Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
758/16.5YLPRT.L1-2
Relator: JORGE LEAL
Descritores: NRAU
PROCEDIMENTO ESPECIAL DE DESPEJO
PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE
INCONSTITUCIONALIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/20/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: A norma extraída da alínea c) do n.º 7 do art.º 36.º, conjugada com o n.º 5 do art.º 35.º do NRAU, na redação introduzida pela Lei n.º 31/2012, de 14.8, retificada pela Declaração de Retificação n.º 59-A/2012, de 12.10., segundo a qual os arrendatários, com idade igual ou superior a 65 anos, beneficiários de renda atualizada atenuada nos termos dos n.ºs 2 e 3 do art.º 35.º do NRAU, que no mês correspondente àquele em que foi invocada a circunstância em que assentou esse benefício, e pela mesma forma, não fizerem prova anual do seu rendimento perante o senhorio, ficam automaticamente impedidos de poderem prevalecer-se da mencionada circunstância, mesmo que não tenham sido previamente alertados pelos senhorios para a necessidade de fazerem a aludida prova, é inconstitucional, por violação do princípio da proporcionalidade, ínsito no princípio do Estado de direito democrático consagrado no artigo 2.º da Constituição.
(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes, no Tribunal da Relação de Lisboa.



RELATÓRIO:


Em 01.03.2016 José requereu contra Carlos e Maria procedimento especial de despejo previsto nos artigos 15.º e segs do Novo Regime do Arrendamento Urbano (NRAU) aprovado pela Lei nº 6/2006 de 27.02, referente a prédio que indica.

Para tanto, disse que na sequência de atualização de renda que promoveu em janeiro de 2013, já no mês de fevereiro do mesmo ano o ora R. opôs-se invocando rendimentos que comprovou com declaração fiscal, que lhe facultaram que o valor da renda fosse fixado em montante inferior ao legalmente fixado por referência ao valor patrimonial daquele, sujeito à condição (artigo 35.º n.º 5 do dito NRAU, na versão da Lei n.º 31/2012 de 14.08.) de no mês correspondente do ano seguinte, por sua iniciativa, comprovar pelo mesmo meio documental os seus rendimentos. Sucede que em fevereiro de 2014 os RR. não deram cumprimento a tal formalidade, de remessa de documento fiscal, o que determinou que em setembro de 2014 o ora requerente os houvesse notificado da renda atualizada a partir da que se venceria em dezembro de 2014, sendo que desde então, nos meses de dezembro de 2014 a outubro de 2015, os RR. não pagaram o valor da renda resultante da atualização de setembro de 2014, mantendo-se a pagar o valor anterior, situação de mora com base na qual requereu, e foi concretizada, notificação judicial avulsa dos mesmos em que invocando a inexigibilidade legal de suportar tal mora, os advertiu para procederem aos pagamentos das rendas em dívida e indemnização moratória, sob pena de imediata resolução contratual, pagamento aquele que eles não fizeram.

Os requeridos apresentaram oposição, em que, com relevo para esta apelação, alegaram que no período em questão o arrendatário tinha sofrido graves problemas de saúde, o que constituía justo impedimento para a apresentação da aludida declaração de rendimentos, que, de todo o modo, o requerido veio a apresentar. Mais invocaram a aplicação ao caso da nova redação do n.º 5 do art.º 35.º do NRAU, introduzida pela Lei n.º 79/2014, de 19.12, segundo a qual a prova subsequente de rendimentos só deverá ser efetuada se o senhorio a solicitar.

Os RR. concluíram pela sua absolvição do pedido.

Distribuídos os autos ao Juiz 17 da Secção Cível, Instância Local, em Lisboa, da Comarca de Lisboa, veio o A. apresentar resposta à oposição, em que pugnou pela improcedência desta e concluiu como no requerimento inicial.

Os autos prosseguiram os seus termos, realizando-se audiência final na qual, em 11.7.2016, foi proferida sentença em que se julgou procedente a oposição deduzida e consequentemente improcedente o procedimento de despejo, do qual se absolveu os RR., com custas pelo A..

