Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
6058/16.3T8FNC-F.L1-6
Relator: TERESA SOARES
Descritores: GRADUAÇÃO DE CRÉDITOS
DIREITO DE RETENÇÃO
LISTA DE CREDORES
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/22/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE/ANULADA A DECISÃO
Sumário: I. Um direito de retenção que tem por base uma “transacção judicial” (sendo desde logo muito discutível se tal direito pode nascer por transacção), sabendo-se das restrições ao reconhecimento de tal direito, mormente por força do Acordão Uniformizador de 4/2014, DE 20-03-2012, PUBLICADO NO DIÁRIO DA REPÚBLICA – 1.ª SÉRIE, N.º 95, DE 19/05/2014 que fixou: ”No âmbito da graduação de créditos em insolvência o consumidor promitente-comprador em contrato, ainda que com eficácia meramente obrigacional com traditio, devidamente sinalizado, que não obteve o cumprimento do negócio por parte do administrador da insolvência, goza do direito de retenção nos termos do estatuído no artigo 755º nº 1 alínea f) do Código Civil.”, era susceptível de ter merecido especial atenção por parte do julgador.

II. A lista de credores deve fornecer os elementos mínimos que permitam aferir da legitimidade do possível “embargante”, devendo transparecer da mesma quem tem a qualidade de “lesado” em face do direito que se entendeu reconhecer.

II. É evidente que essa omissão e o não se ter notificado a credora/recorrente da informação prestada pelo Administrador donde passou a saber-se que o direito de retenção recaia sobre o prédio onerado pela hipoteca, constituem omissões lesivas o direito da credora, pois as consequências da não impugnação do crédito são sabidas e estão vistas na sentença: o direito de retenção a prevalecer à hipoteca.

III. Essas duas omissões consubstanciam nulidade a influir, decisivamente, no exame e decisão da causa –art.º 195.ºCPC
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral:
Acordam na 6.ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa.



Relatório:



A X, SA veio interpor o presente recurso da sentença de verificação e graduação de créditos proferida nos autos de insolvência em que foi declarado insolvente JJ, no segmento que graduou à frente do seu crédito garantido por hipoteca, um crédito de C, garantido por direito de retenção, alegando, com as seguintes conclusões:

