, e 28º, nº 2, da CRP e arts. 191º e 193º do CPP.
O Ministério Público, quer na 1ª instância quer junto deste Tribunal superior, pugnou pelo indeferimento de tal pretensão (em suma), por o arguido não ter trazido aos autos quaisquer factos novos atenuantes das exigências cautelares justificativas da medida de coação de OPHVE e por a pretendida actividade laboral não ser compatível com esta medida de coação nem com as respectivas exigências cautelares.
Cumpre apreciar e decidir.
Conforme já vimos, o arguido estava e está, fortemente, indiciado pela prática (em 30/4/2022), na forma consumada e em concurso efectivo, de um crime de violação na forma agravada e de dois crimes de ameaça agravados, previstos e puníveis nos termos dos art.ºs 26º, 1ª parte, 30º, nº 1, 164º, nº 2, al. a), 153º, nº 1, 155º, nº 1, als. a) e c), com referência ao art.º 132º, nº 2, al. l), todos do CP.
A medida de coacção, inicialmente, aplicada fora a prisão preventiva (em 2/5/2022) fundamentada na gravidade dos indiciados crimes, na gravidade das correspectivas penas aplicáveis e nas necessidades cautelares inerentes aos perigos de fuga, de perturbação grave da ordem e tranquilidade públicas e de continuação da actividade criminosa.
Depois (desde 23/6/2022 em diante), essa medida de coação foi substituída pela medida de coacção de obrigação de permanência na habitação com vigilância electrónica, justificada pelas condições de saúde do arguido, pelo parecer favorável da DGRSP face às condições habitacionais e ao apoio dos pais do arguido e pela atenuação diminuta das exigências cautelares.
Agora, o arguido vem requerer que lhe seja permitido sair da habitação, estritamente com destino ao local de trabalho.
Será que a medida de coação (abreviadamente designada como) de OPHVE permite esta forma menos gravosa de execução?
Afigura-se-nos que não.
Pois – salvo o devido respeito pela opinião contrária do arguido/recorrente – a natureza e a forma de execução da medida de coacção de OPHVE não se compaginam com as pretendidas saídas ou ausências para prestar actividade laboral que redundariam numa espécie de obrigação, apenas a tempo parcial, de permanência na habitação com vigilância electrónica.
Ora, como sabemos, esta medida de coacção (OPHVE) é a segunda mais gravosa no leque das medidas de coacção taxativamente previstas pela nossa legislação penal – sendo a mais gravosa a prisão preventiva (art. 202º do CPP); seguida da obrigação de permanência na habitação com ou sem vigilância electrónica e que pode ser cumulada com a obrigação de não contactar com certas pessoas por qualquer meio (art. 201º do CPP); e todas as demais sendo menos gravosas por não implicarem tal privação da liberdade), apenas proibição e/ou imposição de certas condutas (art.º 200º do CPP), suspensão do exercício de profissão, função, actividade e/ou direitos (art.º 199º do CPP), obrigação de apresentação periódica (art.º 198º do CPP), prestação de caução (art.º 197º do CPP), sendo a prestação de termo de identidade e residência cumulada, sempre, com qualquer uma daquelas porque, obrigatoriamente, inerente à constituição de qualquer pessoa como arguido (art.º 196º do CPP).
Dispõe o artigo 201º do CPP, intitulado “Obrigação de permanência na habitação”:
«1 - Se considerar inadequadas ou insuficientes, no caso, as medidas referidas nos artigos anteriores, o juiz pode impor ao arguido a obrigação de não se ausentar, ou de não se ausentar sem autorização, da habitação própria ou de outra em que de momento resida ou, nomeadamente, quando tal se justifique, em instituição adequada a prestar-lhe apoio social e de saúde, se houver fortes indícios de prática de crime doloso punível com pena de prisão de máximo superior a 3 anos.
2 - A obrigação de permanência na habitação é cumulável com a obrigação de não contactar, por qualquer meio, com determinadas pessoas.