O A. apelou da sentença, tendo apresentado alegações em que formulou as seguintes conclusões:
a)Os arrendatários com idade igual ou superior a 65 anos de idade, para beneficiarem da não aplicabilidade do determinado no número 5 do artigo 35.º do NRAU, estavam obrigados a fazer prova da sua idade e de qual o seu RABC.
b)E para se poderem prevalecer do seu RABC nos anos imediatos, estavam obrigados a, no mês correspondente àquele em que foi feita a invocação da circunstância regulada no artigo 36º do NRAU, e pela mesma forma, fazerem prova anual do rendimento perante o senhorio.
c)Não restam dúvidas de que os arrendatários não fizeram prova um ano após terem feito a prova inicial do seu RABC, e não o tendo feito,
d)Não podem exigir que se mantenha a renda que foi comunicada ao arrendatário em 11 de Fevereiro de 2013.
e)Tão só porque, em Fevereiro de 2014, não fez prova do seu atual RABC, como lhe competia.
f)O Senhorio procedeu às notificações a que estava obrigado, tendo o recorrido, teimosamente, insistido na sua razão para não pagar o valor da renda a que estava obrigado.
g)Não tendo pago as rendas nem tendo posto fim à mora em que se colocou,
i)Tem o Senhorio o direito de por fim ao contrato de arrendamento, tal como fez,
j)sem que tenha deixado de dar oportunidade ao arrendatário para por fim à mora e manter o arrendamento.
l)A alegada inconstitucionalidade dos artigos 35º e 36º do NRAU não ocorre.

O apelante terminou pedindo que a oposição deduzida pelos recorridos fosse julgada improcedente, por não provada, e o procedimento especial de despejo fosse julgado procedente, por provado, e em consequência os RR. fossem condenados no pedido deduzido pelo senhorio.

Não houve contra-alegações.

Foram colhidos os vistos legais.

FUNDAMENTAÇÃO.

A questão que se suscita neste recurso é se, face à lei e à Constituição da República Portuguesa, os RR. estavam obrigados a comunicar ao senhorio a manutenção da sua situação económica para o efeito de não lhes ser aplicável a atualização extraordinária de renda prevista no invocado regime do NRAU e se, não o tendo feito no prazo tido por exigível, devem ser considerados em mora quanto ao pagamento da renda e sofrerem a consequente extinção do contrato por resolução.

O tribunal a quo deu como provada e não foi impugnada a seguinte
Matéria de facto.