1. O presente recurso foi interposto da douta sentença de verificação e graduação de créditos com a referência 44091760, proferida pelo M.º Juiz a quo, a qual, no que respeita ao imóvel hipotecado a favor da X, SA, graduou à frente desta um alegado crédito garantido de C.
2. Decidindo como decidiu, salvo o devido respeito, o M.º Juíz a quo não fez correcta nem adequada aplicação do Direito.
3. A Apelante está, pois, convicta que Vossas Excelências, reapreciando a matéria dos autos e, subsumindo-a nas normas legais aplicáveis, tudo no mais alto e ponderado critério, não deixarão de revogar a douta sentença proferida pelo Tribunal a quo.
4. Senão vejamos: nos presentes autos, a X, SA reclamou créditos no valor global de €3.909.356,22, sendo que o valor de €15.364,29 encontra-se garantido por hipoteca constituída sobre o imóvel melhor identificado supra.
5. Na sentença de verificação e graduação de créditos proferida pelo douto Tribunal a quo, e no que concerne ao imóvel melhor identificado supra, em primeiro lugar ficou graduado o crédito privilegiado da Fazenda Nacional a título de IMI, em segundo lugar o crédito garantido de C e, em terceiro lugar, o crédito garantido da X, SA.
6. Porém, não pode a X, SA, credora com garantia real sobre tal imóvel, concordar com tal entendimento, na medida em que o alegado crédito de C não pode, de forma, alguma ser reconhecido como garantido, nem graduado à frente do crédito da X, SA.
7. Ora, em primeiro lugar, o crédito reclamado por C, identificado no ponto n.º 6 da lista de créditos reconhecidos e na alínea b) das “Notas explicativas”, tão somente refere que aquela terá um “Direito de retenção s/imóvel” e que o mesmo “tem por base o acordo celebrado e homologado, no âmbito do processo n.º YY”.
8. E, por despacho datado de 28.04.2017, foi o Sr. Administrador de Insolvência notificado para “identificar o imóvel sobre o qual C goza de direito de retenção”, tendo aquele respondido que se trata do móvel hipotecado a favor da X, SA.
9. Com efeito, a X, SA, ora Recorrente, não foi notificada do aludido despacho, nem da resposta do Sr. Administrador de Insolvência, tendo somente verificado a existência de tais documentos após a notificação da sentença de verificação e graduação de créditos.
10. Não tendo oportunamente sido notificada de que o imóvel sobre o qual alegadamente a Reclamante C goza de retenção, não pôde a X, SA, anteriormente, impugnar o crédito reconhecido àquela.
11. Até porque, recorde-se, da lista de créditos reconhecidos não resultava que, sobre o imóvel hipotecado a favor da X, SA, existisse qualquer direito de retenção.
12. Tanto mais gravoso quando se encontram apreendidos vários imóveis.
13. Por conseguinte, a falta de notificação à X, SA dos esclarecimentos prestados pelo Sr. Administrador de Insolvência, culminando no desconhecimento por parte da X, SA de que o alegado direito de retenção incidia sobre o imóvel hipotecado a seu favor, consubstancia um acto nulo, nos termos e para os efeitos do art. 195.º e seguintes do CPC, nulidade esta que aqui se argui para todos os efeitos legais.
14. Em suma: a X, SA não impugnou anteriormente tal crédito somente porque, à data da notificação da lista de créditos reconhecidos, não resultava dos autos que o imóvel referente ao alegado direito de propriedade correspondia ao imóvel hipotecado a seu favor e, da mesma forma, não foi notificada dos subsequentes esclarecimentos.
15. Paralelamente, decorre do n.º 3 do art. 130.º do CIRE que “Se não houver impugnações, é de imediato proferida sentença de verificação e graduação de créditos, em que, salvo o caso de erro manifesto, se homologa a lista de credores reconhecidos elaborada pelo administrador da insolvência e se graduam os créditos em atenção ao que conste dessa lista.”.
16. A este propósito, e conforme ensinam Carvalho Fernandes e João Labareda, “A inexistência de impugnações não constitui garantia significativa da correcção das listas elaboradas pelo administrador da insolvência. Este reparo deve ser entendido em função dos curtos prazos concedidos pela lei, quer ao administrador da insolvência, para elaborar as listas, quer aos interessados para as impugnar. Nota tanto mais relevante quanto é certo serem, na grande maioria dos casos, em número significativo os créditos reclamados e volumosos os documentos que instruem as reclamações. Por outro lado, impressiona, no que respeita às garantias, que a sua constituição esteja normalmente dependente do preenchimento de requisitos formais ad substantiam, cuja falta seja, afinal de contas, puramente ignorada ou desconsiderada por mero efeito da falta de impugnação. Por isso, defendemos que deve interpretar-se em termos amplos o conceito de erro manifesto, não podendo o juiz abster-se de verificar a conformidade substancial e formal dos títulos dos créditos constantes da lista que vai homologar para o que pode solicitar ao administrador os elementos de que necessite.” (in “CIRE Anotado”, 2.ª Edição, Quid Júris, Lisboa, 2013, a pág. 555).
17. No mesmo sentido, defende Mariana França Gouveia que “No lugar paralelo da sentença de homologação, desistência ou transacção (artigo 300.º do CPC), o juiz examina o objecto e a qualidade das pessoas para apurar a validade do negócio. E a sentença que profere é uma sentença de mérito, produzindo caso julgado material. Não deve pois interpretar-se a norma do artigo 130º, n.º 3 como uma oposição ao juiz, até porque ele é o autor da sentença. Deve antes entender-se a regra como uma possibilidade de simplificação processual à sua disposição.” (in “Verificação do Passivo”, Revista Themis, Edição Especial, 2005, Novo Direito da Insolvência, pág. 156).
18. Nesse seguimento, “Esta faculdade concedida ao juiz de não homologar “cegamente” a lista que credores que lhe foi apresentada, radica nos poderes de fiscalização que lhe são conferidos pelo disposto no artigo 58.º do CIRE, onde se inclui o poder de fiscalizar se o Administrador da insolvência elaborou a relação de créditos com observância de todas as determinações legais, quer de ordem formal, quer substancial” (cfr., a título de exemplo, o Acórdão de 13.10.2015 do Tribunal da Relação de Coimbra, atinente ao Proc. n.º 178/13.3TBSPS-A.C1).
19. É, assim, pacífico o entendimento doutrinal e jurisprudencial de que “A ausência de impugnação da lista definitiva de créditos não implica sem mais a produção de uma sentença homologatória «cega» por um eventual efeito cominatório
pleno. O artigo 130º, nº3 do CIRE conjugado com os princípios processuais gerais que conferem ao juiz poderes de gestão e de direcção do processo, permite e impõem que este afira da bondade formal e substancial dos créditos constantes da lista apresentada pelo Administrador de Insolvência. O conceito de «erro manifesto» a que alude o mencionado normativo não se reduz apenas à categoria do mero erro formal, podendo abranger razões ligadas à substância dos créditos em apreço o que poderá ser objecto de censura por parte do Tribunal mesmo que os aludidos créditos não tenham sido objecto de qualquer impugnação”(cfr. o Acórdão de 30.09.2014 do Supremo Tribunal de Justiça, atinente ao Proc. n.º 3045/12.4TBVLG-B.P1.S1).
20. Efectivamente, e prossegue o referido Tribunal, “Constituindo o processo de Insolvência um procedimento universal e concursal, cujo objectivo é a obtenção da liquidação do património do devedor, por todos os seus credores (…) não se compreenderia ou mal compreenderia, que o legislador coarctasse uma maior amplitude interpretativa à sobredita expressão e ao mesmo tempo sonegasse ao Juiz os seus poderes de direcção do processo, podendo daí advir prejuízos para os credores e/ou para a massa insolvente”.
21. Ainda perfilhando o mesmo entendimento, decidiu o Supremo Tribunal de Justiça que “Perante a lista de credores apresentada pelo administrador da insolvência, e mesmo que dela não haja impugnações, o Juiz não pode abster-se de verificar a conformidade substancial e formal dos títulos dos créditos constantes dessa lista, nem dos documentos e demais elementos de que disponha, com a inclusão, montante, ou qualificação desses créditos, a fim de evitar violação da lei substantiva.” (cfr. o Acórdão de 25.11.2008, referente ao Proc. n.º 08A3102”.
