Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
657/09.7YRLSB-3
Relator: TELO LUCAS
Descritores: MAUS TRATOS A MENORES
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/17/2009
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: Não obstante a actual redacção do art. 152°-A, n.º 1, alínea a) do Código Penal (introduzida pela Lei n.º 59/2007, de 4.09) fazer menção à desnecessidade de reiteração da conduta, entende-se que tal alteração apenas veio clarificar a anterior redacção do preceito legal, de acordo com o que já vinha sendo decidido pelos tribunais portugueses, sustentando que embora não se baste com uma acção isolada do agente para o preenchimento do tipo, também não se exige habitualidade da conduta e, casos há, em que a gravidade intrínseca da conduta é de tal modo grave que uma única conduta agressiva se revelaria adequada ao preenchimento do tipo de ilícito.».
Decisão Texto Integral: I – RELATÓRIO

       1. No Processo Comum (Tribunal Singular) n.º 14537/99.9TDLSB, do 3.º Juízo Criminal da comarca de Sintra, foi submetida a julgamento a arguida (A), ali devidamente identificada, pronunciada que foi, após acusação do Ministério Público, pela prática de um crime de maus tratos físicos e psíquicos a menor, p. p. pelo artigo 152.º, n.º 1, al. a), do Código Penal.

        (L) e (O), na qualidade de pais do menor (N), constituídos assistentes nos autos, deduziram pedido de indemnização civil contra a arguida, assim demandada, peticionando a condenação da mesma no pagamento da quantia de € 19.951,92 (dezanove mil, novecentos e cinquenta e um euros e noventa e dois cêntimos) a título de danos não patrimoniais sofridos por aquele seu filho.

         A final, por sentença proferida em 30-06-2008, e no que aqui importa relevar, foi decidido:

         - Condenar a arguida, como autora material do dito crime, na pena de 14 (catorze) meses de prisão;

         - Suspender esta pena na sua execução, ao abrigo do disposto no artigo 50.º do Código Penal, pelo período de 14 (catorze) meses;

         - Condenar a arguida/demandada, na parcial procedência do pedido de indemnização civil, a pagar aos assistentes/demandantes, a título de indemnização por danos não patrimoniais, a quantia de € 2.500,00 (dois mil e quinhentos euros).