3 - Para fiscalização do cumprimento das obrigações referidas nos números anteriores podem ser utilizados meios técnicos de controlo à distância, nos termos previstos na lei.»
Ora, recorrendo aos ensinamentos doutrinais do Exmº Juiz Conselheiro Maia Costa em anotação a este e ao artigo 212º (no Código de Processo Penal Comentado, 3ª edição revista, págs. 813-815 e 826-828) e jurisprudenciais sobre esta temática (contidos, a título de exemplo, nos acórdãos do STJ de 23/7/2021 no processo 52/19.0SVLSB-A.S1, TRC de 17/12/2020 no processo nº 490/19.8JAVRL – A.C1 e TRG de 20/8/2020 no processo 84/20.5GAMCD.G1):
A constitucionalidade desta medida de coacção (OPHVE) deriva do facto de ser um “minus” relativamente à prisão preventiva [a mais restritiva do direito fundamental à liberdade ambulatória e consentida, expressamente, nos art.ºs 27º, nº 3, al. b), e 28º da Constituição da República Portuguesa (doravante sob a abreviatura CRP)].
Esta medida de coação (também vulgarmente designada “prisão domiciliar”) pressupõe que o arguido fique obrigado a permanecer na habitação (que pode ser a sua residência ou a residência de outrem ou uma instituição adequada a prestar-lhe apoio social ou de saúde) e só mediante, prévia, autorização judicial é que o arguido poderá ausentar-se da mesma (do respectivo espaço físico a que está confinado).
Esta possibilidade de autorização para sair/ausentar-se da habitação constitui uma excepção, aquando da sua execução e, como tal, só justificada por razões/motivos (também eles) excepcionais, ponderosos e pontuais – tais como, para consultas ou tratamentos médicos (que não justifiquem a obrigação de permanência do arguido numa instituição de saúde), a visita a cônjuge, ascendente ou descendente em risco de morrer ou a comparência em velório ou funeral de um daqueles.
Aliás, o legislador pretendeu realçar o cariz privativo da liberdade pessoal e deambulatória inerente a esta medida de coacção a tal ponto que consignou, expressamente, que o período de permanência na habitação é (tal como o período de prisão preventiva) descontado por inteiro no cumprimento da pena de prisão que porventura venha a ser aplicada ao arguido (art.º 80º, nº 1, do CP).
Por isso, uma regular ausência quer para estudar fora de casa e/ou quer para desempenhar uma actividade profissional fora de casa não se enquadram naquelas justificações pontuais, excepcionais e ponderosas.
Por muito louvável que se considere a vontade manifestada por um arguido em prosseguir ou retomar os seus estudos fora da habitação e/ou em retomar ou iniciar uma actividade profissional fora da habitação, isso enfraqueceria o carácter cautelar desta medida de coacção pois esvaziaria grande parte do seu conteúdo e finalidades. Em suma, tal desvirtuaria parte da sua essência detentiva cautelar.
Voltando ao caso em apreço, o arguido pretende que lhe seja concedida autorização para se ausentar da habitação estritamente com destino ao local de trabalho e durante o respectivo tempo – sem comprovar qual o trabalho e qual o local de trabalho e sem sequer concretizar nem comprovar qual o respectivo horário de trabalho (a este propósito, apenas tendo junto um documento contendo um acordo de concessão de licença sem vencimento com suspensão de contrato de trabalho durante o período de 1/5/2022 a 21/12/2022 e sem anexar o respectivo contrato de trabalho neste aludido).
Mas, independentemente da exacta localização e do exacto horário da pretendida laboração, tal sempre implicaria regulares e continuadas deslocações desde a habitação para o local de trabalho e vice-versa.
Ora, tal contrariaria os sobreditos requisitos [da excepcionalidade ou anormalidade, da gravidade ou muita importância e da curta duração ou carácter pontual] exigidos para a concessão de ausência da habitação no âmbito da medida de coacção (OPHVE) em apreço.
   