22. É, assim, manifesto que o douto Tribunal a quo tinha poderes para modificar a qualificação do crédito reclamado por C, o qual alegadamente goza de direito de retenção.
23. E bem tem dito a ora Recorrente, ao longo das presentes alegações, que a Reclamante C goza de um alegado direito de retenção, pois o mesmo não existe.
24. Mais, como se demonstrará, a existir algum crédito de C, nunca o mesmo poderia ser reconhecido como garantido, nem prevalecer sobre o crédito garantido da X, SA.
25. Vejamos: por consulta à reclamação de créditos realizada por C, verifica-se que o “título” sustentado pela mesma é um “Termo de Transacção” elaborado no âmbito do Proc. n.º YY, onde é Autora a Reclamante e Réus o Insolvente e ainda NP”.
26. Em tal “Termo de Transacção”, cujo único intuito seria manifestamente prejudicar os credores do Insolvente, resulta que, mediante mero acordo, os Réus reconheceram à Autora/Reclamante um direito de retenção sobre o imóvel aqui em discussão, o qual subsistiria até que à Autora fosse paga a
quantia de €665.142,53.
27. Com efeito, conforme resulta dos autos, o imóvel aqui em discussão encontra-se registado a favor do aqui Insolvente JJ e da sua falecida esposa, EE, sendo ambos mutuários do empréstimo contraído junto da X, SA e através do qual foi constituída a hipoteca da X, SA supra mencionada.
28. Sucede que a Reclamante C e a mutuária EE são irmãs, porquanto ambas são filhas de M...F...E... e de E...C...S...G... E....
29. Pelo que o Insolvente JJ é cunhado da Reclamante C.
30. Mais, o direito de retenção alegado pela Reclamante C foi alegadamente reconhecido pelo Insolvente JJ e pela herança aberta por óbito de EE, esta representada pelo Insolvente JJ e por NP, filho do Insolvente e da falecida.
31. De acordo com o art. 48.º do CIRE, “Consideram-se subordinados, sendo graduados depois dos restantes créditos sobre a insolvência: a) Os créditos detidos por pessoas especialmente relacionadas com o devedor (…)”.
32. Para este efeito, resulta do n.º 1 do art. 49.º do CIRE que “São havidos como especialmente relacionados com o devedor pessoa singular:
a)- O seu cônjuge e as pessoas de quem se tenha divorciado nos dois anos anteriores ao início do processo de insolvência;
b)- Os ascendentes, descendentes ou irmãos do devedor ou de qualquer das pessoas referidas na alínea anterior”.
33. Considerando que a Reclamante C é irmã de EE (cônjuge do Insolvente JJ), não restam dúvidas de que a referida Reclamante é uma “pessoa especialmente relacionada com o devedor”, nos termos conjugados da alínea a) e da parte final da alínea b) do n.º 1 do art. 49.º do CIRE.
34. Por conseguinte, o crédito da Reclamante C, a ser reconhecido, deveria sê-lo como crédito subordinado e graduado como tal, isto é, “depois dos restantes créditos sobre a insolvência” conforme rege o art. 48.º do CIRE.
35. E nunca como garantido.
36. No mesmo sentido, dispõe o n.º 1 do art. 177.º do CIRE que “O pagamento dos créditos subordinados só tem lugar depois de integralmente pagos os créditos comuns(…)”.
37. Por outro lado, e conforme ensina o Prof. José Lebre de Freitas, “não se admita a constituição do direito de retenção por negócio jurídico.”(in “Sobre a prevalência,no apenso de reclamação de créditos, do direito de retenção reconhecido por sentença”).
38. Por conseguinte, continua o Prof. José Lebre de Freitas, “inadmissível é também extrair a existência do direito de retenção dum acto de confissão do pedido ou de transacção, o qual, constituindo um negócio, unilateral ou bilateral, de direito civil
(veja-se, para a transacção, o art. 1248 CC (…). A prática, não rara, de, em acção declarativa movida pelo pretenso promitente comprador de bem imóvel com tradição, ou pelo pretenso credor do preço de empreitada não aceite, se fazer apressada confissão do pedido ou transacção, que o juiz homologa, nela reconhecendo o direito de retenção, não pode ter o efeito, de perante terceiros, valer como acto eficaz de reconhecimento desse direito.”.
39. Nessa conformidade, não restam dúvidas de que o “Termo de Transacção” invocado pela Reclamante consubstancia um mero negócio jurídico e, perante terceiros (aqui credores), não pode produzir qualquer efeito, porquanto não vale como acto eficaz de reconhecimento do gozo de um direito de retenção.
40. Paralelamente, a nossa jurisprudência e doutrina também perfilham pacificamente o entendimento de que “Não é oponível ao credor hipotecário a sentença, proferida em acção que tenha corrido entre o promitente-comprador e o promitente-vendedor (em que aquele credor não foi parte), que reconheça o direito de retenção desse promitente-comprador sobre o imóvel hipotecado” (cfr., a título de exemplo, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24.11.2015, proferido no âmbito do Proc. n.º 7368/10.9TBVNG-C.P2.S1).
41. Isto porque: “A consagração constitucional do direito de defesa tem como corolário que o caso julgado não possa produzir-se contra quem não tenha tido oportunidade de intervir no processo em que a sentença é proferida”(in José Lebre de Freitas, “Sobre a prevalência, no apenso de reclamação de créditos, do direito de retenção reconhecido por sentença”).
42. Deste modo, e conforme ensina o Prof. José Lebre de Freitas, “Facilmente se vê, em face destes princípios, que não é oponível ao credor hipotecário a sentença que, em acção que tenha corrido entre o promitente comprador e o promitente vendedor (…) reconheça o direito de retenção do primeiro. O direito real de garantia, uma vez validamente constituído, não está, na sua existência ou conteúdo, sujeito às vicissitudes da actuação negocial do devedor ou do proprietário do bem (ou
titular de direito real menor sobre ele) que negativamente o possam afectar. A relação de garantia, em que se integra, depende da relação creditícia na medida apenas em que a extinção desta a extingue também, por, ainda que sem a actuação do mecanismo da garantia, ficar então realizada a função para a qual foi constituída (…). Do titular do direito real de garantia nunca se pode dizer que é um terceiro juridicamente indiferente a uma sentença que afecte o grau da sua garantia. Na realidade, a relação jurídica de garantia real é, ao mesmo tempo que dependente da relação de crédito que garante (como resulta do art. 717-2 CC), independente e incompatível em face de outras relações de garantia que tenham por objecto o mesmo bem”.
43. Posto isto, conclui o Prof. José Lebre de Freitas que “Não é, pois, invocável perante o credor hipotecário a sentença que, com trânsito em julgado, tenha declarado, em acção em que o credor hipotecário não foi parte, a existência de direito de retenção alheio sobre o imóvel hipotecado, inclusivamente a favor do promitente comprador do imóvel ou fracção ou do empreiteiro que nele construíu um prédio urbano”.
44. Por conseguinte, não tendo a X, SA, ora Recorrente, sido parte no aludido processo onde foi “reconhecido” o direito de retenção da Reclamante C, não pode o mesmo ser oponível à X, SA.
45. Em suma, do exposto resulta que o crédito reclamado por C, porque assente num negócio jurídico (onde se inclui a transacção), não pode valer como acto eficaz de reconhecimento de um direito de retenção; o invocado “Termo de Transacção” não é oponível à X, SA; e, ainda que fosse reconhecido algum direito de crédito àquela, o mesmo seria, sem margem para dúvidas, reconhecido como subordinado e nunca como garantido.
46. Pelo exposto, conclui-se que o Tribunal a quo fez uma incorrecta interpretação e desadequada aplicação do direito, devendo, por isso, ser revogada a sentença de verificação e graduação de créditos e substituída por outra que, no que concerne ao prédio urbano descrito na CRP do Funchal sob o n.º 2530 melhor identificado supra, gradue o crédito garantido da X, SA em segundo lugar. Nestes termos, e nos que Vossas Excelências mui doutamente suprirão, dando provimento ao presente recurso, revogando a douta sentença de verificação e
graduação de créditos com a referência 44091760, substituindo-a por outra que, no que concerne ao prédio urbano descrito na CRP do Funchal sob o n.º 2530 melhor identificado supra, gradue o crédito garantido da X, SA em segundo lugar.
 