         2. Inconformada, recorre a arguida para este Tribunal, concluindo assim na respectiva motivação (transcrevendo):
«1.
Nos presentes autos foi deduzida acusação contra a Arguida pelos seguintes factos:
a) Enquanto Professora na Escola Básica nº 1, da Baratã, em Sintra, a arguida, no ano lectivo de 1998/99 e no período temporal que decorreu de 18 de Setembro de 1998 a 5 de Fevereiro de 1999, tinha como seu aluno o menor (N), então com 8 anos de idade e sendo portador crossomopatia, variante de Sindrome de Klienefelter, cariotipo (49, XXXXY), com atraso cognoscitivo e integrado numa turma de ensino regular, com apoio especial;
b) Durante aquele período temporal a arguida dirigia-se diariamente ao referido menor desferindo-lhe bofetadas na cara, palmadas nas mãos e nas nádegas, colocando-lhe de seguida chupetas na boca para o calar e, em diversas ocasiões, como o menor não parasse de chorar, grava o choro do menor e reproduzia-o dizendo para os restantes alunos “vamos ouvir o (N) a chorar”;
c) No dia 3 de Fevereiro de 1999, estando o menor com um abcesso na cara, deu-lhe uma bofetada na face no lado em que se via o abcesso;
d) Tais comportamentos da arguida teriam provocado no menor uma alteração do seu comportamento, verificando-se um agravamento da dificuldade de articulação verbal, uma irritabilidade e fragilidade emocional, e dificuldade em reter a urina;
e) Aqueles factos integravam a prática pela arguida de um crime de maus tratos físicos e psíquicos a menor p. e p. pelo art. 152º, nº 1, a), do Código Penal, na redacção vigente à data dos factos;
2.
Procedendo-se a julgamento veio a arguida a ser condenada pelo cometimento daquele crime;
3.
Entre os factos dados por provados a sentença recorrida deu como provados os seguintes, que são essenciais à decisão:
a) Após o início do ano lectivo, ocorrido em Setembro de 1998, e no decurso das aulas que ministrava, em datas não concretamente apuradas mas anteriores a 4 de Fevereiro de 1999, a arguida, pelo menos em mais do que duas ocasiões, colocou uma chupeta na boca de (N) para o impedir de chorar, forçando-o a usar o referido objecto – facto provado sob o nº 5 na sentença recorrida;
b) Nesse mesmo período temporal, no decurso das aulas que ministrava, mas em ocasiões não concretamente determinadas, a arguida gravou o choro do menor (N) e depois reproduziu a referida gravação à frente do menor e dos demais colegas de turma, o que sucedeu por mais de duas vezes, embora em número de ocasiões que não se logrou apurar – facto provado sob o nº 6;
c) Pelo menos por uma vez, no dia 3 de Fevereiro de 1999, a arguida deferiu uma bofetada na cara do menor (N), que tinha um inchaço na face devido a um abcesso, o qual era visível, provocando-lhe lesões não concretamente apuradas - facto provado sob o nº 10;
d) Em 5 de Fevereiro de 1999 o menor (N) deixou de frequentar a Escola Básica nº 1 da Baratã – facto provado sob o nº 12;
e) A partir de data não concretamente apurada, mas desde Setembro de 1998 e até 5 de Fevereiro de 1999, o menor (N) começou a apresentar alterações de comportamento, verificando-se um agravamento da dificuldade de articulação verbal, irritabilidade fácil, dificuldade de reter a urina e começou a roer as unhas – facto provado sob o nº 13;
f) Na sequência dos factos ocorridos na sala de aula o menor (N) passou a ter atitudes agressivas para com a irmã, foi-lhe diagnosticada uma epilepsia em Junho de 1999, e devido aos comportamentos da arguida sofria de angústia, medo e revolta – factos provados sob os nºs 19 a 22 e tendo em vista o pedido de indemnização cível deduzido nos autos;
g) Ao ouvirem a reprodução da gravação do choro do menor (N), alguns dos alunos da turma achavam graça e riam-se – facto provado sob o nº 25;
4.
Entre as testemunhas em que a sentença recorrida alicerça a prova dos factos encontram-se os alunos da arguida no ano lectivo de 1998/99 na mencionada Escola da Baratã, que eram colegas de turma do menor (N) e que à data dos factos possuíam em média 6 ou 7 anos de idade;
5.
Vejamos então os depoimentos prestados em audiência por esses ex-alunos.
a) (MA) – depoimento registado na cassete nº 3, desde o nº 3410 ao nº 3460 do lado A e desde o nº 0000 ao nº 1902 do lado B – Recordava-se apenas de a arguida ter metido a chupeta na boca do menor (N), não sabendo quantas vezes tal sucedera;
 b) (BN) – depoimento gravado na cassete nº 3 desde o nº 1903 ao nº 3357 do lado B – Recordava-se que o menor (N) era irrequieto e desatento e que a arguida lhe punha a chupeta na boca quanto ele chorava e que o punha de castigo no canto virado para a parede e que lhe batia. Instada afirmou que a arguida nunca bateu a qualquer outro aluno;
c) (PV) – depoimento gravado na cassete nº 3 desde o nº 3358 ao nº 3455 do lado B e na cassete nº 4 desde o nº 0000 ao nº 1250 do lado A – Confirmou que a arguida gravava o (N) a chorar e depois reproduzia a gravação para ser ouvida pelos alunos;
d) (SP)– depoimento gravado na cassete nº 4, desde o nº 1251 ao nº 2818 do lado A – Recordava-se que “às vezes” a arguida punha um rádio para gravar o (N) a chorar e depois punha a “tocar” para os alunos ouvirem. Recordava-se inda de a arguida pôr a chupeta ao (N);
e) (EJ) – depoimento gravado na cassete nº 4 desde o nº 2819 ao nº 3438 do lado A e desde o nº 0000 ao nº 707 do lado B – Recordava-se que a arguida punha a chupeta na boca do (N) e que mandava os cadernos dos alunos para o chão e lhes batia. Instado sobre se o episódio da chupeta ocorrera mais do que uma vez, afirmou que não podia “dar garantias” de que tal tivesse sucedido mais do que uma vez;
f) (AP) – depoimento gravado na cassete nº 4 desde o nº 708 ao nº 3438 do lado A, e desde o nº 0000 ao nº 2605 do lado B – Recordava-se de a arguida ter posto a chupeta ao (N) e que lhe batia quando se “portava mal”, tendo uma vez posto o (N) de castigo por este ter baixado as calças e as cuecas. Instado disse que o (N) atirava os livros para o chão;
5.
Destes depoimentos resulta o seguinte:
a) Episódio da chupeta – 5 dos 6 alunos recordavam-se desse facto, mas nenhum deles conseguiu precisar se tal sucedera mais do que uma vez;
b) Gravação – 2 dos 6 alunos se recordavam deste facto, e só do depoimento da testemunha (SP)se pode retirar que tal sucedera por mais que uma vez;
c) Agressões – 2 dos 6 alunos confirmam esse facto sem contudo precisarem quantas vezes tal sucedera. A testemunha (EJ) refere que a arguida batia nos alunos sem precisar se o fazia também ao (N), e o seu depoimento é contraditório com o da testemunha (BN) que foi categórica a afirmar que a arguida não batia em qualquer outro aluno para além do (N). Nenhuma delas confirma a bofetada que a arguida é acusada de ter dado no (N) no dia 3 de Fevereiro de 1999, quando este tinha um abcesso;
6.
Os depoimentos são pois claramente contraditórios, não mostrando a segurança necessária para poder formar a convicção do Tribunal, deles só se podendo retirar que a arguida, pelo menos uma vez, teria colocado uma chupeta na boca do menor (N);
7.
A Mmª Juíza resolveu tal incerteza da prova destas testemunhas presenciais através do seu cotejo com os depoimentos pelas mesmas prestados no processo disciplinar instaurado à A. pela Inspecção – Geral do Ensino e que se mostra parcialmente junto aos autos, louvando-se para tanto da previsão do nº 2 do art. 355º do Código de Processo Penal e do Acórdão nº 87/99, do Tribunal Constitucional;
8.
Entende-se que mal decidiu aqui a sentença recorrida e que ao proceder deste modo violou os arts. 355º e 356º do Código de Processo Penal;
9.
Esta violação existe em primeiro lugar porquanto, no que toca às declarações prestadas por aquelas testemunhas no processo disciplinar não se mostram reunidas as circunstâncias previstas no art. 356º do Código de Processo Penal, e, por essa razão não ocorrem as circunstâncias excepcionais a que se refere o art. 355º do mesmo Código e, em segundo lugar porque do Acórdão 87/99 do Tribunal Constitucional se retira exactamente essa proibição de valoração de anteriores declarações prestadas pelas testemunhas e constantes de documentos juntos aos autos;
10.
Na verdade, como se pode ler naquele Acórdão (disponível em www.tribunalconstitucional.pt ), segue o mesmo a tese de Maia Gonçalves (in Código de Processo Penal Anotado, 7ª Edição, pág. 521 ), em comentário ao art. 355º, nº 2, do Código de Processo Penal e de acordo com o qual:
Nos termos deste dispositivo, há, por exemplo que deixar bem claro que os documentos juntos ao processo não têm, em regra, que ser lidos na audiência. A leitura de documentos constantes do processo conforme o artigo 356º, nº 1, alínea b), só é, em regra, proibida quando contiver, e na medida em que contiver, declarações do arguido, das partes civis ou de testemunhas.”;
11.
O procedimento seguido pela sentença para valoração da prova, fez pois exactamente o contrário do que se previa no Acórdão que cita, mostrando-se pois violados os arts. 355º e 356º do Código de Processo Penal e seguindo orientação que viola também os princípios da publicidade da audiência de julgamento e das garantias de defesa em processo criminal constantes dos arts. 206º e 32º da Constituição;
12.
Sendo pois nula a valoração da prova efectuada pela sentença recorrida no que refere aos depoimentos das 6 testemunhas que foram os ex–alunos da arguida e cujos depoimentos foram valorados erradamente por cotejo com os depoimentos que haviam prestado em processo disciplinar parcialmente junto aos autos e de que aliás não veio a final do mesmo a decorrer qualquer sanção contra a arguida, como está documentado nos autos ainda em sede de inquérito;
13.
Vejamos de seguida os restantes depoimentos das testemunhas, analisando os depoimentos prestados pelas testemunhas que estiveram presentes também na sala onde a arguida dava aulas e onde era aluno o menor (N):
a) (DB) – Psicóloga e auxiliar de ensino especial na sala de aulas da arguida entre datas imprecisas de Janeiro e Fevereiro de 1999, em substituição da auxiliar (ACB) que esteve ausente por doença nesse período – depoimento gravado na cassete nº 6, desde o nº 2921 ao nº 3453 do lado A, e desde o nº 0000 ao nº 2213 do lado B – Recorda-se de que uma vez assistiu ao facto de a arguida ter colocado uma chupeta na boca do menor (N) e em seguida ter gravado e reproduzido o choro do menor. Refere que a arguida punha o menor de castigo, mas nunca viu a arguida bater-lhe;
b) (ACB) – Auxiliar de ensino especial na sala de aulas da arguida desde o início do ano lectivo de 1998/99 e até à segunda quinzena de Janeiro de 1999, altura em que se ausentou por doença tendo sido substituída nesse período pela testemunha (DB) – depoimento gravado na cassete nº 7, desde o nº 1524 ao nº 2646 do lado A – Declarou que durante o período em que esteve com a arguida na sala de aulas nesse ano lectivo, nunca assistiu a nenhum comportamento anormal da arguida para com os alunos referindo somente que a arguida era muito exigente sendo frequentes os castigos aos alunos;
c) (MFS) – Auxiliar de acção educativa – depoimento constante da cassete nº 6, desde o nº 3363 até ao final do lado B, e cassete nº 7, desde o nº 0000 até ao nº 1523 – Refere que tem um relacionamento “difícil” com a arguida e, sobre a matéria dos autos recorda-se somente de uma vez ter entrado na sala de aula e o menor (N) estar a chorar porque estava a ser reproduzida a gravação com o seu choro;
d) (AMD) – Professora do Ensino Especial que fez o acompanhamento do menor (N) na mesma Escola e período temporal – depoimento gravado na cassete nº 6, desde o nº 0000 ao nº 2920, do lado A – Nada refere acerca de ter presenciado os factos de que a arguida vem acusada nos autos;
14. Em suma, do depoimento destas pessoas que estavam presentes com a arguida na sala de aulas resulta que:
a) Episódio da chupeta – Só uma das testemunhas se recorda de tal ter sucedido e apenas uma vez;
b) Gravação – É só a mesma testemunha que refere ter assistido à gravação e reprodução na mesma altura que sucedeu o episódio da chupeta, havendo outra testemunha que refere ter ouvido uma só vez a reprodução;
c) Agressões – Nenhuma das testemunhas o confirma;
15.
E, com o depoimento destas testemunhas acaba a produção de prova testemunhal directa sobre os factos de que vem a arguida acusada, uma vez que as restantes testemunhas são testemunhas indirectas por terem ouvido dizer, ou por se pronunciarem sobre o valor ou desvalor dos comportamentos imputados à arguida e sobre as consequências dos mesmos;
16.
Com estes depoimentos há manifesto erro na valoração da prova pela sentença quando considera provado que:
a) Após o início do ano lectivo, ocorrido em Setembro de 1998, e no decurso das aulas que ministrava, em datas não concretamente apuradas mas anteriores a 4 de Fevereiro de 1999, a arguida, pelo menos em mais do que duas ocasiões, colocou uma chupeta na boca de (N) para o impedir de chorar, forçando-o a usar o referido objecto – facto provado sob o nº 5 na sentença recorrida;
b) Nesse mesmo período temporal, no decurso das aulas que ministrava, mas em ocasiões não concretamente determinadas, a arguida gravou o choro do menor (N) e depois reproduziu a referida gravação à frente do menor e dos demais colegas de turma, o que sucedeu por mais de duas vezes, embora em numero de ocasiões que não se logrou apurar – facto provado sob o nº 6;
c) Pelo menos por uma vez, no dia 3 de Fevereiro de 1999, a arguida desferiu uma bofetada na cara do menor (N), que tinha um inchaço na face devido a um abcesso, o qual era visível, provocando-lhe lesões não concretamente apuradas - facto provado sob o nº 10;
16.
Na verdade, nada na produção de prova permite a conclusão de que:
a) A arguida tenha por mais que uma vez colocado uma chupeta na boca do menor (N) ou gravado e reproduzido também mais do que uma vez o choro daquele menor e durante o período temporal que vai desde Setembro de 1998 a 5 de Fevereiro de 1999;
b) A arguida tenha dado uma bofetada na cara do menor (N) no dia 3 de Fevereiro de 1999, numa altura em que este tinha um abcesso;
17.
Antes resulta somente como provado que até pelo menos meados de Janeiro de 1999 nunca a arguida tenha praticado os actos de que vinha acusada – Ver depoimento da testemunha (ACB) -, e que uma vez, entre meados de Janeiro de 1999 e 5 de Fevereiro do mesmo ano,  colocara uma chupeta na boca do referido menor e gravara e reproduzira o seu choro – Ver depoimentos das testemunhas (DB) e (MFS);
18. Quanto ao desvalor de tais actos (repete-se só ocorridos uma vez), a douta sentença tece considerandos sobre os aspectos negativos do ponto de vista pedagógico ou educativo ou até de inferiorização do menor;
19.
Sobre essa matéria ressalta no entanto o depoimento da testemunha (MD), Professora, que tinha a função de acompanhamento de crianças deficientes na Escola a que os autos se reportam e que, nos termos descritos na sentença “declarou sem hesitações que objectivamente não considerava métodos adequados e que não os utilizaria” referindo-se à colocação da chupeta e da gravação e reprodução do choro;
20.
É verdade que a testemunha disse isso quando instada pela Mmª Juíza, no entanto do seu depoimento – gravado na cassete nº 2, desde o nº 3092 ao nº 3408, do lado B e na cassete nº 2 desde o nº 0000 ao nº 1975 do lado A (Ver acta de 3 de Junho de 2008) – resulta mais do que isso, pois a testemunha foi peremptória em dizer que não podia valorar de forma negativa esses factos imputados à arguida sem ter a eles assistido ou sem ter pelo menos o conhecimento das circunstâncias em que os mesmos teriam ocorrido, pois só com o conhecimento dessas circunstâncias poderia considerar negativos ou adequados os comportamentos imputados à arguida;
            21. Ainda quanto às gravações do choro do (N), mostra-se junta aos autos uma cassete áudio contendo uma gravação do choro do menor (N) mas não se trata de uma gravação propositada do choro do menor como referem as testemunhas (DB) e (MFS), tratando-se antes da gravação de uma aula, cuja utilidade nenhuma testemunha pôs em causa, antes tendo sido salientado pela testemunha (MJP), como uma prática pedagógica que ela própria utilizava nas aulas, como refere a própria sentença recorrida, o que suscita a dúvida quanto ao desvalor dos únicos comportamentos imputados à arguida e ocorridos uma só vez no período que decorreu de meados de Janeiro de 1999 a 5 de Fevereiro do mesmo ano;
22.
Verifiquemos agora as consequências dos factos imputados à arguida no comportamento do menor, que, segundo os factos dados por provados teriam sido alterações ocorridas desde Setembro de 1998;
23.
Viu-se já que, até pelo menos meados de Janeiro de 1999, os factos imputados à arguida não podiam ter ocorrido pois o depoimento da testemunha (ACB) elimina tal possibilidade e nenhuma outra testemunha posicionou a sua ocorrência antes de meados de Janeiro de 1999, existindo pois erro notório da valoração da prova quando nos factos dados por provados, se faz consignar sob o nº 13 que desde Setembro de 1998 se verificaram alterações comportamentais no menor (N);
24.
Mas mais, a douta sentença, na valoração da prova considerou que a arguida já antes tivera comportamentos negativos enquanto docente como decorre dos documentos de fls. 32 a 39 (Ver pags. 13 da sentença recorrida), quando tais situações não foram sequer objecto de qualquer averiguação e foram objecto de arquivamento pois foram acusações sem qualquer fundamento e reportadas a um período temporal em que a arguida nem sequer estava dar aulas por estar dispensada legalmente de comparecer ao serviço;
            25. E, na parte decisória considerou provado o nexo de causalidade entre os actos imputados à arguida e as alterações comportamentais do menor, quando não deu como provados factos de onde resultasse tal nexo de causalidade e antes os relatórios periciais de fls. 173 e 201 dos autos não são conclusivos no estabelecimento de tal nexo de causalidade, existindo também aqui uma errada valoração da prova produzida nos autos;
26.
Sendo certo que aqueles relatórios periciais não foram complementados por qualquer outra prova igualmente idónea que permitisse estabelecer o nexo de causalidade que a douta sentença refere;
27. Finalmente, em sede do enquadramento jurídico-penal, não fez também a sentença recorrida correcta aplicação do Direito;
28. Vinha a arguida acusada do cometimento do crime de maus tratos p. e p. pelo art. 152º, nº 1, a), do Código Penal na redacção que lhe foi conferida pela Lei 65/98, de 2 de Setembro e, de acordo com a redacção daquele preceito pratica aquele crime quem, tendo ao seu cuidado, à sua guarda, sob a responsabilidade da sua direcção ou educação, ou a trabalhar ao seu serviço, pessoa menor ou particularmente indefesa, em razão da idade, deficiência ou gravidez e lhe infligir maus tratos físicos ou psíquicos ou a tratar cruelmente;
29. A doutrina e a Jurisprudência antes da alteração do Código Penal de 2007, entendia este crime como sendo um crime que exigia a reiteração, visando proteger a dignidade do ofendido e sendo essa a razão da autonomização do crime de ofensas à integridade física;
30. Não bastava pois uma actuação isolada do agente para que preenchesse o tipo pois o âmbito punitivo deste crime inclui os comportamentos que, de forma reiterada, lesam a dignidade do ofendido;
31.
O espaçamento das atitudes do agente para com o ofendido afastaria o elemento reiteração ou habitualidade, pressuposto implícito deste tipo de crime – Ver nesse sentido Manuel de Oliveira Leal Henriques e Simas Santos, in Código Penal Anotado, 2º Vol, Rei dos Livros, pág. 182, e Taipa de Carvalho, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, Coimbra Editora, 1999, pág. 334. - No mesmo sentido vejam-se os Acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 26/10/2004, 15/11/2007 e 27/2/2008, todos disponíveis em www.dgsi.pt.;
32
Atenta a prova produzida nos autos e atenta a tipicidade (vem escrito: “tipificidade”) do crime de maus tratos não se reuniam à luz do art. 152º, nº 1, a) do Código Penal não se reuniam no caso dos autos os elementos integradores do cometimento pela arguida daquele crime;
33.
A douta sentença recorrida violou pois o referido art. 152º, nº 1, a) do Código Penal ao condenar a arguida pelo cometimento do crime de maus tratos;
34.
E porque atentos os relatório periciais constantes de fls. 173 e 201 dos autos não é possível estabelecer um nexo de causalidade entre os actos imputados à arguida e as alterações comportamentais e de evolução da doença de que padece o menor (N), deve também a arguida ser absolvida da indemnização cível em que foi condenada por total ausência de pressupostos para essa condenação.
Termos em que,
          Deve ser dado provimento ao presente recurso, anulando-se a decisão recorrida, modificando-se a resposta dada aos factos nºs 5, 6, 10, 12, 13, 19 a 22 e 25 dos factos dados por provados, concluindo pela inexistência dos elementos caracterizadores do crime de maus tratos e sendo a recorrente absolvida quer da condenação penal quer quanto à indemnização cível, como é de direito e é de inteira
                                                JUSTIÇA».
         3. Na resposta, quer a Digna Magistrada do Ministério Público junto da 1.ª instância quer os assistentes/demandantes pugnam pela improcedência do recurso.
         4. Subiram os autos a esta Relação e, aqui, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta é de parecer que o recurso não merece provimento e que deve ser mantida a decisão recorrida.
         5. Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, não houve resposta.
         6. Efectuado o exame preliminar e colhidos os vistos, teve lugar a conferência.
II – FUNDAMENTAÇÃO
Cumpre, pois, apreciar e decidir.
         7. Do âmbito do recurso:
       Como é entendimento unanimemente adquirido, o objecto do recurso – e sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso – é definido pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação.
         E nas conclusões, como resulta do n.º 1 do art. 412.º do Código de Processo Penal (serão deste diploma todas as disposições legais que se vierem a referir sem indicação de origem), o recorrente «resume as razões do pedido», ou seja, as conclusões devem conter somente a enunciação concisa e clara dos fundamentos de facto e de direito das teses perfilhadas na motivação.
No caso, a prolixidade das mesmas evidencia que a recorrente postergou aquele normativo, pois que elas, em vez de constituírem uma síntese dos fundamentos do recurso vertidos na motivação, são uma repetição desses mesmos fundamentos.
Ainda assim, é possível descortinar a verdadeira pretensão da recorrente no âmbito da impugnação da matéria de facto: quer ver declarados como não provados os pontos de facto, que indica, e que a final suportam a sua condenação, pois que em seu entender as provas, que também indica, não consentem que os mesmos [factos] se dêem como provados. Concomitantemente, expressa o entendimento de que “resulta somente como provado que até pelo menos meados de Janeiro de 1999 nunca a arguida tenha praticado os actos de que vinha acusada (...), e que uma vez, entre meados de Janeiro de 1999 e 5 de Fevereiro do mesmo ano, colocara uma chupeta na boca do (...) menor e gravara e reproduzira o seu choro (...).” (cf. conclusão 17.ª).
         É claro que não deixaremos de apreciar esta vertente do recurso, convindo, porém, e desde já, deixar a seguinte advertência.
         O recurso em matéria de facto não se traduz, ao contrário do que muitas vezes parece transparecer das pretensões que nesse âmbito os arguidos trazem perante a 2.ª instância, num segundo julgamento, como se a Relação tivesse que reapreciar toda a prova produzida e documentada em 1.ª instância, extraindo daí, o próprio Tribunal superior, a matéria que entendesse dever dar como provada, face à apreciação que fizesse da globalidade da prova, que poderia ser, evidentemente, a mesma ou diversa da que fora considerada assente pelo tribunal recorrido.
         Do que se trata, no duplo grau de jurisdição em matéria de facto, é de o Tribunal de recurso, no caso a Relação, apreciar criticamente o iter trilhado pela 1.ª instância no processo de formação da convicção.
         É que apresentando-se o recurso como um remédio jurídico, que não como um meio de decisão de uma concreta causa, o seu objecto, no domínio que agora importa ter presente, confina-se à tarefa de surpreender na decisão de recorrida eventuais erros in judicando ou in procedendo, corrigindo-os, se for caso disso (art. 431.º).
         Depois, o recurso em matéria de facto, cujo fundamento assenta na existência [eventual] daqueles erros, nada tem que ver com os vícios previstos no n.º 2 do art. 410.º, cuja constatação há-de resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum.

         8. Das questões a decidir:
       Tendo então presentes as conclusões formuladas, podemos enunciar como questões a decidir as seguintes:

         - Violação dos artigos 355.º e 356.º;

       - Recurso em matéria de facto;

       - Enquadramento jurídico-penal dos factos; e;

       - Nexo de causalidade entre o facto e o dano.

       9. Resolução destas questões:

       9.1. Comecemos, antes do mais, por transcrever o teor da sentença recorrida, no que concerne aos factos provados, aos não provados e à respectiva motivação:
 
«A) Factos provados
Discutida a causa, resultaram provados os seguintes factos:
Da Pronúncia
1. No lectivo de 1998/1999 a arguida exerceu funções de professora na Escola Básica n.º 1 de Baratã, em Sintra.
            2. Nesse ano lectivo a arguida deu aulas a alunos do 1º ano do 1º ciclo do ensino básico da referida escola, sendo um dos seus alunos (N), nascido a 10.04.1990.
            3. Já nessa época, (N) era portador de um cromossomopatia, variante de Síndrome de Klinefelter, cariótipo (49,XXXXY) e tinha fenótipo compatível com essa Síndrome.
4. Tinha também um atraso cognitivo grave e apresentava um atraso no seu desenvolvimento psico-motor, o que era do conhecimento da arguida.
5. Após o início do ano lectivo, ocorrido em Setembro de 1998, e no decurso das aulas que ministrava, em datas não concretamente apuradas mas anteriores a 4 de Fevereiro de 1999, a arguida, pelo menos em mais do que duas ocasiões, colocou uma chupeta na boca de (N) para o impedir de chorar, forçando-o a usar o referido objecto.
6. Nesse mesmo período temporal, no decurso das aulas que ministrava, mas em ocasiões não concretamente determinadas, a arguida gravou o choro do menor (N) e depois reproduziu a referida gravação à frente do menor e dos demais colegas de turma, o que sucedeu por mais do que duas vezes, embora em número de ocasiões que não se logrou apurar.
7. Ao ouvir o seu choro, (N) começava a chorar.
            8. Devido ao comportamento da arguida para com o menor, este, quando regressava a casa após o período de aulas, começou a dizer a seus pais que não havia aulas, que a professora não ia, o que não correspondia à verdade.
9. Desde então o menor começou a dizer aos pais que a arguida lhe batia.
10. Pelo menos por uma vez, no dia 3 de Fevereiro de 1999, a arguida desferiu uma bofetada na cara do menor (N), que tinha um inchaço na face devido a um abcesso, o qual era visível, provocando-lhe lesões não concretamente apuradas.
11. Ao desferir a bofetada na cara do menor (N) a arguida não poderia ignorar que o mesmo tinha um abcesso na face onde o atingiu.
12. Em 5 de Fevereiro de 1999 (N) deixou de frequentar aquela Escola Básica n.º 1 de Baratã.
13. A partir de data não concretamente apurada, mas desde Setembro de 1998 e até 5 de Fevereiro de 1999, o menor (N) começou a apresentar alterações de comportamento, verificando-se um agravamento da dificuldade de articulação verbal, irritabilidade fácil, dificuldade em reter a urina e começou a roer as unhas.
14. A arguida sabia que, enquanto professora, lhe cabia zelar pelo bem-estar físico e psíquico dos menores que se encontravam sob sua orientação e ensino, assim como sabia que (N) padecia de um atraso psico-motor e, apesar disso, não se coibiu de actuar da forma descrita para com o referido menor.
15. A arguida agiu de forma deliberada, livre e consciente, com intenção de molestar o corpo do menor (N), o que conseguiu.
16. Ao forçar (N) a colocar uma chupeta na boca e ao gravar e reproduzir o seu choro na sala de aula, sabia a arguida da possibilidade de, com tal conduta, molestar a saúde psíquica do referido menor, provocando-lhe, desgaste físico e psicológico, o que conseguiu, conformando-se a arguida com essa possibilidade.
17. Mais sabia a arguida que ao praticar tais actos existia a possibilidade de causar a (N) sentimentos de medo, de instabilidade e insegurança, prejudicando o seu normal desenvolvimento, tendo-se conformado com essa possibilidade.
18. Sabia igualmente a arguida que a sua conduta era proibida e punida por lei.
            Do Pedido de Indemnização Civil
19. Na sequência dos factos ocorridos na sala de aula, acima descritos, perante qualquer chamada de atenção por parte dos seus familiares (N) não continha a urina, começava a chorar e refugiava-se debaixo das camas.
20. (N), que sempre foi uma criança meiga e afável, passou a adoptar atitudes agressivas para com a irmã mais nova, o que nunca sucedera até então.
21. Em Junho de 1999 foi diagnosticada epilepsia ao menor (N).
22. Devido aos comportamentos da arguida para com (N), o menor sofreu angústia, revolta e medo.
Mais se provou que:
23. No ano lectivo 98/99 o menor (N) estava integrado numa turma do ensino regular, na qual se integravam outras três crianças com necessidades educativas especiais.
24. Nesse ano, (N) recebeu apoio educativo de uma professora do ensino especial, o qual decorria fora da sala de aula, e teve início em Outubro de 1998, embora o plano educativo individual só tenha sido elaborado Janeiro de 1999.
25. Ao ouvirem a reprodução da gravação do choro de (N), alguns dos alunos da turma achavam graça e riam-se.
26. A arguida foi professora por mais de trinta anos, e já tinha leccionado em turmas de ensino regular onde se integravam crianças com necessidades especiais e dificuldades de aprendizagem.
27. Actualmente a arguida está aposentada, auferindo uma pensão de reforma de aproximadamente € 2.000,00.
28. Vive sozinha em casa própria.
29. Com a prestação mensal relativa a empréstimo bancário, despende a arguida quantia que não soube concretizar.
30. Como habilitações literárias possui uma licenciatura em ciências religiosas.
31. No certificado do registo criminal da arguida não se encontram averbadas quaisquer condenações.
Da Contestação
Nada se provou com relevância para a decisão da causa.
B) Factos não provados
Com relevância para a decisão da causa, não se provaram os demais factos vertidos no despacho de pronúncia e nos articulados de pedido cível e de contestação, designadamente que:
Da Pronúncia
I. Desde o início das aulas, em 18 de Setembro de 1998, que a arguida começou a dirigir-se diariamente a (N), desferindo-lhe bofetadas na cara, palmadas nas mãos e nas nádegas.
II. Ao ser reproduzida a gravação do seu choro, o menor (N) começava a tremer.
            III. Caso o menor não parasse de chorar a arguida punha-o fora da sala de aula, ficando o mesmo na rua.
IV. Por diversas vezes o menor (N) dirigiu-se à arguida, tentando abraçá-la mas esta repelia-o, empurrando-o.
Do Pedido de Indemnização Civil
V. Em plena aula, após gravar o choro de (N), a arguida dizia "vamos ouvir o (N)a chorar".
Da Contestação
VI. A arguida procurou fazer a integração do menor (N) na classe onde se integrava, na medida dos seus conhecimentos e sem o apoio educativo que lhe devia ter sido dado.
VII. Enquanto foi professora, a arguida sempre desempenhou as suas funções com zelo e diligência, sendo considerada por colegas, pais e alunos como uma professora interessada e competente.
*
Não se responde ao demais vertido no despacho de pronúncia e nos articulados de contestação e de pedido de indemnização civil, quer por se tratar de matéria já apreciada, quer por se tratar de matéria conclusiva ou de direito.

C) Motivação da decisão de facto
Sendo certo que, salvo quando a lei disponha diferentemente, a prova deve ser apreciada, no seu conjunto, segundo as regras da experiência e segundo a livre convicção do julgador (cfr. art.º 127.° do CPP), foram os seguintes os meios de prova nos quais o Tribunal fundou a sua convicção quanto à factualidade apurada:
I. Declarações da arguida:
(A) negou a existência de qualquer agressão física perpetrada no menor, admitindo, todavia, ter procedido à gravação de aulas - em cujas fitas ficou gravado o choro do menor -, mas que não o fez com esse propósito, mas sim com intuitos pedagógicos, de molde a desenvolver a oralidade dos alunos, sendo certo que não se recorda de ter reproduzido tais gravações na sala de aula. Já no que concerne à introdução de uma chupeta na boca de (N), garante que foi o menor que quis usar o referido objecto, cuja existência na sala de aula foi justificada com a necessidade de apresentar aos alunos um objecto cujo nome se iniciasse com "ch".
Mais esclareceu que o menor (N) iniciou o ano lectivo na sua sala com o seu assentimento, o qual foi integrado na turma de ensino regular, aí se integrando outras três crianças com necessidades especiais, uma delas com deficiência motora pelo que era acompanhada por uma auxiliar do ensino especial. Acrescentou ainda a arguida que na data dos factos já tinha trabalhado anteriormente com crianças com necessidades especiais, sendo certo que já leccionava há cerca de 30 anos.
A arguida esclareceu ainda acerca das suas actuais condições pessoais e de vida, declarações que, nessa medida, se reputaram credíveis.

II. Declarações dos assistentes:
(LL) depôs de forma serena, explicando as fragilidades físicas e psíquicas do seu filho (N), das quais padece desde a nascença, tendo igualmente esclarecido o percurso do menor no ano lectivo de 98/99, nomeadamente quanto às alterações comportamentais que o mesmo sofreu desde finais do ano de 98 e que se foram agudizando até Fevereiro do ano seguinte. Tais declarações foram corroboradas por (OL) que esclareceu ainda acerca das circunstâncias em que tomou conhecimento dos factos agora imputados à arguida, que lhe foram relatados pelo seu filho e, posteriormente, confirmados por colegas de escola do mesmo. Concretizou ainda as conversas que manteve com a arguida acerca do desenvolvimento e comportamento do menor. Não obstante o interesse evidente dos assistentes no desfecho desta causa, as suas declarações revelaram-se descomprometidas, os quais chegaram a admitir que num primeiro momento não acreditaram que a ora arguida tivesse, de facto, agredido o seu filho, o que não poderá deixar de se ter em conta de molde a reforçar a credibilidade dos seus testemunhos.

III. Prova Testemunhal:
Depoimentos de (MA), (BN), (PV)s, (SP), (EJ) e (AP), que na data dos factos aqui em apreciação eram alunos da arguida e colegas de turma do menor (N), que demonstraram possuir conhecimento directo acerca dos factos aqui em apreciação. Efectivamente, não obstante a tenra idade das testemunhas (teriam cerca de seis anos na data dos factos), todos os depoimentos se revelaram serenos, convictos, não forçados, uns recordando-se de uns aspectos, outros de outros pormenores, o que se afigura plausível em face do lapso temporal decorrido. Porém, com excepção, de (PV)s - que, nas suas palavras, apenas tem "flashes" da professora Adriana gravar o choro do (N)e depois reproduzir essa gravação para toda a turma - os demais inquiridos são unânimes em afirmar que a arguida, quando o (N) chorava, colocava-lhe uma chupeta na boca contra a vontade deste, o que sucedeu por mais do que uma vez, o que desagradava ao menor, que muitas vezes chorava ainda mais. No que concerne à gravação e reprodução propositadas do choro do menor (N), para além do já mencionado depoimento de (PV)s, também os menores (SP), (EJ) e (AP) relataram a ocorrência de tais factos, sendo certo que estes dois últimos afirmaram que todos se riam na sala, pois como eram crianças "achavam graça". Importa referir que tais depoimentos se revelaram sinceros e isentos e em grande medida coincidentes com as declarações prestadas pelos mesmos no âmbito do processo disciplinar instaurado à arguida, na data com idades compreendidas entre os 6 e os 7 anos de idade, o que reforça a convicção do Tribunal quanto à pureza e veracidade do relatado pelas referidas testemunhas (cfr. elementos documentais relativos aos depoimentos prestados a fls. 59-60, 61-62 do apenso I, fls. 34-34vº, 36-37, 40-41, 42-42vº, 43-44 e 55-55vº, todas do apenso II), estando tal elemento probatório documental junto aos autos sendo, por conseguinte, susceptível de valoração.[1]
As declarações prestadas pelos referidos menores foram, na sua generalidade, corroboradas pelo depoimento de (DB), psicóloga, que exerceu funções de auxiliar de ensino especial na sala de aula da arguida entre Janeiro e Fevereiro de 99, na sequência da baixa por doença da auxiliar (ACB). A referida testemunha demonstrou grande desprendimento e isenção no relato efectuado quando aos factos que presenciou relativos ao comportamento da arguida para com (N), que pelo menos em uma ocasião obrigou o menor a colocar uma chupeta o que o levava a chorar ainda mais, tendo ainda a arguida gravado e reproduzido o choro do menor, sendo certo que não se recordou da reacção do menor ao ouvir a reprodução do seu choro. De modo convicto e sem hesitação a testemunha afirmou não ter dúvidas de que a gravação era direccionada deliberadamente para o choro da criança, e depois reproduzida perante toda a turma, sustentando ainda que a arguida era pouco tolerante com o menor. A sua antecessora no cargo, (ACB), por seu turno, afirmou nunca ter presenciado quaisquer factos fora do normal durante o período em que deu apoio na sala da arguida, o que ocorreu entre Setembro de 98 e meados de Janeiro de 99, declarações que, em face da forma como foram prestadas, não criaram dúvidas no Tribunal quanto à sua veracidade, mas não se revela susceptível de abalar os demais depoimentos recolhidos.
Teve-se igualmente em consideração os depoimentos de (MRN) e (AP), mães das testemunhas (BN) e (SP), respectivamente, que corroboraram na sua generalidade os depoimentos prestados por suas filhas, que lhes foram relatados pelas mesmas na época em que ocorreram, o que reforça a credibilidade de tais depoimentos. Atendeu-se igualmente ao depoimento de (MFS), que na data dos factos era auxiliar de acção educativa na escola aqui em causa, que afirmou ouvir muitas vezes o menor (N) a chorar no interior da sala de aula e que em certa ocasião entrou na sala, apercebendo-se que estava a ser reproduzida uma gravação com o choro da criança. Acrescentou ainda que via várias vezes o menor fora da sala durante o tempo de aula, mas assegurou que este saía por sua iniciativa e com autorização da ora arguida, não sendo colocado à força fora da sala de aula.
Ponderou-se ainda os depoimentos prestados por (AMD), professora do ensino especial que, na data dos factos, prestava apoio educativo especial a (N), que depôs de modo sereno e convicto, assegurando que logo em Outubro de 98 começou a prestar apoio ao menor, sendo que para dar início a tal apoio não era imprescindível o Plano Educativo Individual escrito (junto a fls. 308), o qual só veio a ser elaborado pela testemunha mais tarde. Esclareceu ainda acerca das dificuldades evidenciadas pelo menor, em particular ao nível da concentração e da gestão do insucesso. Acrescentou ainda que, de acordo com a sua experiência profissional, o uso de uma chupeta em criança de oito anos e a gravação e reprodução do seu choro na sala de aula não configuram técnicas pedagógicas adequadas. Tal entendimento foi igualmente verbalizado pela já referida testemunha (DB) e ainda pela testemunha (MD), professora, que na data dos factos trabalhava no Centro para a Educação do Cidadão Deficiente (CECD), que estabeleceu uma parceria com a Escola da Baratã, de molde a integrar na mesma alunos deficientes. Depôs de forma concisa e descomprometida, elucidando o Tribunal acerca das suas funções de coordenação cabendo-lhe, nomeadamente, colocar na escola as auxiliares que permaneciam no interior da sala de aula - primeiro, (ACB), meses mais tarde (DB) (Janeiro - Fevereiro) - recordando-se que uma das auxiliares lhe falara do episódio da chupeta. Instada a esclarecer se o uso da chupeta numa criança de oito anos e a gravação e reprodução do seu choro perante a turma se revelavam métodos pedagógicos adequados, declarou sem hesitações que objectivamente não considerava métodos adequados e que não os utilizaria.
À mesma conclusão acabou por chegar a testemunha (ASC) psicóloga e formadora, que conhece a arguida desde 1995, por ter sido sua formanda, que não obstante ter prestado um depoimento inseguro e hesitante, fugindo às perguntas que lhe foram dirigidas e tentando justificar as condutas imputadas à arguida (no que concerne ao uso da chupeta e do gravador) como uma mais valia ao nível pedagógico, acabou por admitir que não se tratam de métodos que aconselhe nas suas formações.
Consideraram-se ainda as declarações de (DP) e (MJL), antigas alunas da arguida nos anos lectivos 86/90 e 85/89 respectivamente, que de forma desapaixonada e algo amorfa afirmaram não ter muitas lembranças dos tempos em que foram alunas da arguida, que nas palavras das testemunhas era "uma professora normal", "que não costumava bater". As mesmas recordações foram verbalizadas por (EO) - mãe da testemunha (DP) - e (MCP), cujo filho foi aluno da arguida nos anos lectivos de 93/97, que foram unânimes em afirmar que nada tinham a apontar à arguida enquanto foi professora dos seus filhos, nem tiveram conhecimento de queixas quanto à mesma.
Atendeu-se ainda aos depoimentos de (MJP) e (MEM), ambas professoras do ensino especial que trabalharam com a arguida na escola aqui em causa entre final da década de 80 e inícios da década de 90, que de forma credível esclareceram acerca do bom relacionamento que mantinham com a arguida e da estreita colaboração existente relativamente aos alunos com necessidades educativas especiais. A primeira testemunha referiu ainda que por vezes usava um gravador como método de trabalho com crianças invisuais, sendo que a segunda das mencionadas testemunhas também admitiu a possibilidade de uso de tal tecnologia, nomeadamente durante a leitura de textos com vista à auto-correcção.
O depoimento de (DS), professora aposentada e antiga colega da arguida não assumiu especial relevância para a decisão, porquanto apenas tomou conhecimento dos factos aqui em apreciação pelos assistentes, nada acrescentando para a descoberta da verdade.
No que concerne à matéria do pedido cível, para além das declarações dos assistentes e as prestadas pelas testemunhas arroladas pela acusação, atendeu-se ainda aos depoimentos das testemunhas (MML), amiga dos assistentes desde 1994, que de forma espontânea e genuína relatou como se foi apercebendo das alterações de comportamento do (N), o que ocorreu por altura do Natal de 98, esclarecendo que o menor sempre fora uma criança muito afectuosa e meiga e que começou a evidenciar comportamentos violentos para com o filho da testemunha e para com a própria irmã, escondendo-se frequentemente debaixo das camas, tendo voltado a urinar na roupa, o que já não sucedia há bastante tempo.(MFC), médica e tia do menor, corroborou os factos relatados por (MML), acrescentando que o menor começou também a roer as unhas e a arranhar-se. Acrescentou ainda que em Junho de 99 foi diagnosticada epilepsia ao seu sobrinho, esclarecendo que é frequente o desenvolvimento dessa doença em pessoas com a Síndrome de que padece (N), embora também possa ter sido devido aos factos perpetrados pela arguida.