Para além disso, ficaria comprometida a vigilância electrónica do arguido quer no respectivo horário de trabalho, quer nas respectivas deslocações desde e para a habitação, já que tal sistema de controlo à distância (vigilância electrónica previsto na Lei nº 33/2010, de 2-9) não se coadunaria durante todo esse período de tais ausências, com a inerente fragilidade da sua vigilância – comprometendo as finalidades cautelares do caso em apreço (conforme tão bem referiram a Exmª Juiz de 1ª instância e os Dignos Procuradores do Ministério Público da 1ª instância e deste Tribunal Superior).
Não devendo olvidar-se que o arguido está indiciado como autor (material, na forma consumada e em concurso real, entre outros) de um crime de violação na forma agravada, punível com pena de prisão de 3 a 10 anos, e este indiciado crime constitui criminalidade não só violenta, como também criminalidade especialmente violenta (nos termos do art.º 1º, als. j) e l), do CPP) com os inerentes perigos de fuga, de perturbação grave da ordem e tranquilidade públicas e de continuação da actividade criminosa que estão indiciados nos autos (nos termos do art.º 204º, als. a) e c), do CPP).

Por último e não menos importante, resta-nos referir que tal pedido apresentado pelo arguido impunha que este tivesse cumprido, em concreto, o ónus legal previsto no art.º 212º, nº 3, do CPP segundo o qual:
«Quando se verificar uma atenuação das exigências cautelares que determinaram a aplicação de uma medida de coação, o juiz substitui-a por outra menos grave ou determina uma forma menos gravosa da sua execução».
Significa isto que as medidas de coacção estão sujeitas à condição/cláusula/princípio “rebus sic standibus”, isto é, a sua alteração apenas se justifica quando ocorrer uma atenuação das exigências cautelares que tiverem determinado a sua aplicação, caso contrário, enquanto as coisas estiverem ou permanecerem como estão não haverá alteração da decisão cautelar.
Significa isto que recaía sobre o requerente/aqui arguido/recorrente o ónus de alegar e provar que ocorrera uma atenuação das exigências cautelares do caso em apreço e em que medida tal sucedera.
Voltando ao caso concerto, o arguido não trouxe aos autos quaisquer elementos factuais novos e/ou elementos jurídicos novos que comprovassem uma atenuação das exigências cautelares do caso em apreço e que haviam justificado a aplicação (desde 23/6/2022) da medida de coacção de obrigação de permanência na habitação com vigilância electrónica.
Pois, o arguido limitou-se a fazer referência a um episódio de errónea retirada da pulseira electrónica por parte dos serviços da DGRSP sem que ele tivesse fugido da habitação até ser recolocada pelos mesmos e que, para além de declarar a intenção de não fugir, também veio declarar a vontade de ser útil à sociedade, trabalhando e, também, veio aludir à acusação pública já deduzida nos autos  – o que, obviamente, não é de molde a comprovar uma atenuação/abrandamento das sobreditas exigências cautelares do caso em apreço.

Quanto ao mais, o arguido veio tecer uma série de considerações que extravasam o objecto recursivo. Nomeadamente, negando ter praticado os indiciados factos imputados pela ofendida, negando inexistirem os indiciados perigos e alegando violação dos princípios da legalidade, excepcionalidade, necessidade, adequação e proporcionalidade previstos nos art.ºs 29º, nº 1, 27º, nº 3, e 28º, nº 2, da CRP e art.ºs 191º e 193º do CPP.
 Ora, conforme já vimos, a decisão cautelar (proferida em 23/6/2022) de aplicação da medida de coacção de obrigação de permanência na habitação já adquiriu força de caso julgado, ou seja, apesar de não ser definitiva, é intocável/imutável/imodificável enquanto subsistirem os pressupostos que a ditaram ou justificaram – não podendo o tribunal reformar essa decisão, sob pena de instabilidade jurídica decorrente de julgados contraditórios (neste sentido, entre outros - a propósito da prisão preventiva e cujas considerações também são válidas para a OPHVE - vejam-se o acórdão do STJ de 7/1/1998, no BMJ 473, pág. 564, o acórdão do TC de 30/07/2003, no processo 485/03, publicado no DR II Série de 4/2/2004 e os acórdãos do TRL de 12/9/2020 no processo 2292/19.2PSLSB-A.L1-9 e de 2/2/2022 no processo 2054/20.4T9PRT-C.L1-3 acessíveis na dgsi).
Por isso, agora não cabendo a este Tribunal apreciar ou reapreciar ou repensar a aferição feita (com trânsito em julgado) quer na decisão que decretou a prisão preventiva deste arguido quer na decisão que a substituiu pela obrigação de permanência deste arguido na habitação, nem da observância, ou não, por essas   decisões (transitadas em julgado) dos preceitos constitucionais e legais agora alegados pelo arguido.

Em jeito de conclusão, não foi demonstrada pelo arguido/recorrente uma alteração superveniente das circunstâncias factuais e/ou razões legais que fundamentaram a aplicação (da medida de coacção) da obrigação de permanência na habitação com vigilância electrónica e não cabe no conteúdo desta (medida de coacção) a autorização para trabalhar, fora de casa, pretendida pelo arguido/recorrente. 

DECISÃO
Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes da 9ª secção criminal deste Tribunal da Relação de Lisboa:
I – Declarar prejudicada a invocação, pelo arguido/recorrente, A, da falta parcial de pronúncia, por parte da decisão recorrida, entretanto sanada;
II – No mais, negar provimento ao recurso interposto pelo arguido/recorrente, mantendo-se o despacho recorrido.
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Sem tributação (à contrário o art.º 513º, nº 1, do CPP).
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Comunique-se, de imediato, ao tribunal a quo a presente decisão, remetendo cópia da mesma.
                       
 (Texto elaborado pela relatora, revisto pelos demais signatários e com assinatura electrónica de todos)            
           
Lisboa, 20 de Abril de 2023
Paula de Sousa Novais Penha
Carlos da Cunha Coutinho
Raquel Correia de Lima