A)Em 17.02.1966, com o teor do doc.1 req. inic, fls 5/6, o então dono como senhorio, e Carlos, como inquilino, acordaram o arrendamento para habitação, do espaço do Rés do Chão Esquerdo, do prédio sito na Rua (…), nº21, Lisboa, pelo prazo de seis meses, com renovação na dependência da vontade do arrendatário, e pela renda mensal de PTE 1.200$00 (€ 5,99).
B)Em Janeiro de 2013 o imóvel descrito em A) era (e é hoje) pertença de José, que ocupou a posição de senhorio no referido arrendamento, sendo a renda mensal então em vigor, no montante de cerca de € 70,00.
C)Em 11.02.2013 o Autor dirigiu ao Réu Carlos, carta com o teor do doc. 1 do req. 09.05.16 , fls 178, que o Réu Carlos recebeu, notificando-o em conformidade com o disposto no artigo 30º do NRAU, apresentando-lhe proposta de sujeição do contrato ao regime do NRAU, e actualização de renda para o valor de € 220,56, em função do valor patrimonial do imóvel, cuja documentação juntou.
D)Em 22.02.2013, com o teor do doc. 1 opos., fls 130, o R. Carlos opôs-se ao proposto pelo Autor na comunicação provada na alínea C), invocando ter idade superior a 64 anos, para rejeitar a alteração de regime da relação, e em função dos rendimentos do agregado familiar contrapropor renda segundo os itens legais, no valor de € 127,67, e juntando os documentos comprovativos da idade e rendimentos informados.
E)Na sequência, o Autor considerou fixar a renda mensal a partir da vencida em Abril de 2013, no valor de € 127,67, montantes que os Réus pagaram como convencionado, por depósito na conta bancária do Autor, desde Abril de 2013 a Novembro de 2014.
F)Pelo menos nos últimos três anos, a Ré Maria é pessoa com dificuldades para tratar de assuntos burocráticos como os da relação com o senhorio, e os Réus têm uma filha, docente universitária, que os acompanha e auxilia nas suas dificuldades.
G)Em finais de 2013 foi detectada ao R. Carlos doença oncológica, nos intestinos, que determinou no período de Fevereiro de 2014 a Setembro de 2014, a par de quebra moral no ânimo dos Réus, que aquele se sujeitasse a tratamentos penosos e duas intervenções cirúrgicas, no final de Maio de 2014 e no princípio de Setembro de 2014.
H)Desde o princípio de 2014, com a doença do pai, acentuou-se o acompanhamento e assistência da filha dos Réus aos mesmos, sendo as rendas devidas pagas tempestivamente.
I)Em Fevereiro de 2014, os Réus não remeteram ao Autor, declaração fiscal dos seus rendimentos, similar à apresentada em Fevereiro de 2013.
J)Em Setembro de 2014 (c/ o teor doc.2 req. in., fls 29), e invocando o não cumprimento da norma do artigo 35º.5 do NRAU (versão então em vigor), o A. notificou os Réus, de que a partir da renda que se vencesse em Dezembro de 2014, a mesma seria actualizada para o valor de € 220,55.
L)Em resposta de 16.10.2014, com o teor do doc. 2 opos, fls 131 e segs, o Réu José informou o Autor das dificuldades de saúde, que o atormentaram desde o início do ano, e que entende justificativo do atraso de remessa da declaração fiscal, juntando comprovativos, e comunicando esperar satisfeito o requisito legal, mantendo-se o valor da renda mensal em € 127,67.
M)O Autor não anuiu à posição do R. José provada em L), e por comunicação de 21.10.14 (doc. 4 req ini, fls 38) notificou-o que a partir da renda vencida em Dezembro de 2014, emitiria os recibos mensais pelo valor de € 220,55.
N)Os Réus realizaram depósitos mensais na conta do Autor no valor de € 127,67, para pagamento de rendas, desde Dezembro de 2014 a Agosto de 2015, cuja recepção o Autor acusava, informando que não dava a quitação da renda por o valor ser inferior a € 220,55, e exigindo o pagamento da indemnização moratória correspondente.
O)Em 05.11.2015, por notificação judicial avulsa requerida pelo Autor - teor do doc. req. inic. fls 64/66 – este transmitiu aos Réus que considerava resolvido o contrato de arrendamento por não pagamento das rendas vencidas desde Dezembro de 2014, pelo valor mensal de € 220,55, sem prejuízo da cessação da mora a que os mesmos procedessem no prazo de 30 dias.
P)De Dezembro de 2014 a Agosto 2015, os Réus realizaram pagamentos de rendas ao Autor, por depósito na conta do mesmo, do valor mensal de € 127,67.

O tribunal a quo enunciou os seguintes:

FACTOS NÃO PROVADOS.
i) No período de Fevereiro de 2014 a Setembro de 2014, os Réus não tiveram o auxílio de alguém próximo, designadamente familiar, que lhes permitisse obter declaração fiscal de rendimentos e remetê-la ao Autor.

O Direito.

Nestes autos está em causa um contrato de arrendamento para habitação que foi celebrado em 1966. Trata-se, pois, de contrato de arrendamento celebrado antes da vigência do Regime do Arrendamento Urbano (RAU), aprovado pelo Dec.-Lei n.º 321-B/90, de 15.10, e, por conseguinte, anterior à entrada em vigor do novo Regime do Arrendamento Urbano (NRAU), aprovado pela Lei n.º 6/2006, de 27.02 (a entrada em vigor ocorreu em 28.6.2006 – art.º 65.º do NRAU).