B A credora reclamante contra-alegou, pugnando pela manutenção do decidido.

C Baixaram os autos ao tribunal recorrido para pronúncia sobre a nulidade arguida, sendo o seu teor:
Analisada a decisão recorrida considera-se que a mesma não padece de  qualquer nulidade.
Nos termos do disposto no art. 129.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, o administrador da insolvência deve, nos quinze dias subsequentes ao termo do prazo das reclamação de créditos, juntar aos autos uma lista dos credores por si reconhecidos e uma lista dos não reconhecidos, relativamente não só aos que tenham deduzido reclamação de créditos, como àqueles que não o tenham feito.
De acordo com o disposto no art. 130.º, n.º 1 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, nos dez dias seguintes ao termo do prazo enunciado naquela norma, pode qualquer interessado impugnar a lista de credores reconhecidos mediante requerimento dirigido ao juiz, com algum ou alguns dos seguintes fundamentos: indevida inclusão ou exclusão de créditos, incorrecção do montante ou da qualificação dos créditos reconhecidos.
Estipula o art. 133.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas que, durante o prazo fixado para as impugnações e as respostas, e a fim de poderem ser examinados por qualquer interessado e pela comissão de credores, deve o administrador da insolvência patentear as reclamações de créditos, os documentos que as instruam e os documentos da escrituração do insolvente no local mais adequado, o qual é objecto de indicação no final nas listas de credores reconhecidos e não reconhecidos.
Visa-se, deste modo, que os interessados através da consulta das reclamações de créditos apresentadas e documentos que as acompanham tenham conhecimento do respectivo teor e possam, assim, caso o pretendam, deduzir a respectiva impugnação.
No presente caso, apresentada a lista de credores reconhecidos, na qual expressamente se mencionava que o crédito de C gozava de direito de retenção, verifica-se que não foi apresentada qualquer impugnação, nomeadamente pela X, SA
Ora, sendo certo que o Tribunal solicitou ao senhor administrador da insolvência um esclarecimento referente à identificação do bem imóvel relativamente ao qual o crédito de C gozava de direito de retenção, apenas o fez porque não dispunha das reclamações de créditos apresentadas ao administrador da insolvência.
Contudo, tal em nada buliu com os direitos dos credores, nomeadamente da X, SA, não tendo daí resultado qualquer alteração na lista de créditos apresentada.
Constate-se que, aquando da apresentação da lista de credores, os credores tiveram conhecimento expresso da existência do direito de retenção sobre um bem imóvel apreendido.
Cabia aos credores, caso se suscitasse qualquer dúvida e/ou questão, nomeadamente referente à identificação do bem imóvel sobre o qual incidia aquele direito, proceder à consulta da reclamação de créditos e documentação apresentada com esta e, em último caso, impugnar o reconhecimento do crédito.
Conclui-se, assim, que inexistiu qualquer elemento de prova adicional recolhido pelo Tribunal e, em consequência, que inexiste qualquer nulidade.”
 
