Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
522/14.6T8CSC.L1-8
Relator: RUI DA PONTE GOMES
Descritores: ACÇÃO DE PRESTAÇÃO DE CONTAS
COMPETÊNCIA MATERIAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/14/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Texto Parcial: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: -Os tribunais judiciais são materialmente competentes para a acção de prestação de contas, subsequente ao divórcio, fundada na detenção por um dos ex-cônjuges de bens comuns do casal.
(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Parcial:       Acordam os Juízes, do Tribunal da Relação de Lisboa.


     I–RELATÓRIO:


M... propôs na Comarca de Lisboa Oeste, Cascais, Instância ..., Secção Cível, Juiz ..., ação especial de prestação de contas contra o seu ex-marido, F..., pedindo que este preste contas desde a data do decretamento do divórcio, que foi em 21 de Outubro de 2009, até ao presente, da administração que exerceu dos ativos financeiros, e respetivos juros, que constituem o património de ambos, devendo ser condenado no pagamento do saldo que venha a apurar-se.
    
Invocou, para tanto, em súmula, que foi casada com o demandado em regime de comunhão de adquiridos, tendo tal casamento sido dissolvido por divórcio decretado em 21 de Outubro de 2009. À data do divórcio procedeu-se à partilha de bens. Verificou, porém, que o seu ex-marido sonegou contas bancárias e produtos financeiros.

Citado, o Réu contestou.
  
De imediato, e interlocutoriamente, foi proferida a douta decisão de 16 de Setembro de 2015 (fls.133/134), que julgou a Comarca de Lisboa Oeste, Cascais, Instância ..., Secção Cível, incompetente em razão da matéria para judiciar o pleito que era apresentado, e dele absolveu o Réu da instância.

É desta decisão que apela M...  ____ Concluindo:

1.O Tribunal a quo tendo em consideração o pedido que é formulado na ação pela Autora, e o regime dos artigos 609º, nº1, e 615º, nº1, alínea e), do C. P. Civil, não podia entender implícito no pedido de prestação de contas, o pedido de partilha de bens comuns do casal, estando-lhe, portanto, vedado alterar qualitativamente as pretensões da demandante, o que a torna nula. ___
2.Face ao disposto no art. 64º do C. P. Civil, a apreciação e decisão da ação de prestação de contas intentada nos termos e para os efeitos do art. 941º do C. P. Civil, devem ser cometidas aos Tribunais judiciais, por serem os materialmente competentes.

Cumpre Decidir:

II–FUNDAMENTAÇÃO.

No douto despacho recorrido concluiu-se pela incompetência material do Tribunal a quo, depois de se considerar que, não obstante a alusão a sonegação de bens, o que se pretendia, na ação, era a partilha de bens comuns, nomeadamente contas bancárias e produtos financeiros, enquanto a recorrente insiste que tratando-se de uma ação de efetivação de prestação de contas, o Tribunal é o exato para a apreciação pretensão formulada.

Atentemos:

A competência de um Tribunal, que constitui um pressuposto processual, corresponde à medida de jurisdição dos diversos Tribunais, nomeadamente ao modo como entre eles se fraciona e reparte o poder jurisdicional (Manuel de Andrade, “Noções Elementares de Processo Civil”, 1976, pp. 88, e Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, “Manual de Processo Civil”, 2.ª edição, 1985, pp. 196).

Numa perspetiva endógena, o fracionamento ou repartição do poder de julgar deriva de vários fatores, designadamente em razão da matéria. Neste caso, para as diversas espécies de Tribunais, situados entre si no mesmo plano horizontal, sem qualquer relação de hierarquia, resulta da natureza da matéria versada na ação, tendo por justificação o princípio da especialização, com as vantagens inerentes, e cada vez mais reconhecidas.

A natureza da matéria versada na ação afere-se pela pretensão jurisdicional deduzida e pelo fundamento invocado, ou dito de outro modo, pelo pedido e pela causa de pedir (Manuel de Andrade, Ibidem, pp.91), como, aliás, vem sendo entendido, pacificamente, pela jurisprudência.

A definição abstrata da competência material encontra-se plasmada na Lei, designadamente na que procede ao enquadramento e organização do sistema judiciário, a Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto (LOSJ).