O NRAU aplica-se às relações contratuais subsistentes à data da sua entrada em vigor, sendo certo que no que concerne à resolução do contrato pelo motivo invocado pelo A. (falta de pagamento de rendas), não existem normas transitórias que prevejam especialidades em relação aos contratos já existentes (cfr. artigos 59.º n.º 1, 26.º, 27.º e 28.º do NRAU).

A questão está na determinação do valor da renda devida.

Na senda da política de atualização das chamadas “rendas antigas”, ou seja, rendas relativas a contratos de arrendamento habitacionais celebrados antes da vigência do Dec.-Lei n.º 321-B/90, de 15.10 (RAU) e contratos não habitacionais celebrados antes da vigência do Dec.-Lei n.º 257/95, de 30.9, o NRAU, com a redação introduzida pela Lei n.º 31/2012, de 14.8, instituiu o sistema de transição para o NRAU e de atualização de rendas previsto, quanto aos arrendamentos para habitação, nos artigos 30.º a 37.º, assente na interpelação do arrendatário por parte do senhorio e resposta daquele com determinados efeitos e cominações, em que o rendimento do agregado familiar do arrendatário e a sua idade poderão ter efeito relevante.

No caso dos autos, em 11.02.2013 o Autor dirigiu ao Réu Carlos uma carta em que o notificava, em conformidade com o disposto no art.º 30.º do NRAU, da intenção de sujeição do contrato ao regime do NRAU, o qual passaria a ser um contrato de prazo certo de cinco anos, prorrogável por períodos anuais, e de atualização da renda (que à data era de € 70,00) para o valor de € 220,56, em função do valor patrimonial do imóvel, cuja documentação juntou.

O R. respondeu nos termos do art.º 31.º do NRAU, opondo-se à pretensão do senhorio, invocando ter mais de 65 anos de idade e que o seu agregado familiar tinha um rendimento anual bruto corrigido (RABC) inferior a cinco retribuições mínimas nacionais anuais (RMNA). Propôs que, nos termos do disposto no art.º 36.º do NRAU, a renda fosse fixada em € 127,67, alegadamente correspondente a 17% do RABC do seu agregado familiar. Juntou documentos comprovativos do alegado.

Face ao alegado e documentado pelo R. o A. aceitou a fixação da renda em € 127,67, a partir da vencida em abril de 2013.

Efetivamente, nos termos do disposto no art.º 36.º do NRAU, os contratos de arrendatários com idade igual ou superior a 65 anos só ficam submetidos ao NRAU (no que concerne à duração do contrato) mediante acordo das partes. Quanto ao valor da renda, se o arrendatário (com idade igual ou superior a 65 anos) comprovar que o RABC do seu agregado familiar é inferior a cinco RMNA, o valor da renda será apurado com os limites e reduções previstos no n.º 2 do art.º 35.º do NRAU (ex vi art.º 36.º n.º 7 alínea a)). Esse valor vigorará por um período de cinco anos (alínea b) do n.º 7 do art.º 36.º), findo o qual o arrendatário poderá ter direito a uma resposta social, nomeadamente através de um subsídio de renda, nos termos a fixar em diploma próprio (n.º 10 do art.º 36.º). Porém, tal como sucede com os arrendatários com idade inferior a 65 anos (e sem deficiência com grau de incapacidade superior a 60%), que devem, no mês correspondente àquele em que foi feita a invocação da circunstância que fundamentou a redução da renda, fazer prova anual do rendimento perante o senhorio (n.º 5 do art.º 35.º), também o arrendatário com idade superior a 64 anos está sujeito a essa prova anual perante o senhorio: é o que resulta da alínea c) do n.º 7 do art.º 36.º (“É aplicável o disposto no n.º 5 do artigo anterior”), com a retificação operada pela Declaração de Retificação n.º 59-A/2012, de 12.10., a qual corrigiu o lapso existente na redação original da aludida alínea c) do n.º 7 do art.º 36.º, com a redação introduzida pela Lei n.º 31/2012, na qual se declarava aplicável o n.º 6 do artigo anterior.

Ora, o tribunal a quo, por não se ter dado conta da aludida retificação e de que a alusão, primitivamente contida na alínea c) do n.º 7 do art.º 36.º do NRAU revisto, ao n.º 6 do artigo anterior, emergia de mero lapso, cuidou que a obrigação de prova anual do rendimento, prevista no n.º 5 do art.º 35.º do NRAU, não era aplicável aos inquilinos abrangidos pelo art.º 36.º, isto é, ao ora R.
Daí que o tribunal a quo tenha, com fundamento na falta de obrigação da aludida prova anual, absolvido os RR. nos termos supra expostos.

Ora, o R., de acordo com a versão do NRAU então em vigor, deveria, em fevereiro de 2014, enviar ao A. prova de que continuava na situação económica que justificara a supra referida atenuação do valor atualizado da renda – sob pena de não poder prevalecer-se da mesma (n.º 5 do art.º 35.º do NRAU, ex vi alínea c) do n.º 7 do art.º 36.º do mesmo regime).

De notar, porém, que a Lei n.º 79/2014, de 19.12, veio a alterar o aludido regime de prova dos rendimentos perante o senhorio, estabelecendo, no n.º 5 do art.º 35.º, que o inquilino fará a referida prova “pela mesma forma e até ao dia 30 de setembro, quando essa prova seja exigida pelo senhorio até ao dia 1 de setembro do respetivo ano, (…)”

Essa alteração enquadra-se no fito de proteger o inquilino face a frequentes e compreensíveis situações de desconhecimento ou imprevidência, de que se dá nota na exposição de motivos da Proposta de Lei n.º 250/XII (4.ª) que deu origem à Lei n.º 79/2014: “…a monitorização da reforma (…) revelou que existiam alguns aspetos do regime legal previsto que podiam e deviam ser melhorados, nomeadamente no que respeita à transição dos contratos mais antigos para o novo regime.
Assim, alguns dos procedimentos previstos nessa matéria carecem de ajustamento e foram refletidos, inclusivamente, nas sugestões da Comissão de Monitorização da Reforma do Arrendamento Urbano, nomeadamente quanto à informação exigível na comunicação realizada pelo senhorio para atualização de renda, no sentido de esclarecer o inquilino das consequências da falta ou da extemporaneidade da sua resposta ou quanto à comprovação anual dos rendimentos por parte dos arrendatários, cujo regime legal apontava para um momento temporal que não se revelava articulado com a liquidação anual dos impostos sobre o rendimento.”

Este novo regime que, conforme decorre dos cânones gerais da aplicação da lei no tempo (art.º 12.º do Código Civil), não é retroativamente aplicável às situações consolidadas à data da sua entrada em vigor - como é o caso destes autos (de resto, cfr. art.º 6.º n.º 1 da Lei n.º 79/2014: “As alterações introduzidas à Lei n.º 6/2007, de 27 de fevereiro, pela presente lei aplicam-se aos procedimentos de transição para o NRAU, previstos nos artigos 30.º e seguintes e 50.º e seguintes, que se encontrem pendentes na data da sua entrada em vigor, sem prejuízo dos direitos e obrigações decorrentes dos atos já praticados nesses procedimentos e do disposto nos números seguintes”) -, procura corresponder a preocupações de proporção e justiça que vieram a ser expressamente apontadas pelo Tribunal Constitucional no acórdão n.º 277/2016, de 04.5.2016, da 2.ª secção.

Com efeito, nesse acórdão o Tribunal Constitucional, analisando o procedimento de transição para o NRAU e de atualização das rendas supra referido, aprovado pelo NRAU revisto, emitiu o seguinte juízo de inconstitucionalidade:
Julgar inconstitucional a norma extraída dos artigos 30.º, 31.º e 32.º do Novo Regime do Arrendamento Urbano, aprovado pela Lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro, na redação dada pela Lei n.º 31/2012, de 14 de agosto, segundo a qual «os inquilinos que não enviem os documentos comprovativos dos regimes de exceção que invoquem (seja quanto aos rendimentos, seja quanto à idade ou ao grau de deficiência) ficam automaticamente impedidos de beneficiar das referidas circunstâncias, mesmo que não tenham sido previamente alertados pelos senhorios para a necessidade de juntar os referidos documentos e das consequências da sua não junção», por violação do princípio da proporcionalidade, ínsito no princípio do Estado de direito democrático consagrado no artigo 2.º da Constituição”.

Nesse acórdão o Tribunal Constitucional lembrou e ponderou que:

-a proibição do excesso (ou a proporcionalidade em sentido amplo) constitui, tal como o princípio da proibição do arbítrio, uma componente elementar da ideia de justiça, razão por que aquele princípio pode reclamar uma validade geral;
-tal princípio constitui um princípio geral de limitação do poder público, que se ancora no princípio do Estado de direito democrático consagrado no artigo 2.º da Constituição;
-o princípio da proibição de excesso postula que entre o conteúdo da decisão do poder público e o fim por ela prosseguido haja sempre um equilíbrio, uma ponderação e uma justa medida;
-existe violação do princípio da proporcionalidade se a medida em análise for considerada inadequada (convicção clara de que a medida é, em si mesma, inócua, indiferente ou até negativa, relativamente ao fim visado); ou desnecessária (convicção clara da existência de meios adequados alternativos mas menos onerosos para alcançar o fim visado); ou desproporcionada (convicção de que o ganho de interesse público inerente ao fim visado não justifica nem compensa a carga coativa imposta; relação desequilibrada entre os custos e os benefícios);
-in casu está em causa a aplicação do princípio da preclusão, de origem processual, à possibilidade de o arrendatário, não obstante as ter invocado oportunamente, se prevalecer de certas situações preexistentes, que têm natureza objetiva – porque verificáveis por terceiros e conhecidas das autoridades públicas – e duradoura, ocorrendo a preclusão em apreço não no quadro de um processo judicial, mas de um procedimento negocial desencadeado pelo senhorio e sem que este se encontre vinculado a advertir o arrendatário para as consequências da inobservância daquele ónus de comprovação;
-devem valer aqui, ainda com mais razão, as exigências que o Tribunal Constitucional tem vindo a formular a propósito do processo;
-o Tribunal Constitucional, procurando densificar, na sua jurisprudência, o juízo de proporcionalidade a ter em conta quando esteja em questão a imposição de ónus às partes, tem reconduzido tal juízo à consideração de três vetores essenciais:
-a justificação da exigência processual em causa;
-a maior ou menor onerosidade na sua satisfação por parte do interessado;
-e a gravidade das consequências ligadas ao incumprimento dos ónus;
-o objetivo visado com a referida solução legal contida no NRAU é a célere definição do estatuto do contrato de arrendamento, uma vez comunicada a intenção do senhorio de o fazer transitar para o NRAU. Este fim interessa não apenas ao próprio senhorio, como, tendo em conta a apreciação feita pelo legislador relativamente à interdependência entre a reforma do regime do arrendamento concretizada no NRAU e a dinamização do mercado do arrendamento, a toda a comunidade. Trata-se, pois, de um fim legítimo;
-porém, o sistema preclusivo em análise é desnecessário para o efeito pretendido, pois nada impediria que, até ao momento em que tais circunstâncias pessoais do arrendatário fossem por este devidamente comprovadas, a transição prosseguisse sob condição. Agindo de boa fé, como é dever de todas as partes contratuais, o arrendatário também tem interesse numa rápida clarificação da situação. O mais tardar, no âmbito do procedimento especial de despejo referido nos artigos 15.º e seguintes do NRAU, a veracidade das alegações do arrendatário teria de ser comprovada, sem prejuízo do dever de compensação de eventuais danos causados pela demora na comprovação daquelas situações objetivas;
-A solução consubstanciada nas normas referidas revela-se, além disso, desproporcionadamente onerosa para o arrendatário, por comparação com os benefícios que a mesma traz para o senhorio e para o interesse comum. Aliás, estes não seriam excessivamente lesados caso tal norma não vigorasse. Com efeito, o senhorio não perde nem o seu direito a promover a transição para o NRAU nem o direito a eventuais compensações devidas pela demora na efetivação dessa mesma transição. Já o arrendatário que reúna as condições que alega – RABC inferior a cinco RMNA e idade igual ou superior a 65 anos ou com deficiência com grau de incapacidade superior a 60% – sem as comprovar no momento devido - e que até à comunicação da intenção do senhorio de fazer transitar o seu contrato de arrendamento para o NRAU gozava de um direito consolidado ao locado com uma certa renda, fica, por força de tal norma, numa situação muito precária, já que o seu direito à habitação no locado e a garantia de uma renda ajustada ao seu rendimento ficam dependentes da boa vontade do senhorio. Ou seja, numa fase já muito avançada da vida, e em que dificilmente encontrará soluções equivalentes à que tinha por consolidada, o arrendatário pode, contra a sua vontade, ver-se confrontado com um contrato de arrendamento com prazo certo e, portanto, sujeito a caducidade, e, ou, com uma renda de valor demasiado elevado para o seu nível de rendimentos.