D A “Lista de Credores Reconhecidos e Não Reconhecidos” foi junta aos autos pelo Administrador, a 15 de Março de 2017, estando acompanhada de “notas” explicativas onde se esclarece a origem de cada crédito.
No tocante ao crédito da X, SA –credor 5- relacionado como crédito garantido por hipoteca, com “nota h” - na nota respectiva identifica-se como sendo composto tal crédito por contratos de mútuo, com datas e valores, livrança, com subscritores, data e valores e descoberto em conta, identificando-se o prédio sobre o qual foi constituído a hipoteca, data da sua constituição e valores.
Quanto ao crédito de RJ–credor 14 – relacionado como crédito garantido por “direito de retenção/viaturas”, com “nota d” - na nota respectiva identifica-se o crédito como tendo por base sentença proferida no processo ( que identifica) e passa a relacionar as viaturas sobre as quais incide  tal, com modelos, matrícula, numero de quadro e ano.
Quanto ao crédito de C Escócio –credor 6- relacionado como crédito garantido por “direito de retenção s/ imóvel” , com “nota b” – na respectiva nota identifica-se o crédito como “ tendo por base o acordo e homologado no âmbito do processo n.º YY, o qual correu seus termos na comarca da Madeira, - Funchal –Ins. Central- Secção Cível – J2”

E A 26 de Abril de 2017 foi proferido o seguinte despacho:
“Para proferir sentença de verificação e graduação de créditos, notifique o senhor administrador da insolvência para, no prazo de dez dias, identificar o imóvel sobre o qual C goza de direito de retenção.”
O Sr. Administrador respondeu identificando o prédio.
Nem o despacho, nem a resposta foram notificadas aos intervenientes processuais.
De seguida foi proferida a sentença de verificação e graduação de créditos sob recurso.
Foram apreendidos, para a massa insolvente, quatro imóveis.

F  Nada obsta ao conhecimento do recurso.

A recorrente coloca duas questões:
- omissão da informação de que sobre o imóvel hipotecado a seu favor incidia o direito de retenção reclamado pela credora, o que gera, nulidade do acto;
- errada graduação do crédito reclamado pela interessada Cecília que não é oponível à credora hipotecária, dado provir duma transacção celebrada num processo onde a recorrente não interveio; para além do que, dadas as relações familiares entre credora e insolvente deveria ser classificado como “subordinado”.

A questão do parentesco não era conhecida nos autos (ao que se apura do apenso enviado a este tribunal), pelo que só poderia ser conhecida se impugnação do crédito tivesse ocorrido.

Quanto à “oponibilidade” e ao facto do direito de retenção ter origem numa transacção, vem sendo discutido qual o âmbito de intervenção que é exigível ao juiz, nos casos de falta de impugnação, nos termos do nº 1 do artigo 130.º do CIRE.

Temos quem defenda que ao juiz fica reservada a detecção de erros meramente formais e outros a defenderem que o juiz pode e deve atentar nos erros substanciais, pedindo os esclarecimentos que entender pertinentes ao administrador, como aliás a recorrente dá conta nas suas alegações.

No caso, um direito de retenção que tem por base uma “transacção judicial” (sendo desde logo muito discutível se tal direito pode nascer por transacção), sabendo-se das restrições ao reconhecimento de tal direito, mormente por força do Acordão Uniformizador de 4/2014, DE 20-03-2012, PUBLICADO NO DIÁRIO DA REPÚBLICA – 1.ª SÉRIE, N.º 95, DE 19/05/2014 que fixou: ”No âmbito da graduação de créditos em insolvência o consumidor promitente-comprador em contrato, ainda que com eficácia meramente obrigacional com traditio, devidamente sinalizado, que não obteve o cumprimento do negócio por parte do administrador da insolvência, goza do direito de retenção nos termos do estatuído no artigo 755º nº 1 alínea f) do Código Civil.”, era susceptível de ter merecido especial atenção por parte do julgador. 

Anote-se que dos documentos juntos pela retentora vê-se que a base da acção foi não um contrato promessa de compra e venda, mas sim de “dação em pagamento” e não se verifica a existência de “Sinal” no âmbito desse contrato, embora no termo de transacção as partes tenham feito constar referência a “sinal“sem que se veja qualquer suporte (o que deixa indiciada a ideia da existência de manobras defraudatórias do direito do credor hipotecário, a coberto dum processo judicial), mas percebe-se porque o direito de retenção depende da existência de sinal - art.º 755.º f)  e 442.º CC.