IV. Prova Documental:
Todos os elementos documentais constante dos autos, designadamente:
 - Elementos clínicos de fls. 160 a 166 e 168;
- Relatório Pedopsiquiátrico de fls. 201 e 202;
- Certidão de assento de nascimento de fls. 412;
- Elementos documentais de fls. 32 a 39;
- Plano Educativo Individual de fls. 308 a 312;
- Certificado do Registo Criminal da arguida, junto aos autos a fls. 654;
- Cópia parcial do processo de averiguações e do processo disciplinar instaurado à arguida pela Inspecção-Geral de Educação, junto como apensos 1 e 2;
- Transcrição de cassete áudio.
*
Concatenando todos os elementos probatórios produzidos e analisados em audiência de julgamento, em particular da conjugação dos elementos documentais constantes do processos disciplinar instaurado à arguida com depoimentos das testemunhas que na data dos factos partilhavam a sala de aula com o menor (N), o Tribunal convenceu-se que a arguida praticou os factos vertidos nos factos provados, sendo certo que tal convicção não foi abalada pelos depoimentos prestados pelas testemunhas que, em anos anteriores, trabalharam com a arguida ou foram seus alunos. De facto, as pessoas que demonstraram poder possuir conhecimento directo acerca da factualidade aqui em causa foram praticamente unânimes em asseverar que a arguida, em mais do que duas ocasiões obrigou (N) a colocar uma chupeta na boca, e que no mesmo período temporal gravou e reproduziu o choro do referido menor, reprodução que teve lugar pelo menos por duas vezes, sendo certo que a transcrição da cassete áudio junta aos autos não invalida a existência de outros registos fonográficos, com os objectivos relatados pelas testemunhas.
Já em relação às alegadas agressões físicas, a prova foi mais ténue, apurando-se apenas, com a certeza que é exigida em matéria penal, que pelo menos no dia 3 de Fevereiro de 1999 a arguida desferiu uma bofetada na cara do menor (N), o qual tinha na ocasião um inchaço na cara devido a um abcesso, que era perfeitamente visível, tanto mais que foi percepcionado por algumas das crianças, pelo que a arguida não poderia ter deixado de observar tal facto. Nesta matéria, relevou não só os depoimentos seguros de (BN) e sua mãe, (MRN), bem como de (AP), associado às declarações de (L), que assegurou de forma convicta ter visto marcas na cara de seu filho, que afirmou que a professora lhe batera.
No que concerne à matéria dada como não provada, no que respeita ao alegado no despacho de pronúncia, tal circunstancialismo teve subjacente a insuficiência probatória verificada para que, com a segurança que se impõe, se pudesse dar tal factualidade como provada.
No tocante à matéria dada como não provada alegada na contestação, a tal decisão presidiu igualmente a insuficiência de prova apresentada, pois não obstante o teor dos depoimentos da maioria das testemunhas arroladas pela defesa ser no sentido de a arguida sempre ter sido uma "professora normal", pelo menos nos anos lectivos em que o seu caminho se cruzou com o das referidas testemunhas, o certo é que tais depoimentos não se revelaram suficientes para convencer o Tribunal quanto ao alegado no artigo 5º da contestação, em face dos demais elementos constantes destes autos, nomeadamente os depoimentos das restantes testemunhas e os documentos de fls. 32 a 39, onde se retratam outros episódios alegadamente passados em outros anos lectivos. Já a resposta negativa à matéria vertida no artigo 4º da contestação, resultou de se ter provado facto contrário, porquanto se apurou que logo desde Outubro de 1998 o menor passou a beneficiar de apoio educativo especial.».