Todo este circunstancialismo fundou o juízo de inconstitucionalidade supra referido.

Ora, e quanto ao caso sub judice?

O apelante, referindo-se a invocação de inconstitucionalidade que a mandatária dos apelados terá efetuado no decurso das alegações orais proferidas na audiência final, defende que ao caso sub judice não é aplicável idêntico juízo de inconstitucionalidade.

Cremos, no entanto, que a resposta é a contrária, por identidade ou mesmo por maioria de razão.

É que a solução prevista na versão primitiva do NRAU revisto, ou seja, a da alínea c) do n.º 7 do art.º 36.º, conjugada com o n.º 5 do art.º 35.º do NRAU, determina, de forma irreversível, a perda de um direito (fixação da renda num montante que, embora atualizado, se contém dentro de limites minimamente suportáveis pelo arrendatário), não porque deixassem de ocorrer as circunstâncias substantivas que o pressupunham, ou porque se pudesse razoavelmente presumir que elas haviam cessado, mas com base numa omissão (falta de apresentação ao senhorio, em determinada data, da prova da manutenção dessas circunstâncias) que poderia decorrer de mero desconhecimento ou imprevidência (para não falar em situações de justo impedimento), sem que fosse dada ao titular do direito a possibilidade de suprir essa irregularidade. Esse efeito inelutável, aplicado sem aviso prévio, é tanto mais chocante quanto incide sobre situações que a lei presume, justamente, serem de particular fragilidade, como é o caso dos autos, de pessoas sujeitas às limitações próprias da idade, frequentemente acompanhadas de doenças incapacitantes. E a injustiça da primitiva solução da lei, aplicável a estes autos, é ainda incrementada pela complexidade do regime legal, de interpretação não evidente, ainda por cima agravada, no texto original da Lei n.º 31/2012, com inúmeras gralhas, que deram azo a uma longa Declaração de Retificação, já acima referida, a qual abarcou, veja-se, a própria alínea c) do n.º 7 do art.º 36.º do NRAU, levando um profissional do foro (o exm.º juiz da primeira instância) a considerar que in casu o arrendatário não estava obrigado a renovar a prova dos seus rendimentos (incluindo o seu agregado familiar) perante o senhorio.