Mas o processo não reúne elementos para se aferir da questão na sua amplitude, como pretende a recorrente. Está em causa matéria que teria (terá ) que ser tratada no âmbito da impugnação ao crédito do retentor e não por este tribunal de recurso.

Vejamos agora da questão processual- nulidade. 

Não temos dúvidas que o facto de não se ter feito constar da “lista de credores” o concreto imóvel sobre o qual incidia o direito de retenção aceite, quando para outras garantias se fez essa identificação, constitui lapso de sobejo relevo.

E não se diga que os credores sempre podem consultar as reclamações nos termos do art.º 133.º.
Existindo quatro imóveis apreendidos era exigível que procedesse à individualização das garantias que incidiam sobre cada concreto imóvel.
Não podemos aceitar a afirmação feita pelo juiz recorrido quando invoca que sabendo-se da existência dum direito de retenção sobre “um imóvel apreendido” cabia aos credores proceder à consulta das reclamações.

Porquê entender-se assim e não antes que cabia ao Administrador fazer constar da lista essa individualização?

E tanto ela era necessária e fundamental que o tribunal se viu na necessidade de pedir essa informação ao Administrador.

Diremos, com o ac. da Relação do Porto de 20-4-2017 prof. no proc. 2116/14.7T8VNG-E.P1, que o processo de insolvência “envolve uma fase de pendor declarativo, que visa a declaração de insolvência, com a consequente alteração na situação jurídica do devedor e o despoletar dos efeitos que lhe são inerentes, e uma fase de pendor executivo de natureza concursal, em que são chamados a intervir no processo todos os credores do devedor.
A reclamação de créditos constituirá neste enquadramento o exercício do direito de execução por cada um dos credores, com a particularidade de que não está dependente da apresentação de título executivo. Tanto podem reclamar o seu crédito os credores que estão munidos de título executivo, como os que o não estão, ainda que o reconhecimento do crédito reclamado dependa dos elementos de prova produzidos – cfr. artº 128º do CIRE. Apesar de a reclamação de créditos não estar subordinada à condição que é exigida para a propositura da ação executiva não obstará a que seja considerada como configurando um verdadeiro requerimento executivo[1] em que o acertamento positivo (necessariamente provisório) da existência do crédito e das garantias ou privilégios de que beneficia resulta da apreciação feita pelo administrador da insolvência – cfr. artº 129º do CIRE - compreendendo-se assim que a impugnação seja dirigida contra a lista dos credores reconhecidos, e não contra as reclamações, e legitimando-se por outro lado o entendimento de que a impugnação da lista de credores reconhecidos configura, em termos processuais, uma oposição por embargos[2], iniciada precisamente pelo requerimento de impugnação,”


Ora, se assim é entendido, o que nos parece correcto, não se pode aceitar que a lista não forneça os elementos mínimos que permitam aferir da legitimidade do possível “embargante”. Impõe-se, a nosso ver, que transpareça da lista quem tem a qualidade de “lesado” em face do direito que se entendeu reconhecer.

E tanto mais que em relação aos restantes créditos garantidos essa concreta identificação é feita.

É evidente que essa omissão e o não se ter notificado a credora/recorrente da informação prestada pelo Administrador donde passou a saber-se que o direito de retenção recaia sobre o prédio onerado pela hipoteca, constituem omissões lesivas o direito da credora, pois as consequências da não impugnação do crédito são sabidas e estão vistas na sentença: o direito de retenção a prevalecer à hipoteca.

Essas duas omissões consubstanciam nulidade a influir, decisivamente, no exame e decisão da causa –art.º 195.ºCPC
Cabe assim anular o processado após o momento em que a credora/reclamante deveria ter sido notificada da informação do Administrador.

Pelo exposto, acorda-se em julgar procedente a apelação e consequentemente anula-se o processado, incluindo a sentença de verificação e graduação de créditos, concedendo-se novo prazo para impugnação da “Lista de Créditos Reconhecidos”.
O prazo para a impugnação começa a correr a partir do transito em julgado do presente acórdão.
Custas pela massa.
  

Lx, 2018/2/22



Teresa Soares
Maria de Deus Correia
Nuno Sampaio