         9.2. Violação dos artigos 355.º e 356.º:
Diz a recorrente que a sentença impugnada, para além de seguir uma orientação que ofende os princípios da publicidade da audiência e das garantias de defesa, constantes dos arts. 206.º e 32.º da Constituição da República, viola os arts. 355.º e 356.º.
         Ao pretender demonstrar esta asserção, afirma que os depoimentos das seis testemunhas que foram colegas de escola do menor (N) são contraditórios, não revelando, assim, a segurança necessária para com base neles o tribunal formar a sua convicção.
Daqui, acrescenta, a Mm.ª Juíza resolveu essa incerteza da prova através do seu cotejo com os depoimentos que as mesmas testemunhas tinham prestado no processo disciplinar instaurado à arguida pela Inspecção Geral do Ensino, louvando-se, para tanto, no n.º 2 do art. 355.º e no Acórdão n.º 87/99, do Tribunal Constitucional.
         Ora, conclui, a apontada violação existe porquanto, em primeiro lugar, e no que toca às declarações prestadas por aquelas testemunhas no processo disciplinar, não se mostram reunidas as circunstâncias previstas no art. 356.º, e, por essa razão, não ocorrem as circunstâncias excepcionais a que se refere o art. 355.º; em segundo lugar porque do dito Acórdão se retira exactamente essa proibição de valoração de anteriores declarações prestadas pelas testemunhas e constantes de documentos juntos aos autos [cf. conclusões 6.ª a 12.ª].
         Consequentemente, remata, é nula a valoração da prova efectuada pela sentença recorrida, no que concerne aos depoimentos prestados por as referidas seis testemunhas [cf. conclusões 6.ª a 12.ª].
         Analisemos. 
A decisão recorrida, ao apreciar e valorar os depoimentos das referidas testemunhas, considerou: «Importa referir que tais depoimentos se revelaram sinceros e isentos e em grande medida coincidentes com as declarações prestadas pelos mesmos no âmbito do processo disciplinar instaurado à arguida (...), estando tal elemento probatório documental junto aos autos sendo, por conseguinte, susceptível de valoração.».
         Este “elemento probatório documental” é nem mais nem menos do que uma cópia parcial dos processos de averiguações e disciplinar instaurados à arguida pela Inspecção-Geral de Educação, juntos como apensos I e II, e que a sentença refere quando enumera a prova documental a que atendeu.
         Paralelamente, para justificar a valoração da prova documental em apreço, a sentença contém uma nota de pé de página na qual vem invocado, em apoio do entendimento que segue, o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 87/99, de 09-02-99, e na qual se diz, entre o mais, que a apreciação de tal prova documental em nada colide com a proibição de valoração de provas a que alude o n.º 1 do art. 355.º.
         Pois bem. Parece que a recorrente – e afirmamo-lo com todo o devido respeito – não entendeu o que se diz na sentença, e que acabámos de transcrever parcialmente.
         Explicitemos.
         A cópia [parcial] do processo de averiguações e do processo disciplinar instaurados à arguida pela Inspecção-Geral de Educação, junta aos autos, e nos quais as ditas seis testemunhas foram ouvidas, pois que na altura dos factos eram colegas de escola do menor (N), e portanto eram também alunos daquela, constitui indubitavelmente um meio de prova documental [art. 164.º e ss.].
         Ora, a possibilidade legal deste meio de prova ser atendido e valorado pelo tribunal, sem necessidade de se proceder ao seu exame e leitura em audiência, em contrário portanto do que resultaria do aplicação do n.º 1 do art. 355.º, tem sido por várias vezes, e há muito, defendida pelo Supremo Tribunal de Justiça, com o argumento de que estando os documentos previamente integrados nos autos, deles teve a defesa conhecimento após notificação da acusação, pelo que no caso de o tribunal se socorrer de tal prova não constitui nulidade a falta da sua menção na acta.[2]
E não é outro o entendimento expendido pelo dito Acórdão[3] do Tribunal Constitucional, e no qual estava em apreciação a conformidade constitucional da norma do n.º 1 do art. 355.º, além de outras, quando considera que «Não é indispensável à satisfação da exigência do princípio do contraditório, quer na modalidade do princípio da oralidade quer da imediação, a leitura necessária de toda a prova documental pré-constituída e junta ao processo (...).». E que adianta, focando naturalmente a situação que aí estava em causa: «(...) no caso em apreço, o arguido teve toda a oportunidade de discutir, contestar e de desvalorizar os factos constantes dos documentos em questão; a leitura em audiência (...) nada acrescentaria às oportunidades de defesa do arguido. Seria, como refere o Ministério Público, um «verdadeiro “simulacro” de “constituição” no decurso daquele acto processual de uma prova que, afinal, já existia, de modo anterior e autónomo relativamente ao processo penal em questão».».
         De forma que a sentença mais não fez do que seguir o entendimento acabado de expressar, não tendo sido feita, ao contrário do que afirma a recorrente, qualquer ofensa nem ao princípio da publicidade da audiência nem ao princípio das garantias de defesa.
         Diga-se, ainda, que não conseguimos vislumbrar a que título é que ela invoca o art. 356.º - independentemente de não indicar, dentro da amplitude que o legislador conferiu a tal norma, o segmento que terá sido violado pela decisão recorrida -, pois que a sentença não se socorreu, nem tinha que se socorrer, de tal dispositivo.
         Bastaria lembrar, se preciso fosse, que, como é bom de ver, não estamos aqui em presença de quaisquer declarações que as ditas testemunhas tenham prestado no decurso do processo [judicial], seja na fase de inquérito ou de instrução, mas antes, como facilmente se entende, num processo de cariz administrativo – de averiguações e disciplinar.
Sem mais, e porque também não foram violados os arts. 355.º e 356.º, improcede esta primeira questão.

         9.3.Recurso em matéria de facto:
       Como deixámos referido [cf. supra, em 7.], a recorrente quer ver declarados como não provados determinados factos, pois que em seu entender as provas, nomeadamente os depoimentos das testemunhas a que se aludiu no número anterior, não consentem que os mesmos [factos] se dêem como provados.
         Esses factos, tanto quanto é possível retirar das conclusões de recurso, são os que a sentença verteu sob os pontos 5; 6; 10; 12; 13; 19 a 22 e 25, que têm o seguinte teor:
         «5. Após o início do ano lectivo, ocorrido em Setembro de 1998, e no decurso das aulas que ministrava, em datas não concretamente apuradas mas anteriores a 4 de Fevereiro de 1999, a arguida, pelo menos em mais do que duas ocasiões, colocou uma chupeta na boca de (N) para o impedir de chorar, forçando-o a usar o referido objecto.
6. Nesse mesmo período temporal, no decurso das aulas que ministrava, mas em ocasiões não concretamente determinadas, a arguida gravou o choro do menor (N) e depois reproduziu a referida gravação à frente do menor e dos demais colegas de turma, o que sucedeu por mais do que duas vezes, embora em número de ocasiões que não se logrou apurar.
            10. Pelo menos por uma vez, no dia 3 de Fevereiro de 1999, a arguida desferiu uma bofetada na cara do menor (N), que tinha um inchaço na face devido a um abcesso, o qual era visível, provocando-lhe lesões não concretamente apuradas.
            12. Em 5 de Fevereiro de 1999 (N) deixou de frequentar aquela Escola Básica n.º 1 de Baratã.
13. A partir de data não concretamente apurada, mas desde Setembro de 1998 e até 5 de Fevereiro de 1999, o menor (N) começou a apresentar alterações de comportamento, verificando-se um agravamento da dificuldade de articulação verbal, irritabilidade fácil, dificuldade em reter a urina e começou a roer as unhas.
            19. Na sequência dos factos ocorridos na sala de aula, acima descritos, perante qualquer chamada de atenção por parte dos seus familiares (N) não continha a urina, começava a chorar e refugiava-se debaixo das camas.
20. (N), que sempre foi uma criança meiga e afável, passou a adoptar atitudes agressivas para com a irmã mais nova, o que nunca sucedera até então.
21. Em Junho de 1999 foi diagnosticada epilepsia ao menor (N).
22. Devido aos comportamentos da arguida para com (N), o menor sofreu angústia, revolta e medo.
            25. Ao ouvirem a reprodução da gravação do choro de (N), alguns dos alunos da turma achavam graça e riam-se.».

         Para a prova da matéria acabada de transcrever sob os pontos 5; 6; 10 e 25 foram decisivos os depoimentos das testemunhas (MA), (BN), (PV)s, (SP), (EJ) e (AP), os menores, hoje com dezasseis/dezassete anos de idade, que à data dos factos eram colegas de escola do menor (N).
         E é precisamente nestes depoimentos que a recorrente coloca o acento tónico da sua crítica, dizendo, nomeadamente, que os mesmos são “claramente contraditórios, não mostrando a segurança necessária para poder formar a convicção do Tribunal” [v. conclusão 6.ª].
         Ora, escutada a gravação de tais depoimentos, recordemos o essencial dos mesmos.
         O (MA) afirmou: “Lembro-me de ela lhe meter a chucha na boca” e “Metia-a na boca várias vezes”, sendo que para além da chucha não se lembra de mais nada.        
         A (BN) proferiu em audiência as seguintes afirmações, entre outras: “Punha-lhe a chucha quando ele chorava”; “Batia, chapadas, estalos”; “Era frequente, todos os dias”; “Lembra-se que o (N) tinha um abcesso” e “Deu-lhe um estalo com o abcesso”.
         O (PV)s: “Gravava o (N)a chorar para a gente ouvir”; “Lembro-me mais ou menos, são “flashes” de memória”; “Lembro-me a gravar a chorar para a gente ouvir”; “Lembro-me do gravador” e “Lembro-me dela gravar para a gente ouvir”.
         Por sua vez, asseverou a (SP): “O (N)era meigo”; “Não era igual a nós”; “Tinha problemas de aprendizagem”; “Às vezes a professora punha um rádio (!.), um gravador, para gravar o (N) a chorar”; “Punha a tocar para nós ouvirmos”; “Lembro-me de a professora pôr a chucha, punha-a na boca do (N)”. E sendo-lhe perguntado se tal era frequente, respondeu: “Às vezes! Nem era muito frequente nem muito raramente, era às vezes”. Depois, referindo-se ao episódio da chucha: “Era obrigado, o (N) não queria”.
         O (EJ): “Lembra-se de a professora pôr a chucha”; “Às vezes, gravava para a gente ouvir o choro do (N)”; “Acho que foi mais do que uma vez que lhe pôs a chucha à força”; “Como éramos crianças achávamos graça” e “Só gravava o choro do (N)”.
         Por fim, o (AP), depois de referir que a professora, a arguida, aqui recorrente, [a ele] lhe bateu uma vez, afirmou: “Frequente, frequente, era ao (N)”; “Comprou uma chucha” ; “Batia nele”; “Ele baixou as calças e as cuecas, depois bateu-lhe”; “Gravava o choro e depois “mostrava”; “Era mais para ridicularizá-lo”; “Nós éramos crianças, ríamos daquilo”; “O (N) foi o que sofreu mais” e “Mais regularmente chorava e ficava chateado”.
         Ora, estes depoimentos não só não são infirmados por quaisquer outros, como, ao invés, são corroborados por alguns dos demais. Atente-se, por exemplo, no de (DB), psicóloga, e auxiliar de ensino especial, que durante dois meses foi substituir uma colega, de baixa por doença, e que “de manhã acompanhava o (N) e outros alunos, com necessidades educativas especiais, e à tarde estava no ginásio com eles”, e afirmou, referindo-se à arguida, que “chegou a colocar a chucha (na boca do menor, bem entendido) para o humilhar” e que “chegou a gravar o choro do (N)”.
         Pois bem. Estes elementos de prova, os demais depoimentos prestados, nomeadamente por parte dos assistentes, pais do menor, e a prova documental, apreciados e valorados criticamente, à luz das regras da experiência comum, autorizam perfeitamente a fixação dos factos nos termos em que o fez o tribunal «a quo», que seguramente, no processo formativo da sua convicção, não deixou de tirar partido das virtualidades que só a oralidade e a imediação consentem.
         Por ser assim, analisada a motivação de facto que acompanha a sentença, acima transcrita, nomeadamente na parte que se prende com os questionados factos, não se descortina qualquer censura que esta Relação possa fazer ao «iter» seguido pela 1.ª instância na convicção que formou, e que lógica e racionalmente motivou, pois que externou o porquê de ter proferido aquela decisão e não outra.
         Tanto basta então para concluirmos que, consentindo a prova produzida dar como provados os factos que vêem assentes, o que já se afirmou, e inexistindo qualquer prova que imponha decisão diversa da recorrida, não pode ter acolhimento a pretensão da recorrente quando, ao cabo e ao resto, fazendo a sua própria leitura da prova, o que para o caso é absolutamente irrelevante, pugna nestes termos: «resulta somente como provado que até pelo menos meados de Janeiro de 1999 nunca a arguida tenha praticado os actos de que vinha acusada (...), e que uma vez, entre meados de Janeiro de 1999 e 5 de Fevereiro do mesmo ano, colocara uma chupeta na boca do (...) menor e gravara e reproduzira o seu choro (...).» (conclusão 17.ª).

         Um parêntesis para dizer que vista a decisão recorrida, está ela imune aos vícios do n.º 2 do art. 410.º, de conhecimento oficioso[4], como se sabe. Estes vícios, como já deixámos dito [supra, em 7.], hão-de resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum. No caso, ainda que a recorrente nunca refira aquele normativo, se ela, com o alegado “erro notório da valoração da prova” [conclusão 23.ª], pretende invocar o vício previsto na al. c) daquele n.º 2, podemos afirmar, sem qualquer reserva, que o mesmo é inexistente.

         Improcedente o recurso em matéria de facto, como vimos, e inexistindo os preditos vícios, como assinalámos, mais não resta do que ter como definitivamente adquirido o factualismo apurado pela 1.ª instância.
         É, pois, à luz dessa facticidade que hão-de ser dirimidas as questões de direito que a seguir passamos a encarar – de forma sintética, adiante-se desde já, pois que a sentença delas cuidou devidamente.

         9.4. Enquadramento jurídico-penal dos factos:
       A apreciação desta questão está de alguma forma prejudicada, pois que a recorrente a coloca “Atenta a prova produzida nos autos (...)” [conclusão 32.ª], ou seja, partindo do princípio de que a leitura que ela própria faz da prova é aquela que está correcta, o que já vimos não ser o caso.
         De todo o modo, referindo ela que a doutrina e a jurisprudência, antes das alterações introduzidas no Código Penal pela Lei n.º 59/2007, de 04-09, entendiam que o crime em apreço exigia a reiteração, autonomizando-se, assim, do crime de ofensa à integridade física, lembremos o que a propósito se escreveu na sentença:
         «Julga-se pertinente fazer uma breve referência à exigência - ou não - de reiteração da conduta, de molde a permitir o preenchimento do tipo de ilícito do crime de maus tratos a menor.
Não obstante a actual redacção do art. 152°-A, n.º 1, alínea a) do Código Penal (introduzida pela Lei n.º 59/2007, de 4.09) fazer menção à desnecessidade de reiteração da conduta, entende-se que tal alteração apenas veio clarificar a anterior redacção do preceito legal, de acordo com o que já vinha sendo decidido pelos tribunais portugueses, sustentando que embora não se baste com uma acção isolada do agente para o preenchimento do tipo, também não se exige habitualidade da conduta e, casos há, em que a gravidade intrínseca da conduta é de tal modo grave que uma única conduta agressiva se revelaria adequada ao preenchimento do tipo de ilícito.».
         Ora, estas considerações merecem a nossa concordância, apesar de alguma jurisprudência e doutrina focalizarem, na perfectibilidade do tipo [antes das preditas alterações, evidentemente], o elemento reiteração das condutas.[5]
         Porém, como quer que seja, face à matéria de facto apurada, dúvidas não temos de que a recorrente, com a sua conduta, preencheu os requisitos objectivos e subjectivos do crime em questão, dispensando-nos, face às judiciosas considerações que a sentença tece a esse propósito, de produzir aqui outros considerandos.
         Não foi, pois, violada a norma do art. 152.º, n.º 1, al. a), do Código Penal, ao contrário do que afirma a recorrente.

         9.5. Nexo de causalidade entre o facto e o dano:

       A este nível, a decisão recorrida, seguindo os ensinamentos do Professor Antunes Varela, começa por enunciar os requisitos da obrigação de indemnização.
         Depois, justificadamente, face aos factos descritos sob os pontos 13, 19, 20 e 22, dá por verificado o predito nexo entre o facto e o dano a que atendeu, não se divisando com que fundamento a recorrente afirma que os relatórios periciais de fls. 173 e 201 impossibilitam o estabelecimento de tal nexo de causalidade entre os factos delituosos por si perpetrados e as alterações comportamentais do menor [conclusão 34.ª], que não [também] entre esses factos e o diagnóstico de epilepsia, que a sentença expressamente afasta.
         Enfim, também quanto a este aspecto a decisão recorrida não merece qualquer reparo.
         Improcedente em toda a linha o recurso interposto, ficam duas notas finais. Uma para dizer que a medida da pena encontrada e o quantum indemnizatório arbitrado – sendo certo que estes aspectos não vêm suscitados pela recorrente – se mostram doseados com equilíbrio e em função dos critérios legais aplicáveis.
         Outra para referir que as alterações introduzidas no tipo legal, após a prática dos factos, por força da já mencionada Lei n.º 59/2007, não são de molde, por via da aplicação do regime concretamente mais favorável (art. 2.º, n.º 4, do Cod. Penal), a alterar o decidido, mantendo-se, pois, integralmente, a douta sentença recorrida.

         III – DECISÃO
       A – Nega-se provimento ao recurso.
         B – Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 7 (sete) UCs.
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Lisboa, 17 de Junho de 2009
(Telo Lucas)
(Pedro Mourão)
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[1] A cópia parcial do referido processo disciplinar constitui prova documental junta aos autos ainda em fase de inquérito, e a sua apreciação em nada colide com a proibição de valoração de provas a que alude o nº 1 do art. 355º do CPP. Com efeito, e para além da excepção prevista no nº 2 da mesma disposição legal, tem-se entendido que o tribunal pode ter em atenção estes documentos juntos aos autos e pode igualmente apreciar a prova pré-constituída contida nos autos, uma vez que o arguido pode consultar os mesmos e pronunciar-se sobre aquela – vide Ac. Tribunal Constitucional nº 87/99, de 09.02.99, disponível em www.tribunalconstitucional.pt.
[2] Cf. Acórdão de 21-01-1998, em «Col....Acs. do STJ», Ano VI-I, pp. 173 e ss., e jurisprudência aí referida.
[3] Publicado em «Diário da República», II Série, n.º 151, de 01-07-99.
[4] “Assento” do STJ, de 19-10-95, em DR, I-A Série, de 28-12-95.
[5] Por exemplo, na doutrina, escreve o Professor Taipa de Carvalho, em Comentário Conimbricense do Código Penal, tomo I, pp. 334: «O tipo de crime em análise pressupõe, segundo a ratio da autonomização deste crime, uma reiteração das respectivas condutas. Um tempo longo entre dois ou mais dos referidos actos afastará o elemento reiteração ou habitualidade pressuposto, implicitamente, por este crime.».