Como já antes se referiu, a decisão recorrida fundamentou-se, essencialmente, na consideração de que, pretendendo-se com a ação a partilha de bens comuns do dissolvido casal, a competência material caberia ao Cartório Notarial, face ao disposto na Lei n.º 23/2013, de 5 de Março.

A determinação da competência material do Tribunal é feita, desde logo, em função do efeito jurídico pretendido com a ação, nomeadamente o pedido formulado. Em certas situações, porém, pode ser necessário atender ainda ao facto jurídico que fundamenta a pretensão jurídica, isto é, à causa de pedir, para se apurar o âmbito material da ação. Por isso, interessa considerar o pedido e, em caso de insuficiência, também a causa de pedir da ação, para se averiguar a quem, em função da matéria, compete o julgamento da ação.

Na situação sub iudicio, a Apelante pretende, com a ação instaurada, ao pedido de partilha de bens comuns do ex-casal, nomeadamente contas bancárias e produtos financeiros, de que F... ficou em seu poder. Ora: - desde logo, o pedido especificamente formulado não se identifica com sendo de partilha de bens comuns, nomeadamente do dissolvido casal, sendo certo que começa pelo pedido a aferição da competência material do Tribunal.

Dito isto.

O fim da ação de prestação de contas é o de estabelecer o montante das receitas cobradas e das despesas efetuadas de modo a obter-se a definição de um saldo e de determinar a situação do Réu ___ de devedor, ou de credor ___ perante o titular dos interesses geridos. Com o julgamento das contas apresentadas por uma ou por outra parte, visa-se apurar o montante em dívida e quem é o devedor (Alberto dos Reis, RLJ 74º/pp. 46).

Como refere Alberto dos Reis (“Processos Especiais”, II, pp.303) a obrigação de prestação de contas pressupõe que alguém administrou ou está a administrar bens ou interesses alheios e, por isso, deve prestar contas dessa administração, mesmo que se trate de mera administração de facto, sem que ao administrador assistam poderes legais ou convencionais para estar a administrar os bens ou interesses em causa, mas a que a Lei faz corresponder a fonte dessa obrigação.

A obrigação de prestação de contas só pode ser assumida por quem administre bens ou interesses alheios, e a referida prestação pode ser espontânea ou provocada. Trata-se de uma obrigação de natureza material ou substantiva, pelo que o artigo 1014º do C. P. Civil pressupõe a existência de norma legal ou de contrato que imponha a prestação de contas.

De acordo com o nº 1 do art. 1681º do C. Civil, o cônjuge que administrar bens comuns ou próprios do outro cônjuge não é obrigado a prestar contas, respondendo, contudo, pelos factos intencionalmente praticados em prejuízo do casal ou do outro cônjuge. Se a administração por um dos cônjuges dos bens comuns ou próprios do outro se fundar em mandato, são aplicáveis as regras deste contrato. Contudo, salvo acordo em contrário, o cônjuge administrador apenas tem de prestar contas e entregar o respetivo saldo, se o houver, relativamente a atos praticados durante os últimos cinco anos.
Assim, diferentemente do que ocorre com a generalidade dos administradores de bens alheios, o cônjuge não está obrigado a prestar contas.

A situação é diferente após a dissolução do casamento:

Tendo as partes se divorciado, como é o caso, e ficado um dos ex-cônjuges a deter a posse de bens comuns deles retirando os frutos e utilidades, deve prestar ao outro contas desde a data da propositura da ação de divórcio (nº 1 do art. 1789º do C. Civil), ou da data em que foi declarada cessada a coabitação, no caso previsto no nº 2 do art. 1789º do C. Civil (Cf. neste sentido: - Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto, de 29.10.92, proferido no Processo 9130093, e de 29 de Outubro de1992, proferido no Processo 9130093, disponíveis em www.dgsi.pt.).

Neste conspecto, entendemos dar procedência à pretensão da Apelante M...
                                  
III-DISPOSITIVO.

Em Consequência – Decidimos:

Julgar procedente a apelação de M..., revogar a douta decisão de 16 de Setembro de 2015 (fls.133/ 134), e julgar a Comarca de Lisboa Oeste, Cascais, Instância ..., Secção Cível, a competente em razão da matéria para judiciar o pleito que é apresentado.

Condenar em custas a parte vencida a final.


Lisboa,  14/4/2016

       
Ponte Gomes   
Luis Mendonça
Amélia Ameixoeira
Decisão Texto Integral: