Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
20438/18.6T8LSB-A.L1-7
Relator: CARLOS OLIVEIRA
Descritores: EMBARGOS DE EXECUTADO
LIVRANÇA
TAXA DE JURO
USURA
CONHECIMENTO OFICIOSO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/19/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONHECIMENTO OFICIOSO
Sumário: 1. A não apreciação pelo Tribunal “a quo” de exceção perentória, não alegada pelas partes, mas suscetível de conhecimento oficioso, não preenche a previsão da al. d) do n.º 1 do Art. 615.º do C.P.C. relativa à nulidade da sentença por “omissão de pronúncia”. A não pronúncia, nessas condições, deve ter-se como mero “erro de julgamento” por não se ter tido em consideração o espetro normativo mais alargado que seria suscetível de aplicar ao caso concreto, levando a que o juiz tenha proferido decisão que materialmente possa ser tida por injusta.
2. Apurada a taxa de juro aplicada pelo exequente no cálculo do crédito exequendo, a questão relativa à ilegalidade dessa taxa e consequente redução dos juros usurários, por alegada violação do Art. 1146.º do C.C., mesmo que não tenha sido suscitada nesses termos na 1.ª instância, é exceção de conhecimento oficioso pelo tribunal de recurso.
3. As taxas de juros das operações de crédito bancário não estão subordinadas aos limites objetivos previstos no Art. 1146.º do C.C., porquanto no sistema financeiro, sujeito à supervisão do Banco de Portugal, mostra-se liberalizada a fixação das taxas de juros, salvaguardando-se apenas os limites previstos em lei especial relativamente a cada tipo de crédito bancário que concretamente esteja em consideração.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I- RELATÓRIO
A [ Carlos ……] , executado nos autos principais, veio apresentar oposição à execução mediante embargos de executado, contra o exequente B  [ ..Banco, S.A.], pedindo a procedência dos embargos com a consequente extinção da execução.
Para o efeito alegou, em suma, que o pagamento pelo exequente da garantia bancária subjacente à livrança dada à execução foi feito indevidamente; que a livrança dada à execução foi preenchida abusivamente; e que o exequente recusou o pagamento que lhe foi proposto.
Admitidos os embargos, foi o exequente notificado para contestar, o que fez pugnando pela improcedência dos embargos de executado.
Findos os articulados, vieram as partes a ser advertidas para a possibilidade de ser proferida de imediato decisão sobre o mérito da causa, permitindo-lhes pronunciarem-se em conformidade.
Na sequência foi proferido despacho-saneador sentença que julgou os embargos improcedentes por não provados, determinando o prosseguimento da execução.
É dessa sentença que o embargante vem agora recorrer, apresentando no final das suas alegações as seguintes conclusões:
1. O presente recurso vem interposto da douta sentença que julgou a Oposição à Execução mediante Embargos deduzida pelo Embargante, aqui Recorrente, improcedente, por não provada.
2. Alegou o Recorrente que a Recorrida agiu de uma forma abusiva no preenchimento da livrança, porquanto, considerou valores não contratualizados pelo Recorrente, nomeadamente, os juros à taxa de 30% sobre a quantia em divida.
3. O Recorrente desconhecia por completo a aplicação da taxa de juro de 30% sobre quantia em dívida porquanto nenhum documento assinado pelo Recorrente vem identificada a contratualização ou aplicação de tal taxa.
4. O Recorrente requereu a junção aos autos do contrato de garantia e respetivo pacto de preenchimento da livrança por ser um documento que apenas se encontrava na posse da Exequente.
5. Pela análise do contrato de garantia, retira-se que não foi contratualizada uma taxa de juro de 30%, pelo que não poderia a Recorrida cobrar ao Recorrente tal montante.
6. Acresce, ainda, que, mesmo constasse do contrato uma taxa de juro remuneratório de 30%, a mesma seria ilícita.
7. Nos termos do artigo 1146.º nº 2, por remissão expressa do artigo 559º-A do Código Civil, “É havida também como usurária a cláusula penal que fixar como indemnização devida pela falta de restituição do empréstimo relativamente ao tempo de mora mais do que o correspondente a 7% ou 9% acima dos juros legais, conforme exista ou não garantia real.”
8. Nos termos da Lei, nunca poderia a Exequente, aqui Recorrida, cobrar ao Recorrente, juros remuneratórios à taxa legal de 30% uma vez que os mesmos são ilegais nos termos das normas previstas no Código Civil.
9. Considerando-se o limite legal aplicável aos juros previsto no artigo 1146.º do Código Civil, a Recorrida, apenas poderia cobrar de juros ao Recorrente a quantia de €27.300,71, considerando que o capital em divida era de €63.668,52 tal como indicado pela própria Recorrida na carta enviada ao Recorrente junta como Doc. 7 com a Oposição.
10. Pelo que, os juros cobrados pela Recorrida ao Recorrente no montante de €137.075,68, não são devidos, por serem ilegais.
11. Nessa medida, tal como alegou o Recorrente na sua Oposição, a Recorrida ao ter preenchido a livrança com tais juros ilícitos, agiu de uma forma abusiva.
12. Acresce que, o M. Juiz “a quo” na sua decisão, não apreciou a questão da cobrança de juros à taxa de 30% pela Recorrida, alegada pelo Recorrente.
13. Na sua Oposição, o Recorrente impugna o montante aposto na livrança uma vez que desconhecia a que titulo estavam a ser cobrados juros à taxa de 30%.
14. O contrato de garantia aos autos é prova suficiente da sustentação do facto alegado pelo Recorrente, cuja validade o M. Juiz “a quo” não podia desconsiderar.
15. Nos termos do artigo 608.º nº 2 do CPC “O juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras;”
16. Acrescenta o artigo 615.º nº 1 al. d) do CPC, “É a nula a sentença quando: d) O Juiz deixe de se pronunciar sobre questões que devesse apreciar ou conheça questões de que não podia tomar conhecimento.”
17. Ora, a questão suscitada pelo Recorrente de que não poderiam ser aplicados juros à taxa de 30%, não é apenas matéria de argumentação, mas sim uma questão de fundo, “isto é, as que integram matéria decisória, os pontos de facto ou de direito relevantes no quadro do litígio, ou seja, os concernentes ao pedido, à causa de pedir e às exceções.” (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça datado de 29-11-2005, proferido no processo 05S2137, disponível em www.dgsi.pt)
18. Com a alegação de factos por parte do Recorrente de que houve um efetivo preenchimento abusivo da livrança, nomeadamente quanto à inclusão de juros ilegais, são esses mesmos, aliados ao direito aplicável (artigo 10º da LULL), relevantes para a resolução do litigo, que o M. Juiz “a quo” não poderia descurar.
19. Com efeito, o M. Juiz “a quo” não poderia ter desconsiderado tais factos carreados para os autos pelo Recorrente uma vez que os mesmos eram, e são, essenciais para a boa decisão da causa, nomeadamente, na comprovação de que a Recorrente procedeu ao preenchimento abusivo da livrança ao apor um montante com a inclusão de juros que não estavam contratualizados e, mesmo que estivessem, eram ilícitos.
20. Pelo que, deve a sentença ora em crise ser considerada nula, por violação do artigo 608.º nº 2 e 615.º nº 1 al. d) ambos do CPC.
Pede assim que seja concedido provimento ao recurso e, em consequência, que a sentença recorrida seja revogada e substituída por acórdão que considere procedente a Oposição de Execução mediante embargos deduzida pelo Recorrente.
O embargado respondeu ao recurso, sobrelevando das suas contra-alegações as seguintes conclusões:
1. Por Mui Douta Sentença foram os Embargos de Executado intentados pelo Recorrente julgados totalmente improcedentes, determinando-se o prosseguimento da Execução.
2. A livrança em apreço, foi entregue em branco ao aqui Banco Recorrido, para garantia do cumprimento do contrato de prestação de garantia bancária.
3. Garantia bancária essa, on first demand, a favor da Câmara Municipal de Oeiras.
4. O Recorrente nunca alegou o desconhecimento da dívida, sabendo que assinou pelo seu próprio punho o contrato e a livrança dada à Execução, na qualidade de avalista.
5. Tendo em conta a falta de pagamento por parte da Empresa Executada e subscritora da livrança dada à Execução, foi o Recorrente, na qualidade de avalista, interpelado para pagamento e preenchimento da livrança, conforme documento n.º 7 junto com os seus Embargos de Executado.
6. Na missiva supra mencionada para o Recorrente, encontram-se detalhados e descritos todos os valores peticionados, desde capital, juros, imposto de selo e selagem da livrança, nunca contestados pelo Recorrente, fazendo-o apenas em sede de Recurso a que se responde.
7. Conforme documento n.º 9 junto nos seus Embargos de Executado, o Recorrente reconhece e bem, a responsabilidade solidária, sua e de todos os avalistas perante o Banco Recorrido, nunca contestando o valor em dívida nem tão pouco a taxa de juro aplicável.
8. As alegações de recurso não têm, por isso, qualquer fundamento legal.
Contudo, sempre se dirá,
9. O aval é o ato pelo qual um terceiro ou signatário da livrança garante o pagamento da mesma por parte de um dos subscritores, cfr. artigo 30.º e 77.º da LULL, constituindo assim, um verdadeiro ato cambiário, uma garantia cambial de natureza comercial, em que o dador do aval é responsável na mesma maneira que a pessoa por ele avalizada.
10. Conforme Mui Douta Sentença aqui sub judice: “Como título de crédito, a livrança caracteriza-se pela literalidade, autonomia e abstração, ou seja, vale apenas nos termos dos dizeres dela constantes, atribui a cada um dos seus portadores um direito autónomo do direito do anterior titular e incorpora uma relação distinta da relação jurídica que lhe foi subjacente (cfr. Pinto Furtado Títulos de crédito, 2ª edição, páginas 31 e 32, 40 e 56 e 57).”, consequência de a obrigação de juros ser exigível apenas desde essa citação [art.º 610.º, n.º 2, alínea b), do CPC].”.
11. Assim, a livrança vale por si só, pela ordem de pagamento nela inscrita, sem necessidade da apresentação de outros documentos justificativos, designadamente o documento que corporiza a relação subjacente à emissão do título e o respetivo pacto de preenchimento, nem está o Exequente obrigado a alegar quaisquer factos referentes à relação subjacente.
12. Do contrato de prestação de garantia bancária e pacto de preenchimento junto pelo Banco Recorrido na sua Contestação, verifica-se que a livrança em branco foi entregue ao Banco para garantia do bom pagamento de qualquer das responsabilidades que resultam ou venham a resultar no contrato ou do incumprimento do mesmo, incluindo a simples mora, nomeadamente, e entre outras, o reembolso de capital, o pagamento de juros remuneratórios e moratórios, despesas judiciais ou extra judiciais, honorários de advogados e custas.
13. O avalista não pode opor, como o fiador, os meios pessoais de defesa do devedor principal contra o portador, as exceções pessoais nos termos do Art. 17º LULL, já que de contrário seria negar a natureza do aval, como ato cambiário abstrato, vide Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 06/11/2018.
14. Neste sentido, vide igualmente Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 25/05/2017.
15. O avalista, aqui Recorrente, presta uma garantia à obrigação cambiária do avalizado e não diretamente à obrigação causal subjacente.
16. Esteve bem o M. Juiz a “a quo” aquando refere: “Assim, era ao executado/embargante que competia, querendo prevalecer-se da relação jurídica subjacente à emissão do título, invocar a mesma, aduzindo no seu requerimento de oposição os factos a esta relativos, bem como as razões de facto e de direito em que fundamentam a sua discordância relativamente ao pedido exequendo, o que manifestamente não fez, porquanto se limitou a alegar, em abstrato, que desconhece os cálculos efetuados pelo exequente/embargado para alcançar o valor constante na livrança.”
17. Com efeito, tal alegação é o mesmo que nada dizer, pois o Tribunal fica impossibilitado de averiguar em que termos e em que medida poderá haver preenchimento abusivo, pois é sobre o executado que incide o ónus de alegar e consequentemente provar qualquer incorreção do montante aposto na livrança dada à execução, já que se trata de um facto impeditivo do direito invocado pela exequente (Art. 342º, n.º 2 do Cód. Civil), e nada disso vem alegado. Alegam por fim que as livranças não deveriam ter sido preenchidas pelo montante, respeitante ao capital, juros e demais despesas processuais, contudo, legalmente encontra-se previsto a legitimidade de peticionar o calculo dos juros à taxa legal em vigor bem como as demais despesas processuais desde o incumprimento até à propositura da ação.”
18. Assim, não se alcança a omissão de pronúncia alegada pelo Recorrido.
19. Pelo que, é de concluir que não poderia ter o Tribunal “a quo” decidido de forma diversa.
Pede assim a improcedência do recurso e a confirmação da decisão recorrida.
O Tribunal a quo, ao admitir o recurso, ao abrigo do Art. 617.º n.º 1 do C.P.C., pronunciou-se sobre a questão da invocada nulidade da sentença nos seguintes termos:
«O recorrente fundamenta o recurso interposto da sentença proferida em 17 de dezembro de 2019 na alegada nulidade da decisão por omissão de pronúncia, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 615º, n.º 1, alínea d), do Código de Processo Civil, sustentando que o Tribunal não apreciou a questão da cobrança de juros à taxa de 30%.
«Vejamos.
«No que concretamente diz respeito à questão suscitada cumpre salientar que o executado/embargante se limitou a alegar, no art. 55º da petição inicial de embargos de executado, o seguinte: “Quanto à taxa de juro de 30% cobrada pela Exequente, não tendo sido junto com o Requerimento Executivo o contrato de prestação de garantia bancária e o pacto de preenchimento da Livrança, não se comprova se a taxa de juro aplicada ao capital em divida era a que estava contratualizada”.
«Na sentença recorrida refere-se, a propósito: “Assim, era ao executado/embargante que competia, querendo prevalecer-se da relação jurídica subjacente à emissão do título, invocar a mesma, aduzindo no seu requerimento de oposição os factos a esta relativos, bem como as razões de facto e de direito em que fundamentam a sua discordância relativamente ao pedido exequendo, o que manifestamente não fez, porquanto se limitou a alegar, em abstrato, que desconhece os cálculos efetuados pelo exequente/embargado para alcançar o valor constante na livrança.
«Com efeito, tal alegação é o mesmo que nada dizer, pois o Tribunal fica impossibilitado de averiguar em que termos e em que medida poderá haver preenchimento abusivo, pois é sobre o executado que incide o ónus de alegar e consequentemente provar qualquer incorreção do montante aposto na livrança dada à execução, já que se trata de um facto impeditivo do direito invocado pela exequente (Art. 342º, n.º 2 do Cód. Civil), e nada disso vem alegado.””.
«Não se verifica, pois, no nosso entender, a apontada nulidade da decisão por omissão de pronúncia.»
*
II- QUESTÕES A DECIDIR
Nos termos dos Art.s 635º n.º 4 e 639º n.º 1 do C.P.C., as conclusões delimitam a esfera de atuação do tribunal ad quem, exercendo uma função semelhante à do pedido na petição inicial (vide: Abrantes Geraldes in “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, Almedina, 2017, pág. 105 a 106). Esta limitação objetiva da atuação do Tribunal da Relação não ocorre em sede da qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cfr. Art. 5º n.º 3 do Código de Processo Civil). Também não pode este Tribunal conhecer de questões novas que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas (Vide: Abrantes Geraldes, Ob. Loc. Cit., pág. 107).
Assim, em termos sucintos, as questões a decidir são as seguintes:
a) A nulidade da sentença por omissão de pronúncia; e
b) A ilegalidade de juros à taxa de 30% no contexto da exceção de preenchimento abusivo da livrança e a possibilidade do conhecimento oficioso dessa exceção.
Corridos que se mostram os vistos, cumpre decidir.
*
III- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
A sentença sob recurso considerou como provada a seguinte factualidade:
1. O exequente instaurou a ação executiva para pagamento de quantia certa sob a forma de processo ordinário a que coube o n.º 20438/18.6T8LSB à qual os presentes autos encontram-se apensos, contra o executado, ora embargante, apresentando como título executivo uma livrança onde se inscreve o seguinte: “ no seu vencimento pagarei(emos) por esta única via de livrança ao BANCO ESPÍRITO SANTO, S.A. ou à sua ordem, a quantia de duzentos e um mil, setecentos e quarenta e sete euros e noventa e dois cêntimos”, a “importância (em euros)” de 201.747,92€, com data de “emissão” de 2002-02-27 e de “vencimento” a 2018-06-29.
2. A livrança referida em 1. está subscrita pela sociedade executada C [ …… – Actividades Imobiliárias, Lda. ] no local destinado à assinatura dos subscritores.
3. A livrança referida em 1. está assinada pelo executado/embargante no respetivo verso e sob os dizeres escritos “Bom por aval à subscritora”.
4. Em 27 de fevereiro de 2002, o exequente/embargado emitiu uma garantia bancária com o n.º 289454, a pedido da sociedade executada C, a favor da Câmara Municipal de Oeiras.
5. A garantia bancária referida em 4. era destinada a caucionar o pagamento das taxas, comparticipações nos encargos gerais e comparticipação na aquisição de terrenos, referente à urbanização de um terreno sito em Oeiras, mais propriamente, Cabeço do Gato.
6. O valor da garantia referida em 4. era de 239.991,62€, válida por tempo indeterminado e apenas poderia ser cancelada através de comunicação expressa da Câmara Municipal de Oeiras.
7. Para cumprimento da garantia bancária referida em 4. foi entregue a livrança referida em 1., em branco.
8. O preenchimento da livrança referida em 1. foi autorizado pelo executado/embargante nos termos da cláusula 1ª do acordo escrito denominado “Contrato de constituição de garantia” datado de 27 de fevereiro de 2002, ficando o banco exequente expressamente autorizado a preenche-la designadamente no que se refere à data de vencimento e ao valor.
9. Em 8 de agosto de 2013, o exequente/embargado recebeu uma carta por parte da beneficiária Câmara Municipal de Oeiras a solicitar pagamento da verba ao abrigo da garantia bancária prestada.
10. Em 29.09.2011 foi celebrado um acordo entre todos os avalistas da livrança referida em 1. para repartição da responsabilidade de cada um no pagamento das quantias em dívida ao exequente.
11. O exequente/embargado pagou à beneficiária Câmara Municipal de Oeiras o valor constante na garantia bancária.
12. O executado/embargante foi notificado por carta datada de 8 de junho de 2018, do preenchimento da livrança referida em 1.
Tudo visto, cumpre apreciar.
*
IV- FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
Estabelecidas as questões suscitadas pela presente apelação, iremos então debruçar-nos sobre elas pela sua ordem de precedência lógica, começando inevitavelmente pela alegada nulidade da decisão recorrida.
1. Da nulidade da sentença por omissão de pronúncia.
O Recorrente veio suscitar a questão da nulidade da sentença recorrida invocando que alegou nos embargos de executado, no contexto da exceção do preenchimento abusivo da livrança dada à execução, que não poderiam ser aplicados juros à taxa de 30%, o que era matéria de exceção que não poderia deixar de ser conhecida pelo Tribunal a quo, que assim violou os Art.s 608.º n.º 2 e 615.º n.º 1 al. d), ambos do C.P.C..
O Recorrido sustentou que não houve qualquer omissão de pronúncia e o Tribunal a quo fez realçar, ao abrigo do Art. 617.º n.º 1 do C.P.C., que a invocada nulidade não se verificava uma vez que a questão da taxa de juro não foi suscitada pelo embargante e os termos em que foi colocada não respeitou o seu ónus de alegação, em face do disposto no Art. 342.º n.º 2 do C.C..
Apreciando, diremos que o Art. 615.º n.º 1 al. d) do C.P.C. comina com a nulidade a sentença quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar. Trata-se de um vício formal, em sentido lato, traduzido em error in procedendo ou erro de atividade que afeta a validade da sentença.
Como ensinava Alberto dos Reis (in “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. V, pág. 122): «Sentença nula é a que (…) está (…) inquinada de vícios de formação, dos chamados vícios de atividade, contrapostos aos vícios de julgamento. Temos, assim, dois tipos de sentença viciada: a sentença injusta e a sentença nula. A primeira enferma de erro de julgamento; a segunda enferma de erro de atividade (erro de construção ou formação).»
Por outras palavras, o “erro de julgamento” não é fonte de nulidade da sentença, nos termos atualmente estabelecidos no Art. 615.º do C.P.C., mas apenas fundamento para eventual revogação e substituição da sentença recorrida por outra decisão que seja conforme ao direito aplicável.
A nulidade concretamente invocada nas alegações de recurso da presente apelação está diretamente relacionada com o disposto no Art. 608.º n.º 2 do C.P.C., segundo o qual: «O juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.»
Esta nulidade só ocorre quando não haja pronúncia sobre pontos fáctico-jurídicos estruturantes da posição dos pleiteantes, nomeadamente os que se prendem com a causa de pedir, pedido e exceções e não quando tão só ocorre mera ausência de discussão das “razões” ou dos “argumentos” invocados pelas partes para concluir sobre as questões suscitadas (vide: Acórdão do S.T.J. de 21.12.2005 – Relator: Pereira Silva, disponível em www.dgsi.pt/jstj).
A questão a decidir não é a argumentação utilizada pelas partes em defesa dos seus pontos de vista fáctico-jurídicos, mas sim as concretas controvérsias centrais a dirimir e não os factos que para elas concorrem. Deste modo, não constitui nulidade da sentença por omissão de pronúncia a circunstância de não se apreciar e fazer referência a cada um dos argumentos de facto e de direito que as partes invocam tendo em vista obter a (im)procedência da ação (Cfr. Ac. do T.R.L. de 23/4/2015 – Relatora: Ondina Alves – Proc. n.º 185/14, disponível em www.dgsi.pt).
Também não há omissão de pronúncia quando a matéria, tida por omissa, ficou implícita ou tacitamente decidida no julgamento da matéria com ela relacionada, competindo ao tribunal decidir questões e não razões ou argumentos aduzidos pelas partes (Cfr. Ac. do T.R.P de 9/6/2011 – Relator: Filipe Caroço – Proc. n.º 5/11).
O juiz não tem que esgotar a análise da argumentação das partes, mas apenas que apreciar todas as questões que devem ser conhecidas, ponderando os argumentos na medida do necessário e suficiente (Cfr. Ac. S.T.J. de 30/4/2014 – Relator: Belo Morgado – Proc. n.º 319/10 – disponíveis no mesmo sítio).
Assim, incumbe ao juiz conhecer de todos os pedidos deduzidos, todas as causas de pedir e exceções invocadas e todas as exceções de que oficiosamente deva conhecer (Art. 608º n.º 2 do C.P.C.) à exceção daquelas cujo conhecimento esteja prejudicado pelo anterior conhecimento de outras.
Ora, no caso dos autos, o Recorrente alega que suscitou a questão dos “juros ilegais”, no contexto da exceção do preenchimento abusivo da livrança dada à execução, mas isso não corresponde exatamente à verdade.
Analisada de forma pormenorizada toda a petição inicial de embargos de executado, constatamos que foi alegada a exceção do preenchimento abusivo na parte identificada pela letra “B”, referente a “Impugnação”, que, com numeração romana, se mostra epigrafada do seguinte modo: “I- Do abuso no preenchimento da quantia em dívida na livrança”. Essa parte da petição é composta pelos artigos 36.º a 57.º, mas em lado algum é suscitada a questão da “ilegalidade da taxa de juros”, tal como ela é agora apresentada nas alegações de recurso.
Nos artigos 37.º a 45.º da petição de embargos, o embargante limita-se a defender questões relacionadas com o pagamento da garantia bancária, realçando a existência dum acordo entre avalistas para repartição internas das responsabilidades pela livrança dada à execução e que o exequente rejeitou receber o pagamento parcial do executado.
Nos artigos 46.º a 57.º do mesmo articulado, o embargante põe em causa o preenchimento da livrança por não ter sido junto o contrato de garantia bancária, nem o pacto de preenchimento. Em todo o caso, no artigo 51.º admite que recebeu uma carta do exequente onde este afirma que iria preencher a livrança pelo valor de €201.747,92, discriminando as várias parcelas que compõem o seu crédito, sendo uma delas «Juros + Imposto Selo, devidos desde 13/09/2013, à taxa de 30,00%: €137.075,68» (sic). Em todo o caso, nada refere sobre a ilegalidade dessa taxa de juro, limitando-se a alegar que não era possível compreender como é que o exequente calculou esses valores (v.g. artigos 52.º e 53.º da petição de embargos). Também nada alegou no sentido de que não foi acordada a taxa de juro de 30%, pois o embargante apenas sustenta que o exequente não juntou os contratos.
Quanto à taxa de juro existe um único artigo na petição de embargos que resume a posição do embargante sobre a matéria, onde se alega textualmente o seguinte: «55. Quanto à taxa de juro de 30% cobrada pela Exequente, não tendo sido junto com o Requerimento Executivo o contrato de prestação de garantia bancária e o pacto de preenchimento da Livrança, não se comprova se a taxa de juro aplicada ao capital em dívida era a que estava contratualizada.» É com base nestes argumentos que no artigo 57.º da petição o embargante conclui: «Portanto, a Exequente ao preencher a livrança nos termos em que o fez, fê-lo de uma forma abusiva.»
Não há nem uma palavra sobre a “ilegalidade” da taxa de juro de 30%, tendo por referência o disposto no Art. 1146.º do C.C., tal como agora é suscitada nas alegações de recurso, embora se alegue indiretamente o desconhecimento sobre se foi essa a taxa convencionada pelas partes. Pelo que, a sentença apenas se pronunciou sobre a defesa sustentada no pressuposto da alegada ausência de prova sobre a taxa de juro convencionada, aí se referindo o seguinte: «(…) era ao executado/embargante que competia, querendo prevalecer-se da relação jurídica subjacente à emissão do título, invocar a mesma, aduzindo no seu requerimento de oposição os factos a esta relativos, bem como as razões de facto e de direito em que fundamentam a sua discordância relativamente ao pedido exequendo, o que manifestamente não fez, porquanto se limitou a alegar, em abstrato, que desconhece os cálculos efetuados pelo exequente/embargado para alcançar o valor constante na livrança. / Com efeito, tal alegação é o mesmo que nada dizer, pois o Tribunal fica impossibilitado de averiguar em que termos e em que medida poderá haver preenchimento abusivo, pois é sobre o executado que incide o ónus de alegar e consequentemente provar qualquer incorreção do montante aposto na livrança dada à execução, já que se trata de um facto impeditivo do direito invocado pela exequente (Art. 342º, n.º 2 do Cód. Civil), e nada disso vem alegado.»
Portanto, a sentença pronunciou-se sobre a questão efetivamente suscitada pelo embargante da sua petição inicial, embora em termos com os quais o Recorrente não concorda. Mas tal não é motivo de nulidade da sentença, nos termos do Art. 615.º do C.P.C., mas apenas, e só, eventual fundamento para a revogação da sentença por “erro de julgamento”.
É um facto que a sentença não se debruçou sobre a questão “ilegalidade da taxa de juro”, nos termos agora suscitados nas alegações de recurso, mas a verdade é que a petição de embargos era completamente omissa sobre essa outra questão jurídica. Pelo que, nessa medida, não se pode dizer que haja omissão de pronúncia, nos termos previstos no Art. 615.º n.º 1 al. d) do C.P.C..
Dito isto, não poderemos deixar de considerar ainda que o Art. 608.º n.º 2 do C.P.C. estabelece que o tribunal pode conhecer de questões não suscitadas pelas partes, quando a lei o permitir ou impuser o seu conhecimento oficioso.
Há assim que ponderar que o juiz não está limitado pela alegação das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (Art. 5.º n.º 3 do C.P.C.). Por outro lado, neste contexto, também se poderia entender que a violação dos limites estabelecidos no Art. 1146.º n.º 1 e 2 do C.C. constitui uma nulidade de conhecimento oficioso, tendo por referência o regime estabelecido nos Art.s 286.º, 292.º e 1146.º n.º 3 do C.C., e se admitirmos que os limites à usura dos juros são aplicáveis aos créditos bancários, poderíamos estar perante uma exceção de conhecimento oficioso. No entanto, a nosso ver, semelhante “omissão de pronúncia” sobre uma exceção perentória não concretamente alegada pelas partes, mas suscetível de conhecimento oficioso, não preenche a previsão da al. d) do n.º 1 do Art. 615.º do C.P.C..
Efetivamente, o máximo que se poderia concluir neste caso é que o tribunal não teve em consideração o espetro normativo mais alargado que seria suscetível de aplicar ao caso concreto, o que o poderia levar a proferir uma decisão injusta. Ora, assim sendo, estaríamos perante uma situação de “erro de julgamento” e não de mero “erro de atividade” reconduzível à situação de omissão de pronúncia prevista no Art. 615.º n.º 1 al. d) do C.P.C..
Em suma, sem necessidade de maiores considerações sobre o assunto, julgamos que não se verifica qualquer nulidade da sentença recorrida, improcedendo todas as conclusões que sustentam o contrário.
2. Da ilegalidade da taxa de juro aplicada (possibilidade do seu conhecimento oficioso).
O Recorrente vem fundamentalmente sustentar, nas suas alegações de recurso, a ilegalidade da aplicação pelo exequente da taxa de juro de 30% ao crédito que estava subjacente à emissão da livrança que serve de título executivo na ação principal, o que teria repercussão no quadro da exceção de preenchimento abusivo dessa livrança, tal como alegada na petição inicial de embargos de executado.
Essa alegada “ilegalidade”, tal como sustentada nas alegações de recurso, desdobra-se em dois argumentos distintos:
1.º No desconhecimento da taxa de juros de 30% ter sido a convencionada entre as partes, uma vez que não foi junto o contrato onde a mesma estaria estabelecida; e
2.º A taxa de juros seria ilegal por violar os limites da usura estabelecidos no Art. 1146.º n.º 1 e n.º 2 do C.C..
Como vimos, apenas a primeira destas questões foi suscitada na petição de embargos de executado e, por isso, apenas ela foi apreciada pelo Tribunal a quo.
Relembre-se que a ação executiva tinha por base uma livrança subscrita pela sociedade devedora principal e avalizada, entre outros, pelo ora Recorrente, e, portanto, na petição da ação executiva não eram pedidos juros à taxa de 30%, mas sim o pagamento de juros à taxa legal, contados da data de vencimento constante do título executivo.
Só em função da defesa apresentada, tal como configurada a instância nos embargos de executado, é que se passou a perceber que estava em causa uma livrança, devidamente subscrita e avalizada, mas que havia sido entregue em branco ao exequente, em conjunto com um pacto de preenchimento que o embargante alegadamente parecia desconhecer.
Os embargos de executado tinham assim por fundamento, entre outros, uma alegada violação do “pacto de preenchimento”, tendo por referência o disposto nos Art.s 10.º e 17.º da L.U.L.L. que, “a contrario”, efetivamente permitem a interpretação de que, no domínio das relações imediatas, a inobservância de acordos de preenchimento de letra ou livrança incompletas é oponível ao portador desses títulos de crédito (vide: Abel Delgado in “Lei Uniforme Sobre Letras e Livranças Anotada”, 6.ª Ed., pág. 73 a 76; Carolinha Cunha in “Manual de Letras e Livranças”, 2016, pág. 165 a 199; Pinto Furtado in “Títulos de Crédito”, pág. 146; e França Pitão in “Letras e Livranças”, 2.ª Ed., pág. 75).
Sendo suscitada a questão da violação do pacto de preenchimento por parte de quem nela tem interesse – no caso, o executado demandado na ação executiva principal e oponente à execução mediante embargos (cfr. Art.s 729.º al. g), 731.º e Art.s 573.º e 574.º do C.P.C., conjugado com o Art. 342.º n.º 2 do C.C.) –, não há dúvida que a existência do pacto de preenchimento é ónus de prova do portador da livrança – no caso o exequente/embargado - cfr., entre outros: Ac. do S.T.J. de 14/10/1997 - in C.J.S.T.J., Tomo III, pág. 68 –, mas sempre seria o devedor quem teria o ónus de alegação e prova dos factos concretos em que se traduz o “abuso de preenchimento” (cfr., entre outros: Ac. T.R.P. de 14/6/1994 in C.J., Tomo III, pág. 232).
No caso o exequente-embargado cumpriu o seu ónus fazendo juntar aos autos o contrato nos termos do qual foi estabelecido o pacto de preenchimento (cfr. Requerimento de 10-10-2019 – Ref.ª n.º 24246644 – p.e.), sendo certo que anteriormente já havia junto o contrato de constituição de garantia bancária, com cláusula “on first demand”. Nessa medida, subsistia o ónus de alegação e prova do executado-embargante relativo aos factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito de crédito do exequente (Art.s 729.º al. g), 731.º e Art.s 573.º e 574.º do C.P.C. e Art. 342.º n.º 2 do C.C.). Invocar apenas, e só, o desconhecimento da taxa de juros convencionada entre as partes, ou a falta de prova perante uma petição inicial executiva, que respeitava apenas a uma livrança e cumpria os limites estabelecidos no Art. 10.º n.º 5 do C.P.C., era juridicamente inconsequente, por não corresponder ao cumprimento do ónus de alegação e prova dos factos integradores da exceção que se pretenderia opor à procedência do pedido executivo de pagamento da obrigação titulada por essa livrança.
Ao contrário do que resulta das conclusões de recurso apresentadas pelo Recorrente, o embargante não alegou explicitamente que não foi convencionada a taxa de juro de 30%. Se o tivesse feito, tal traduzir-se ia em factualidade nova e controvertida cuja prova importaria fazer. Mas não é isso que resulta da petição de embargos. O embargante alega apenas a falta de prova, na petição inicial da ação executiva, que permitisse verificar qual a taxa de juro concretamente convencionada.
A defesa assim apresentada acaba por transmitir a ideia de que o embargante admite a existência dum acordo sobre uma taxa de juro, mas cujo teor desconheceria. Ora, a ser assim, só podemos concluir que o avalista foi leviano e desconsiderou a possibilidade de o contrato ser incumprido pelo devedor principal e de vir a ser aplicada uma taxa de 30%.
Essa leviandade, repita-se, no contexto dos autos de embargos de executado, é a todos os títulos irrelevante. Desde logo, é irrelevante por não ter a virtualidade de transferir para o credor, então na qualidade de embargado, o ónus de prova sobre a taxa de juro convencionada entre as partes relativamente à obrigação subjacente à emissão do título executivo.
Efetivamente, nestas circunstâncias, para o devedor conseguir inverter o ónus de prova teria de invocar que a parte contrária culposamente tornou impossível a prova ao onerado (Art. 344.º n.º 2 do C.C.). O que, diga-se, nem por sombras não corresponde ao alegado na petição inicial de embargos de executado.
Como já vimos, nos artigos 46.º a 57.º da petição de embargos, o embargante apenas põe em causa o preenchimento da livrança por não terem sido juntos, com a petição inicial executiva, o contrato de garantia bancária e o pacto de preenchimento. Mas isso é insuficiente para se concluir que o exequente agiu de forma culposa para tornar impossível a prova de que a taxa de juros era (ou não) de 30%.
Aliás, o embargante admitiu no artigo 51.º do mesmo articulado que recebeu uma carta do exequente onde é feita menção ao preenchimento da livrança pelo valor de €201.747,92, que incluía uma verba por juros à taxa de 30%. Assim sendo, o embargante foi informado pelo banco exequente que a taxa de juro era de 30% e tinha todas as condições para apurar se isso correspondia ou não à verdade. Limitar-se à invocação de um aparente desconhecimento sobre esse facto traduz uma atitude de leviandade processual completamente inconsequente para efeitos de poder funcionar como alegação de facto impeditivo, modificativo ou extintivo da obrigação exequenda.
No final, só podemos concluir que o embargante quis onerar o exequente com um ónus de alegação e de prova que apenas a si competia, o que conduziria inevitavelmente ao julgamento da improcedência da defesa assim apresentada. Foi isso que a sentença recorrida reconheceu e decidiu e, no nosso entendimento, não merece qualquer censura.
Dito isto, passemos ao segundo fundamento do recurso, sustentado na alegada “ilegalidade” da taxa de juros de 30% por violação do Art. 1146.º do C.C..
Como já demonstrámos no ponto 1. do presente acórdão, estamos perante uma questão nova, que não foi suscitada na petição de embargos de executado. O que nos confronta com o problema de saber se dela podemos tomar conhecimento.
O Tribunal da Relação, enquanto tribunal de recurso, está limitado, ele também, no exercício do seu poder jurisdicional, pelo objeto do processo e pela apreciação das mesmas questões que foram, ou podiam ser, conhecidas pela 1.ª instância, estando-lhe vedado conhecer de questões novas que não tenham sido anteriormente decididas, pois o recurso destina-se apenas a reapreciar decisões proferidas (Vide: Abrantes Geraldes, in “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, Almedina, 2017, pág. 107).
Como refere Francisco Ferreira de Almeida (in “Direito Processual Civil”, Vol. II, 2.ª Ed., pág. 468): «No nosso sistema processual (no que concerne à apelação e à revista) predomina o «esquema do recurso de reponderação: o objeto do recurso é a decisão impugnada, encontrando-se à partida, vedada a produção de efeitos jurídicos “ex-novo”. Através do recurso, o que se visa é a impugnação de uma decisão já ex-ante proferida, que não o julgamento de uma qualquer questão nova.»
Na mesma linha de raciocínio Rui Pinto (in “O Recurso Civil. Uma Teoria Geral”, 2017, pág. 69) escreve: «não se admitem nem novos factos, nem novos fundamentos de ação ou de defesa, nem novas provas. A estes recursos dá-se a qualificação de recursos de reponderação: a decisão impugnada é reavaliada no quadro do seu próprio objeto e em razão dos seus vícios específicos, pelo que o objeto do pedido é na parte da revogação a própria decisão e na substituição a matéria que fora objeto da decisão revogada, tal e qual fora conhecida pelo tribunal a quo.»
Mesmo assim não podemos deixar de ter em atenção que existe um conjunto restrito de questões que um tribunal de recurso é obrigado a apreciar, ainda que a 1.ª instância sobre elas não se tenha debruçado.
Revela-se aqui de particular importante a distinção que Chiovenda fazia entre exceções em sentido próprio e a exceções em sentido impróprio (vide, a propósito: Antunes Varela in “Manual de Processo Civil”, 2.ª Ed., pág.s 292 a 297). Quanto às primeiras (exceções em sentido próprio), de que é exemplo clássico a prescrição (Art. 303.º do C.C.), a sua relevância enquanto meio de defesa estaria diretamente dependente da sua alegação pela parte interessada, em cumprimento do seu ónus de alegação e prova. Quanto a estas, a sua eficácia jurídica estará sempre dependente da vontade expressa do excipiens. Já as segundas (exceções em sentido impróprio), pressupõem a alegação de factos cuja eficácia opera ipso jure. O juiz pode delas conhecer ex officio, independentemente da vontade da parte a quem aproveitam. Nestes casos, se, por exemplo, forem alegados certos factos com eficácia impeditiva, modificativa ou extintiva do direito, independentemente de quem os alega ou deles tenha ónus de prova, como sejam factos relativos ao pagamento, à remissão ou à simulação, e mesmo que a parte não alegue o correspondente efeito jurídico, o juiz não poderá deixar de conhecer da exceção oficiosamente, sob pena de proferir uma decisão injusta.
Importa assim para o caso apreciar o enquadramento jurídico processual da possibilidade de apreciação da exceção perentória relativa à usura.
No caso dos negócios jurídicos usurários, o Art. 282.º n.º 1 do C.C. sujeita os mesmos à cominação da anulabilidade, que não é de conhecimento oficioso (v.g. Art. 287.º n.º 1 do C.C.), havendo mesmo a possibilidade de modificação do negócio assim viciado (v.g. Art. 283.º do C.C.). Neste caso a relevância da usura está formalmente dependente de um conjunto de requisitos que pressupõem pelo menos a manifestação de vontade expressa da pessoa em benefício da qual esse vício está estabelecido (vide: Pedro Pais Vasconcelos in “Teoria Geral do Direito Civil”, 3.ª Ed., pág.s 463 a 468). Pelo que, trata-se de exceção em sentido próprio, não podendo o tribunal “ex officio” anular ou modificar um negócio jurídico com fundamento na verificação do vício de usura.
O Art. 282.º n.º 2 do C.C., no entanto, ressalva do regime geral aplicável à usura os regimes especiais previstos nos Art.s 559.º-A e 1146.º do C.C., reportando-se o último deles à específica regulamentação dos juros e cláusulas penais usurárias.
Em suma, o regime especial estabelecido no Art. 1146.º n.º 1 a n.º 3 do C.C. prevalece sobre a previsão do Art. 282.º n.º 1 do C.C., afastando da equação o disposto no Art. 287.º do C.C., no que se refere à anulabilidade dos negócios jurídicos (vide: Pires de Lima e Antunes Varela in “Código Civil Anotado”, Vol. I, 4.ª Ed., pág. 261; e Santos Justo in “Manual de Contratos Civis”, pág. 368). Estamos assim, neste segundo caso, perante uma exceção em sentido impróprio, em que o tribunal não pode deixar de dela tomar conhecimento, sob pena de proferir decisão injusta.
Apurado que se mostra o valor da taxa de juro aplicada pelo exequente no cálculo da dívida exequenda, a apreciação da ilegalidade da taxa e a possibilidade da sua redução, por violação do Art. 1146.º do C.C., é matéria de conhecimento oficioso pelo tribunal de recurso, mesmo que essa questão não tenha sido colocada nesses termos perante a 1.ª instância (vide, neste sentido: Ac. T.R.P. de 9/3/1999 – Proc. n.º 9826765 – Relatora: Teresa Montenegro, disponível in dgsi.pt).
Nos termos do Art. 1146.º do C.C.: «1- É havido como usurário o contrato de mútuo em que sejam estipulados juros anuais que excedam os juros legais, acrescidos de 3% ou 5%, conforme exista ou não garantia real.
«2- É havida também como usurária a cláusula penal que fixar como indemnização devida pela falta de restituição de empréstimo, relativamente ao tempo de mora, mais do que o correspondente a 7% ou a 9% acima dos juros legais, conforme exista ou não garantia real.
«3- Se a taxa de juros estipulada ou o montante da indemnização exceder o máximo fixado nos números precedentes, considera-se reduzido a esses máximos, ainda que seja outra a vontade dos contraentes.»
Estas normas, não só afastam o regime geral dos negócios usurários e da sua anulabilidade ou modificabilidade, como estabelecem um regime equiparável ao efeito jurídico próprio da nulidade parcial, ainda que a possibilidade de redução da taxa de juro ou da cláusula penal seja cominada como um efeito legal automático, em condições diversas do disposto no Art. 292.º do C.C.. Portanto, por se tratar duma nulidade (parcial), é invocável a todo o tempo e pode ser declarada oficiosamente pelo tribunal, nos mesmos termos do Art. 286.º do C.C. (vide, neste sentido: Menezes Leitão in “Direito das Obrigações”, Vol. III, 3.ª Ed., pág. 415).
Dito isto, a questão que se segue é a de saber se o Art. 1146.º n.º 1 a n.º 3 do C.C. se aplica às taxas de juros de créditos bancários, tendo em atenção que o credor é um banco e a dívida exequenda emerge do cumprimento pelo exequente duma garantia bancária “on first demand” convencionada a pedido da sociedade devedora, tal como documentado nos autos.
Temos de começar por referir que, até há bem pouco tempo, havia alguma unanimidade sobre a exclusão do sistema bancário deste regime típico do Direito Civil, por se entender que aquele estava apenas sujeito à regulação instituída pelo Banco de Portugal, que promoveu a liberalização integral das taxas de juro aplicáveis aos créditos bancários desde a publicação do Aviso n.º 3/93 de 20 de maio de 1993, devendo ter-se apenas em atenção as regras específicas estabelecidas no Dec.Lei n.º 344/78 de 17/11, entretanto sujeito a várias alterações (vide, por exemplo, a propósito: Pires de Lima e Antunes Varela in “Código Civil Anotado”, 4.ª Ed., pág. 771; Carlos Ferreira de Almeida in “Contratos II”, 2012, 3.ª Ed., pág. 138; José Maria Pires in “Direito Bancário”, 2.º Vol., pág. 191; Simões Patrício in Revista dos Tribunais ano 95.º, pág.s 341; Menezes Leitão in “Direito das Obrigações”, Vol. III, pág.s 419 a 421; José Engrácia Antunes in “Direito dos Contratos Comerciais”, 4.ª Reimpressão da edição de outubro 2009, pág. 240 e, em particular, a nota 380; e Menezes Cordeiro in “Direito Bancário”, 1998, pág. 534).
A jurisprudência também alinhava neste entendimento, quase sem discussão (vide, a título de exemplo: Ac. do T.R.L de 27/2/1989 in C.J., Tomo I, pág. 144; Ac. T.R.L. de 6/11/2001 in C.J., Tomo V, pág. 74 a 76; Ac. do S.T.J de 8/5/2003 in C.J.S.T.J., Tomo II, pág.s 34 a 38; e Ac. S.T.J. de 27/5/2003, proc. n.º 03A1017, relator: Moreira Alves, disponível em www.dgsi.pt). Em todos os casos se julgava inexistirem “taxas de juros legais” para as operações de crédito bancário, tendo em atenção que o sistema financeiro correspondente estava subordinado à regulação do Banco de Portugal e, por isso, o Art. 1146.º do C.C. não seria aplicável a esses créditos bancários. No entanto, muito recentemente têm-se vindo a afirmar correntes doutrinárias que sustentam não ser bem assim.
Menezes Cordeiro (in “Tratado de Direito Civil”, Vol. XII, pág. 246), revendo a sua posição anterior, parece sustentar agora essa alteração de posicionamento numa alteração da lei. Escreve este insigne autor que: «Hoje, a situação é diversa, por via do Dec.Lei n.º 32/2003 de 17 de fevereiro. Operam, ainda, regras específicas, para determinada categoria de operações. Na falta de normas diversas, funcionam os limites gerais, vigentes no País, quanto a taxas máximas. Os juros de mora bancários observam o disposto do artigo 8.º do Decreto-Lei n.º 58/2013 de 8 de maio. Eles consistem numa sobretaxa até 3% a aditar à taxa remuneratória aplicável à operação.» Mas, mais à frente, retomando a mesma temática, esclarece (Ob. Loc. Cit., pág. 257): «Este diploma (reportando-se de novo ao Dec.Lei n.º 32/2003 de 17/2) alterou, no seu artigo 6.º, o artigo 102.º § 2.º do Código Comercial, dando-lhe a seguinte redação: Aplica-se aos juros comerciais o disposto nos artigos 559.º-A e 1146.º do Código Civil. / O preceito opera em face dos atos e dos contratos bancários. Há, pois, que lidar com a taxa de juros aplicável e somar-lhe os limites usurários».
Pestana de Vasconcelos (in “Direito Bancário”, pág.s 365 a 373) sustenta de igual modo que as instituições de crédito não podem fixar taxas de juros acima dos limites previstos no Art. 102.º do Cód. Comercial na concessão de crédito, na medida em que o §2.º desse preceito manda aplicar aos juros comerciais o Art. 1146.º e o Art. 559.º-A do C.C.. Mas considera que a questão não se pode colocar em termos de alteração legislativa.
Realça este autor que, com exceção da situação específica do crédito ao consumo, que tem regras especiais sobre os limites da taxa de juros remuneratória (Art. 28.º do Dec.Lei n.º 139/2009 de 2/6), na generalidade dos casos, o crédito bancário não tem regulamentação específica que estabeleça uma limitação de taxas de juros para os créditos bancários em geral. Embora em matéria de juros moratórios decorrentes da concessão de crédito exista o Art. 8.º do Dec.Lei n.º 58/2013 de 8/5, que permite cobrar juros de mora mediante a aplicação duma sobretaxa de 3% a acrescer à taxa de juros remuneratórios aplicável à operação, sendo que se for aplicada taxa superior, ela é automaticamente reduzida a esse limite. Em todo o caso, no seu entender, o já referenciado Aviso n.º 3/93 do Banco de Portugal, que revogou a taxa máxima para as operações de crédito ativas dos bancos, não poderia, em face da hierarquia das normas, só por si alterar o regime geral dos juros usurários estabelecido por lei. Na verdade, não só não o fez, como no n.º 2 desse Aviso se ressalvam expressamente as taxas fixadas por diploma legal, o que compreenderia naturalmente o âmbito de aplicação do Art. 1146.º, conjugado com o Art. 559.º-A, ambos do C.C.. Portanto, esse Aviso do Banco de Portugal, deveria ser interpretado como estabelecendo apenas a liberdade na fixação de juros remuneratórios pelos bancos dentro das balizas legais já fixadas. Outra interpretação aniquilaria na prática a valoração subjacente, tanto ao Art. 1146.º, como a do Art. 559.º-A, que cria um regime, sem brechas, adequadamente protetor do creditado.
Carlos Gabriel da Silva Loureiro (in “Revista de Estudos Politécnicos”, 2007, Vol. V, n.º 8, pág.s 265-280) também defende a mesma solução, mas fundado em razões formais diversas. Escreve este autor que: «A liberalização das taxas de juro nas operações ativas levadas a cabo por instituições de crédito e sociedades financeiras parece (…) resultar de um mero diploma regulamentar, emitido depois da revogação da norma habilitante, que constava da LOBP 75. Pode, por isso, questionar-se a legalidade da referida norma e, independentemente disso, a virtualidade de uma disposição com a referida natureza poder derrogar normas legais de natureza claramente imperativa, como são os citados artigos 102.º do CCOM e 1146.º do CCIV. Desta feita e tendo em conta a hierarquia das fontes, o referido Aviso do Banco de Portugal não obsta, por si só, à aplicação às operações de crédito ativas das instituições de crédito e sociedades financeiras dos limites impostos pelos artigos 102.º do CCOM e 559.º-A e 1146.º do CCIV, assim como às consequências resultantes destas disposições.»
É essa também a linha de raciocínio de Pedro Pais de Vasconcelos (in “Taxas de Juro do Crédito ao Consumo – Limites Legais, e-book de Direito bancário – CEJ), quando refere: «Da comparação dos três regimes legais, da LOBP 75, da LOBP 90 e da LOBP 98, resulta com clareza a perda pelo Banco de Portugal da competência para fixar os limites de taxas de juro das operações ativas bancárias. Logo na LOBP 90 deixou de haver qualquer preceito que atribuísse ao Banco Central essa competência, e assim se manteve na LOBP 98. E, no entanto, os Avisos emitidos pelo Banco de Portugal em que regeu sobre taxas de juro TAEG continuam a referir como normas habilitantes o artigo 17º da LOBP 98, além do artigo 28º do Decreto-Lei nº 133/09, de 2 de junho (que rege atualmente o crédito ao consumo).»
Todos os argumentos assim expedidos nos oferecem sérias reservas.
O filão da ausência de competência do Banco de Portugal para fixação de taxas de juro nas operações ativas dos bancos não nos perece particularmente relevante e prova de mais.
De facto, a Lei Orgânica do Banco de Portugal de 1975 (aprovada pelo Dec.Lei n.º 644/75 de 15/11), estabelecia no seu Art. 28.º que: «1 - Com vista à orientação e controle das instituições de crédito, compete ao Banco, nomeadamente: a) Estabelecer diretivas para a atuação dessas instituições; b) Fixar o regime das taxas de juro, comissões e quaisquer outras formas de remuneração para as operações efetuadas pelas instituições de crédito ou por quaisquer outras entidades que atuem nos mercados monetário e financeiro; e c) Estabelecer os condicionalismos a que devem obedecer as operações ativas das instituições de crédito; (…)».
Este normativo deve ser perspetivado no contexto da realidade política e social em que foi produzido. Estamos num período pós-revolucionário, no quadro das movimentações políticas que levaram à nacionalização da banca. O país passava por evidentes dificuldades económicas e as soluções políticas encontradas passavam pelo controlo estrito do sistema financeiro, através da intervenção direta do Estado e de acordo com uma visão mais “socializante”.
Era então já evidente que o sistema financeiro era um setor chave da política e da economia e, por isso, as operações de crédito estavam subordinadas a regulamentação própria que pelas suas especificidades as afastavam dos créditos comerciais comuns ou das obrigações civis.
Entretanto, a realidade política evolui e sobrevem a adesão de Portugal à Comunidade Económica Europeia (C.E.E.). O que vai obrigar o nosso país a inverter, progressiva e paulatinamente, hábitos intervencionistas na economia e, muito em particular, no sistema financeiro. O respeito pelos princípios da livre circulação de pessoas, bens e capitais estabelecidos no Tratado de Roma, vão conduzir à liberalização das taxas de juro das operações bancárias.
É já com esse enquadramento, profundamente influenciado pela realidade programática e institucional europeia, que surge a Lei Orgânica do Banco de Portugal de 1990 (L.O.B.P. aprovada pelo Dec.Lei n.º 337/90 de 30/10) e depois a Lei Orgânica de 1998 (esta aprovada pela Lei n.º 5/98 de 31/1). Não custa assim reconhecer que as Leis Orgânicas do Banco de Portugal de 1990 e 1998 não contivessem normas explícitas semelhantes ao Art. 28.º da L.O.B.P. de 1975. No entanto, não deixam de estabelecer, como é evidente, o poder de supervisão do Banco de Portugal, em termos mais ou menos densificados.
Assim, na L.O.B.P./90, estabelece-se no Art. 23.º que compete ao Banco de Portugal, a fim de assegurar a supervisão das instituições a ela sujeitas, um conjunto de poderes que incluem a emissão de instruções para realização desse mesmo efeito. E na L.O.B.P./98, no seu Art. 17.º, também se estabelece que: «Compete ao Banco exercer a supervisão das instituições de crédito, sociedades financeiras e outras entidades que lhe estejam legalmente sujeitas, nomeadamente estabelecendo diretivas para a sua atuação e para assegurar os serviços de centralização de riscos de crédito, nos termos da legislação que rege a supervisão financeira».
Nesta medida, a emissão e publicação do Aviso n.º 3/93 de 20 de maio de 1993 sempre resultaria do exercício do poder de supervisão que a lei nunca deixou de atribuiu ao Banco de Portugal, permitindo-lhe emitir diretivas sobre o modo de atuação dos bancos. Aliás, esse Aviso mais não é que uma diretiva para a atuação dos bancos no quadro da atividade de concessão de crédito, com uma especificidade muito particular que se traduziu no reconhecimento de que a autoridade reguladora do sistema financeiro bancário deixava de fixar as taxas de juro das operações bancárias, deixando assim funcionar livremente o mercado.
Explicitamente, o Aviso 3/93 em menção, na parte que nos interessa, limitou-se a dizer que: «As Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras estabelecerão livremente as taxas de juro das suas operações, salvo nos casos em que sejam fixadas por diploma legal.». Portanto, o Aviso 3/93 é assim a divulgação feita pelo Banco de Portugal de que deixava de intervir na fixação das taxas de juro das operações bancárias de instituições de crédito e sociedades financeiras sujeitas à sua supervisão. Desse ponto de vista, não se pode falar em nulidade do Aviso 3/93 por ausência de competência do Banco de Portugal ou de norma habilitante para o exercício do poder de fixar taxas de juro de operações financeiras.
A invalidade do Aviso 3/93 nunca poderia ter por efeito a repristinação dos avisos anteriores, produzidos em contexto normativo que habilitava o Banco de Portugal a fixar as taxas de juro das operações bancárias. Esse Aviso mais não é que a divulgação duma decisão administrativa de supervisão no sentido do Banco de Portugal deixar o mercado funcionar livremente, sem restrições que não sejam as decorrentes da lei. Logo, se o Banco de Portugal, alegadamente, deixou de poder fixar taxas de juro, porque a respetiva Lei Orgânica deixou de lhe atribuir essa competência, então a conclusão só pode ser uma: desde que foi aprovada a L.O.B.P. de 1990 (revogando a Lei de 1975), as taxas de juro das operações bancárias passaram a ser livremente fixadas pelos bancos de acordo com as regras do mercado, exceto se houver lei especial que estabeleça o contrário. Ou seja, o resultado acaba por ser exatamente o mesmo que decorrente da aplicação do Aviso 3/93.
De acordo com o estudo que efetuámos, existe apenas uma decisão de tribunal superior que isoladamente sustentou a invalidade do Aviso 3/93, por motivo de inexistência de norma habilitante para a livre fixação de taxas de juro nas operações bancárias ou equiparada (vide: Ac. T.R.P. de 22/5/2019 – Proc. n.º 1553/17.0T8MTS. P1 – Relator: Joaquim Correia Gomes – disponível em www.dgsi.pt). A grande maioria da jurisprudência mais recente continua a sustentar a validade do Aviso n.º 3/93 e que as taxas de juro de operações bancárias, ressalvado o disposto em leis especiais, foram liberalizadas e estão sujeitas à livre negociação e fixação pelos bancos (vide: Ac. T.R.P. de 11/4/2018 – Proc. n.º 474/15.5T8ESP.P1 – Relatora: Ana Lucinda Cabral; Ac. T.R.P. de 11/4/2018 – Proc. n.º 67150/16.7YIPRT.P1 – Relatora: Maria Cecília Agante; Ac. T.R.G. de 11/5/2017 – Proc. n.º 10757/06.0YYLSB-G.G1 – Relator: Fernando Fernandes Freitas; e Ac. T.R.L. de 11/2/2010 – Proc. n.º 29936/03.8YXLSB.L1-8 – Relatora: Ana Luísa Geraldes – todos disponíveis no mesmo sítio).
Por exemplo, no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 11/3/2014 (Proc. n.º 3892/09.4T2AGD-A. C1 – Relator: Luís Cravo), vai-se mesmo ao ponto de dizer explicitamente que o Art. 1146.º do C.C. não se aplica aos créditos bancários. Por outro lado, também não temos nota de que o Supremo Tribunal de Justiça tenha mudado de posição sobre esta matéria.
Não vemos assim razões para sustentar a invalidade do Aviso 3/93, sendo que essa invalidade seria, em todo o caso, inconsequente pelas razões expostas.
Passando agora ao argumento da alteração legislativa introduzida pelo Dec.Lei n.º 32/2003 de 17/2 – que parece sustentar a mudança de posicionamento de Menezes Cordeiro –, verificamos que jurisprudência acabada de mencionar nunca chegou a apreciá-lo. Mas, na verdade também não nos parece que essa linha argumentativa traga à liça razões ponderosas e suficientemente fortes.
Quando Menezes Cordeiro escreveu o “Manual de Direito Bancário”, e nas várias e sucessivas edições em que sustentava que as taxas de juro de créditos bancários se mostravam liberalizadas, já então estava vigente o Art. 102.º do Cód. Comercial, onde se estabelecia a possibilidade de serem fixadas taxas de juro para créditos de empresas comerciais diferentes dos juros de obrigações meramente civis. Ora, nunca então se sustentou que os créditos bancários não pudessem ser livremente negociados e a taxa de juro fixada em valores que excedessem os limites do Art. 102.º do Cód. Comercial, conjugados com os Art.s 559.º, 559.º-A e 1146.º do C.C.. Pelo contrário, sempre se defendeu que o sistema financeiro bancário estava liberalizado quanto à fixação das taxas de juros, moratórias ou remuneratórias e, pelas suas especificidades próprias e autonomia, não estava compreendido pelas regras aplicáveis aos créditos comerciais.
O Art. 102.º do Cód. Comercial, com a redação do Dec.Lei n.º 262/83 de 16/7, já estabelecia que: «1- Haverá lugar ao decurso e contagem de juros em todos os atos comerciais em que for de convenção ou direito, vencerem-se e nos mais casos especiais fixados no presente Código.
«§1.º A taxa de juros comerciais só pode ser fixada por escrito.
«§2.º Aplica-se aos juros comerciais o disposto nos artigos 559.º, 559.º-A e 1146.º do Código Civil.
«§3.º Poderá ser fixada por portaria conjunta dos Ministros da Justiça e das Finanças e do Plano uma taxa supletiva de juros moratórios relativamente aos créditos de que sejam titulares empresas comerciais, singulares ou coletivas».
Portanto, já em 1983 o §2.º do Art. 102.º do Cód. Comercial remetia para o disposto nos Art.s 559.º, 559.º-A e 1146.º do C.C., sendo que ao abrigo do §3.º veio, por exemplo, a ser fixada a taxa de juros moratórios em 15% pela Portaria n.º 1167/95 de 23/9, numa altura em que a taxa de juro aplicável às obrigações civis era de apenas 10% (cfr. Portaria n.º 1171/95 de 25/9).
Assim, pergunta-se qual o sentido prático da alteração legislativa promovida pelo Dec.Lei n.º 32/2003 de 17/2 que terá motivado a alteração de posicionamento doutrinal?
É por todos reconhecido que o Dec.Lei n.º 32/2003 de 17/2 visou transpor para o nosso ordenamento a Diretiva n.º 2000/35/CE de 29/6.
Ora, essa diretiva no seu Art. 1.º definia o seu âmbito de aplicação nos seguintes termos: «A presente diretiva aplica-se a todos os pagamentos efetuados como remuneração de transações comerciais». Depois, no seu Art. 2.º n.º 1, definia “Transação comercial” como: «qualquer transação entre empresas ou entre empresas e entidades públicas que dê origem ao fornecimento de mercadorias ou à prestação de serviços contra uma remuneração»; e definia “empresa” como: «qualquer organização que desenvolva uma atividade económica ou profissional autónoma, mesmo que exercida por uma pessoa singular.»
Em bom rigor, essa Diretiva não se destinava a regular o sistema financeiro, que estava claramente subordinado a regras próprias e a um sistema de supervisão que tinha no topo as entidades reguladoras nacionais.
O Dec.Lei n.º 32/2003 de 17/2, logo no seu preâmbulo refere o seguinte: «Não se aplica (…) às transações com os consumidores, aos juros relativos a outros pagamentos, como por exemplo os pagamentos efetuados nos termos da legislação em matéria de cheques ou de letras de câmbio, ou aos pagamentos efetuados a título de indemnização por perdas e danos, incluindo os efetuados por companhias de seguro. O presente diploma visa transpor para a ordem jurídica interna a Diretiva n.º 2000/35/CE, não procedendo, contudo, à transposição de todas as disposições da diretiva, pois muitas das suas soluções encontram-se já consagradas na legislação portuguesa, nomeadamente no Código Civil. Nestes termos, estabelece-se um valor mínimo para a taxa de juros legais de mora, por forma a evitar que eventuais baixas tornem financeiramente atraente o incumprimento. Uma vez que os juros comerciais previstos na legislação portuguesa não se aplicam atualmente a todas as situações cobertas pelo âmbito da diretiva, e para evitar a duplicação de regimes, opta-se por sujeitar todas estas transações ao regime comercial, prevendo-se o referido limite mínimo de taxa de juro legal de mora no Código Comercial.»
Fica claro que o propósito desta legislação nada tinha a ver como as operações de crédito do sistema financeiro bancário, porque o mesmo estava sujeito a taxas de juros liberalizadas sujeitas à livre negociação e fixação pelas instituições bancárias ou sociedades financeiras. A finalidade desta lei era desincentivar os incumprimentos no quadro das “transações comerciais”, mediante o agravamento de taxas de juro moratórias e encurtamento de prazos para cumprimento, não permitindo o seu alargamento, mesmo que convencional, como decorria dos seus Art.s 4.º e 5.º.
Esse diploma teve ainda como consequência o aditamento de dois novos parágrafos ao Art. 102.º do Cód. Comercial (cfr. Art. 6.º do Dec.Lei n.º 32/2003 de 17/2), que regulava a matéria da taxa de juros aplicável aos créditos de empresas comerciais.
Como vimos, o regime legal de taxas de juros de empresas comerciais resultante do Art. 102.º do Cód. Comercial já previa normalmente taxas mais elevadas que as taxas de juros civis. Assim, nos termos dos parágrafos aditados pelo Dec.Lei n.º 32/2003 de 17/2 ao Art. 102.º do Cód. Comercial, os juros moratórios legais e os estabelecidos sem determinação de taxa ou quantitativo, relativamente a créditos de que são titulares empresas comerciais, passavam a ser fixados por portaria conjunta dos Ministros das Finanças e da Justiça (§3.º) – o que não se traduzia numa verdadeira inovação do legislador em face do regime pretérito. No entanto, a taxa de juro que viesse a ser assim fixada não poderia ser inferior ao valor da taxa de juros aplicada pelo Banco Central Europeu à sua mais recente operação principal de refinanciamento efetuada antes do 1.º dia de janeiro ou junho, consoante se esteja, respetivamente, no 1.º ou no 2.º semestre do ano civil, acrescida de 7 pontos percentuais (§ 4.º).
No §2.º do Art. 102.º do Cód. Comercial ficou a constar que o disposto nos Art.s 559.º-A e 1146.º do C.C. se aplicava aos juros comerciais. Ou seja, relativamente à redação dada pelo Dec.Lei n.º 262/83 de 16/7 desaparece a menção ao Art. 559.º do C.C., numa correção do legislador que só se pode compreender no contexto de se pretender afastar a inexplicável remissão feita no Código Comercial para a disposição do Código Civil que especificamente estabelecia a taxa de juro aplicável a obrigações meramente civis.
Em suma, não vemos no que é que as alterações introduzidas pelo Dec.Lei n.º 32/2003 de 17/2 no Art. 102.º do Cód. Comercial foram assim tão relevantes para se entender que os juros moratórios ou remuneratórios das operações ativas de crédito dos bancos tivessem de necessariamente passar a ficar subordinadas ao regime do Art. 1146.º do C.C.. Certamente, tal não se deveu à alteração da redação do §2.º do Art. 102.º do Cód. Comercial, que, como vimos, é de pormenor.
Entretanto, na sequência dessa alteração legislativa, veio a ser aprovada a Portaria n.º 1105/2004 de 31/8, depois alterada pela Portaria n.º 597/2005 de 19/6, ao abrigo das quais foram publicados sucessivos avisos semestrais da Direção-Geral do Tesouro e Finanças a divulgar a taxa de juro legal de referência para os créditos de empresas comerciais. Nada resultando desses normativos e avisos que se pudesse extrair a conclusão sobre a subordinação dos créditos bancários às taxas de juro aí referidas.
Mas as coisas não se ficaram por aqui.
Como estas medidas de 2000/2003 foram julgadas ineficazes, surgiu a diretiva n.º 2011/7/EU de 16 de fevereiro. Esta última, revogou a 2000/35/CE (cfr. Art. 13.º) e tinha na prática o mesmo âmbito de aplicação, como se pode constatar do seu Art. 1.º, onde se estabelecia-se que: «1. O propósito da presente diretiva consiste em combater os atrasos de pagamento nas transações comerciais, a fim de assegurar o bom funcionamento do mercado interno, promovendo assim a competitividade das empresas e, em particular, das PME. 2. A presente diretiva aplica-se a todos os pagamentos efetuados como remuneração de transações comerciais. 3. Os Estados-Membros podem excluir as dívidas que forem objeto de processos de insolvência ou falência intentados contra o devedor, incluindo os procedimentos destinados a reestruturar a dívida.». As definições de “empresa” e “transação comercial” constantes do Art. 2.º dessa Diretiva são semelhantes às da Diretiva revogada, sendo mais que evidente que o âmbito de aplicação desses normativos nada tem a ver com as operações de crédito do sistema financeiro, cujo tecido empresarial obviamente não é composto por PMEs.
Também esta última Diretiva foi transposta para o nosso direito interno através do Dec.Lei n.º 62/2013 de 10/5, que revogou o Dec.Lei n.º 32/2003 de 17/2.
No preâmbulo deste novo diploma pode ler-se: «A Diretiva n.º 2011/7/UE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de fevereiro de 2011, revogou a Diretiva n.º 2000/35/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 29 de julho de 2000, e introduziu medidas adicionais para dissuadir os atrasos de pagamentos nas transações comerciais. Esta diretiva regula todas as transações comerciais, independentemente de terem sido estabelecidas entre empresas (a estas se equiparando os profissionais liberais) ou entre empresas e entidades públicas, tendo em conta que estas são responsáveis por um considerável volume de pagamentos às empresas. Por conseguinte, regula todas as transações comerciais entre os principais adjudicantes e os seus fornecedores e subcontratantes. Todavia, não se aplica às transações com os consumidores, aos juros relativos a outros pagamentos, como por exemplo os pagamentos efetuados nos termos da legislação em matéria de cheques ou de letras de câmbio, ou aos pagamentos efetuados a título de indemnização por perdas e danos, incluindo os efetuados por companhias de seguro. Assim, e conforme já resulta do enquadramento legal vigente, o regime previsto neste diploma não é aplicável às operações de concessão de crédito bancário, que são reguladas por lei especial.»
Uma vez mais fica claro, se dúvidas houvessem, que esse diploma não se aplica às operações de crédito bancário. Ao que acresce que o Art. 102.º do Cód. Comercial, na parte que nos interessa, ficou intacto no seu corpo e nos parágrafos 1.º a 3.º. Só os parágrafos 4.º e 5.º mereceram nova redação.
Assim, passou aí a estabelecer-se que: «§4.º A taxa de juro referida no parágrafo anterior não poderá ser inferior ao valor da taxa de juro aplicada pelo Banco Central Europeu à sua mais recente operação principal de refinanciamento efetuada antes do 1.º dia de janeiro ou julho, consoante se esteja, respetivamente, no 1.º ou no 2.º semestre do ano civil, acrescida de sete pontos percentuais, sem prejuízo do disposto no parágrafo seguinte.
«§5.º No caso de transações comerciais sujeitas ao Decreto-Lei n.º 62/2013, de 10 de maio, a taxa de juro referida no parágrafo terceiro não poderá ser inferior ao valor da taxa de juro aplicada pelo Banco Central Europeu à sua mais recente operação principal de refinanciamento efetuada antes do 1.º dia de janeiro ou julho, consoante se esteja, respetivamente, no 1.º ou no 2.º semestre do ano civil, acrescida de oito pontos percentuais.»
Em suma, não vemos no que estas alterações legislativas na redação do Art. 102.º do Cód. Comercial tenham determinado que subitamente as taxas de juro moratórias ou remuneratórios dos créditos bancários tivessem de ficar subordinados ao disposto no Art. 1146.º do C.C., considerando que era assumido pelo legislador que no nosso sistema jurídico essas taxas de juro estavam liberalizadas.
Como vimos, o que esteve subjacente a estes diplomas legais de 2003 e 2013, não foi instituir qualquer forma de tutela do consumidor, nem qualquer particular tutela de devedor indiferenciado (não-consumidor) perante um credor do sistema financeiro bancário. Esses diplomas visaram estabelecer medidas de estímulo ao comércio, combatendo o incumprimento de obrigações emergentes de “transações comerciais”.
Resta assim apreciar a posição de princípio sustentada por Miguel Pestana de Vasconcelos que defende que o Aviso n.º 3/93 não poderia, em face da hierarquia das normas, só por si, alterar o regime geral dos juros usurários estabelecido por lei, sendo que do próprio resulta a ressalva do regime imperativo de taxas fixadas por diploma legal, o que compreenderia naturalmente o âmbito de aplicação do Art. 1146.º, conjugado com o Art. 559.º-A, ambos do C.C..
É importante realçar que o Art. 559.º-A do C.C. estabelece que o Art. 1146.º do C.C. se aplica «a toda a estipulação de juro ou quaisquer outras vantagens em negócios ou atos de concessão, outorga, renovação, desconto ou prorrogação de prazo de pagamento de um crédito e outros análogos».
Apesar da aparente lata abrangência deste preceito legal, sempre se poderia sustentar que, pela sua inserção sistemática no Código Civil, este normativo apenas se aplicaria a obrigações civis.
A tal acresce que a dúvida sobre a sua aplicabilidade aos créditos de empresas comerciais resultaria da circunstância de o legislador ter sentido a necessidade de introduzir o §2.º no Art. 102.º do Cód. Comercial, que remete para o disposto nos Art.s 559.º-A e 1146.º do C.C..
Poderia assim defender-se que, não fora essa norma especial, introduzida pelo Dec.Lei n.º 262/83 de 16/7, e a conclusão inevitável seria a exclusão do universo dos créditos comerciais do âmbito de aplicação dos Art.s 559.º-A e 1146.º do C.C.. Por isso, o legislador sentiu a necessidade de estabelecer o contrário.
Na mesma medida, do Art. 559.º-A do C.C. não pode resultar a conclusão de que os juros de créditos bancários estariam sempre e necessariamente sujeitos aos limites do Art. 1146.º do C.C..
As operações de crédito bancário são efetivamente atos de comércio, em sentido objetivo (Art. 2.º, 1.ª parte, e 362.º do Cód. Comercial) e em sentido subjetivo (Art. 2.º, 2.ª parte, e 13.º do Cód. Comercial). Por isso, poderiam ser puxados, pela vis atrativa da legislação comercial, por forma a serem incluídos no disposto no Código Comercial, em geral, e no seu Art. 102.º, em particular. Mas não é inteiramente assim.
O Direito Bancário goza de autonomia, enquanto um ramo de direito especial, sujeito a normas e princípios próprios que regulam a banca, como Miguel Pestana de Vasconcelos também reconhece ser entendimento doutrinário unânime (in “Direito Bancário”, pág. 15). Releva para o efeito que o núcleo central da atividade bancária é a recolha de depósitos do público e a concessão profissional de crédito (Ob. Loc. Cit. Pág. 30) e existe um conjunto normativo de aplicação específica a esta realidade jurídica, que inclui direito constitucional, direito europeu, legislação ordinária e, mesmo, regulação administrativa, como sejam os Avisos do Banco de Portugal (Ob. Loc. Cit., pág.s 39 a 52).
Até aqui todos estamos de acordo.
Mas nós acrescentamos que é no quadro desta autonomia que se insere o princípio da liberdade de estipulação de taxas de juro no âmbito das relações de crédito de operações financeiras. Não, porque seja uma imposição legal necessária, mas sim porque a liberdade de estipulação é a regra no direito (v.g. Art. 405.º do C.C.), e a imposição de limites à liberdade contratual será inevitavelmente a exceção.
No âmbito do direito bancário, e especificamente no quadro das operações de crédito por instituições financeiras, a regra foi sempre a de excluir os limites estabelecidos no Art. 1146.º do C.C.. Isso decorreu, num quadro temporal específico, da atribuição expressa ao Banco de Portugal de competência legal para fixar taxas de juro, com vista à orientação e controlo das instituições de crédito (v.g. Art. 28.º n.º 1 al. a) da L.O.B.P./75 aprovada pelo Dec.Lei n.º 644/75 de 15/11), o que subsistiu no quadro do exercício das competências de supervisão (Art. 23.º da L.O.B.P./90 aprovada pelo Dec.Lei n.º 337/90 de 30/10 e do Art. 17.º da L.O.B.P./98, aprovada pela Lei n.º 5/98 de 31/1). O Aviso n.º 3/93 é, conforme referido, a manifestação dessa autonomia do sistema financeiro e traduziu-se efetivamente na introdução no nosso país duma efetiva liberalização de taxas de juros de operações ativas de crédito bancário.
Sustenta, no entanto, Miguel Pestana de Vasconcelos, que o Banco de Portugal não deixou de o fazer dentro das balizas estabelecidas pela lei, nomeadamente do Art. 1146.º do C.C.. Por nós, entendemos que a lei que se ressalva no Aviso 3/93 não é o Art. 1146.º do C.C., que por princípio não se aplicaria aos créditos emergentes de operações bancárias. A lei que o Aviso 3/93 pretende salvaguardar é a que resultaria de iniciativa do legislador que regulamentasse em especial o crédito bancário, como é o caso concreto do Art. 28.º do Dec.Lei n.º 133/2009 de 2/6.
Esse diploma especial, em homenagem à tutela específica dos direitos do consumidor, estabeleceu efetivamente regras especiais para o crédito ao consumo, cujo funcionamento é semelhante ao Art. 1146.º n.º 1 a 3 do C.C.. Mas também do seu teor decorre ínsita a manifestação de uma certa autonomia do sistema financeiro na fixação das taxas de juros, em respeito pelo funcionamento das regras do “mercado financeiro”, que inculcam a ideia de que o Art. 1146.º do C.C. nunca teria aplicação nessas operações bancárias.
Veja-se que decorre do Art. 28.º o seguinte:
«1- É havido como usurário o contrato de crédito cuja TAEG, no momento da celebração do contrato, exceda em um quarto a TAEG média praticada pelas instituições de crédito no trimestre anterior, para cada tipo de contrato de crédito aos consumidores.
«2 - É igualmente tido como usurário o contrato de crédito cuja TAEG, no momento da celebração do contrato, embora não exceda o limite definido no número anterior, ultrapasse em 50/prct. a TAEG média dos contratos de crédito aos consumidores celebrados no trimestre anterior.
«3 - A identificação dos tipos de contrato de crédito aos consumidores relevantes e a definição do valor máximo resultante da aplicação do disposto nos números anteriores são determinados e divulgados ao público trimestralmente pelo Banco de Portugal, sendo válidos para os contratos a celebrar no trimestre seguinte.
«4 - Considera-se como usurário o contrato de crédito sob a forma de facilidade de descoberto, que estabeleça a obrigação de reembolso do crédito no prazo de um mês, cuja TAEG, no momento da sua celebração, exceda o valor máximo de TAEG definido, nos termos dos números anteriores, para os contratos de crédito sob a forma de facilidades de descoberto que estabeleçam a obrigação de reembolso do crédito em prazo superior a um mês.
«5 - É ainda havido como usurário o contrato de crédito na modalidade de ultrapassagem de crédito cuja TAN, no momento da sua celebração, exceda o valor máximo de TAEG definido, nos termos dos números anteriores, para os contratos de crédito sob a forma de facilidades de descoberto que estabeleçam a obrigação de reembolso do crédito em prazo superior a um mês.
«6 - Considera-se automaticamente reduzida a metade do limite máximo previsto nos n.ºs 1, 2, 4 e 5 a TAEG, ou, no caso de ultrapassagem de crédito, a TAN, que os ultrapasse, sem prejuízo de eventual responsabilidade criminal.
«7 - Os efeitos decorrentes deste artigo não afetam os contratos já celebrados ou em vigor.»
Se fosse este o normativo aplicável, imagine-se que por acaso a “TAEG média” praticada pelas instituições de crédito no trimestre anterior à celebração do tipo de contrato que estivesse em causa era de 30%. O que não será assim tão pouco frequente quanto isso, em face da realidade nacional e do nível de incumprimento que se regista nos créditos ao consumo, agravado pela circunstância de, na maior parte dos casos, não existirem garantias reais. Nessa hipótese, a taxa de juro assim encontrada não respeitaria os limites do Art. 1146.º do C.C., mas não deixa de ser legal (não usurária), porque seria conforme ao Art. 28.º n.º 1 do Dec.Lei n.º 133/2009 de 2/6.
Daqui resulta que o Art. 28.º do Dec.Lei n.º 133/2009 de 2/6 mais não é que a expressão da autonomia e especialidade do Direito Bancário, traduzindo os mesmos princípios que justificam o necessário afastamento dos limites estabelecidos no Art. 1146.º do C.C., que apesar de ser imperativo, só o é para obrigações civis, não tendo qualquer aplicação nos créditos bancários, que estão sujeito às regras do mercado e às normas especiais que o legislador vai estabelecendo para esse tipo de operações.
Evidentemente que o Art. 28.º do Dec.Lei n.º 133/2009 de 2/6 não se aplica ao caso concreto dos autos, por não estarmos perante um crédito ao consumo. Mas o Dec.Lei n.º 58/2013, de 8 de maio, que revogou o Dec.Lei n.º 344/78 de 17 de novembro (cfr. Art. 12.º) e passou a regular a matéria das operações de crédito, juros remuneratórios, capitalização de juros e mora do devedor, tem de inevitavelmente de ser tido em consideração.
O que é que esse diploma estabeleceu de relevante sobre esta matéria?
No Art. 6.º regulou o cálculo e montante dos juros remuneratórios, mas fê-lo de tal forma, e em termos tais, que fazem pressupor a liberdade de fixação da taxa de juro que concretamente seja aplicada na operação bancária que esteja em causa.
Concretamente, o Art. 6.º do Dec.Lei n.º 58/2013, de 8 de maio, reza o seguinte: «1 - Nas operações de desconto de letras e livranças, bem como de outros títulos de crédito, as instituições podem cobrar a importância dos juros antecipadamente, por dedução ao valor nominal dos títulos de crédito.
«2 - Os juros relativos às operações de abertura de crédito, empréstimos em conta corrente ou outras de natureza similar são calculados em função dos montantes e períodos de utilização efetiva dos fundos pelo beneficiário, de acordo com as taxas de juro contratadas.
«3 - Nos demais contratos de crédito, os juros remuneratórios são calculados sobre o montante de capital em dívida, em cada momento, à taxa contratada e são pagos de acordo com o plano estipulado pelas partes para o pagamento de capital e juros.»
O Art. 7.º, por sua vez, regula a questão da capitalização dos juros, subordinando-a à convenção das partes, formalizada por escrito.
O Art. 8.º regula a matéria dos juros de mora, permitindo a cobrança duma sobretaxa anual máxima de 3% a acrescer aos juros remuneratórios aplicável à operação. Mas, como não se estabelece qual a “taxa aplicável à operação”, é evidente que uma vez mais se remete para a liberdade de estipulação e fixação da taxa de juros remuneratórios.
Resulta assim de todo o sistema que, no âmbito do direito bancário e, em especial das operações de crédito, o regime geral é o da liberdade de estipulação da taxa de juro, remuneratórios ou moratórios, estando assim excluído o sistema financeiro dos limites estabelecidos para as obrigações civis no Art. 1146.º do C.C..
Não queremos com isto dizer que o regime da usura esteja necessariamente excluído das operações financeiras, mas apenas se se verificarem os requisitos objetivos do Art. 282.º n.º 1 do C.C., relativos aos negócios jurídicos usurários. A usura aí prevista pode fazer enfermar qualquer negócio jurídico independentemente de serem ou não violados os limites do Art. 1146.º do C.C.. Só que, esse vício, como vimos no princípio desta já longa exposição, está dependente da verificação de requisitos que não se provam no caso, e a sua relevância e funcionamento estaria sempre dependente da iniciativa do devedor, o que no caso também não ocorreu, em face do teor dos embargos de executado.
Em conclusão, reafirmamos aqui a doutrina e jurisprudência dominante em matéria de juros e cláusulas penais usurárias no âmbito das operações de crédito bancário, por não acompanharmos as posições doutrinais, que temos por minoritárias, e que sustentam o contrário do exposto. Nessa medida, improcede a exceção alegada de “ilegalidade” da taxa de juro de 30%, a qual não havia sequer sido suscitada na petição de embargos, nem apreciada pelo Tribunal Recorrido. Em conformidade, mais não resta que julgar a apelação por improcedente, improcedendo as conclusões que sustentam a revogação da sentença recorrida, que assim deve ser integralmente mantida.
V- DECISÃO
Por todo o exposto, acorda-se julgar a apelação improcedente por não provada, mantendo-se a sentença recorrida nos seus precisos termos.
- Custas pelo apelante (Art. 527º n.º 1 do C.P.C.).
*
Lisboa, 19 de maio de 2020
Carlos Oliveira
Diogo Ravara
Ana Rodrigues da Silva