A busca de uma juditium assente no apuramento da realidade das coisas e, tanto quanto possível, não no desenlace resultante de efeitos preclusivos emergentes, nomeadamente, de meras omissões, percorre atualmente a lei adjetiva, maxime através de mecanismos de advertência da parte relapsa (cfr., v.g., no processo civil, artigos 41.º, 48.,º n.º 2, 139.º n.ºs 6 e 7, 145.º n.º 3, 570.º n.º s 3 a 5, 642.º n.º 1, do CPC). Podendo indicar-se, na mesma senda e no campo da prova de manutenção de requisitos de benefícios atinentes a matéria da competência dos tribunais judiciais, v.g., o disposto nos n.ºs 4 e 5 do art.º 9.º do Dec.-Lei n.º 164/99, de 13.5, diploma que constituiu o Fundo de Garantia dos Alimentos Devidos a Menores e regula a garantia de alimentos devidos a menores prevista na Lei n.º 75/98, de 19.11:
Artigo 9.º
Articulação entre as entidades competentes
1–O montante fixado pelo tribunal mantém-se enquanto se verificarem as circunstâncias subjacentes à sua concessão e até que cesse a obrigação a que o devedor está obrigado.
(…)
4–A pessoa que receber a prestação deve, no prazo de um ano a contar do pagamento da primeira prestação, renovar, perante o tribunal competente, a prova de que se mantêm os pressupostos subjacentes à sua atribuição.
5–Caso a renovação da prova não seja realizada, o tribunal notifica a pessoa que receber a prestação para a fazer no prazo de 10 dias, sob pena da cessação desta.
(…).”

No caso destes autos o arrendatário, assim que foi interpelado pelo senhorio, que lhe dava nota das consequências de não ter, em fevereiro de 2014, apresentado prova de rendimentos (aumento da renda para quase o dobro – de € 127,67 para € 220,55), de imediato fez prova da manutenção dos rendimentos que justificavam a renda de € 127,67, justificando a sua omissão com impedimentos resultantes de doença (vide alínea L) da matéria de facto). Problemas de saúde esses que, aliás, se provaram (alínea G)da matéria de facto).

A norma extraída da alínea c) do n.º 7 do art.º 36.º, conjugada com o n.º 5 do art.º 35.º do NRAU, na redação introduzida pela Lei n.º 31/2012, de 14.8, retificada pela Declaração de Retificação n.º 59-A/2012, de 12.10., segundo a qual os arrendatários, com idade igual ou superior a 65 anos, beneficiários de renda atualizada atenuada nos termos dos n.ºs 2 e 3 do art.º 35.º do NRAU, que no mês correspondente àquele em que foi invocada a circunstância em que assentou esse benefício, e pela mesma forma, não fizerem prova anual do seu rendimento perante o senhorio, ficam automaticamente impedidos de poderem prevalecer-se da mencionada circunstância, mesmo que não tenham sido previamente alertados pelos senhorios para a necessidade de fazerem a aludida prova, é, conforme decorre de tudo o exposto, desproporcionada e desnecessariamente onerosa. É, por conseguinte, inconstitucional, por violação do princípio da proporcionalidade, ínsito no princípio do Estado de direito democrático consagrado no artigo 2.º da Constituição.

Pelo exposto, a apelação é improcedente, devendo a decisão recorrida manter-se, embora com fundamentação diversa.

DECISÃO.

Pelo exposto, decide-se:
a)Não aplicar a norma extraída da alínea c) do n.º 7 do art.º 36.º, conjugada com o n.º 5 do art.º 35.º do NRAU, na redação introduzida pela Lei n.º 31/2012, de 14.8, retificada pela Declaração de Retificação n.º 59-A/2012, de 12.10., segundo a qual os arrendatários, com idade igual ou superior a 65 anos, beneficiários de renda atualizada atenuada nos termos dos n.ºs 2 e 3 do art.º 35.º do NRAU, que no mês correspondente àquele em que foi invocada a circunstância em que assentou esse benefício, e pela mesma forma, não fizerem prova anual do seu rendimento perante o senhorio, ficam automaticamente impedidos de poderem prevalecer-se da mencionada circunstância, mesmo que não tenham sido previamente alertados pelos senhorios para a necessidade de fazerem a aludida prova, dada a sua inconstitucionalidade por violação do princípio da proporcionalidade, ínsito no princípio do Estado de direito democrático consagrado no art.º 2.º da Constituição;
b)Julgar a apelação improcedente e consequentemente manter a decisão recorrida, embora com fundamentação diversa.
As custas da apelação são a cargo do apelante, que nela decaiu.



Lisboa, 20.10.2016



Jorge Leal
Ondina Carmo Alves
Pedro Martins